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JOSÉ EDUARDO DIAS RIBEIRO DA ROCHA FROTA

Lic. pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

Direito Internacional Privado


Resumo 1.º Semestre
(segundo as aulas dos Profs. Dr. NUNO CASTELO BRANCO e Dr. NUNO ASCENSÃO SILVA)

Coimbra 2002/2003
Índice

1) Introdução:...................................................................................................................8
1.1) Noção e objecto:....................................................................................................8
1.2) A noção de limites da lei:...................................................................................10
1.3) Princípio da territorialidade:............................................................................10
1.4) Tipos de situações jurídicas:..............................................................................11
1.4.1) Situações puramente internas:.......................................................................11
1.4.2) Situações internacionais plurilocalizadas:.....................................................12
1.5) Modo de funcionamento do DIP.:.....................................................................13
Elemento de conexão...................................................................................15
Conceito Quadro..........................................................................................15
1.5.1) A negação da regra de conflitos como «prius» metodológico:.....................16
1.6) A «lex fori» como lei do processo:.....................................................................17
1.7) Natureza e fontes do DIP.:.................................................................................18
1.8) Fundamento geral do DIP., sua natureza e principais interesses que visa
satisfazer:....................................................................................................................20
1.8.1) Fundamento nacional ou internacional do DIP.:...........................................20
1.8.1.1) Doutrinas internacionalistas:..................................................................20
1.8.1.1.1) Doutrinas Internacionalistas ― teoria da delegação:......................21
1.8.1.1.2) Doutrinas internacionalistas ― associação à doutrina unilateralista:
.........................................................................................................................22
1.8.1.2) Posição adoptada:...................................................................................22
1.8.2) Natureza do DIP.:..........................................................................................27
1.9.) Princípios estruturantes do DIP.:....................................................................28
1.9.1) Princípio da harmonia jurídica internacional:...............................................28
1.9.2) Princípio da paridade de tratamento dos ordenamentos jurídicos:................29
1.9.3) Princípio da harmonia jurídica material ou interna:......................................29
1.9.4) Princípio da boa administração da justiça:....................................................30
1.9.5) Princípio da eficácia ou efectividade das decisões:......................................30
1.9.6) Princípio da maior proximidade:...................................................................31
1.10) Conflito entre princípios ― o problema das questões prévias:...................31
1.11) A justiça do DIP.:.............................................................................................32
1.12) O DIP. e domínios afins:..................................................................................34
1.12.1) O DIP. e o Direito Intertemporal:................................................................34
1.12.2) Conflitos internacionais e conflitos internos:..............................................35
1.12.3) DIP. e direito privado uniforme:.................................................................36
1.12.4) DIP. e direito comparado:...........................................................................36
1.12.5) DIP. e Direito Constitucional:.....................................................................37
1.13) Âmbito do DIP.:................................................................................................40
1.13.1) Doutrina alemã e italiana:...........................................................................40
IV Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Índice —

1.13.2) Doutrina anglo-saxónica:............................................................................40


1.13.3) Doutrina francesa:.......................................................................................40
1.13.4) Direito da nacionalidade:............................................................................42
1.13.4.1) Conflitos de nacionalidade:..................................................................42
1.13.5) Direito dos estrangeiros:..............................................................................44
1.13.5.1) Princípios relativos ao direito dos estrangeiros:...................................44
1.13.6) Competência Internacional:.........................................................................45
1.13.6.1) Regras de conexão da competência internacional:...............................46
1.13.7) Reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras:.............................47
1.13.7.1) Sistemas de reconhecimento:...............................................................48
1.13.7.1.1) Sistema de reconhecimento de pleno direito:................................48
1.13.7.1.2) Sistema da verificação prévia da regularidade da sentença:.........48
1.13.7.1.2.1) Sistema da verificação prévia da regularidade da sentença
com admissão da revisão de mérito:............................................................48
1.13.7.1.2.2) Sistema da verificação prévia da regularidade da sentença sem
revisão de mérito (sistema da revisão formal):............................................49
1.13.7.1.3) Sistema inglês ou da «common law»:...........................................49
1.14) Génese e história do DIP.:...............................................................................50
1.14.1) Origens do DIP.:..........................................................................................50
1.14.2) Fases de desenvolvimento:..........................................................................51
1.14.2.1) A teoria dos estatutos:..........................................................................51
1.14.2.1.1) Escola estatutária italiana (séculos XIV a XVI):..........................52
1.14.2.1.2) Escola estatutária francesa (séculos XVI a XVIII):......................53
1.14.2.1.2.1) A teoria de DUMOULIN:......................................................53
1.14.2.1.2.1) A teoria de D’ARGENTRÉ:..................................................54
1.14.2.1.3) Escola estatutária holandesa (século XVII):.................................54
1.14.2.1.3.1) A teoria de HUBER:..............................................................54
1.14.2.2) O século XIX e a ciência do DIP.:.......................................................55
1.14.2.2.1) O sistema de SAVIGNY:..............................................................56
1.14.2.2.1.1) Aplicações práticas da doutrina de SAVIGNY:.....................57
1.14.2.2.1.2) Limites da Comunidade de Direito:.......................................58
1.14.2.2.2) O sistema de MANCINI:...............................................................59
1.14.2.2.3) O sistema de PILLET:...................................................................61
1.14.2.2.4) Outras doutrinas universalistas:....................................................63
1.14.2.3) A evolução posterior do DIP.:..............................................................63
1.14.2.4) Consequências do movimento codificador do DIP. ― a reacção contra
o universalismo:...................................................................................................64
1.14.2.5) Reacção contra o nacionalismo ou particularismo positivista.
Orientação dominante na actualidade:.................................................................65
2) O método do Direito Internacional Privado:............................................................66
2.1) A concepção clássica (ou tradicional) europeia do DIP.:................................66
2.2) A crítica norte-americana:................................................................................68
2.3) Principais posições críticas:...............................................................................69
2.3.1) A crítica de DAVID CAVERS:....................................................................69
2.3.1.1) Críticas a esta teoria:..............................................................................70
2.3.1.2) O segundo momento de DAVID CAVERS:..........................................70
2.3.1.3) Crítica ao segundo momento de CAVERS:...........................................72
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota V

2.3.1.4) O DIP. e a CRP. Segundo CAVERS:.....................................................74


2.3.2) A crítica de BRAINERD CURRIE:..............................................................74
2.3.2.1) Críticas a esta teoria:..............................................................................75
2.3.2.2) O DIP. e a CRP. segundo CURRIE:......................................................75
2.3.2.3)Críticas a esta posição:............................................................................77
2.3.3) A crítica de ALBERT EHRENZWEIG:.......................................................77
2.3.3.1) Críticas a esta teoria:..............................................................................79
2.3.3.2) O DIP. e a CRP. segundo EHRENZWEIG:...........................................80
2.4) A aproximação entre a doutrina europeia e a perspectiva norte-americana:
.....................................................................................................................................81
2.4.1) A flexibilização:............................................................................................83
2.4.1.1) Cláusula de excepção:............................................................................83
2.4.2) A materialização do DIP.:.............................................................................84
2.4.3) Terceiro nível de aproximação:.....................................................................86
2.4.3.1) A qualificação:.......................................................................................87
2.4.3.2) A adaptação:...........................................................................................87
2.4.3.2) Normas espacialmente auto-limitadas ou auto-condicionadas:.............88
2.4.3.2.1) Normas espacialmente auto-limitadas de carácter restritivo:..........89
2.4.3.2.2) Normas espacialmente auto-limitadas de carácter ampliado (NANI):
.........................................................................................................................90
2.5) O Direito Internacional Privado Material:......................................................90
2.5.1) Vias pelas quais os defensores de uma maior «materialização» do DIP.
fizeram avançar as suas propostas:..........................................................................91
2.5.2) Modalidades de normas de DIP. material:...................................................92
2.5.2.1) Normas de DIP. material de fonte interna:.............................................92
2.5.2.1.1) Normas de DIP. material de origem legislativa:.............................92
2.5.2.1.2) Normas de DIP. material de origem jurisprudencial:......................93
2.5.2.1.3) Normas de DIP. material de origem doutrinal:...............................94
2.5.2.2) Normas de DIP. material de fonte internacional:...................................95
2.5.2.2.1) Convenções de unificação:..............................................................95
2.5.2.2.2) Leis uniformes:................................................................................95
2.5.3) Argumentos a favor desta teoria:..................................................................96
2.5.4) Críticas a estes argumentos:..........................................................................96
2.5.5) Principais conclusões:...................................................................................98
3) Parte Geral:..............................................................................................................102
3.1) As regras de conflitos:......................................................................................102
3.1.1) Conceito, «modus operandi» e elementos estruturais da regra de conflitos:
...............................................................................................................................102
3.1.1.1) Conceito-quadro:..................................................................................103
3.1.1.1.1) Noção e natureza:..........................................................................103
3.1.1.1.2) Objecto:.........................................................................................104
3.1.1.1.3) Função:..........................................................................................106
3.1.1.2) O elemento de conexão:.......................................................................106
3.1.1.2.1) Noção e natureza:..........................................................................106
3.1.1.2.2) Espécies: conteúdo da conexão, conexões «localizadoras» e
«substanciais»:...............................................................................................108
3.1.1.2.3) Tipos de conexão:..........................................................................108
VI Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Índice —

3.1.1.2.3.1) Regras de conflitos de conexão una ou simples:....................108


3.1.1.2.3.2) Regras de conflitos de conexão múltipla ou complexa:.........109
3.1.1.2.3.2.1) Regras de conflitos de conexão múltipla alternativa:......109
3.1.1.2.3.2.2) Regras de conflitos de conexão múltipla cumulativa:.....109
3.1.1.2.3.2.3) Regras de conflitos de conexão múltipla distributiva:....110
3.1.1.2.3.2.4) Regras de conflitos de conexão múltipla subsidiária:.....110
3.1.1.2.4) Espécies de conceitos designativos da conexão:.........................111
3.1.1.2.5) Diferença entre conexões factuais e conexões jurídicas:..............112
3.1.1.2.6) Interpretação e aplicação dos conceitos designativos de
qualidades jurídicas:......................................................................................112
3.1.1.2.7) Elemento de conexão e conceito-quadro ― diversidade de sentido
e função:........................................................................................................113
3.1.1.3) A consequência jurídica:......................................................................115
3.1.1.3.1) Relevância indirecta do direito estrangeiro:..................................118
3.1.2) Relevância do factor «tempo» na actuação das regras de conflitos:...........120
3.1.2.1) Sucessão de regras de conflitos do foro:..............................................120
3.1.2.2) Sucessão de leis no ordenamento jurídico aplicável:...........................122
3.1.2.3) O conflito móvel:.................................................................................122
3.1.2.3.1) Solução do conflito móvel no âmbito do estatuto pessoal:...........123
3.1.2.3.2) Solução do conflito móvel no âmbito do estatuto real:.................123
3.1.3) Função das regras de conflitos:...................................................................124
3.1.3.1) As regras de conflitos bilaterais e unilaterais — regras de conflitos
imperfeitamente bilaterais:................................................................................124
3.1.3.1.1) O sistema da bilateralidade:..........................................................124
3.1.3.1.2) O sistema da unilateralidade:........................................................125
3.1.3.1.2.1) A justificação tradicional ― crítica:......................................125
3.1.3.2) A doutrina da auto-limitação espacial da regra de conflitos
(FRANCESCAKIS):.........................................................................................128
3.1.3.2.1) Críticas à teoria de FRANCESCAKIS:........................................128
3.1.3.2.2) Posição adoptada:..........................................................................129
3.1.3.3) A doutrina de ROLONDO QUADRI (apreciação dos seus princípios
orientadores) ― crítica:.....................................................................................130
3.1.3.4) Diferenças entre CURRIE e QUADRI:...............................................131
3.1.4) O problema da qualificação:.......................................................................132
3.1.4.1) O problema do objecto da qualificação ou da qualificação propriamente
dita:....................................................................................................................133
3.1.4.2) Doutrina seguida em Portugal:.............................................................135
3.1.4.2.1) Críticas a tal procedimento:...........................................................135
3.1.4.3) As fraquezas do art. 15º do CC. do ponto de vista da doutrina dominante
― refutação:......................................................................................................136
3.1.4.4) A doutrina dominante ou teoria da dupla qualificação (ROBERTSON):
...........................................................................................................................136
3.1.4.5) ROBERTO AGO, ANZILOTTI, FEDOZZI:.......................................137
3.1.4.6) Os problemas (+/-) de qualificação:.....................................................138
3.1.4.7) A questão do conflito de qualificações:...............................................139
3.1.4.7.1) Conflitos positivos de qualificação:..............................................139
3.1.4.7.1.1) Conflito entre a «qualificação forma» e a «qualificação
substância»:...............................................................................................139
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota VII

3.1.4.7.1.2) Conflito entre a «qualificação real» e a «qualificação pessoal»:


...................................................................................................................139
3.1.4.7.1.3) Conflito entre a qualificação «regime matrimonial» e
«sucessório»:.............................................................................................140
3.1.4.7.2) Conflitos negativos:.......................................................................140
3.1.4.8) Passos lógicos do processo de qualificação:........................................140
4) Casos práticos:.........................................................................................................143
Direito Internacional
Privado
Resumo do 1º Semestre

2002 — 2003

Bibliografia:

BOBBIO, Norberto — «Teoria do Ordenamento Jurídico», 10ª edição


brasileira, UNB, Brasília—1997.

CORREIA, A. Ferrer ― «Lições de Direito Internacional Privado», 1ª


edição, Almedina, Coimbra―2000.
― «Direito Internacional Privado ― Algumas
Questões».

MACHADO, João Baptista ―«Lições de Direito Internacional


Privado», 3ª edição, Almedina, Coimbra―1999.

RAMOS, Rui Manoel Genz de Moura ― «Direito Internacional Privado e


Constituição», Coimbra.

1) Introdução:

1.1) Noção e objecto:

«O Direito Internacional Privado é o ramo da


ciência jurídica onde se definem os princípios,
se formulam os critérios, se estabelecem as
normas a que deve obedecer a busca de
soluções adequadas para os conflitos
emergentes de relações jurídico-privadas
internacionais».
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 9

Nas palavras de FERRER CORREIA, o DIP. é o «ramo da ciência


jurídica onde se procuram formular os princípios e regras
conducentes à determinação da lei ou das leis aplicáveis às questões
emergentes das relações jurídico-privadas de carácter internacional
e, bem assim, assegurar o reconhecimento no Estado do foro das
situações jurídicas puramente internas de questões situadas na órbita
de um único sistema de Direito estrangeiro (situações internacionais
de conexão única, situações relativamente internacionais)».
O Direito, assim como ensina NORBERTO BOBBIO, regula,
geralmente, relações intersubjectivas em que os respectivos sujeitos são cidadãos do
mesmo Estado e o seu objecto (coisa ou prestação) pertence ao território deste Estado
(ou é nesse Estado que a prestação deve ser cumprida). A grande maioria dos casos que
em determinado país chegam a solicitar a intervenção dos órgãos e agentes do Estado
incumbidos da aplicação do Direito, pertencem inteiramente à vida jurídica interna
desse país, não se levantando aqui, portanto, qualquer dúvida acerca do ordenamento
jurídico estadual que ao caso deve ser aplicado.
Contudo, as coisas nem sempre se passam assim. Nem todos os factos e
processos do comércio jurídico-privado decorrem inteiramente no âmbito de uma só
comunidade estadual, e isso porque a origem de todos ou quase todos os problemas do
DIP. resulta da existência de:
→ trocas internacionais → comércio jurídico internacional;
→ correntes migratórias entre os Estados → deslocação de pessoas.

Mas o que fazer ou que norma aplicar quando um dos sujeitos da relação
for estrangeiro ou quando a coisa objecto da relação jurídica se encontra em um outro
Estado?
Como vimos, o DIP. se ocupa das relações plurilocalizadas, ou
seja, daquelas relações que, correspondendo a uma actividade que não se comporta nas
fronteiras de um único Estado, entram em contacto, através dos seus elementos
(sujeitos, objecto, facto jurídico, garantia), com diversos ordenamentos jurídicos.
Dada a conexão existente entre essas relações (através dos seus
elementos) e várias ordens jurídicas não seria, decerto, boa solução sujeitá-las sempre e
sem mais exame à autoridade do direito local, mas, de outro modo (e como é natural)
deve escolher-se, dentre as ordens jurídicas que com a relação entram em contacto, a
que lhe seja mais próxima ― aquela ordem jurídica que com a relação tenha um
contacto mais forte ou mais estreito.
Não obstante o que ficou dito, parte da doutrina sustentou que nada
obrigava a que os tribunais de um Estado, quando chamados a conhecer de um conflito
emergente de uma relação jurídico-privada com carácter internacional, tivessem de
encarar a possibilidade de, para ela, encontrar uma regulamentação diferente daquela
que directamente resultasse do seu direito interno. É esta a chamada teoria da
territorialidade que consagrou o princípio da territorialidade das leis.
Uma tal teoria, contudo, já desde a Escola Estatutária foi negada e,
quanto a nós, também achamos que deve ser rejeitada, pois a aplicação da «lex fori
materialis» (da lei do foro) a quaisquer factos e situações que lhe sejam estranhos (ou
seja, que não tenham com ela qualquer conexão espacial), violaria gravemente o
princípio universal do direito segundo o qual, visando a norma jurídica regular os
comportamentos humanos que se desenvolvem no seio de uma sociedade, não poderá
10 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

considerar-se aplicável a condutas que se situem fora da sua esfera de eficácia (fora,
portanto, do alcance do seu preceito), e isso quer em razão do tempo (princípio da
irretroactividade das leis), quer em razão do lugar onde se verificam (princípio da não
transactividade das leis).
O princípio da não transactividade das leis, portanto, consiste no
princípio segundo o qual nenhuma lei ― a do foro ou qualquer outra ― deve
considerar-se aplicável a um facto ou situação que não se acha (por qualquer dos seus
elementos) em contacto com ela. O não acatamento deste princípio universal de direito
traria inevitavelmente consigo o perigo da ofensa de direitos adquiridos ou de
expectativas legítimas dos indivíduos.
A denominação deste ramo como «Direito Internacional Privado»
ficou assente por influência de uma obra intitulada «Traité du Droit International
Privé» de FOELIX em 1843. É esta a denominação que veio a prevalecer nos países
da Europa Continental e América Latina, contudo, nos países anglo-americanos
prevaleceu a denominação «Conflito de Leis», assim como denominavam os
estatutários holandeses e alemães e também JOSEPH STORY.

1.2) A noção de limites da lei:

As normas jurídicas, como normas de conduta que são, vêem o seu


âmbito de eficácia limitado pelos factores tempo e espaço:
 não podem, por um lado, ter a pretensão de regular os factos que
se passaram antes de sua entrada em vigor;
 nem, por outro lado, os que se passem ou se passaram sem
qualquer contacto com o Estado que as editou.

Ou seja, o ordenamento jurídico de um Estado não pode chamar a si a


orientação daquelas condutas que se passaram para além da sua possível esfera de
influência. Há que respeitar-se os direitos adquiridos ou situações jurídicas constituídas
à sombra da lei eficaz, isto é, da lei sob cujo império ou dentro de cujo âmbito de
eficácia o direito foi adquirido ou a situação jurídica se constituiu, dado que a natural
expectativa dos indivíduos na continuidade e estabilidade das suas relações jurídicas ou
direitos é um pressuposto fundamental da existência do Direito como ordem implantada
na vida humana de relação.

1.3) Princípio da territorialidade:

A colocação do problema da lei estadual aplicável ou da lei competente


para reger as relações jurídicas privadas internacionais não parece como algo de
inevitável.
Já vimos que parte da doutrina sustentou que nada obrigava a que os
tribunais de um Estado, quando chamados a conhecer de um conflito emergente de uma
relação jurídico-privada de carácter internacional, tivessem, só por isso, de encarar a
possibilidade de para elas encontrar uma solução diferente daquela que directamente
resultasse do seu próprio ordenamento jurídico.
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 11

O princípio da territorialidade, portanto, é aquele segundo o qual os


tribunais de um país devem aplicar sempre, sejam quais forem as circunstâncias do
caso «sub judice», as leis vigentes nesse país, e isso porque:
 é de presumir que o conjunto das leis vigentes (o ordenamento
jurídico) nesse país é bom e justo; e
 é este o sistema que melhor poderá garantir o acerto das decisões
judiciais, pois «a possibilidade de erro judiciário
redobra logo que o juiz deixe de pisar o chão firme
dos princípios e instituições do direito pátrio».

Contudo, os inconvenientes deste arcaico sistema em que encontrava


plena aplicação o princípio da territorialidade das leis («omnia statuta realia»)
superam em muito suas vantagens:
 aplicar o direito do Estado do foro neste tipo de situações poderá
levar a uma solução de todo imprevisível para as partes no
momento da celebração ou constituição da relação jurídica.

É forçosa, e postulada pela própria natureza das coisas, a colocação do


problema da lei aplicável para todas e quaisquer relações com elementos internacionais.
É de elementar justiça que toda a relação da vida social seja apreciada,
onde quer que tal se faça necessário, em função dos preceitos da lei competente.
Os Estados formam uma comunidade internacional, e o reconhecimento
e respeito que mutuamente se devem tributar bem poderão abranger as respectivas
instituições civis. As divergências entre estas não traduzem, em regra, qualquer
autêntico desnível de civilização, que faça aparecer como insuportável no Estado do
foro a aceitação e a aplicação de leis estranhas à sua ordem jurídica.
Contudo, é por uma consideração fundamental dos interesses dos
indivíduos, e não do interesse e soberania dos Estados, que as leis civis devem ser
reconhecidas e aplicadas além fronteiras. Em DIP. são os interesses relativos dos
indivíduos que constituem a dimensão preponderante.

1.4) Tipos de situações jurídicas:

1.4.1) Situações puramente internas:

Neste primeiro caso, todos os elementos de contacto ou de conexão


relevantes de uma relação jurídica (sujeitos, objecto, facto jurídico) referem-se ao
mesmo ordenamento jurídico que é o ordenamento jurídico local (v.g.: um contrato de
mútuo celebrado em Portugal entre dois portugueses e para ser executado em Portugal).
Aqui, naturalmente, ao órgão português de aplicação do direito não se
coloca qualquer problema de determinação da lei estadual aplicável ― esta lei há-de
ser, obviamente, a lei portuguesa.
12 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

1.4.2) Situações internacionais plurilocalizadas:

As situações internacionais plurilocalizadas podem ser de dois tipos:


 situações relativamente internacionais; e
 situações absolutamente internacionais.

a) Situações relativamente internacionais: dizem respeito a todos os factos que


apresentam pontos de contacto ou conexão com um único
ordenamento jurídico que, todavia, não é o ordenamento jurídico do
foro chamado a conhecer da questão controvertida.
Também aqui não se põe o problema da determinação da lei estadual
aplicável, pois, por respeito ao princípio da não transactividade, apenas poderá ser
aplicada ao caso a lei do único ordenamento jurídico que com a relação jurídica em
causa apresenta um ponto de contacto ou de conexão (vg.: A, francês, é casado com B,
também de nacionalidade francesa; residem em França e discutem em Portugal a
propriedade de um imóvel situado em França). Qual a lei a aplicar? Por respeito ao
princípio da não transactividade, a única lei aplicável ao caso é a lei francesa.

b) Situações absolutamente internacionais: englobam-se neste caso todos os factos


que apresentam pontos de contacto ou conexão com vários
ordenamentos jurídicos (vg.: comerciante português conclui em
Inglaterra um contrato com um inglês).
Apenas neste último caso coloca-se verdadeiramente o problema da
determinação da lei estadual aplicável («choice of law»), visto serem duas ou mais as
leis em contacto com a situação.
Neste segundo tipo de situações internacionais, o princípio da não
transactividade assume uma dupla função:
 por um lado, exclui todos os ordenamentos jurídicos que não
apresentam pontos de contacto ou conexão com a situação em
causa, não podendo, portanto, ser aplicados ― dimensão
negativa do princípio da não transactividade das leis; e
 por outro lado, delimita os ordenamentos jurídicos
potencialmente aplicáveis ― dimensão positiva do princípio da
não transactividade das leis.

Contudo, quando estamos perante uma situação absolutamente


internacional, a simples aplicação do princípio da não transactividade das leis, por
si só, não basta. Após a realização desta tarefa de delimitar os ordenamentos jurídicos
estaduais potencialmente aplicáveis a uma dada situação absolutamente
internacional, temos ainda que fazer intervir uma especial regra de conflitos capaz
de dirimir o concurso entre as leis aplicáveis, e dirima este concurso ou conflito tendo
em atenção o ponto de contacto ou de conexão entre os ordenamentos jurídicos em
concurso e os factos que exigem uma solução (segundo momento do DIP.) ― há que
atender à conexão entre as leis potencialmente aplicáveis e os factos através do lugar da
sua verificação, à sede das pessoas e à situação da coisa ou outros elementos de
conexão da maior relevância.
Distingue-se, assim, o DIP. do direito transitório (ou intertemporal),
pois, enquanto o DIP. tem por objecto os conflitos de leis no espaço, o direito
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 13

transitório dirime os conflitos de normas jurídicas no tempo. Por outras palavras,


enquanto o direito intertemporal ou transitório trata de um problema relativo à
dinâmica das leis, o DIP. trata de um problema relativo à dinâmica de relações
jurídicas.

1.5) Modo de funcionamento do DIP.:

Ao contrário dos outros ramos de direito que são integrados por normas
materiais, o DIP. é integrado por normas secundárias ou indirectas (normas
instrumentais) denominadas «regras de conflitos».

Regras de conflitos: propõem-se a resolver um problema de concurso entre preceitos


jurídico-materiais procedentes de diversos sistemas de direito e
realizam esta função remetendo para um determinado
ordenamento jurídico designado competente por um determinado
elemento operativo e será este o ordenamento jurídico
competente que solucionará em termos materiais aquele litígio.
Logo, há aqui um processo indirecto de remissão.

O processo normalmente adoptado pelo DIP. para regular as relações


jurídicas do comércio privado internacional é o processo próprio do Direito de
Conflitos, ou seja, ao invés de regular directa ou materialmente a relação, adopta um
processo indirecto de remissão que consiste em determinar a lei ou as leis que hão de
reger a relação jurídica «sub judice». Por isso é que se diz que o DIP. é integrado
por normas secundárias ou indirectas.

 Localização no tempo
Direito de Conflitos (Direito Intertemporal)

 Localização no espaço
(DIP.)

Direitos de conexão: a conexão dos factos com os sistemas jurídicos é que constitui o
dado determinante (facto operativo ou facto jurídico) básico de
aplicabilidade dos mesmos sistemas jurídicos.

A regra básica de todo o Direito de Conflitos é que a quaisquer factos


aplicam-se as leis ― e só se aplicam as leis ― que com eles se achem em contacto. É
esta a formula que nos dá o âmbito de eficácia possível de qualquer lei.
Toda a lei, como regra de dever ou regra de conduta, encontra limites
espácio-temporais ao seu âmbito de eficácia. É isto que se pretende dizer quando se fala
na relatividade espácio-temporal da concepção de justiça de qualquer sistema jurídico, a
propósito da razão de ser do Direito de Conflitos.
14 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

Princípio do reconhecimento e aplicação das leis estrangeiras: nenhuma legislação


hoje existe que se pretenda fazer valer, sem excepção, para todos
os factos e relações do comércio jurídico. Não há Estado que não
consinta em excluir do âmbito de aplicação das suas normas de
direito privado determinadas categorias de relações e de factos
(que tendem a ser tantos quanto os que se situam fora dos limites
da vida jurídica local) para os sujeitar a critérios valorativos de
outros sistemas jurídicos. É esta uma prática antiga e comum das
nações ― norma de Direito Internacional positivo
consuetudinário.

A determinação da lei aplicável ao caso «sub judice» decorre, por


vezes, directa ou imediatamente daquele princípio segundo o qual, visando as normas
jurídicas regulamentar os comportamentos humanos que se desenvolvem no seio de
uma sociedade, não poderão considerar-se aplicáveis a condutas que se situem fora da
sua esfera de aplicação (fora, portanto, do alcance do seu preceito) quer em razão do
tempo (princípio da irretroactividade das leis), quer em razão do espaço (princípio da
não transactividade das leis). Ora, como se sabe, no caso das situações
relativamente internacionais, ou seja, no caso daquelas situações que apresentam
pontos de contacto com um único ordenamento jurídico, a simples aplicação do
princípio da não transactividade das leis, por si só, opera a determinação do
ordenamento jurídico competente para regular materialmente o caso «sub judice».
Quando, porém, se trata de uma situação absolutamente
internacional, a simples aplicação do princípio da não transactividade das leis, por
si só, não basta. Nestes casos, o dito princípio só operará num primeiro momento, pois,
através da sua dimensão negativa, o princípio da não transactividade excluirá a
possibilidade de aplicação de ordenamentos jurídicos que com a situação concreta não
apresentam qualquer ponto de contacto ou de conexão e, através da sua dimensão
positiva, o princípio da não transactividade determinará os ordenamentos jurídicos
potencialmente aplicáveis ao caso «sub judice».
Vimos, assim, que perante uma situação absolutamente
internacional, a aplicação do princípio da não transactividade das leis apenas
delimita os ordenamentos jurídicos potencialmente aplicáveis ao caso; deste modo, o
próximo passo segundo momento do DIP.) será determinar qual destes ordenamentos
jurídicos deverá ser efectivamente aplicado ao caso, o que se faz através do recurso a
uma especial regra de conflitos.
O que a regra de conflitos faz é destacar ou privilegiar um dos pontos
de contacto ou de conexão, determinando como aplicável a lei para a qual essa conexão
aponte.
Verifica-se que a conexão privilegiada será hora uma, hora outra,
conforme o domínio ou matéria jurídica em causa. Assim, por exemplo, se estivermos
perante um caso relativo ao estatuto pessoal do sujeito (direitos de personalidade,
estado e capacidade, relações de família, sucessões «mortis causa»), dar-se-á
preferência a uma conexão pessoal (a nacionalidade ou o domicílio das pessoas
interessadas); se a questão a solucionar disser respeito à forma dos actos jurídicos, dar-
se-á primazia à conexão «lugar da realização do acto»; e, finalmente, se se
tratar de uma questão relativa à constituição ou transferência de direitos reais,
privilegiar-se-á a conexão que aponte para o lugar da situação da coisa («lex rei
sitae»).
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 15

Na estrutura de uma regra de conflitos entram, fundamentalmente, dois


elementos:
a) aquele que define o domínio ou matéria jurídica em questão ―
trata-se aqui do chamado «conceito quadro»; e
b) aquele que designa o elemento de conexão relevante
relativamente ao domínio ou matéria jurídica em questão
(«conceito quadro») ― aqui temos o chamado
«elemento de conexão».

Por exemplo: artigo 46º do Cód. Civ.: «o regime da posse... é definido pela
lei do Estado em cujo território as coisas se encontrem
situadas».

Direitos Reais «lex rei sitae» ?

Conceito Elemento de Consequência Jurídica


Quadro conexão

O elemento de conexão pode referir-se:

a) à pessoa dos sujeitos da relação jurídica;


b) ao acto ou facto jurídico encaradoConceito quadro
em si mesmo; e
c) à coisa objecto da relação ou do negócio jurídico.

Logo se vê como a uma mesma relação poderão ser aplicáveis várias


leis (vg.: se for uma a lei aplicável à forma e outra à substância do acto), desde que se
trate de questões ou problemas jurídicos distintos. A aplicação cumulativa de várias
leis, ou seja, a aplicação de regras jurídicas diferentes à mesma questão de direito é
que deve ser excluída a fim de evitar antinomias ou contradições normativas.
O conceito quadro é neutro, pois, uma vez que apenas determina o
domínio ou matéria jurídica em questão, não designa este ou aquele ordenamento
jurídico, mas todos eles.
Relativamente ao elemento de conexão, que é o elemento de regra de
conflitos que designa a conexão relevante relativamente ao domínio ou matéria
jurídica em questão, como o DIP. é um ramo do direito interno («é internacional pelo
objecto e estadual pela fonte»), cada um dos Estados procede às suas próprias
apreciações quanto às conexões que entendam serem as mais adequadas e mais
próximas em termos espaciais para reger as situações jurídicas de carácter internacional,
logo, não há (ou pode não haver) coincidência entre as opções conflituais.
Aqui nos surge com extrema relevância o princípio da harmonia
jurídica internacional: quanto a um mesmo domínio ou matéria jurídica, todos os
Estados deveriam apontar para uma mesma lei, escolhendo, obviamente, um mesmo
16 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

elemento de conexão. E isto em atenção a certos valores que o DIP. visa acautelar,
entre eles:
→ protecção das expectativas jurídicas legitimamente concebidas
pelos indivíduos; e
→ protecção da segurança jurídica internacional.

Este princípio, em suma, pretende tutelar a confiança, pois o desejável é


que, independentemente do Estado onde a questão se coloque, todos decidam no mesmo
sentido.

1.5.1) A negação da regra de conflitos como


«prius» metodológico:

Costuma-se perguntar relativamente a este ponto:


a) Por quê é que a regra de conflitos é uma norma
instrumento?
b) Por quê é que a regra de conflitos não é um
«prius» metodológico?
c) Por quê é que o DIP. não é um mero somatório de
regras de conflitos?
d) O quê é o carácter basilar da regra de conflitos?

Na verdade, todas estas questões são equivalentes.


O método do DIP. não se resume, em absoluto, no funcionamento das
regras de conflitos. Elas não são o vértice, o ponto central («prius») em torno do qual
o DIP. gravita; o DIP. não é um mero somatório de regras de conflitos, pois:
1) As regras de conflitos fundamentam-se em
princípios e valores fundamentais de Direito Internacional. É com base
em tais princípios que elas ganham o seu carácter. As regras de
conflitos vão ganhando o seu substracto com base nos princípios que
elas pretendem obviar. É com estes princípios que colmatamos
algumas lacunas às quais as regras de conflitos não conseguem dar
resposta.
2) Há situações internacionais em que não é
necessário recorrer-se a uma regra de conflitos, bastando-nos o
funcionamento do princípio da não transactividade (é o que ocorre, já
o vimos, com as situações relativamente internacionais).
Nas situações relativamente internacionais, já o vimos
também, apenas recorrendo a este princípio da não transactividade,
limitamos o círculo de leis aplicáveis e chegamos a uma conclusão de
qual a lei a ser aplicada, sem necessidade de recorrermos a uma
especial regra de conflitos, assim, a regra de conflitos não deve ser
entendida como o «prius», o vértice, em torno do qual o DIP. gravita.
3) A mais, há situações que vão ser reconhecidas sem
que tenham sido constituídas à face da lei considerada competente pela
nossa regra de conflitos (v.g.: situação dos direitos adquiridos).
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 17

Em nome de interesses basilares do DIP. , vamos derrogar a


nossa regra de conflitos e vamos reconhecer uma situação constituída
com base numa outra regra de conflitos, o que nos leva a concluir que
as regras de conflitos não são, assim, tão absolutas.
4) Podem-se divisar outros métodos possíveis para a
resolução de questões de DIP., assim como sucede com as normas de
DIP. material (são métodos alternativos ao DIP. conflitual ― v.g.:
Convenção de Genebra em matéria de Cheques, Letras e Livranças).

1.6) A «lex fori» como lei do processo:

O processo seguido perante os tribunais portugueses é regulado pela lei


portuguesa, ainda que ao fundo da causa deva ser aplicada uma lei estrangeira. Isso é
assim, pois entende-se que as leis relativas ao rito processual (ao formalismo) não
levantam um problema de conflito de leis ― não afectam os direitos substanciais das
partes. Em suma, a «lex fori» é, neste caso, de aplicação imediata e territorial.
Contudo, devemos salientar algumas excepções a esta regra:
→ as leis sobre prova podem, simultaneamente, afectar o fundo ou
substância do direito, por isso devem, para efeitos de conflitos de
leis, considerar-se como pertinentes ao direito material ou
substancial.

Há dois tipos de leis sobre prova:

a) Direito probatório formal: refere-se propriamente à actividade


do juiz, dos peritos, ou das próprias partes no decurso
do processo.
b) Direito probatório material: diz respeito às leis que decidem
sobre a admissibilidade deste ou daquele meio de prova, sobre o
ónus da prova e sobre as presunções legais. Aos pontos ou
questões de direito regulados por este tipo de normas já não se
aplica a «lex fori» enquanto «lex fori» (ou seja, enquanto lei
reguladora do processo), mas a (s) lei (s) competente (s) para
regular o fundo da causa:
o lei reguladora da forma dos actos;
o lei reguladora da relação jurídica em litígio;
o lei reguladora dos actos ou factos aos quais vai ligada a
presunção legal.

Importa salientar: a competência da «lex fori» enquanto pura lei de processo não
depende de qualquer conexão particular que a ligue à situação
jurídica em litígio.

Basta:
→ que o tribunal deste Estado seja chamado a decidir a questão;
→ que se verifique o pressuposto da competência interna de jurisdição
desse Estado; e
18 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

→ que a acção, de facto, seja posta em movimento.

1.7) Natureza e fontes do DIP.:

As questões emergentes das relações jurídico-privadas internacionais,


das quais se incumbe o DIP., se resolvem, em cada Estado, de acordo com as normas
pertencentes à ordem jurídica nele vigente, assim, podemos dizer que o DIP. é, todo ele,
de fonte estadual. Já vimos a este respeito que o DIP. é um ramo do direito interno,
sendo que cada Estado procede às suas próprias apreciações quanto ao elemento de
conexão que entende mais adequado ou mais próximo em termos espaciais para reger
certas situações jurídicas internacionais, podendo, assim, haver (como é comum que
haja) grandes divergências nas opções conflituais.

«Internacional pelo objecto, o DIP. é direito estadual ou interno pela


fonte».

A este respeito pergunta-se: estarão os Estados obrigados a receber na sua ordem


jurídica interna as normas de conflitos postuladas pelo
Direito Internacional Público geral?

Tem-se, actualmente, considerado que não. Não obstante, alguns autores


(dentre os quais KAHN e GUTZWILLER) entendem que os Estados estão obrigados a
receber na sua ordem jurídica interna as normas de conflitos postuladas pelo Direito
Internacional Público geral. Estariam incluídas neste caso:
a) a regra que declara aplicável aos imóveis a «lex rei sitae»;
b) a regra que, relativamente à forma externa dos contratos, remete
para a lei do lugar da celebração do negócio; e
c) o preceito que manda que os contratos sejam regulados pela lei
escolhida pelos contraentes (princípio da autonomia da vontade).

A doutrina dominante, contudo, tem se recusado a subscrever tal teoria,


pois entende que do simples facto de determinados princípios serem de aplicação muito
geral não pode concluir-se que eles sejam autênticos preceitos de Direito Internacional
Público geral.
Deste modo e se, conforme entendemos, não se pode aceitar a teoria
proposta por KAHN e GUTZWILLER, muito menos se poderá aceitar a teoria
proposta por ZITELMANN que pretendeu construir um sistema completo de DIP.
partindo de certos princípios de Direito Internacional Público, mais precisamente, dos
princípios da soberania pessoal e territorial dos Estados. Tais normas de DIP.
supraestadual, contudo, para além do seu valor paradigmático, teriam a função única de
integrar as lacunas da legislação positiva dos diversos Estados.
A verdade é que não existe um DIP. geral de carácter verdadeiramente
internacional, o que se prova pelo facto de os Estados agirem na convicção de gozarem
de uma liberdade praticamente ilimitada quando fixam os pressupostos de
aplicabilidade de leis estrangeiras «in foro domestico».
O Direito Internacional Público vigente, no entanto, impõe uma
obrigação para os Estados, qual seja, a de não se recusarem, de maneira sistemática, a
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 19

aplicar direito estrangeiro, prevendo que os seus tribunais apliquem exclusivamente o


direito nacional. É também o Direito Internacional Público que impõe aos Estados o
dever de não aplicarem o seu direito interno a situações que lhe sejam absolutamente
estranhas; e o de aplicarem o direito vigente em certo país a factos que por inteiro
pertençam à vida jurídica interna deste.
Contudo, se não há normas de conflitos decorrentes de preceitos de
Direito Internacional Público geral, cabe assinalar a existência de numerosos tratados e
convenções inter-estaduais versando sobre matéria de DIP.
Assumem aqui principal relevo as Convenções da Haia que,
inicialmente, tiveram relativo insucesso pelo facto de consagrarem o princípio da
aplicabilidade da lei nacional no âmbito do chamado «estatuto pessoal»
(personalidade, capacidade e estado, relações de família, sucessões «mortis
causa»). Os últimos 50 (cinquenta) anos foram marcados por avanços assaz
importantes, principalmente depois de as Conferências da Haia perderem o seu
carácter de Conferências Diplomáticas para darem lugar a uma verdadeira instituição
internacional permanente ― a Conferência da Haia de Direito Internacional
Privado.
 Em 1894, reuniu-se pela primeira vez na Haia, a
convite do governo holandês, uma conferência internacional com o
objectivo de alcançar uma unificação do DIP. em determinadas matérias.
Até a 1ª Guerra Mundial, mais três conferências se realizaram:
→ 1896: sobre processo civil;
→ 1902: → sobre a capacidade para contrair matrimónio e forma
do casamento;
→ sobre divórcio e separação de pessoas e bens;
→ sobre a tutela;
→ 1905: → sobre os efeitos pessoais e patrimoniais do casamento;
→ sobre interdição.

Estas convenções foram ratificadas por um número muito reduzido de


países, todos da Europa continental. Depois das duas Grandes Guerras:

→ 01 de Junho de 1955: convenção sobre o reconhecimento da


personalidade jurídica das sociedades,
fundações e associações;
→ 15 de Junho de 1955: convenção estabelecendo uma lei
uniforme sobre o direito aplicável às vendas
internacionais de coisas móveis;
→ 16 de Junho de 1955: convenção que estabeleceu a resolução
de conflitos entre a lei nacional e a lei do
domicílio;
→ 24 de Outubro de 1956: convenção sobre a obrigação de
prestar alimentos aos menores e o
reconhecimento e execução de sentenças nesta
matéria;
→ 05 de Outubro de 1961: sobre a localização de documentos
públicos exarados no estrangeiro.
20 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

Ao lado das Convenções da Haia, há que mencionar as de Genebra de


1930 (sobre letras e livranças) e 1931 (em matéria de cheques).
De grande importância temos ainda as Convenções de Bruxelas de 1968
(sobre competência judiciária e reconhecimento e execução de sentenças em matéria
civil e comercial) de Lugano de 1988 (sobre a mesma matéria); de San Sebastian de
1989 (adesão de Portugal e Espanha à Convenção de Bruxelas) de Roma de 1980
(sobre obrigações contratuais); de Nova Iorque de 1973 (sobre a forma dos
testamentos internacionais). E ainda as Convenções sobre arbitragem comercial
internacional.
Vemos, assim, que há muitas regras convencionais de DIP., contudo,
estas normas só se tornam eficazes na ordem jurídica interna dos Estados após terem
sido aí recebidas e incorporadas. Os Estados, ao subscreverem uma convenção,
obrigam-se a fazê-la cumprir, mas estas só se tornam obrigatórias ou eficazes no interior
de cada Estado depois de verificadas as condições de que a legislação nacional faz
depender sua incorporação no ordenamento jurídico interno.

Artigos 161º, 197º e 200º da CRP.:


aprovação pelo Governo ou
pela Assembleia da
Doutrina da Recepção
República.
Plena
Artigo 138º da CRP.: ratificação pelo
Presidente da República.
Artigo 8º da CRP: publicação oficial.

Contudo, estas normas, enquanto não forem convertidas ou


transformadas em direito interno, só obrigam os próprios Estados para os quais o texto
da convenção se tornou lei internacional.. Daqui resulta que tais preceitos não têm
propriamente por fonte a convenção ou tratado de que procedem. As convenções
internacionais só como fonte mediata de DIP. é que podem ser consideradas. Assim
sendo, devemos considerar a lei interna como sendo a única fonte de DIP.

1.8) Fundamento geral do DIP., sua natureza e


principais interesses que visa satisfazer:

1.8.1) Fundamento nacional ou internacional do


DIP.:

1.8.1.1) Doutrinas internacionalistas:

Podemos enquadrar aqui todas aquelas doutrinas que definem o


problema central do DIP. como um problema de fundamento superestadual.
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 21

Para as doutrinas internacionalistas o problema do DIP., tendo


natureza e fundamento superestadual, põe-se no quadro das relações inter-estaduais
que, normalmente, transcendem a autonomia de cada Estado em singular. Deste modo,
o DIP. integrar-se-ia, pelo menos a título primário e normalmente, na competência
exclusiva do ordenamento próprio da Comunidade Internacional.
Ponto de vista comum a todas as doutrinas internacionalistas é que não
são as exigências da vida interindividual, encaradas do ângulo de visualização do
Estado singular, mas antes as exigências da vida interestadual que constituem o
fundamento do DIP.
Mas isso não significa que, para as doutrinas internacionalistas, o DIP.
deva, necessariamente, de ser formado por normas de fonte internacional.
Uma parte das doutrinas internacionalistas (as universalistas) caracteriza-
se pelo facto de atribuir ao DIP. a função de delimitar a esfera de exercício das
soberanias Estaduais relativamente à regulamentação das relações jurídico-privadas ―
o DIP., assim, distribuiria as competências legislativas entre as diferentes soberanias
Estaduais.

«Os conflitos de leis traduzir-se-iam em conflitos de soberanias».

Considerada a lei como a forma suprema do exercício


do poder soberano do Estado, o facto de leis Estaduais
diferentes concorrerem sobre os mesmos factos daria
lugar a um conflito entre soberanias.

Ora, como não podemos conceber que um Estado singular dite normas
delimitadoras da esfera de soberania de outros Estados situados, necessariamente, num
plano de igualdade; e, como diz o antigo brocardo romano, «par in parem non
habet autoritatem», tais normas seriam, necessariamente, normas de direito
supraestadual.
Procuram os defensores desta doutrina estabelecer a existência de um
complexo de princípios de Direito Internacional supraestadual mais ou menos vagos,
mais ou menos concretamente determinados, os quais vinculariam o Estado a manter-se
dentro dos limites demarcados no exercício da sua soberania.
Frisa-se, por outro lado, o significado do reconhecimento internacional
de um Estado. Reconhecer um Estado significaria, em primeiro lugar, reconhecer o
seu ordenamento jurídico; negar o reconhecimento a um ordenamento jurídico
equivaleria a negar a existência do respectivo Estado.

1.8.1.1.1) Doutrinas Internacionalistas ― teoria da


delegação:

Dada a inconsistência dos princípios do direito internacional


supraestadual delimitadores do exercício da soberania legislativa dos Estados e dada a
inexistência de um corpo internacional de regras de DIP., procura-se conciliar a
natureza formalmente interna de todas ou quase todas as normas de conflitos com a
natureza internacional do DIP.
22 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

Para tanto, recorre-se à teoria da delegação: o DIP., como direito


regulador de relações internacionais de carácter privado, integrar-se-ia, por força desse
seu objecto, no direito próprio da comunidade internacional, no Direito Internacional.
O Direito Internacional, porém, delegaria nos diversos ordenamentos estaduais a
competência para regular tal matéria.
Contudo, como não se pode falar aqui de uma delegação expressa, há
quem diga que se estaria perante uma espécie de «negotiorum gestio» por parte do
legislador estadual, substituindo-se este, «motu proprio», à comunidade internacional e
assumindo as funções desta.
Partindo de considerações idênticas, a teoria dita do desdobramento
funcional procura explicar a anomalia da existência de normas de conflitos estaduais
pela sua fonte e internacionais pelo seu objecto e função, afirmando que ela se deve ao
atraso evolutivo da comunidade internacional em matéria de institucionalização.

Na actual fase de transição, muitas dessas funções próprias


da comunidade internacional são desempenhadas
transitoriamente e a título precário pelos Estados.

O DIP., portanto, seria, formalmente, direito interno, e, materialmente,


direito internacional.

1.8.1.1.2) Doutrinas internacionalistas ― associação


à doutrina unilateralista:

Entendendo que as normas estaduais do DIP. também cumprem uma


função internacional, afirma-se que existem normas internacionais supraestaduais que
distribuem a competência legislativa entre os vários Estados ou que, pelo menos,
impõem aos Estados certos limites que eles não poderiam ultrapassar sem violação do
direito internacional. As chamadas normas internas de DIP. nada mais seriam do que a
forma por que o Estado cumpre as suas obrigações internacionais. A estas normas não
caberia outra função senão a de delimitar a esfera de aplicação do direito nacional e,
assim, as normas internas de DIP. seriam sempre exclusivamente unilaterais.
A aplicação do direito nacional constituiria exercício da soberania
nacional; a aplicação de um direito estrangeiro constituiria exercício de uma soberania
estrangeira ― já que, nos limites assinalados pelo direito internacional supraestadual,
qualquer Estado seria detentor de uma competência absoluta, universalmente válida,
extraterritorial. Por isso, o direito estrangeiro seria aplicado «proprio vigore».

1.8.1.2) Posição adoptada:

As normas de DIP. são normas estaduais. Apenas poderemos considerar


como normas de Direito Internacional aquelas que vigoram em vários Estados (regras
de conflitos que têm por fonte um tratado internacional).
No que concerne à escolha do elemento de conexão relevante por parte
do legislador nacional, aquando da construção das regras de conflitos, não há qualquer
restrição importante por força de qualquer princípio de Direito Internacional Público.
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 23

Se perguntarmos se um sistema de DIP. é capaz de alcançar o ideal da


justiça a que se propõe, teremos que dizer que não, pois as regras de conflitos divergem
de Estado para Estado, designando como competentes para solucionar uma mesma
questão diferentes ordenamentos jurídicos, o que levará, certamente, a soluções
materiais diferentes.

Qual o fundamento último do DIP.?

O seu fundamento está, em último termo, no princípio universal de


direito segundo o qual as normas jurídicas, enquanto visam regular os comportamentos
humanos que se desenvolvem no seio de uma sociedade... enquanto regras de conduta
social... não podem ser aplicadas a condutas que se situem fora da sua esfera de
aplicabilidade quer em razão do tempo (princípio da irretroactividade das leis), quer
em razão do lugar onde se verificam... em razão do espaço (princípio da não
transactividade das leis), pois, ao contrário, se frustariam as legítimas e naturais
expectativas dos indivíduos e se ofenderiam direitos adquiridos.
O ideal normativo que deve orientar o DIP. é o da uniformidade de
regulamentação ou da estabilidade das relações jurídico-privadas da vida internacional
(harmonia jurídica internacional).
Assim, no domínio do DIP., é a valores de certeza e estabilidade
jurídica que cabe a primazia, sendo a justiça do direito de conflitos de cunho
predominantemente formal.
Já sabemos que ao DIP. compete organizar a tutela das relações
plurilocalizadas, relações estas que, em virtude de pertencerem a diversos espaços
legislativos se encontram numa situação de particular instabilidade, sendo exactamente
a função do DIP. reduzir esta instabilidade a um mínimo tolerável, assegurando o
respeito das referidas relações jurídicas onde quer que um interesse legítimo faça surgir
a necessidade de obter para elas a protecção da lei.
Para tanto, convirá admitir, à partida, a aplicabilidade, às diversas
situações factuais, de todas as leis que com elas tenham estado conectadas no momento
da sua constituição, modificação ou extinção (conforme o efeito ou o aspecto da relação
jurídica que estiver em causa), e isso, como já vimos, por respeito ao princípio da não
transactividade das leis. A missão das normas de conflitos consiste em indicar a tarefa
que é adjudicada a cada um desses sistemas que com a relação apresentam pontos de
contacto ou conexão, em definir o plano, perfil ou efeito da situação concreta que a cada
um deles compete disciplinar; missão que desempenham designando os factores de
conexão relevantes nas várias matérias ou sectores de regulamentação jurídica.
Já vimos que às situações da vida podem considerar-se aplicáveis normas
de diversos ordenamentos jurídicos; ao contrário, deve excluir-se a aplicabilidade de
várias normas a uma mesma questão de direito para, assim, evitar controvérsias ou
antinomias jurídicas.
Daqui resulta que os propósitos a que o DIP. responde são dois:
a) determinar a lei sob o império da qual uma certa relação deve
constituir-se para que seja juridicamente válida e possa, assim,
tornar-se eficaz;
b) executar essa tarefa de modo tal que a lei designada seja também
tida por aplicável em todos os demais países.
24 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

Conclui-se, assim, que não é bastante dizer que o DIP. tem por missão
indicar a lei aplicável às relações multinacionais; é indispensável acrescentar que, para
cumprir de modo adequado essa missão, há-de ele proceder em termos de a competência
da lei assim designada ser susceptível de reconhecimento universal.
Significa isso que um dos principais objectivos visados pelo DIP. é a
harmonia jurídica internacional, uma ideia de que já falava SAVIGNY, inspirado por
KAHN que teve o mérito de ter formulado esse princípio.
O princípio da harmonia jurídica internacional responde à intenção
primeira do direito de conflitos que é assegurar a continuidade e uniformidade de
valoração das situações plurilocalizadas. Nenhum sistema positivo o pode ignorar,
pois ele está na própria natureza das coisas e ignorá-lo seria o mesmo que negar, pura e
simplesmente, o DIP.
Facilmente se concebem os inconvenientes que hão-de resultar do facto
de uma situação jurídica não ser submetida em todos os países à mesma lei, pois,
enquanto se não chegar à designação de uma única lei para cada questão jurídica
concreta, não se poderá pôr termo a bem conhecida tendência das pessoas para se
dirigirem àquela jurisdição nacional, de entre as que se julguem competentes para
conhecer do caso, cuja decisão de lhes antolhe mais favorável. A esta situação
chamamos de «forum shopping».
Contudo, é impossível construir um sistema de DIP. partindo unicamente
do princípio da harmonia jurídica internacional ou do mínimo de conflitos.
Outro princípio geral a ter em conta é o da harmonia material.
Ao contrário do princípio da harmonia jurídica internacional, não está
o princípio da harmonia material ligado à natureza específica do DIP. Este princípio
da harmonia material exprime a ideia da unicidade do sistema jurídico, à ideia de que
no seio do ordenamento jurídico as contradições ou antinomias normativas são
intoleráveis.
Na verdade, o jogo das regras de conflitos, na medida em que, por vezes,
conduz à convocação de duas leis para a resolução do mesmo ponto de direito, presta-se
a gerar situações deste género. Mas estas situações também podem derivar de uma
divergência de qualificação entre duas leis chamadas a pronunciarem-se sobre aspectos
distintos do mesmo acto jurídico, ou sobre questões jurídicas diferentes, mas de tal
modo interligadas, que a decisão quanto a uma delas afectará, inevitavelmente, a outra.

Que orientação adoptar para impedir estas situações?

Suponhamos o seguinte exemplo: um grego, residente em Atenas, pretende que lhe


seja permitido visitar o seu filho natural que reside em Hamburgo com a
mãe. A mãe opõem-se.

Se, de acordo com o direito de conflitos do foro, a relação entre a mãe e


o filho estiver sujeita à lei nacional da mãe e a relação entre o filho e o pai à lei pessoal
deste, eis que se nos depara um conflito do tipo aludido, uma vez que, apesar de se
tratar de duas relações jurídicas distintas, a decisão quanto a uma delas afectará
inevitavelmente a outra. E, como ambos os preceitos se tornam aplicáveis no âmbito da
«lex fori» e em virtude de normas de conflitos desta lei, tudo se passa como se a
antinomia surgisse entre normas materiais do próprio sistema jurídico local.
O princípio da harmonia material, visando impedir situações do tipo
descrito, levaria a que se procedesse, no momento da formulação da norma de
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 25

conflitos, de modo a evitar ao máximo o risco de duas leis virem interferir na resolução
da mesma questão.
Assim, poderia recomendar-se a adopção de um único factor de conexão
para cada acto ou relação jurídica, sem distinguir, quanto àquele, a forma da substância,
nem, quanto a esta, o momento constitutivo da questão do conteúdo ou das
consequências jurídicas imediatas. Além disso, todas as questões emergentes do
casamento e da filiação deveriam ser reguladas por uma única lei, de modo a realizar a
unidade da família.
Porém, esta tendência é contrariada por razões ponderosas que estão na
base do método da especialização ou fraccionamento de que o DIP. se serve para
resolver os seus problemas; procedimento que consiste em destacar da relação ou figura
jurídica que se considera certos elementos e em eleger para cada um deles uma conexão
independente.

Outras ideias:
1) o Estado com melhor competência será o que em
melhores condições se encontrar para impor o acatamento dos seus preceitos.
Esta consideração é uma das vias possíveis para fundamentar a competência
da «lex rei sitae» em matéria de direitos reais;
2) outra consideração que pode influenciar o sistema de
normas de conflitos de leis é a do interesse na boa administração da justiça.
Sob esse ponto de vista, seria desejável que os tribunais decidissem a maior
parte dos feitos submetidos a julgamento segundo os princípios do seu
próprio direito nacional, único, naturalmente, em que são versados. Assim
se lhes facilitará consideravelmente a tarefa e se garantirá o acerto das suas
decisões. Daqui resultará, inevitavelmente, o alargamento do âmbito de
aplicação do direito local, pois o que por este modo se preconiza é o medir
com medidas diferentes a esfera de competência do direito nacional e a do
direito estrangeiro.
Embora as razões que estão por detrás desta tendência tenham certo
valor, poder-se-á perguntar se não seria preferível, tendo em conta a ideia de
que as normas de conflitos estabelecidas por todo legislador devem ser de
molde a poderem universalizar-se, tomar como norte uma ideia de paridade
de tratamento, a exprimir deste modo: «o DIP. deve colocar os
diferentes sistemas jurídicos em pé de igualdade, de modo
tal que uma legislação estrangeira seja considerada
competente sempre que, se ela fosse a «lex fori» se
apresentasse como aplicável». É esta a feição assumida pelo DIP
português em vigor.

Assim:

Os princípios gerais que todo legislador deveria ter em conta no


momento de gizar um sistema de normas de conflitos de leis são:
a) princípio da harmonia jurídica internacional;
b) princípio da harmonia material;
c) princípio da eficácia das decisões judiciais (segundo o qual o
Estado com melhor competência será aquele que em melhores
26 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

condições se encontrar para impor o acatamento dos seus


preceitos); e
d) princípio da paridade de tratamento.

Mas, se é certo que todo o sistema positivo de DIP. deve ser influenciado
em maior ou em menor medida por tais princípios, não é menos verdade que, com a
única excepção do princípio da eficácia das decisões judiciais, eles não nos conduzem
às soluções concretas dos conflitos de leis. Esses princípios, contudo, visam mais o
sistema de DIP. considerado como um todo, do que as regras particulares que o deverão
constituir.
Cada norma de conflitos elege o elemento de conexão que deverá
prevalecer em certo domínio ou sector jurídico. Esta escolha deve conformar-se com
uma directiva geral que é a seguinte: «é preciso que a lei considerada
competente seja apta a reger as situações multinacionais que se têm
em vista, ou determinados aspectos de tais situações». Esta adequação
nada tem a ver, em princípio, com o conteúdo da lei, mas decorre tão só da sua posição
espacial relativamente aos factos, ou da relação em que se encontra com as pessoas a
quem estes factos respeitam.
Por outras palavras, a lei aplicável será a que tiver a conexão mais forte
ou mais estreita com a relação ou situação jurídica em causa, tendo em conta uma
ponderada avaliação dos interesses que se apresentem como prevalecentes no sector
considerado.
Por outras palavras, a lei aplicável será a que tiver a conexão mais forte
ou mais estreita com a relação ou situação jurídica em causa, tendo em conta uma
ponderada avaliação dos interesses que se apresentem como prevalecentes no sector
considerado.
Na determinação do elemento de conexão, o principal papel compete ora
a interesses individuais, ora a interesses colectivos e não, como pretenderam as
doutrinas internacionalistas, a interesses estaduais.
Os indivíduos, os sujeitos das relações de direito privado, tiram
vantagem de serem submetidos, em tudo o que respeita ao seu estatuto pessoal, a uma
lei a que possam chamar «a sua lei»... uma lei a que se sintam ligados de maneira
estreita e permanente. Obviamente que essa lei só poderá ser a do Estado nacional ou a
do Estado do domicílio. Por outro lado, o interesse dos sujeitos das relações jurídico-
privadas reclama também um sistema que facilite tanto quanto possível o
desenvolvimento da sua vida jurídica e lhes conceda, inclusive, o direito de escolher,
em certos domínios (naqueles onde vigoram leis supletivas), a lei aplicável às relações
que constituem.
Temos ainda aqueles interesses que, embora sendo ainda individuais, se
reportam, contudo, a pessoas indeterminadas ou ao público em geral, e a que podemos
chamar interesses do comércio. Estes aconselham o recurso a elementos de conexão de
natureza puramente objectiva, tais como o «lugar da situação» para os direitos
sobre as coisas, o «país da sua criação» para a propriedade industrial, o «locus
delicti» para a responsabilidade extracontratual.
Dissemos acima que a justiça do DIP. é, predominantemente, de cunho
formal, isso significa que o DIP. tem os seus visos próprios, a sua própria justiça
inconfundível com a do direito material, já que a escolha da lei competente para reger
uma determinada relação não é, em princípio, feita em função do conteúdo da lei, mas
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 27

por ser ela a que se encontra em melhor posição ou a que exibe os melhores títulos para
interferir; posição e títulos esses que só a análise dos interesses apontados revelará.
Contudo, por vezes, é a própria justiça material que invade o domínio do
DIP., fazendo prevalecer aí os seus juízos de valor, impregnando com seus critérios as
normas de conflitos e vindo ela mesma, por fim, influir na escolha da lei aplicável.
Mas a intervenção da justiça material no campo do direito de conflitos
não reveste sempre esta forma. Por vezes, ocorre de o juiz recusar o seu visto a um
preceito jurídico estrangeiro, todavia, em princípio, plenamente aplicável à situação
controvertida, unicamente por entender que a aplicação deste preceito ao caso concreto
produziria um resultado absolutamente intolerável para o sentimento ético-jurídico
dominante, ou lesaria gravemente interesses de primeira grandeza da comunidade local.
Também aqui se constata uma certa intromissão da justiça material, no entanto, ela não
aparece, desta vez, a inspirar as normas de conflitos, antes permanece exterior à justiça
conflitual, de que se limita a travar a marcha. Estamos aqui no domínio da chamada
«excepção da ordem pública internacional».
A excepção de ordem pública internacional consiste num limite à
aplicação do direito estrangeiro competente.

1.8.2) Natureza do DIP.:

Sabe-se já que o DIP. é direito estadual ― «internacional pelo


objecto, o DIP. é direito estadual pela fonte». Cabe agora saber a qual dos
dois grandes ramos em que, segundo a concepção clássica, o ordenamento jurídico
aparece dividido (direito público ou direito privado) ele pertence.
Já vimos que o DIP. é o ramo da ciência jurídica onde se procuram
formular os princípios e regras jurídicas conducentes à determinação da lei ou das leis
(ou seja, à determinação da disciplina jurídico-material) aplicáveis às questões
emergentes das relações jurídico-privadas de carácter internacional (relações
plurilocalizadas).
Esta definição logo nos faz propender para inserir o DIP. no sistema do
direito privado. O DIP. é direito privado apesar do facto de da aplicação da norma de
DIP. não derivar ainda a decisão da questão jurídico-privada, mas o certo é que tal
decisão é o que, em último termo, buscamos quando recorremos a esta norma; por
outras palavras, a norma de conflitos não resolve por si mesma a questão de fundo, mas
concorre para a resolução desta questão.
Além disso, é fundamentalmente ao serviço de interesses relativos aos
indivíduos que o DIP. se encontra.
A mais, sendo essencialmente da aplicação de preceitos jurídico-privados
que as regras de conflitos decidem, se são elas que demarcam a esfera de competência
dos vários preceitos ou complexo de preceitos de que se compõem os sistemas de
direito privado existentes, parece bem que ao DIP., por ter a função de decidir da
aplicação de outras normas, deva ser atribuída, para fins de ordenação sistemática, a
mesma natureza que é própria destas últimas.
Por último, diga-se que a problemática do DIP. apresenta muito maiores
afinidades e pontos de contacto com a problemática do Direito Civil e Comercial do que
com a de qualquer ramo do direito público. O facto de algumas normas de DIP.
tutelarem também interesses públicos não invalida a afirmação feita.
28 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

Assim, a qualificação do DIP. como ramo do direito privado resulta:


a) do próprio conceito de DIP., já que, segundo ele, o problema do
DIP. consiste na averiguação da lei aplicável às relações
privadas de carácter internacional;
b) da natural conclusão de que, às normas cuja função é decidir da
aplicação de outras normas deva ser atribuída a natureza destas
últimas; e
c) a problemática do DIP. apresenta muito maiores afinidades com
as dos direitos civil e comercial do que com a de qualquer ramo
do direito público.

1.9.) Princípios estruturantes do DIP.:

Apesar de já termos feito referência a eles nos capítulos precedentes,


achamos necessária uma referência de cada um separadamente. É o que faremos neste
número.

1.9.1) Princípio da harmonia jurídica


internacional:

Segundo o sentido tradicional de SAVIGNY, harmonia jurídica era a


uniformidade de lei aplicável, isto é, a lei aplicável em todos os Estados deve ser a
mesma de forma a garantir a segurança jurídica. Dado que cada Estado entende gozar
de uma liberdade praticamente ilimitada ao formular as suas regras de conflitos, urge
evitar que os ordenamentos estaduais em vigor estabeleçam conexões conflituantes.
Assim, o primeiro objectivo do princípio da harmonia jurídica
internacional é a uniformidade de escolha das leis aplicáveis a cada situação
internacional, ou seja, a lei escolhida como aplicável em todos os Estados deve ser a
mesma para, assim, evitar-se a conhecida tendência das pessoas de procurarem, dentre
as ordens jurídicas que se considerem competentes para julgar uma determinada
questão, àquela que estabeleça a conexão que declare como competente o ordenamento
jurídico cujas normas protejam em maior medida os seus interesses ― é a esta situação
que se costuma designar por «forum shopping».
No entanto, o princípio da harmonia jurídica internacional visa, para
além de evitar o «forum shopping», o reconhecimento das sentenças estrangeiras e
assegurar a continuidade e uniformidade de valoração das situações plurilocalizadas,
já que o entendimento savigniano da harmonia jurídica internacional (uniformidade
da lei aplicável) não é suficiente para garantir este mesma harmonia.
Este é um princípio muito importante para garantir a segurança das
soluções jurídicas, mas esta harmonia não é garantida logo à partida pelas regras de
conflitos, já que, como já foi dito, cada Estado formula as suas próprias regras de
conflitos na convicção de gozar de uma liberdade praticamente ilimitada.
Como o sistema conflitual (sistema das regras de conflitos bilaterais) dos
vários países, «de per si», não garante a harmonia jurídica internacional, já que cada
Estado pode adoptar elementos de conexão diferentes, sendo, por isso, muitas vezes, a
adopção de certos correctivos:
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 29

→ reenvio;
→ atitude internacionalista por parte do legislador, ou seja, o
legislador deve, no momento da construção das suas regras de
conflitos, recorrer aos critérios de escolha que são utilizados na
generalidade dos casos ou àqueles critérios que, pela sua
razoabilidade, sejam verdadeiramente susceptíveis de se tornarem
universais.

Resta salientar, porém, que tal harmonia jurídica internacional não


deve ser perseguida a todo custo, pois ao DIP. cabe prosseguir também outros interesses
e, se este fosse o único princípio tomado em conta, o conteúdo das regras de conflitos
seria indiferente.

1.9.2) Princípio da paridade de tratamento dos


ordenamentos jurídicos:

O DIP. deve colocar os diferentes ordenamentos jurídicos em pé de


igualdade, por outra palavras, não se deve privilegiar a aplicação da lei do foro, pois, se
todos os Estados privilegiarem a aplicação da «lex fori», estar-se-ia a comprometer a
harmonia jurídica internacional, de modo que podemos concluir de que este princípio
de que agora se trata aparece como apoio ao princípio da harmonia jurídica
internacional.
As condições que levam à aplicação da lei estrangeira são as mesmas que
se exigem para a aplicação do ordenamento do foro.

Nota: este problema da paridade de tratamento vai se pôr a propósito da


unilateralidade e bilateralidade das regras de conflito.

1.9.3) Princípio da harmonia jurídica material ou


interna:

Este princípio exprime a ideia de unidade do sistema jurídico ou, por


outras palavras, significa que no seio de um mesmo ordenamento jurídico não devem
existir antinomias ou contradições normativas.
Podemos nos encontrar perante esse problema em várias situações:
a) Situações jurídicas diferentes, mas interligadas: é o caso de
duas regras de conflitos que chamam duas leis diferentes ―
temos aqui o chamamento de duas ordens jurídicas que não se
podem aplicar simultaneamente, pois são contraditórias e, como
ambos os ordenamentos se tornam aplicáveis por força da regra
de conflitos do foro, tudo se passa como se a antinomia surgisse
entre normas materiais do próprio ordenamento jurídico do foro
(é muito frequente recorrer-se ao expediente da adaptação para
resolver tais questões);
30 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

b) conflitos de qualificação ― para impedir situações deste género


deveria recomendar-se a adopção de um único factor de conexão
para cada acto ou relação jurídica, sem distinguir, quanto aquele,
a forma da substância nem, quanto a esta, o momento constitutivo
do momento da produção de seus efeitos jurídicos (é claro que
esta hipótese é fortemente contrariada pelas razões que estão na
base do método do «dépeçage» método analítico que, para
cada aspecto particular da situação, procura a lei mais adequada);
c) o fenómeno da especialização (procedimento que consiste em
destacar da relação ou figura jurídica que se considera, certos
elementos, em distinguir nela vários planos e eleger, para cada
um deles, uma conexão independente) também contribui em larga
escala para o surgimento de tais antinomias; e
d) problema das questões prévias: há, destarte, casos que, para
serem decididos, pressupõem a resolução necessária de uma outra
questão fortemente ligada ao caso de que se trata. Deste
problema das questões prévias iremos tratar mais tarde (cfr. o n.º
1.10)

1.9.4) Princípio da boa administração da justiça:

O juiz, para dar a solução mais adequada ao caso, deve aplicar a lei que
melhor conhece (a «lex fori»), pois assim ficaria facilitada consideravelmente a tarefa
do juiz e garantir-se-ia o acerto das decisões (e é óbvio que a probabilidade de erro
judiciário é maior quando o juiz deixa de pisar o chão firme do ordenamento jurídico
local). Contudo, isso entraria em colisão frontal com o princípio da paridade de
tratamento das ordens jurídicas estaduais e com o princípio da harmonia jurídica
internacional, uma vez que alarga o campo de aplicação da «lex fori». O nosso
sistema não simpatiza muito com este princípio (não havendo grandes expressões dele
no nosso ordenamento jurídico) e, assim sendo, este só deve ser aplicado quando não
comprometa a harmonia jurídica internacional, não sendo, portanto, este princípio,
susceptível de generalização, caso contrário, iríamos voltar a cair no princípio da
territorialidade.

1.9.5) Princípio da eficácia ou efectividade das


decisões:

«A lei competente nem sempre será a melhor lei».

Este princípio pode levar-nos a afastar a aplicação de uma lei tida, em


princípio, por competente, quando for de recear que esta aplicação conduzirá a decisões
desprovidas de valor prático, e isso porque não serão reconhecidas naquele Estado em
que, todavia, se destinam, normalmente, a produzir efeitos que lhes são próprios.
Esta é uma das justificações possíveis para fundamentar a competência
da «lex rei sitae» no domínio dos direitos reais (cfr. o artigo 46º do Cód. Civ.). Tal
ordem de ideias poderá levar a preferir a lei da situação dos imóveis à lei pessoal dos
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 31

sujeitos da relação jurídica (este afastamento da lei pessoal dos sujeitos da relação
pressupõe que a «lex rei sitae» se julgue exclusivamente competente ou quando
reenvie para outro ordenamento que a «lex causae» reconheça como aplicável). É
este o meio necessário e suficiente para reconhecer aquela decisão no Estado da
situação dos bens.

1.9.6) Princípio da maior proximidade:

Apesar de haver uma lei em princípio competente para reger um regime


de bens, o certo é que, em princípio, aos bens móveis deve ser aplicada a lei competente
para os bens imóveis (por razões de efectividade), pois no lugar da situação dos bens,
aquela situação poderá não ter qualquer relevo ou eficácia.

1.10) Conflito entre princípios ― o problema das


questões prévias:

Há determinadas questões que, para serem decididas, pressupõem a


resolução de uma questão prévia. Temos, assim, duas questões para resolver: uma
questão principal e uma questão prévia.
Relativamente à questão principal, a lei aplicável será a lei (do foro ou
estrangeira) designada competente por força da regra de conflitos do foro.
Já relativamente à questão prévia, o problema de escolha da lei
competente para a regular só se põe quando a lei que regula a questão principal se insira
num ordenamento jurídico estrangeiro, ou seja, se a lei competente para resolver a
questão principal for a lei do foro, a lei com base na qual resolver-se-á a questão prévia
será, automaticamente, a lei do foro.

Como resolver o problema da escolha da lei aplicável quando a lei do foro não for
competente para regular a questão principal?
Há, na verdade, dois sistemas para resolver tal desiderato:

a) doutrina da conexão autónoma: segundo esta


doutrina, a questão prévia deve ser conectada autonomamente, ou
seja, decidir-se-á a questão prévia em conformidade com a lei que lhe
for aplicável segundo a regra de conflitos do foro, tudo se passando,
portanto, como se a questão tivesse surgido o título principal e não a
título incidental (a decisão será sempre a mesma, quer num caso,
quer noutro);
b) doutrina da conexão subordinada: segundo esta
segunda doutrina, decidir-se-á a questão prévia segundo as regras de
conflitos da lei considerada competente para regular a questão
principal, isto é, segundo as regras de conflitos da «lex causae» da
32 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

questão principal (aqui, portanto, a questão prejudicial perde a sua


autonomia face à questão principal.

Assim, por exemplo, suponhamos que a regra de conflitos do foro


declara como competente para resolver uma questão X a lei B. Suponhamos agora que
esta mesma questão X vai surgir incidentalmente num outro processo cujo fim é a
resolução de uma outra controvérsia a título principal (a questão Y). Se, segundo a
regra de conflitos do foro, for competente para regular esta questão Y a lei C, esta pode
muito bem declarar como competente para disciplinar a questão X a lei D. Mostra-se,
deste modo, a diversidade de soluções a que estaria sujeita uma mesma questão.

Se optarmos pela conexão subordinada, estamos, ao mesmo passo, a


optar pela melhor forma de prosseguir à harmonia jurídica internacional, pois só assim
a mesma questão de direito será decidida da mesma forma em todos os países com
competência jurisdicional para dela conhecer. Do ponto de vista da dita harmonia
jurídica internacional, a conexão autónoma não é tão boa.
No nosso exemplo, se a regra de conflitos do foro declara como
competente para regular a questão principal a lei C, só a aplicação das disposições
indicadas pela regra de conflitos da lei C (da «lex causae») permitirá que a questão
principal seja decidida de igual forma por um tribunal do país C.
Por outro lado, a conexão subordinada pode pôr em causa a harmonia
material (ideia de inadmissibilidade de contradições normativas no sistema jurídico),
pois se a mesma questão fosse suscitada a título principal, ser-lhe-ia aplicada uma regra
de conflitos diferente (a nossa). Ora, resolver as questões prévias segundo o direito de
conflitos da «lex causae» propicia este tipo de situações antinómicas. Consoante
uma questão seja suscitada a título incidental ou principal, será valorada de forma
diferente.
Para evitar tais conflitos seria necessário optar pelo sistema da conexão
autónoma, ou seja, deveríamos recorrer sempre aos princípios da «lex fori» ― só assim
uma questão, quer fosse suscitada a título incidental, quer a título principal, estaria
sempre sujeita à mesma regra de conflitos.
Estaremos aqui, portanto, perante um conflito de princípios: entre a
harmonia material e a harmonia jurídica internacional.

Conclusão: a solução pela qual devemos optar passa por tentar harmonizar estes dois
princípios ― a adopção do sistema da conexão subordinada com limitação
que podem passar pela delimitação da área de competência exclusiva do
foro. Nem sempre este sistema violará o princípio da harmonia material
ou interna.

1.11) A justiça do DIP.:

A consequência jurídica própria do direito de conflitos traduz-se na


«aplicabilidade duma determinada ordem jurídica estadual» à resolução
de certa questão jurídica concreta de direito privado material, daqui resulta que as
consequências jurídicas possíveis do direito de conflitos são tantas quanto os diversos
ordenamentos jurídicos que aquele direito pode designar como aplicáveis.
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 33

Trata-se, pois, duma consequência jurídica «sui generis» a que só por


transposição de sentido podemos aplicar a designação de «consequência jurídica»,
visto ela, diferentemente do que acontece com a de direito material, não operar,
directamente e de «per si», alterações no domínio das situações jurídicas concretas, ou
seja, efeitos constitutivos, modificativos ou extintivos de relações ou situações jurídicas.

Qual o facto operativo dessa consequência jurídica «sui generis»?

Em princípio, pelo menos, o Direito de Conflitos abstrai do tipo ou


natureza dos factos a regular, para atender apenas à sua concreta localização (no tempo
ou no espaço).
Se quiséssemos descrever através duma fórmula geral o domínio de
aplicabilidade de dado sistema jurídico, entendendo por tal domínio o conjunto dos
factos concretos que, sob este ou aquele aspecto, lhe compete disciplinar, não
poderíamos recorrer a conceitos descritivos de tipos de factos: os factos de qualquer
tipo podem cair ou não no âmbito de aplicabilidade daquele sistema conforme a
concreta localização deles.
Deste modo, uma fórmula que se proponha oferecer a solução de
problemas de conflitos de leis há-de ter, forçosamente, uma estrutura diversa daquela
que é própria da norma jurídica concorrente no direito material. A norma jurídica de
direito material descreve na sua hipótese factos típicos; verificados estes factos típicos,
se segue a estatuição ou consequência jurídica. Daqui se conclui que os elementos de
facto relevantes para o Direito de Conflitos não podem ser os mesmos que relevam para
fins de direito material.

 A norma de direito material reporta-se a factos típicos


da vida; e

 as normas do Direito de Conflitos atendem à concreta


localização dos mesmos factos no tempo ou no espaço.

Daqui decorre que o facto operativo da consequência jurídica do Direito


de Conflitos é o elemento de conexão. O Direito de Conflitos é um «direito de
conexão» e «a função de conexão é a função típica da norma de DIP».
Portanto, a conexão concreta é o facto que produz a dita «consequência» do Direito
de Conflitos. Não se trata de um facto jurídico como qualquer outro, por isso mesmo
que o seu efeito não se traduz numa alteração das situações jurídicas subjectivas, mas
apenas na determinação do sistema normativo pelo qual se deverá determinar o efeito
jurídico do facto ou situação de facto em causa.
É, portanto, uma dupla circunstância que caracteriza o tipo de justiça
próprio do Direito de Conflitos, bem como o seu modo de actuação:
a) por um lado, depende a «consequência jurídica» não dos
factos como tais, mas da sua localização
b) por outro lado, essa «consequência jurídica» consiste não
numa alteração no mundo das situações jurídicas subjectivas
originadas pelos factos de cuja «localização» se trata, mas na
34 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

atribuição da competência para regular esses factos a um dado


ordenamento jurídico.

Daqui se extraem dois importantes corolários:


1) a valoração jurídico-material dos factos da
vida não é obtida com o Direito de Conflitos, mas com a lei por
ele designada como competente: Direito de Conflitos e Direito
Material situam-se em planos distintos, e aquele deve abstrair,
em princípio, das soluções dadas por este aos casos da vida.
2) O Direito de Conflitos, não tendo a ver
com as valorações de justiça material, só pode propor-se a um
escopo de justiça formal consistente, fundamentalmente, em
promover o reconhecimento dos conteúdos de justiça material
que impregnam os casos da vida imersos em ordenamentos
jurídicos diferentes do ordenamento do foro, a fim de
salvaguardar as naturais expectativas dos particulares e realizar
os valores básicos da certeza e segurança jurídicas.

1.12) O DIP. e domínios afins:

1.12.1) O DIP. e o Direito Intertemporal:

O DIP. é, sobretudo, um direito de conflitos, mas, a par do DIP., outros


sistemas conflituais existem, desde logo, o direito intertemporal ou transitório.
São várias as analogias entre o DIP. e o direito intertemporal:
 Em primeiro lugar, ambos pertencem à categoria «direito
sobre direito», «normas de aplicação de normas»,
«direito de segundo grau ou secundário»;
 Em segundo lugar, tanto o DIP. como o direito transitório levam-
nos a tomar consciência do problema relativo aos limites de
aplicabilidade das normas jurídicas; e
 Por último, ambos têm como objectivo garantir a estabilidade e
continuidade das situações jurídicas interindividuais e, assim,
tutelar a confiança e as expectativas dos interessados.

Apesar de todas as semelhanças que se podem apontar entre o DIP. e o


direito intertemporal, eles não se confundem.
Assim, enquanto o DIP. tem por objectivo os conflitos de leis no espaço,
o direito intertemporal dirime os conflitos de normas jurídicas no tempo. O problema
do DIP. decorre da vigência simultânea, em territórios diversos, de leis distintas; já o
problema do direito transitório decorre do fenómeno da sucessão de leis no seio da
mesma ordem jurídica.
Além disso, o DIP. se ocupa de relações que, ao se constituírem,
desenvolverem ou extinguirem, entram na órbita de, pelo menos, duas legislações
nacionais. Assim, poder-se-ia dizer que o problema do DIP. é um problema de
dinâmica das relações jurídicas.
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 35

Por sua vez, tendo o direito intertemporal por objecto a resolução do


problema de normas que vêm a tomar o lugar de outras, interferindo com situações
jurídicas preexistentes, pode dizer-se que o direito intertemporal versa sobre um
problema de dinâmica de leis.
Por outro lado, se no direito transitório avulta o factor «tempo», o
elemento «espaço» não deixa de ser relevante, pois a aplicabilidade da lei antiga a
certos factos, determinada pelo momento da respectiva verificação, não deixará de
pressupor que entre tais factos e o ordenamento do foro existisse, nesse preciso
momento, a conexão espacial considerada decisiva pelo DIP. Inversamente, a sujeição
de certo caso jurídico à determinada lei (resultante das regras de DIP.) implica que a
situação a regular estivesse espacialmente ligada a essa lei através do elemento de
conexão reputado relevante não, decerto, em qualquer tempo, mas exactamente no
tempo da verificação do evento cuja repercussão na vida da mesma situação jurídica se
trata de apreciar. O momento da conexão relevante é o da produção do facto que deu
origem à consequência jurídica em causa.

1.12.2) Conflitos internacionais e conflitos


internos:

Nem sempre os protagonistas do conflito de leis no espaço são ordens


jurídicas estaduais. O mesmo problema, muitas vezes, nasce da coexistência de vários
sistemas de direito no interior do mesmo Estado (v.g.: estados Federados como os EUA,
Canadá, mas podem tais conflitos ocorrer também no seio de Estados unitários).
Há uma analogia flagrante entre estes casos e os conflitos internacionais.
Em todos se dá a circunstância de cada um desses sistemas jurídicos que entram em
conflito ter o seu território próprio que não coincide com o território do Estado, mas que
é uma divisão desse território (uma região ou província do país).
É natural que à resolução desta primeira variante de conflitos internos
presidam critérios em grande parte idênticos aos do DIP. propriamente dito. Porém,
entre as duas matérias há diferenças:
a) certamente não poderá confiar-se à lei nacional das partes a
regulamentação do estatuto pessoal, visto a nacionalidade ser
uma só para o conjunto das províncias
b) o elemento de conexão decisivo será o domicílio;
c) não poderá invocar-se a ordem pública como razão para não
aplicar a lei doutra província;
d) as normas de conflitos serão, em regra, únicas para todo o
território do Estado; e
e) as sentenças proferidas numa província serão exequíveis de pleno
direito nas restantes.

Uma outra variante de conflitos internos consiste nos conflitos


interpessoais. Neste caso, as várias leis em presença não regem territórios distintos,
mas distintas categorias de pessoas. Esta situação verifica-se principalmente nos países
coloniais em que os indígenas eram, em regra, deixados sob o domínio do direito
consuetudinário local, vigorando a lei metropolitana para os europeus.
36 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

A coexistência, no interior do mesmo Estado, de várias leis para


diferentes camadas ou estratos de população tem uma origem confessional ou étnica
(v.g.: caso dos países muçulmanos).
Portugal é um Estado de legislação unitária, um Estado em que, por
conseguinte, os problemas citados não se põem.

1.12.3) DIP. e direito privado uniforme:

O direito privado uniforme é direito material, e o DIP. tira justamente a


sua razão de ser da existência de leis materiais divergentes.
Segundo VALADÃO, «as finalidades de um e de outro são
claramente distintas: um, o DIP., procura resolver um conflito de leis,
enquanto o outro, o direito uniforme, trata de os suprir por intermédio
de leis idênticas».

1.12.4) DIP. e direito comparado:

Sabemos já que o DIP., sendo direito interno pela fonte, tem a


desempenhar uma função internacional, qual seja, a de promover o reconhecimento e a
aplicação, no âmbito do Estado em que vigora, de conteúdos e preceitos jurídicos
estrangeiros. Por virtude das regras de DIP., em princípio, as múltiplas instituições
jurídicas existentes algures no mundo recebem o visto de entrada no ordenamento do
foro e tornam-se nele aplicáveis.
Este facto logo faz ressaltar a importância do papel que compete à
investigação comparatista nos domínios do DIP.
Várias são as funções que têm sido assinaladas ao direito comparado:
a) no período entre as duas Grandes Guerras, atribuiu-se a esta
ciência, como tarefa primordial, a realização de um «direito
mundial do século XX» (esta ideia teve em LEVY-
ULMANN o seu maior expoente); breve, porém, o ideal da
unificação jurídica à escala mundial entra em franco declínio.
b) Para outros juristas, que seguem na esteira dos homens do 1º
Congresso de Direito Comparado realizado em Paris em 1900, a
função capital do direito comparado consiste em procurar, no
conjunto dos sistemas legislativos, os princípios básicos de todo o
ordenamento jurídico e de todo o direito ― uma espécie de
direito modelo em que todo legislador devia inspirar-se.

Longe desta discussão, reconhecemos que o direito comparado tem


também por escopo o estudo sistemático das diferentes instituições jurídicas tal como se
perfilam e desenham nas leis dos vários Estados, em ordem a determinar o que haja de
comum e de diferente entre elas; assim sendo, pode afirmar-se que o DIP. é o primeiro
beneficiário destes estudos.
É óbvio que toda a comparação supõe a existência de algo de comum nos
objectos a comparar. O que há de comum entre os sectores homólogos dos vários
sistemas jurídicos reside muito mais nos problemas prático-sociais a que urge dar
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 37

solução no plano e com os meios específicos do direito, do que nas próprias soluções
conseguidas. Os problemas normativos são, em grande medida, susceptíveis de
formulação comum, o que difere são as reacções ou respostas a tais problemas.
A tarefa (ou uma das tarefas) do direito comparado consiste em apurar
quais os diferentes meios técnicos a que os vários legisladores recorrem para levar a
cabo funções sociais equivalentes. Através do direito comparado, ver-se-á como
instituições diferentes tendem, nos diversos lugares, para fins análogos e, ao contrário,
como a instituições, na aparência homólogas, correspondem objectivos distintos.
Tudo isso se reveste de primordial importância para o DIP., dada a
missão que lhe compete de coordenar, na sua aplicação, todas as leis existentes. Para
tanto possui o DIP. as suas categorias normativas próprias e, a cada uma destas,
corresponde um elemento de conexão determinado.
A matéria que preenche essas várias categorias é, justamente, formada
pelos vários preceitos e instituições jurídicas dos diferentes Estados em cada uma de tais
categorias deverão ser incluídas todas as normas e instituições (quer de direito nacional
quer de direito estrangeiro) que se proponham, como finalidade precípua, aquela mesma
finalidade visada pelo legislador do foro ao elaborar a respectiva regra de conflitos.
Assim, só o recurso ao método da comparação jurídica permitirá, em
muitos casos, resolver adequadamente este tipo de problemas.
Por último, diga-se que o método da comparação rende largos frutos
quando, justamente, aplicado ao próprio DIP. O conhecimento crítico das divergências
existentes entre os sistemas conflituais dos Estados é essencial à tarefa da unificação das
regras de conflitos e, bem assim, à elaboração dessas normas pelo legislador interno.
A mais, tal conhecimento assume, igualmente, importância fundamental
para resolução do problema dos conflitos de sistemas de DIP.

1.12.5) DIP. e Direito Constitucional:

A relação entre o DIP. e o Direito Constitucional pode suscitar diversas


questões:
1) São as regras de conflitos susceptíveis de entrar em colisão com
os preceitos constitucionais e, especialmente, com os relativos à
matéria dos direitos fundamentais?
2) Até que ponto devem os nossos tribunais recusar a aplicação a
um preceito ou complexo normativo estrangeiro,
indiscutivelmente aplicável segundo as normas de DIP. da «lex
fori», mas que pelo seu conteúdo colida com algum dos direitos
fundamentais consagrados na CRP.?
3) Podem os tribunais portugueses recusarem-se a aplicar o direito
estrangeiro competente com fundamento na inconstitucionalidade
perante a Constituição do país de origem?

Relativamente à primeira questão posta formaram-se, para a solução do


referido problema, duas correntes de opinião:
a) para uma delas, o DIP. move-se num espaço
exterior à Constituição... num espaço livre relativamente aos
princípios e normas constitucionais.
38 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

Segundo H. DÖLLE, não pertence ao direito de conflitos


estender a validade de um princípio reconhecido no direito interno
além do seu próprio domínio de aplicação, atribuindo-lhe um papel
decisivo na determinação da lei competente.
Em suma: as regras de conflitos são regras técnicas neutrais que não
têm o sentido de servir a justiça.

b) Para a outra doutrina (a qual subscrevemos), este


modo de entender as coisas é profundamente erróneo.
Certamente não são os valores da justiça material que no
DIP. predominam. O DIP. tem os seus próprios visos: propõe-se
finalidades e norteia-se por princípios que não coincidem, em regra,
com os que se afirmam no plano do direito material.
Assim, as normas de conflitos não são regras técnicas
axiologicamente neutrais, ou seja, regras que não tenham o sentido
de servir a justiça, assim como preconizava H. DÖLLE.

Só que a justiça do DIP. é de cunho predominantemente formal, onde


avultam os valores da certeza e da estabilidade jurídica. O DIP. propõe-se a promover e
garantir a estabilidade e continuidade das situações interindividuais plurilocalizadas,
assegurar a livre circulação por sobre as fronteiras dos Estados de direitos dela
decorrentes. Segundo CAVERS, a maior parte das suas normas opera a escolha do
direito aplicável, por assim dizer, «de olhos vendados», abstraindo por completo
do conteúdo da lei a que submete as situações plurilocalizadas. Não é seu intento
confiar o caso à melhor lei, à mais adequada à sua especificidade, senão àquela que se
encontrar mais próxima da situação concreta.

Como podem tais normas ser valoradas segundo a perspectiva da Constituição?

Antes de mais, o DIP. Actual está muito distante da concepção clássica,


segundo a qual ele seria, na verdade, um direito exclusivamente formal, indiferente ao
conteúdo das normas substanciais concorrentes e aos critérios e valores da justiça
material.
O DIP. de hoje, diferentemente do que outrora, se mostra aberto a certos
juízos de valor jurídico-materiais. Sendo assim, como admitir que lhe seja lícito ignorar
princípios que, exactamente por estarem ancorados na Constituição, figuram, por certo,
no quadro dos valores fundamentais do ordenamento jurídico do Estado?
Conclui-se, pois, do exposto, que as regras de conflitos, mesmo aquelas
que procedem à escolha da lei independentemente do resultado (e são a grande maioria),
são susceptíveis de colidir com os princípios constitucionais, e de serem, assim, objecto
de um juízo de inconstitucionalidade.
Com a reforma de 1977 do Código Civil português, foram objecto de
alteração aqueles preceitos, de entre os do Capítulo relativo ao direito de conflitos, tidos
por contrários à Constituição de 1976.

Relativamente à segunda questão suscitada neste número, devemos dizer


que a Constituição da República Portuguesa (CRP.) consagra princípios com grande
relevância em matéria de direito privado (v.g.: proibição de qualquer tipo de
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 39

discriminação contra os filhos nascidos fora do casamento ― cfr. o artigo. 36º, n.º 4
da CRP).
Mas daqui não resulta a radical impossibilidade de se dar efeito entre nós
a um direito estrangeiro que consagre ainda aquela distinção.
Os preceitos da lei estrangeira designada pela norma de conflitos que se
não coadunem com os direitos fundamentais consagrados na legislação portuguesa são
seguramente inaplicáveis, porque contrários à ordem pública internacional do Estado
português. Só que, para tanto, será indispensável que, no caso, se encontrem
verificados os pressupostos de relevância da ordem pública.

→ Deve tratar-
Pressupostos de se de valores da máxima importância
relevância da do ordenamento do foro; e
ordem pública
→ deve existir
uma conexão significativa da espécie a
julgar com aquele ordenamento.

Assim, à norma da lei estrangeira designada como aplicável ao caso pela


regra de conflitos da «lex fori» seria dada, em princípio, aplicação, independentemente
de ela colidir com um preceito constitucional sobre direitos fundamentais.
É esta a solução para a qual devemos nos inclinar, não obstante devamos
também contemperar esta solução pela forçosa intervenção da cláusula geral da ordem
pública internacional.

Por fim, relativamente ao último dos problemas suscitados neste número,


a questão que se coloca é a de saber se, no momento de aplicar a lei estrangeira
designada como competente pela norma de conflitos da «lex fori», não deverá o juiz
do foro tomar em consideração o facto de dado preceito ou grupo de preceitos não ser
válido ― e por tal razão não ser aplicável ― no âmbito da «lex causae», em função
da relação de incompatibilidade existente entre ele e a respectiva Constituição.
A resposta a este problema deve situar-se no plano dos critérios gerais
que hão-de orientar o juiz na aplicação do direito estrangeiro. A este respeito,
estabelece o artigo. 23º, n.º 1 do Código Civil que «a lei estrangeira é
interpretada dentro do sistema a que pertence e de acordo com as
regras interpretativas nele fixadas». Assim, se em determinado sistema
estrangeiro um certo preceito não é aplicado pelos tribunais ordinários por colidir com
normas da respectiva Constituição, cabe ao juiz português dar a tal circunstância o
devido valor e abster-se, do mesmo modo, de observá-lo.

Dito isto, conclui-se que: não cabendo ao julgador do foro sindicar a compatibilidade
constitucional de preceitos da lei estrangeira, incumbe-lhe aplicar a mesma
lei tal como ela seria aplicada pelo juiz do respectivo sistema jurídico. Aqui,
portanto, assume relevância o facto de certa norma da «lex causae»
considerada inconstitucional não ter aplicação nesse sistema. Do ponto de
40 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

vista do foro, a referida relevância tem lugar, não por a norma em causa ser
inconstitucional, mas por ela não ser aplicável no sistema a que pertence.

1.13) Âmbito do DIP.:

Até o momento, fizemos referência apenas ao problema do conflito de


leis. Mas pergunta-se: residirá apenas em tal questão todo o objecto do DIP.?
Quanto a esta questão deparam-se-nos diversas orientações.

1.13.1) Doutrina alemã e italiana:

A doutrina alemã, adoptada também em Itália, restringe o âmbito do


DIP. ao problema do conflitos de leis.
Apesar de, para os autores germânicos, o DIP. ser tão somente um
«Kollisionsrecht», os tratados dedicados ao DIP. também se ocupam das matérias do
direito processual civil internacional, com especial destaque para as que dizem respeito
ao reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras.

1.13.2) Doutrina anglo-saxónica:

A doutrina anglo-saxónica inclui no âmbito do DIP. («Private


International Law, Conflict of Laws») o estudo de 3 (três) questões:
a) a da lei competente («choice of law»);
b) a da jurisdição competente («choice of jurisdiction»); e
c) a do reconhecimento das sentenças estrangeiras.

1.13.3) Doutrina francesa:

A doutrina francesa engloba no âmbito do DIP. o estudo das seguintes


questões:
a) a nacionalidade;
b) a condição dos estrangeiros;
c) o conflito de leis; e
d) o conflito de jurisdições.

Alguns representantes desta escola, entre os quais PILLET, apontavam


para a existência, a par da questão do conflito de leis, de um problema autónomo, qual
seja, o do reconhecimento dos direitos adquiridos em país estrangeiro. Foi esta a
orientação seguida, entre nós, por MACHADO VILLELA.
Não obstante, apesar da grande relevância do princípio do
reconhecimento dos direitos adquiridos, não nos parece justificável a referida
autonomização relativamente ao problema do direito de conflitos, pois o
reconhecimento de um suposto direito adquirido não prescinde da averiguação de se o
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 41

alegado direito efectivamente existe segundo os preceitos de uma lei que se possa
considerar competente segundo os preceitos de DIP. do Estado do foro, isso porque não
basta que o alegado direito adquirido seja como tal reconhecido por um qualquer
sistema jurídico, sendo indispensável que o seja pelo sistema tido por competente para
regular o caso concreto.
Assim, a determinação da lei competente constitui um «prius»
relativamente ao reconhecimento de um suposto direito adquirido. A mais, em
princípio, as regras de conflitos aplicam-se quer às relações a constituir em Portugal,
quer às situações já constituídas no estrangeiro.
Uma vez determinada a lei aplicável à situação litigiosa, não há senão
que proceder à aplicação das normas dessa lei que, precisamente, se referem aos factos
considerados: é esta lei competente que dirá se, no caso concreto, há ou não um direito
adquirido a respeitar.
Em suma, se o reconhecimento de um direito como legitimamente
adquirido decorre sem mais do reconhecimento da competência da lei que presidiu à
constituição do mesmo direito, e se não é pelo facto de ser um direito constituído no
estrangeiro que a questão da determinação da lei aplicável se coloca em face das regras
de conflitos da «lex fori», então podemos legitimamente concluir que o
reconhecimento de direitos adquiridos no estrangeiro não deve ser considerado um
problema autónomo face ao problema do conflito de leis.

Qual destas doutrinas devemos adoptar?

A doutrina francesa coloca o acento tónico no ponto de partida; assim,


para esta corrente doutrinária, a atitude correcta a adoptar seria reduzir o problema do
DIP. ao conflito de leis e jurisdições. Ao DIP. competiria indicar por qual legislação se
resolvem as questões emergentes das relações privadas internacionais e, outrossim, as
regras sobre competência internacional dos tribunais e o reconhecimento de sentenças
estrangeiras. Assim, trata-se de princípios jurídicos de uma natureza muito especial,
pois são princípios que, em regra, nada dizem sobre o sentido da composição dos
conflitos de interesses, nem sobre os direitos e deveres dos indivíduos.
As demais doutrinas optam por imprimir um conteúdo homogéneo às
normas de DIP., considerando que fazem parte do DIP. os domínios que inscrevem
normas de DIP.
Segundo FERRER CORREIA, incluímos no âmbito do DIP. 3 (três)
ordens de questões:
1) conflitos de leis; e
2) duas questões de direito processual civil internacional:
a) competência internacional; e
b) reconhecimento de sentenças estrangeiras.

Mas o que fazer com os outros domínios?

São questões que podem ser levantadas numa situação privada de direito
internacional; são domínios afins do DIP. e, como tal, temos que os referenciar nos
aspectos em que eles ajudam a resolver questões de DIP. Mas não são autonomizáveis.
Assim sendo, diante do problema da delimitação do âmbito do DIP.:
42 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

→ Em primeiro lugar: devemos fazer consistir o seu objecto numa matéria forte /
homogénea, núcleo de questões da mesma natureza e a
resolver por métodos idênticos.

Ideias tradicionais:
→ É correcto reduzir o problema do DIP. ao problema do conflito de leis (escolha da
lei aplicável). Ao DIP., assim, competirá unicamente indicar por qual legislação se
resolvem as questões emergentes das relações internacionais privadas.
→ Direito de conflitos: trata-se sempre de princípios de uma natureza muito especial,
pois nada dizem sobre o sentido da composição dos conflitos de interesses.
→ Normas de conflitos: não provêem, elas próprias sobre o regime das relações
sociais, não são normas de direito substancial, mas são puramente instrumentais.

1.13.4) Direito da nacionalidade:

«O direito da nacionalidade é composto por normas


materiais definidas unilateralmente e soberanamente por cada
Estado, tendo por missão enumerar os factores de aquisição e/ou
perda da cidadania, definindo as condições de atribuição, no âmbito
do direito local, de um dentre dois estatutos: nacional ou
estrangeiro». Releva para o DIP., pois, muitas vezes, o conceito de nacionalidade é
apontado como elemento de conexão.

Se, por exemplo, tratar-se de uma questão relativa ao


Artigos 25º e estatuto pessoal (direitos de personalidade, capacidade e
31º do CC. estado, relações de família, sucessões «mortis
causa»), dever-se-á aplicar a lei da nacionalidade, pois
é esta a lei pessoal do sujeito da relação.

Note-se que, relativamente a esta questão, no sistema anglo-saxónico


seria aplicável a lei do domicílio.

Observação: discute-se se se pode ou não falar de nacionalidade das pessoas


colectivas. Em bom rigor, não se poderia falar de nacionalidade quanto
a pessoas colectivas e, ainda, no campo do DIP., o critério para as
pessoas colectivas é o da sede real e efectiva.

FERRER CORREIA, porém, entende que tem utilidade falar de um


vínculo análogo à nacionalidade das pessoas singulares para as pessoas colectivas,
desde logo, para a protecção diplomática da nacionalidade.

1.13.4.1) Conflitos de nacionalidade:


José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 43

Tal como os conflitos de leis, os conflitos de nacionalidade podem ser


positivos ou negativos ― verifica-se tal problema quando um indivíduo tem mais do
que uma nacionalidade (ele é plurinacional ou polipátrida).

Então, qual a nacionalidade relevante quando a questão disser respeito ao estatuto


pessoal ― à qual, como vimos, seria aplicável a lei nacional, assim como
prescrevem os artigos 25º e 31º, n.º 1 do CC ― mas sendo o sujeito polipátrida?

Essa operação faz-se segundo os seguintes critérios enunciados nos


artigos 27º e 28º do Código Civil:

→ Artigo 27º: Tratando-se de um conflito de nacionalidades portuguesa e


estrangeira.
Se a questão for colocada aqui em Portugal, prevalece sempre a
nacionalidade portuguesa, por muito exíguo que seja o contacto
com Portugal.

A questão complica-se se o sujeito for polipátrida e nenhuma das


nacionalidades for a portuguesa.
→ Artigo 28º: Nacionalidade do Estado em cujo território tenha a sua residência
habitual.
Competente não é a lei da residência, mas a da nacionalidade, pois
não se pode mudar de critério.

― Nunca se muda de critério ―

V.g.: Casamento de A, que é francês e espanhol (duas nacionalidades concorrentes).

a) Se o casamento ocorre em França: a nacionalidade relevante é a


francesa, logo, será competente a lei francesa.

b) Se o casamento ocorre em Espanha: a nacionalidade relevante


passa a ser a espanhola e, portanto, competente
será a lei espanhola.

c) Se o casamento for celebrado na Alemanha: relevará a


nacionalidade do Estado com o qual tenha uma
vinculação mais estreita (depende desta
averiguação).

Por sua vez, estaremos perante um conflito negativo de nacionalidade


se o sujeito da questão não tiver nenhuma nacionalidade (apátrida). Tal situação pode
ocorrer devido ao facto de a nacionalidade perder-se automaticamente por efeito da lei
(v.g.: antigamente em Portugal, uma mulher que casasse com um estrangeiro perdia, por
efeito automático do casamento, a nacionalidade portuguesa).
O que fazer em tais casos?

Artigo 8º do CC: vamos ter que lhe encontrar um outro estatuto, uma outra lei pessoal.
44 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

Artigo 32º do CC: → Se o sujeito for maior e não interdito, dever-se-á aplicar a lei da
sua residência habitual
→ Se o sujeito for menor e interdito, aplicar-se-á a lei do domicílio
legal

Caso não tenha residência habitual, manda o artigo 32º, n.º 2 do CC.
que remete para o artigo 82º, n.º 2 do mesmo diploma legal que seja aplicada a lei da
residência ocasional e, se esta não puder ser determinada, deve aplicar-se a lei do lugar
onde o sujeito se encontrar (aplica-se aqui a noção de paradeiro).

1.13.5) Direito dos estrangeiros:

Entende-se por direito dos estrangeiros o conjunto de normas


materiais de direito público ou de direito privado que reservam para
os estrangeiros um tratamento diferente daquele que é reconhecido
pelo direito local aos seus nacionais. São, portanto, normas discriminatórias
que estabelecem, em relação aos estrangeiros, incapacidades de gozo de certos direitos.
Em regra, os estrangeiro são equiparados aos nacionais quanto ao gozo
de direitos privados, assim como estabelece a 1ª (primeira) parte, do n.º 1 do artigo
14º do Código Civil. Só assim não será quando houver disposição legal que diga o
contrário, assim como reza o artigo 14º, n.º 1, «in fine» do Código Civil, ou quando
se verifique o pressuposto do n.º 2 do mesmo preceito legal.
Em princípio, todos os Estados reconhecem capacidade jurídica a todas
as pessoas, mas a medida dessa capacidade jurídica pode variar.
Adverte FERRER CORREIA: imaginemos que não se estabelece
qualquer limite a um estrangeiro; nessa situação não podemos dizer que todos os
estrangeiros gozam sempre daquele direito.
O exercício concreto daqueles direitos vai depender da lei que se
considere competente.

1.13.5.1) Princípios relativos ao direito dos estrangeiros:

1) Princípio da equiparação (artigo 15º da CRP. E artigo 14º do CC.): segundo


este princípio, os estrangeiros (pelo facto de o serem) devem
gozar, salvo certas limitações, dos mesmos direitos que os
nacionais. Isso não significa, contudo, que eles gozem dos
mesmos direitos reconhecidos aos portugueses. Podem ter mais
ou menos direitos, tudo dependendo da lei considerada aplicável
«in casu». Este princípio, em suma, apenas significa que a
condição de estrangeiro não é, em regra, motivo suficiente para
qualquer restrição à capacidade de gozo de direitos por parte dos
estrangeiros.

2) Princípio da reciprocidade (artigo 14º, n.º 2 do CC.): não são atribuídos aos
estrangeiros os direitos que, sendo reconhecidos pelo respectivo
Estado aos seus nacionais, o não sejam aos portugueses em
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 45

igualdade de circunstâncias (trata-se de outro limite ao princípio


da equiparação).
Este princípio, assim, só funciona quando um estrangeiro pretende
exercer em Portugal um direito que o respectivo Estado da sua nacionalidade reconhece
aos seus súbditos ou aos súbditos de outros Estados com os quais mantenha relações
particulares, mas recusa o exercício dos mesmos, em igualdade de circunstâncias, aos
portugueses pelo facto de serem estrangeiros ou apenas porque são portugueses.
Assim, tem de haver um tratamento discriminatório dos portugueses
fundado na simples circunstância de estes serem portugueses ou estrangeiros. Podem,
contudo, ser reconhecidos aos estrangeiros em Portugal direitos que o respectivo Estado
não reconhece aos portugueses, desde que este não reconhecimento não tenha carácter
discriminatório.
Há, no entanto, estrangeiros que gozam ou podem gozar de um estatuto
especial de equiparação ― cfr. o artigo 5º, n.º 3 da CRP.

3) Princípio da não discriminação em função da nacionalidade


em relação a direitos nele existentes ― inscritos (cfr. o artigo 6º do Tratado de
Roma).

1.13.6) Competência Internacional:

É constituída por um conjunto de regras de direito


processual internacional (são regras de direito adjectivo público
aplicadas ao DIP. que é direito privado), marcadamente unilaterais na
medida em que cada ordem jurídica determina as regras de
competência internacional dos seus tribunais. Por outras palavras, cada
Estado delimita as situações em que os seus tribunais podem resolver questões
internacionais.
Há analogias ou pontos de contacto entre este problema e o do conflito
de leis: neste está em causa a lei competente, naquele, o problema da jurisdição
competente.
Contudo, as normas de conflitos de jurisdições ou competência
internacional não têm a mesma estrutura que as normas sobre conflitos de leis.
46 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

As normas sobre o problema


do conflito de jurisdições As normas sobre o problema
limitam-se a indicar as do conflito de leis propõem-se
hipóteses em que os tribunais a resolver a questão de qual a
lei que os tribunais locais

=
do Estado a que pertencem
têm competência devem aplicar para solucionar
internacional → é este o um determinado caso. A sua
objectivo directo e primário. actuação resulta da
Indirectamente vêm a assumir delimitação da esfera de
a feição de verdadeiras competência dos diversos
normas de conflitos de sistemas de direito privado.
jurisdições

Também pode ocorrer um conflito de jurisdição positiva (ou seja, vários


tribunais se dizem competentes para conhecer de uma lide). Nessas situações pode
acontecer que as partes escolham a ordem jurídica que será competente para julgar um
eventual conflito emergente daquela relação («forum shopping»). Quando houver
várias jurisdições competentes para julgar o litígio, as partes vão averiguar quais as
regras de conflitos de cada uma delas e, depois, vão escolher o tribunal em que vão
colocar a questão, e escolherão a jurisdição que melhor acautele seus direitos.
As pessoas «manipulam» a competência internacional para fazer
funcionar a regra de conflitos que chama a aplicar as regras materiais que lhes sejam
mais favoráveis. Daí que, para evitar que pessoa possa promover a competência
internacional de um Estado que nada tenha a ver com aquele litígio, também aqui se
exige que o litígio se encontre ligado àquele Estado por uma qualquer conexão
relevante. Assim, não se pode colocar uma questão de DIP. em qualquer tribunal.

Tanto o DIP. como a Competência Internacional têm regras de conexão.

1.13.6.1) Regras de conexão da competência internacional:

1) O foro do domicílio do réu (artigo 65º, alínea a) do CPC.): é uma regra de


conexão quase universal nos países de tradição romanística.

Mas há outros elementos de conexão

2) Princípio do coincidência entre a competência interna e internacional


(artigo 65º, alínea b) do CPC).
3) Princípio da causalidade (artigo 65º, alínea c) do CPC.): faz coincidir a
sede do processo com a sede do litígio.

FERRER CORREIA critica esta norma. Segundo ele, pode ser que
esta conexão seja meramente ocasional, que não deveria retirar a possibilidade de o
nosso país ter competência internacional, assim sendo, sugere uma ressalva a este
preceito legal: «a menos que esta conexão da situação controvertida
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 47

com a ordem jurídica nacional não seja suficiente num critério de


razoabilidade».

4) Princípio da necessidade (artigo 65º, alínea d) do


CPC.): elemento ponderoso.

Visa evitar a denegação de justiça: cada litígio deve ter uma sede
própria de conflito. Para evitar a denegação de justiça vamos admitir que os nossos
tribunais sejam competentes para solucionar esta questão (mas deve haver um elemento
de conexão ponderoso).
No caso de haver uma impossibilidade fáctica e jurídica de tornar
efectivo um direito, far-se-á valer o princípio da autonomia da vontade, podendo as
partes convencionar qual a jurisdição competente, excepto no que se refere à situação de
competência exclusiva (situações que se retiram da regra geral da competência
internacional).

→ Convenção de Bruxelas de 1968


Em vigor desde 1º de Julho de 1992
→ Convenção de Lugano

Entre as duas convenções prevalece a de Bruxelas

→ Artigo 2º, n.º 1 ― estabelece a mesma regra de competência referida ao foro


do domicílio do réu. FERRER CORREIA entende que deve ser ainda mais
assim no DIP. devido ao princípio da igualdade de tratamento (não
discriminação em função da nacionalidade).
→ Artigos 5º e 6º ― competência alternativa e facultativa
nos contratos: lugar onde a obrigação deve ser cumprida; e
responsabilidade delitual: lugar onde o facto danoso
ocorreu.
→ Artigo 3º ― ininvocabilidade das competências exorbitantes (ou seja,
daquelas competências baseadas numa conexão não razoável... não suficiente).
→ Artigo 4º ― competências exclusivas (v.g.: direitos reais sobre imóveis).
→ Artigo 19º ― se esta competência exclusiva for violada, o próprio juiz terá de
declarar-se oficiosamente incompetente.

1.13.7) Reconhecimento e execução de sentenças


estrangeiras:

Trata-se de um problema diferente relativamente ao do reconhecimento


de direitos adquiridos, pois aqui a questão já foi objecto de apreciação jurisdicional
bastando, assim, que haja sido apreciada por um órgão que tenha poderes jurisdicionais
(v.g.: por um consulado ― não é necessário um tribunal).
48 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

Aqui temos uma sentença proferida por um tribunal «a quo» que se


pretende ver reconhecida num outro tribunal de outro Estado «ad quem».

Qual o fundamento desse instituto?

→ Razão prática ― pretende prosseguir os mesmos fins do DIP.


(segurança jurídica, confiança, etc.).
→ Razão lógica ― se se reconhece competência internacional a um
dado tribunal, seria incongruente negar que as suas decisões
tenham eficácia noutras ordens jurídicas.

1.13.7.1) Sistemas de reconhecimento:

1.13.7.1.1) Sistema de reconhecimento de pleno


direito:

Como acontece na Alemanha e na França quanto à matéria do estado e


capacidade das pessoas e das Convenções de Bruxelas e de Lugano.
Por este sistema, dispensa-se uma verificação prévia da conformidade da
decisão a reconhecer com os requisitos legais (não há necessidade de haver um processo
autónomo). Não há um processo destinado a apreciar aquela sentença, só se vai aplicá-
la em concreto («Exequatur» ― Convenção de Bruxelas, artigo 26º, n.os 2 e 3).

1.13.7.1.2) Sistema da verificação prévia da


regularidade da sentença:

Neste caso, há um processo autónomo onde se controla a regularidade da


sentença. Pode ser desempenhado de duas formas distintas:
1) sendo admissível a revisão do mérito da causa: e
2) sendo inadmissível a revisão de mérito, bastando uma revisão
formal (sistema da revisão formal ou deliberação). É este último
o sistema adoptado em Portugal, salvo nos casos em que se deva
aplicar a convenção de Bruxelas ou de Lugano ou, ainda, a
Concordata com a Santa Sé (cfr. o artigo 7º, n.º 3 do Código do
Registo Civil; e os artigos 1094º e ss. do CPC.)

1.13.7.1.2.1) Sistema da verificação prévia da regularidade da


sentença com admissão da revisão de mérito:
.
a) É uma concepção em declínio, pois tem-se
afirmado o princípio da não revisão de mérito, entendendo-se ser um
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 49

contra-senso, pois fala-se de reconhecimento da eficácia e não de


reavaliação.
O nosso Código de Processo Civil, porém, abre uma excepção
em seu artigo 771º, por remissão do artigo 1100º.

b) É o sistema francês, com excepção das sentenças


que digam respeito ao estado e capacidade das pessoas. Segundo este
sistema o juiz deve controlar, à face das regras de conflito francesas, a
competência da lei aplicada pelo tribunal de origem ao fundo da causa.
Na revisão de mérito pura (hipótese a) na nossa sistematização),
vamos apreciar se aquela sentença foi convenientemente formulada de
acordo com a lei designada pela nossa regra de conflitos. Por sua vez,
no sistema francês (hipótese b)), eles só vão averiguar se o Estado
aplicou a mesma regra de conflitos que eles aplicariam se a questão
tivesse sido suscitada nos seus tribunais. Acaba, assim, por ser mais
restrita e não há uma revisão de mérito. Há uma consagração deste
modelo no artigo 1100º, n.º 2 do nosso CPC.

1.13.7.1.2.2) Sistema da verificação prévia da regularidade da


sentença sem revisão de mérito (sistema da revisão
formal):

As decisões sobre direitos privados proferidos por tribunais estrangeiros


necessitam, para gozarem de eficácia em Portugal, de serem revistas e confirmadas.
Antes de haver lugar a este processo autónomo, a sentença não pode
produzir efeitos em Portugal, sendo que a pessoa tem unicamente o direito de propor
esta acção em um tribunal português.
Trata-se aqui de um sistema de revisão formal ou de deliberação
imperfeito, pois ainda se admite uma revisão de mérito:
→ Artigo 1096º, alínea e) do CPC. ― fraude à lei.
→ Artigo 1906º, alínea j) do CPC. ― sentença manifestamente
contrária à nossa ordem pública (v.g.: bigamia).

1.13.7.1.3) Sistema inglês ou da «common law»:

Neste sistema não se reconhece directamente a sentença estrangeira, mas


à parte interessada é concedido o direito de intentar no Reino Unido uma nova acção
com o mesmo objecto, consistindo o fundamento dessa acção na própria sentença
estrangeira.

Considerando as coisas sob outro ponto de vista, todas as questões


focadas (direito da nacionalidade, direito dos estrangeiros, competência internacional,
reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras) têm uma origem comum:
nascem das relações do comércio jurídico internacional.
Há, muitas vezes, relações que obrigam a encarar e resolver, antes de
tudo, o problema da nacionalidade um dos elementos de conexão), pois o estatuto de
50 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

nacional e o de estrangeiro não têm o mesmo conteúdo e, frequentemente, a


nacionalidade dos interessados comanda a determinação da lei aplicável.
Depois, é forçoso conhecer também a condição jurídica concedida em
determinado Estado aos cidadãos estrangeiros. E esta é uma questão prévia à do
conflito de leis, pois o problema da lei aplicável a certa relação jurídica só se põe depois
de averiguado que as partes tinham o gozo do direito que, através desse negócio,
trataram de exercer.
Assim como os interessados têm a necessidade de conhecer a lei
aplicável à sua relação, também precisam de saber que jurisdição ou jurisdições
nacionais se julgarão competentes para dirimir os conflitos que entre eles venham,
eventualmente, a suscitar-se.
Como as normas de conflitos variam de Estado para Estado, a
determinação da lei aplicável só poderá fazer-se, em regra, em função da jurisdição
competente.

1.14) Génese e história do DIP.:

1.14.1) Origens do DIP.:

O DIP. dos nossos dias, ao contrário do que ocorre com grande parte dos
outros ramos do direito privado, não nos foi legado pelos romanos, mas por juristas que
viveram a partir do século XI.
Para que haja necessidade de um direito de conflitos é preciso, antes de
mais, que exista ou haja a possibilidade de existir uma situação internacional, ou seja,
uma situação que se encontre em contacto com mais do que um ordenamento jurídico.
São pressupostos do DIP.:
→ que existam vários ordenamentos jurídicos;
→ que existam situações que exorbitem do âmbito interno, ou seja, que
apresentem contacto com mais do que um ordenamento jurídico
estadual; e
→ é preciso que haja liberdade de movimento (ou de pessoas, ou de
bens).

Faltando algum desses pressupostos, estaremos perante um sistema


rigidamente fechado, sendo que, neste caso, as relações só poderão estabelecer-se no
interior de um ordenamento jurídico.
Na antiguidade oriental, por exemplo, não existia qualquer contacto entre
os vários sistemas (os estrangeiros eram considerados inimigos, não podendo, assim,
haver quaisquer relações entre pessoas de Estados diferentes).
No que diz respeito ao direito romano, originariamente, o «jus civile»
era exclusivo dos cidadão romanos ― o peregrino, portanto, não tinha acesso a ele.
Assim sendo, tornou-se necessária a criação de um direito que regulasse as relações
entre peregrinos e cidadãos romanos. Surgiu então o «jus gentium».
Contudo, como o «jus gentium» não era um sistema jurídico completo
― faltando-lhe, por exemplo, uma regulamentação do instituto sucessório ― as lei
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 51

peregrinas tiveram de ser reconhecidas pelos juristas romanos, função que foi,
sobretudo, deferida ao pretor peregrino, nomeadamente em sede de relações de família.
Daqui nasceu uma nova prática: a aplicação, por um mesmo juiz, de leis
diferentes, segundo a origem das partes.
Deste sistema não poderiam deixar de resultar conflitos de leis, mas tal
problema foi ignorado pelos juristas romanos.
O sistema feudal da Idade Média conduziu a que não houvesse relações
entre pessoas dos vários feudos e dos vários domínios territoriais (não há relações
internacionais)
As origens do moderno DIP. remontam ao fim do século XIII.
A partir do século XI as cidades da Itália do Norte (que se tinham
tornado centros comerciais de grande importância), no exercício da sua autonomia
legislativa, começaram a reduzir a escrito o seu direito consuetudinário local e a
compilar os seus estatutos. Os estatutos das cidades, que se ocupavam, principalmente,
das relações jurídicas de carácter privado, diferenciavam-se muito entre si: as
regulamentações que estabeleciam para estas relações estavam longe de ser uniformes.
Entregando-se em larga escala ao exercício do comércio, originavam,
naturalmente, contactos cada vez mais frequentes entre habitantes de diferentes cidades.
Bem cedo, como também é natural, acontece tornar-se frequente o caso de ser
demandado, perante a justiça de uma cidade, um habitante de outra cidade. Surgia
então a pergunta: qual o estatuto aplicável a estes casos?
A primeira solução a que se chegou determinava como aplicável o
estatuto local, ou seja, a «lex fori». Mas, muito cedo, surgiram ideias novas.
Com a recepção do direito romano, começaram a surgir teses audaciosas.
Começou a entender-se que a aplicação do direito local comporta limites, pois o direito
local, que não se dirige senão aos súbditos do soberano local, só a estes poderia obrigar.

Contudo, se o direito local não é aplicável aos estrangeiros, que direitos se lhes
havia de aplicar?

Nesta primeira fase (séculos XII e XIII) a pergunta não obteve uma
resposta satisfatória. No início do século XIII, a «lex fori» era considerada a única
aplicável, contudo, já cerca de 50 (cinquenta) anos antes, ALDRICUS ensinava que
quando os litigantes pertenciam a diversos territórios com direito consuetudinário
diferente, o juiz deveria julgar segundo o que lhe parecesse melhor.

1.14.2) Fases de desenvolvimento:

1.14.2.1) A teoria dos estatutos:

Chama-se de teoria dos estatutos ao conjunto de regras doutrinais


elaboradas a partir do século XIII e que diziam respeito aos limites de aplicação dos
diferentes estatutos e costumes locais. É esta a primeira tentativa de resolução dos
conflitos de sistemas jurídicos baseada no princípio do reconhecimento e aplicabilidade
do direito estrangeiro pelo juiz local.
52 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

Esta fase inicia-se com os post-glosadores, na última metade do século


XIII e encontra seu termo no final do século XVIII.
Há uma característica comum a todos os juristas deste período que se
ocuparam do problema dos conflitos: todos eles partiram do próprio texto dos estatutos
e costumes ou, mais tarde, do próprio texto das leis nacionais, sem que tenham sentido a
necessidade de prescrições especiais relativas à questão dos conflitos entre elas
suscitados.
Neste período podemos distinguir três épocas distintas e, paralelamente,
três escolas estatutárias:
→ escola estatutária italiana (séculos XIV a XVI);
→ escola francesa (séculos XVI a XVIII); e
→ escola holandesa (século XVII).

Todos os estatutários partem da regra geral considerada em si mesma,


procurando dela deduzir se é de aplicação restrita ao território do Estado que a formulou
(estatuto real) ou de aplicação extraterritorial (estatuto pessoal).

1.14.2.1.1) Escola estatutária italiana (séculos XIV a


XVI):

À maneira da época, as doutrinas da escola italiana revestiram sempre a


forma de comentários aos textos do direito romano (glosas). Assim, da lei do Código de
JUSTINIANO e das Glosas de ACÚRSIO, partiram os jurisconsultos italianos para
desenvolver a sua teoria.
A primeira distinção a que se chegou foi a distinção entre o processo e o
fundo das causas. O juiz não aplica senão a sua própria lei (ou estatuto) em matéria de
processo; não é senão quanto ao fundo dos litígios que se pode conceber a aplicação da
lei estrangeira (BARTOLUS DE SAXOFERRATO).

→ relativamente ao processo ― não se concebe aqui a


Assim: aplicação da lei estrangeira, devendo o juiz aplicar apenas a
sua própria lei; e
→ relativamente ao fundo ― apenas quanto a este se concebe a
aplicação da lei estrangeira.

Segundo BÁRTOLO, deve distinguir-se os estatutos que dispõem


relativamente às pessoas daqueles que dispõem relativamente às coisas:
→ os estatutos que dispõem relativamente às pessoas dirigir-se-iam
tão só aos súbditos, onde quer que estes se encontrassem ― são
extraterritoriais; e
→ os estatutos relativos às coisas, diferentemente, apenas se aplicam
às coisas situadas no território ― são territoriais.

Relativamente às solenidades dos contratos, aplicar-se-ia o estatuto do


lugar do celebração.
No que diz respeito à substância e aos efeitos das obrigações, devemos
também fazer uma distinção:
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 53

→ tratando-se dos efeitos imediatos do contrato, ou seja, dos direitos


que nascem no momento da formação do acordo, é aplicável o
direito do lugar da celebração;
→ tratando-se das consequências que se produzem em momento
posterior, em virtude de negligência ou mora, é aplicável o direito
do lugar da execução (no caso de as partes terem escolhido um) ou
o direito do lugar onde o processo corre (no caso de falta de
estipulação de um lugar para a execução).

A forma do processo depende da lei do lugar onde o processo corre


(aplica-se, assim, a «lex fori»).
Quanto ao testamento há que pôr o problema relativamente às
formalidades e ao conteúdo do acto testamentário. A forma do testamento é
determinada pelo estatuto do lugar onde o testamento é feito, na dependência do mesmo
estatuto se encontrando a interpretação da vontade do «de cujus».
BÁRTOLO, assim como vimos, desenvolveu a distinção entre costumes
reais e pessoais, não se aplicando os costumes pessoais senão aos súbditos ou cidadãos,
de harmonia com o critério do domicílio. No que diz respeito ao seu efeito
extraterritorial, ele introduziu uma distinção entre estatutos permissivos e proibitivos,
sendo os primeiros extraterritoriais. Quanto aos estatutos proibitivos há ainda que
distinguir entre estatutos proibitivos favoráveis (igualmente extraterritoriais) e estatutos
proibitivos odiosos (que seriam territoriais).

Assim:

Permissivos (extraterritoriais)

Estatutos pessoais
Favoráveis (extraterritoriais)
Proibitivos
Odiosos (territoriais)

1.14.2.1.2) Escola estatutária francesa (séculos XVI a


XVIII):

As principais contribuições para esta escola estatutária foram a de


DUMOULIN e de D’ARGENTRÉ.

1.14.2.1.2.1) A teoria de DUMOULIN:

A contribuição mais importante de DUMOULIN foi a elaboração do


princípio da autonomia da vontade, princípio este que, embora com grandes
modificações, se manteve ao longo de toda a evolução jurídica do DIP. até aos nossos
dias.
54 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

Há um domínio do DIP. em que as partes podem escolher livremente o


regime jurídico da relação: o das matérias reguladas por normas supletivas. Podem
fazê-lo, desde logo, no interior de uma dada ordem jurídica, mas podem também
escolher a própria ordem jurídica da qual adoptarão o regime jurídico que lhes convier.
Esta ideia aplica-se aos contratos e aos regimes matrimoniais.

1.14.2.1.2.1) A teoria de D’ARGENTRÉ:

Lema e directiva capital desta nova corrente doutrinária francesa ― que


teve em D’ARGGENTRÉ seu precursor ― é o princípio da territorialidade.
O feudalismo, com sua ideia de soberania territorial, conduzia
naturalmente ao princípio da territorialidade das leis. Segundo este princípio, a lei só
obriga dentro do território onde se exerce a soberania de quem a formula, mas aí obriga
a todos, quer nacionais quer estrangeiros.
D’ARGENTRÉ, porém, retoma e desenvolve a classificação dos
estatutos em reais e pessoais:
a) costumes reais: são territoriais;
b) costumes pessoais: são extraterritoriais; pessoais são apenas os
estatutos que dizem respeito, directamente, à pessoa (direitos de
personalidade, capacidade e estado, relações de família, sucessões
«mortis causa»), e aplicam-se a todos aqueles que têm o seu
domicílio no território onde o estatuto se encontra em vigor e
seguem-nos nas suas deslocações.

1.14.2.1.3) Escola estatutária holandesa (século


XVII):

Foi na Holanda que a doutrina territorialista de D’ARGENTRÉ


alcançou sua maior projecção, mas os autores holandeses, dentre os quais HUBER,
PAULO e VOET, modificaram-na profundamente pela adjunção do conceito de
soberania.

1.14.2.1.3.1) A teoria de HUBER:

→ As leis de cada Estado operam dentro das respectivas fronteiras e


obrigam todos os súbditos desse Estado, mas não para além desses
limites;
→ os súbditos de um Estado são todos aqueles que se encontram no
seu território (residentes ou não);
→ por cortesia («comitas»), os soberanos dos Estados conduzem-se
de modo a tornar possível que as leis de cada país, depois de terem
sido aplicadas dentro das fronteiras desse país, conservem a sua
força e eficácia em toda a parte, contando que daí não advenha
prejuízo para os direitos de um outro soberano ou dos seus cidadãos.

A ideia fundamental de HUBER é, portanto, a da territorialidade, mas


assegura-se à lei um efeito extraterritorial apelando-se para a «comitas gentium».
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 55

Note-se ainda que os autores holandeses aceitam a distinção, derivada de


D’ARGENTRÉ, entre estatutos pessoais, territoriais e mistos.
Em síntese, a concepção da escola holandesa acerca do DIP. foi a
seguinte:
→ os Estados gozam da máxima liberdade na fixação das regras de
conflitos de leis não havendo normas do «direito das gentes»
que a restrinjam;
→ o Estado pode ordenar aos seus juízes que apliquem,
ocasionalmente, leis estrangeiras, mas não porque a isso esteja
obrigado para com o Estado estrangeiro, senão «ex comitate», ou
seja, por uma espécie de conveniência recíproca, na esperança de
que o Estado estrangeiro proceda de igual modo.

Nesta escola o mais importante é, justamente, esta sua concepção do


DIP., concepção esta que chegou até a actualidade e teve grande aceitação por parte da
doutrina inglesa e americana.
Do exposto resulta que a teoria dos estatutos não foi propriamente uma
teoria do DIP., pois lhe faltou a unidade do conteúdo e dos pressupostos ou
fundamentos. O traço comum que confere unidade a este pensamento científico é, antes
de mais, sua posição metodológica: todos os estatutários partem da regra geral
considerada em si mesma, procurando dela deduzir se é de aplicação restrita ao
território do Estado que a formulou (estatuto real) ou de aplicação extraterritorial
(estatuto pessoal). Por outro lado, todos estes autores visaram estabelecer princípios
universalmente válidos.

1.14.2.2) O século XIX e a ciência do DIP.:

Até ao século XIX, o DIP. fora de formação jurisprudencial e científica.


As regras de resolução de conflitos de estatutos e de leis, que os juízes aplicavam em
cada caso, não eram regras postas por um legislador interno ou internacional, mas
princípios de autoridade exclusivamente científica que, portanto, não podiam aspirar a
uma obrigatoriedade coercivamente imposta.
A partir do século XIX o panorama muda por completo, inaugurando-se
a chamada fase do DIP. legal ou positivo (foi o período das grandes codificações do
direito privado). Todos os códigos civis que então apareceram contêm, em maior ou
menor abundância, normas de conflitos de leis. Mas não são estas as únicas
transformações sofridas pelo DIP., mas também assistimos a sensíveis progressos na
teoria do conflito de leis.
A ideia fundamental da escola estatutária francesa era a da
territorialidade: em princípio as leis são territoriais, o que leva ao predomínio da «lex
fori» como lei aplicável às relações jurídicas. Esta ideia foi levada ao extremo pela
escola holandesa, onde se admitia a aplicação, pelo juiz local, de direito estrangeiro
fundada numa espécie de cortesia («comitas gentium»).
A orientação fundamental das teorias oitocentistas foi esta: «todo o
problema de conflitos de leis deve resolver-se sem olhar à
nacionalidade das leis que se encontram em contacto».
56 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

Esta nova concepção assenta na ideia da existência de uma comunidade


de direito entre os Estados.
É esta a concepção fundamental das doutrinas que, no decurso do século
XIX, são elaboradas, destacando-se as de:
→ SAVIGNY;
→ MANCINI; e
→ PIILLET.

1.14.2.2.1) O sistema de SAVIGNY:

A primeira novidade deste sistema consiste no método a que SAVIGNY


recorreu para resolver o problema do conflito de leis. Ao invés de partir da regra de
direito e perguntar a que situações é que ela se aplicava, assim como faziam os
estatutários, ele parte da própria relação jurídica.

A que direito local deve a relação jurídica estar sujeita?

a) Cada relação jurídica deve ser regulada pela lei mais conforme à
sua natureza;
b) a lei mais adequada à natureza da relação jurídica é a lei da sua
sede.

Assim, para SAVIGNY, o problema do conflito de leis consiste em


determinar, para cada relação jurídica, a lei da sua sede. Entendia SAVIGNY que,
assim como as pessoas têm um domicílio, as relações jurídicas têm uma sede. A sede é
para as relações jurídicas o que o domicílio é para as pessoas.
Para as relações jurídicas há que levar a cabo uma investigação tendente
a estabelecer qual o espaço territorial a que pertencem pela sua natureza, ou em que se
localizam. O sistema de direito em vigor nesse território será aquele ao qual a relação
jurídica deverá considerar-se submetida.
Deste modo, é necessário atribuir a cada classe de relações jurídicas uma
sede, sendo que, os elementos que podem determiná-la são:
→ o domicílio dos sujeitos;
→ o lugar da situação da coisa;
→ o lugar da celebração do acto ou facto jurídico;
→ o lugar do cumprimento da obrigação; e
→ o lugar do tribunal chamado a conhecer do litígio.

Trata-se de optar, em cada caso, por um destes elementos.


Como quase todos estes elementos se encontram na dependência da
vontade dos interessados, o direito local aplicável às relações jurídicas encontra-se sob a
influência da mesma vontade. Há, portanto, uma submissão voluntária dos sujeitos da
relação jurídica ao direito local; isto significa que podemos dizer que o contacto de uma
relação jurídica com certo domínio de direito (contacto este que lhe determina a sede)
tem na sua base a submissão voluntária dos sujeitos da relação a esse domínio de
direito.
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 57

Todavia, isto não significa que para SAVIGNY a determinação da lei


competente esteja sempre na dependência directa da vontade dos interessados. Na
dependência directa da vontade dos interessados apenas se encontra a determinação da
lei competente para regular materialmente as relações situadas no domínio das leis
supletivas, pois é neste domínio e apenas nele que a lei se não impõe à vontade.

1.14.2.2.1.1) Aplicações práticas da doutrina de SAVIGNY:

a) Lei reguladora do estado das pessoas em si mesmas: sendo o domicílio


como que a sede legal da pessoa, é pela lei do domicílio
que se regula o estado da pessoa.
b) Lei reguladora dos direitos reais: tendo o direito real por objecto uma coisa
que é perceptível aos sentidos e localizável no espaço, é
pela lei do lugar da situação da coisa que se regula a
respectiva situação jurídica.
c) Lei reguladora das obrigações: a obrigação, sendo uma coisa incorpórea e
não ocupando um lugar no espaço, não tem, em si
mesma, uma sede que possamos considerar decisiva da
competência da lei. Contudo, toda relação jurídica
resulta de factos concretos que se passaram em certo
lugar e realiza-se por factos concretos que se hão-de
passar em determinado lugar.
Sendo assim, há que fazer-se a escolha entre o lugar da
constituição e o da execução das obrigações.. O primeiro (lugar da
constituição) é um facto acidental e estranho à essência da obrigação;
o segundo (lugar da execução), pelo contrário, é da essência da
relação jurídica, visto que a obrigação tem valor pela sua realização
ou cumprimento.
Assim, é conforme à natureza das coisas que o lugar do
cumprimento seja considerado como a sede da relação obrigacional.

d) Lei reguladora do direito das sucessões: operando o fenómeno sucessório a


transmissão do património de uma pessoa falecida para
outras (herdeiros ou legatários); e representando isto
uma extensão do poder e da vontade do homem para
além do termo da sua vida, logo, esta relação liga-se
imediatamente à pessoa do «de cujus», devendo a lei
aplicável ser a do último domicílio deste. Assim, a sede
da sucessão é a do último domicílio do autor da
sucessão.

e) Lei reguladora do Direito da Família:


→ Casamento: a lei reguladora do casamento é a lei do domicílio do
marido (o chefe da família), visto ser aí a sede do
vínculo conjugal.
→ Poder paternal: regula-se pela lei do lugar onde o pai tinha o seu
domicílio no momento do nascimento do filho. Quanto
às relações patrimoniais entre pais e filhos, seu regime
é determinado pela lei do actual domicílio do pai, pois
58 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

é esta a sede natural das relações jurídicas do pai com


os filhos.
→ Tutela: tendo a tutela por fim a protecção do pupilo, deve ser a lei
pessoal deste a decidir se se torna necessário instituí-la.
Assim sendo, quanto à sua constituição, a tutela está
subordinada à lei do domicílio do pupilo.
No que diz respeito à administração tutelar, ela deve
considerar-se sujeita à lei do tribunal em cuja circunscrição é
exercida.
Por último, a obrigação para o tutor de aceitar o encargo da
tutela, bem como o direito de escusa, determinam-se pela lei do seu
domicílio. Na dependência da lei do lugar onde a gestão tutelar é
exercida encontram-se as obrigações do tutor resultantes da gestão.

f) Forma dos actos jurídicos: deveria ser regulada pela mesma lei competente
para regular a relação jurídica em geral, mas sucede que
no lugar onde se pratica o acto jurídico é, muitas vezes,
de difícil conhecimento ou impossível observância das
formalidades prescritas na lei reguladora da relação
jurídica. Por isso admite SAVIGNY a suficiência da lei
do lugar da celebração.

1.14.2.2.1.2) Limites da Comunidade de Direito:

As diferenças entre as legislações dos Estados no tocante à


regulamentação de certas relações jurídicas podem traduzir diferenças essenciais nas
suas condições de existência que interessam à sua conservação e desenvolvimento.
Assim, torna-se, por vezes, perigosa a aplicação num Estado de leis de outro Estado.
Se a aplicação do direito estrangeiro se fundamenta na existência de uma
comunidade de direito entre os povos, a não verificação do pressuposto deve trazer
consigo o não funcionamento daquele princípio.
Se o juiz deve, em princípio, aplicar à relação jurídica o direito da sua
sede, quer esse direito seja ou não o do seu próprio território, há diversas leis cuja
especial natureza o força à aplicação do direito local mesmo nos casos em que se
mostrasse competente um direito estrangeiro.
Há, assim, um certo número de excepções ao princípio da aplicação da
lei estrangeira, excepções estas que SAVIGNY reduz a duas classes:
a) leis positivas rigorosamente obrigatórias que, por isso, não
podem ceder na concorrência com leis estrangeiras: pertencem a
esta categoria, não todas as leis imperativas, mas todas as que não
existem apenas no interesse dos indivíduos e são, antes,
inspiradas ou numa razão de ordem moral (como a lei que proíbe
a poligamia), ou num motivo de interesse geral, bem como as que
revestem um carácter político ou de polícia;
b) instituições de um Estado estrangeiro cuja existência não é
reconhecida no Estado local e que, portanto, não podem obter aí
a protecção dos tribunais. Como exemplos de instituições de um
Estado estrangeiro que não podem ser reconhecidas pelos
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 59

tribunais do Estado local, indica SAVIGNY a escravatura e a


morte civil.

SAVIGNY, em suma, tenta recuperar, através dos referidos princípios


universais do DIP., a concepção da harmonia de soluções e de unidade do direito que
era inicialmente garantida pela posição do direito romano e seria prejudicada pela
implantação da ideia do monopólio estadual do direito.
O sistema de SAVIGNY é bastante menos eficaz do que o que o
antecede: os princípios em que se baseia, por muito universais que sejam, devem a sua
legalidade efectiva a fontes estaduais (são institutos internos que não poderiam valer
sem que os órgãos do (s) Estado (s) os tenham transformado em direito vigente).
Não é possível uma solução única, apenas é uma solução uniforme
quando os vários Estados conectados com uma situação tivessem incorporado na sua
ordem jurídica os mesmos princípios e os aplicassem de forma idêntica.

1.14.2.2.2) O sistema de MANCINI:

Seguindo na esteira de SAVIGNY, MANCINI nega aos Estados o poder


absoluto de recusar inteiramente no seu território a aplicação de leis estrangeiras. É o
abandono decisivo do princípio da territorialidade. Além disso, ensina MANCINI que
a aplicação das leis estrangeiras, quando por elas devam regular-se as relações jurídicas,
não representa um simples acto de cortesia («comitas gentium»), mas o
cumprimento de um dever por parte do Estado.

Quais os princípios ou critérios de harmonia com os quais cada Estado deve ser
obrigado a reconhecer e aplicar leis estrangeiras?

Segundo MANCINI, as relações jurídicas do direito privado são


reguladas pela lei nacional dos seus sujeitos ou pela lei por eles escolhida, dentro dos
limites que foram consentidos pela ordem pública do Estado local.
O princípio fundamental do sistema é o da nacionalidade (é em nome
deste princípio que cada indivíduo pode reclamar, fora do seu país, o reconhecimento e
o respeito do seu direito privado nacional). Entende MANCINI que é nas relações de
direito privado que, sobretudo, se revela o espírito e o carácter de cada povo. O clima, a
temperatura, a situação geográfica, a natureza do solo, a diversidade das necessidades e
dos costumes de cada povo, assim como já ensinava MONTESQUIEU em «O
Espírito das Leis», são condições que determinam em cada povo o sistema das
relações jurídicas.
O estado e a capacidade das pessoas, as relações de família, etc., têm nas
diferentes legislações uma regulamentação distinta justamente em virtude da maneira de
ser particular do povo de cada nação. Seria, por isso, injusto que ao estrangeiro não
fosse respeitado o seu estado pessoal e a sua capacidade jurídica, tal como lhos definem
as leis do seu país.
Assim como cada indivíduo pode reclamar do seu próprio Estado e dos
seus concidadãos, em nome do princípio da liberdade, o respeito do seu património de
direito privado, assim também ele pode reclamar das outras nações e dos outros
Estados, em nome do princípio da nacionalidade estrangeira, idêntico respeito por esse
60 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

seu património. E o dever de cada Estado de respeitar a esfera de liberdade dos


cidadãos estrangeiros não resulta da «comitas gentium», mas, sim, de um dever de
justiça.
A mais, havemos de distinguir no direito privado uma parte necessária e
outra parte voluntária:
a) parte necessária: constituída pelas leis que regem o estado das
pessoas, as relações de família e a ordem da sucessão. O direito
privado necessário é aquele que não pode ser alterado pela
vontade dos indivíduos;
b) parte voluntária: diz respeito aos bens e ao seu gozo, à formação
dos contratos, às obrigações. Neste domínio o indivíduo não é
obrigado a conformar-se com a sua lei nacional. Visto que as
regras ditadas por esta lei serem, ao menos em parte, meramente
supletivas, destinadas a suprir as lacunas da vontade dos
interessados, podem estes submeterem-se a regras diferentes.

O estrangeiro deve ter, pois, a faculdade de se submeter ou não a esta


parte do seu direito privado nacional. É que a liberdade individual deve ser respeitada
enquanto é inofensiva e o Estado não tem interesse em impedir o seu exercício.
Em matéria de relações jurídicas sujeitas ao direito privado voluntário,
MANCINI continua a considerar competente, em princípio, a lei nacional; mas os
interessados devem poder submeter-se ao direito em vigor num país estrangeiro. É o
princípio da autonomia da vontade (formulado por DUMOULIN, estatutário francês).
É esta a doutrina de MANCINI, mas há que ter em conta o limite do
direito público (princípio da independência política). O direito público põe o indivíduo
em contacto com a comunidade nacional em cujo seio quer viver. Esta comunidade
estabelece as condições em que todos os que habitam no seu território devem
obediência à soberania política desse Estado. Tais condições devem ser respeitadas por
todos os habitantes do território, seja qual for a sua nacionalidade.
Em resumo, cada indivíduo pode reclamar, fora do seu país, em nome do
princípio da nacionalidade, o reconhecimento e o respeito do seu direito privado
nacional. Mas cada Estado, em nome do princípio da independência política, pode
proibir, dentro do seu território, toda a infracção ao seu direito público... à sua ordem
pública. Nesta medida, o Estado pode recusar-se a reconhecer e aplicar leis
estrangeiras. Do mesmo modo, aos actos realizados em país estrangeiro pode o Estado
negar todo o efeito, ainda que no país onde foram realizados sejam considerados
legítimos, desde que lesem princípios essenciais da sua ordem pública.
O direito privado é pessoal e nacional, devendo acompanhar a pessoa
mesmo fora da sua pátria. O direito público é territorial. O direito privado pode ser
necessário ou voluntário, sendo este último (o voluntário) dominado pelo princípio da
autonomia da vontade.

→ Pessoal; e
Direito privado → nacional. Direito público → territorial
→ Necessário; ou
→ voluntário.
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 61

Em suma, o sistema de resolução de conflitos devido a MANCINI é este: os conflitos


de leis de direito privado resolvem-se pela aplicação da lei nacional das
pessoas, salvo a excepção derivada da autonomia da vontade e as
limitações impostas pela ordem pública internacional. Há leis pessoais, de
aplicação extraterritorial; leis de ordem pública, de aplicação territorial; e
leis cuja a competência depende da vontade dos interessados.

→ O estado e a capacidade das


Estão sujeitos à lei nacional pessoas;
→ as relações de família; e
→ sucessões.

Estão sujeitas à lei expressa ou → Os bens; e


tacitamente escolhida
→ as obrigações.

Confrontando esta doutrina com a de SAVIGNY facilmente se verifica


que o seu traço mais característico reside na importância atribuída ao princípio da
nacionalidade. Já no sistema de SAVIGNY, as leis pessoais (de aplicação
extraterritorial) ocupavam um lugar preponderante. Mas é na doutrina italiana que, pela
primeira vez, a lei pessoal nos aparece identificada com a lei nacional. O velho
princípio do domicílio foi substituído, na doutrina de MANCINI, pelo princípio da
nacionalidade.

1.14.2.2.3) O sistema de PILLET:

Para PILLET, uma solução justa dos conflitos de leis deve derivar da
natureza da lei, como expressão da vontade soberana do legislador. Tanto quanto
possível, deve procurar manter-se na lei (considerada nas relações internacionais) as
qualidades que ela tem nas relações internas. Deste modo, conseguir-se-á sacrificar de
cada lei nacional, na resolução dos conflitos de leis, apenas o que for estritamente
indispensável para a justa conciliação das soberanias.
62 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

Encaradas na perspectiva do direito interno, todas as leis são de


aplicação geral e, ao mesmo tempo, de aplicação permanente. Se, porém, as
considerarmos na sua aplicação às relações internacionais, teremos de admitir que
uma destas qualidades tem de ser sacrificada. A lei ou há-de ser geral (aplicando-se a
todos os habitantes do território, quer sejam nacionais ou estrangeiros), ou permanente
e extraterritorial, acompanhando no estrangeiro os súbditos do Estado legislador e,
reciprocamente, deixando de aplicar-se no território deste Estado aos estrangeiros.
Ou generalidade ou permanência. Sacrificando-se a generalidade, a lei
será extraterritorial; sacrificando-se a permanência, a lei será territorial. Assim, na
perspectiva de PILLET, o problema dos conflitos consiste, pois, em determinar quais
as leis que devem considerar-se gerais e territoriais e quais as leis que devem
considerar-se permanentes e extraterritoriais.
Para determiná-lo, há que atender-se, segundo PILLET, à função social
ou fim da lei, isto é, à necessidade social a que ela pretende dar satisfação.
Quanto ao seu destino ou ao seu fim, as leis internas dividem-se em leis
de protecção individual e leis de garantia social ou de ordem pública.
a) Leis de protecção individual: dizem respeito ao estado e a capacidade das
pessoas, às relações de família, sucessões e doações. Estas
leis de protecção individual só atingirão o seu fim se
acompanharem sempre os indivíduos a que se destinam, ou
seja, se forem de aplicação permanente e extraterritorial.
b) Leis de garantia social ou de ordem pública: são as leis políticas, morais,
de segurança, as relativas à propriedade, ao crédito público, à
execução forçada e à falência, as leis fiscais e as leis de
ordem. O fim das leis de garantia social só poderão ser
atingidos se elas forem de aplicação geral a todos os
habitantes do território (leis territoriais).

A lei de protecção individual competente será a lei nacional, visto ser o


Estado a que o indivíduo pertence «o mais interessado» e aquele que tem o direito
e o dever de o proteger nas relações internacionais.
A lei de garantia social competente será também a do Estado que tiver
na matéria o interesse mais forte, isto é, a que melhor realizar o fim visado pelo
instituto ou preceito jurídico em causa.
Ao lado das leis de protecção individual e de garantia social, considera
PILLET as leis supletivas ou interpretativas e as leis de forma.
a) Leis supletivas ou interpretativas: em virtude do seu carácter de leis de
conselho, adopta em relação a elas o princípio da autonomia
da vontade.
b) Leis de forma: em virtude de estas, segundo PILLET, ocuparem uma
posição intermediária entre as leis supletivas e as leis
imperativas, adopta o princípio «locus regit actum» com
carácter facultativo.

Assim sendo, são estas as principais características apontadas ao sistema


de PILLET:

a) o fundamento dado à doutrina de que a lei pessoal é a lei


nacional (considera que o Estado com maior interesse na protecção dos
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 63

indivíduos é aquele ao qual pertence o direito e o dever de os defender por


via diplomática nas relações internacionais: o Estado da nacionalidade);
b) o carácter atribuído às leis de ordem pública. Enquanto
SAVIGNY e MANCINI consideravam estas leis como um limite ou uma
excepção à comunidade de direito e ao princípio do reconhecimento e
aplicação de normas jurídicas estrangeiras, PILLET considera-as como um
elemento integrante dessa comunidade de direito e como leis de competência
absolutamente normal;
c) a ideia do fim social das leis, enquanto critério
determinante do seu campo de aplicação às relações internacionais.

1.14.2.2.4) Outras doutrinas universalistas:

Todas as doutrinas citadas são de clara inspiração e sentido universalista.


Estes autores, ao exporem as suas ideias acerca dos limites espaciais do domínio das
regras de direito sobre as relações jurídicas, não o faziam, decerto, com um intento de
construir um sistema de conflitos para uso exclusivo dos tribunais alemães, italianos ou
franceses, senão com o intento de assinalar as coordenadas básicas e os princípios
científicos informadores de todo o DIP.
Nos começos do século XX, contudo, o universalismo está em vias de
extinção. No entanto, o universalismo estilo século XIX não se rende sem luta. A
teoria de ZITELMANN tem o traço original de nos oferecer um sistema de DIP.
supraestadual fundamentado no Direito Internacional Público, segundo ele, o DIP.
supraestadual apresenta-se como um conjunto de normas jurídicas implicadas por certos
princípios do Direito Internacional Público vigente.
Outro autor que importa apreciar é FRANKENSTEIN. Para este autor,
o problema do DIP. consistiria em saber qual o princípio segundo o qual devem ser
reguladas as relações internacionais entre os indivíduos. FRANKENSTEIN entende
que as relações intersubjectivas internacionais não podem ser reguladas senão pela
ordem jurídica que detiver o poder de constrangimento ou coacção; aquele
ordenamento jurídico ao qual os interessados se encontram sujeitos.

1.14.2.3) A evolução posterior do DIP.:

Vimos como no século XIX, com o advento e a intensificação do


movimento codificador, o DIP. muda radicalmente de aspecto: perde a natureza de
conjunto de princípios de formação e autoridade exclusivamente doutrinal para assumir
uma feição legal-positiva.
Durante o século XIX, o problema do DIP. é encarado como um
problema de delimitação de competências legislativas, de coordenação de soberanias e,
portanto, como um problema cuja resolução pertence ao direito internacional.
A emanação de normas de conflitos pelos vários Estados constitui,
portanto, uma solução imperfeita e meramente provisória, se bem que legítima do
problema. O verdadeiro DIP. é superior aos Estados e necessariamente uniforme.
64 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Introdução —

Em breve, essa atitude tornou-se geral. Cada Estado passou a ter um


DIP. próprio. Mas era fatal que entre estes vários sistemas nacionais de normas de
conflitos se verificassem inúmeras e profundas divergências.

1.14.2.4) Consequências do movimento codificador do DIP. ― a reacção


contra o universalismo:

O DIP. constituiu-se e existe a fim de dar a cada relação do comércio


jurídico internacional a lei competente, mas de forma a que esta lei seja a mesma em
toda a parte. A justiça de uma causa não deve depender da latitude do lugar, e sendo
certo que, não poucas vezes, a relação jurídica poderá ser submetida à apreciação de
uma ou outra dentre várias jurisdições nacionais, à escolha do autor, urge evitar que
este, escolhendo o tribunal da acção («forum shopping»), possa também, por tal
caminho, escolher, dentre as possíveis, a lei que for mais do seu agrado. Além disso, na
situação actual do DIP., não têm as partes a possibilidade de determinar, no momento da
constituição da relação jurídica, a lei a que ficarão sujeitas.
Assim, o DIP. actual está ainda longe de dar satisfação às necessidades
da vida social que determinaram o seu aparecimento. O DIP. é, por natural destino, um
direito comum a todos os povos e nações; não existe apenas para designar a lei
competente, mas para o fazer por modo universalmente válido. A harmonia jurídica
internacional (a garantia de que a mesma situação da vida será objecto de valoração
uniforme em todos os países interessados) é postulada aqui pela própria natureza das
coisas. A harmonia internacional é o ideal supremo do DIP.
Esse ideal foi quase por completo perdido de vista durante largas décadas
do século XX.
Já no primeiro quartel do século XX, o DIP. pudera ser definido como
expressão genuinamente nacional. Ele seria apenas a projecção do direito privado
interno no plano internacional. É o dogma da subordinação do DIP. ao direito
material.
Ora, se o conteúdo das normas de conflitos depende assim tão
estritamente da modelação das instituições a que elas se referem pelo respectivo direito
material, a falta de uniformidade do DIP. será, desde logo, a expressão necessária da
falta de uniformidade do próprio direito privado interno. Para a suprimir seria
necessário começar por anular a divergência das leis internas, isto é, os conflitos de leis,
mas, então, já não haveria o problema e o DIP. desapareceria.
Assim, haveria de resolver-se o chamado problema da qualificação em
favor da «lex fori» e que repudiar formalmente qualquer sorte de reconhecimento do
DIP. vigente noutros países. É o dogma do carácter absoluto e exclusivo do DIP. da
«lex fori». De resto, a escola nacionalista iria robustecer-se, ainda, graças ao
«rapport» daqueles escritores (NIBOYET sobretudo, que fora discípulo de PILLET)
que viriam acentuar o carácter político das razões que, em cada Estado, estão na base do
sistema das regras de conflitos, o comandam e aperfeiçoam.
Deste modo se instalou um estado de coisas absolutamente contrário à
essência e fins do DIP.
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 65

1.14.2.5) Reacção contra o nacionalismo ou particularismo positivista.


Orientação dominante na actualidade:

Contra tal estado das coisas, tomou vulto uma reacção por volta da
década de 1930.
A ideia de que uma sã solução dos conflitos de leis deve inspirar-se
fundamentalmente no interesse dos indivíduos, a quem, afinal, se destina todo o direito;
a progressiva utilização neste domínio do método da jurisprudência dos interesses; o
reconhecimento da necessidade urgente de emancipar o DIP. do direito interno em
ordem a tornar possível o ideal da unificação; o aproveitamento, neste sentido, da
investigação comparatista; a tendência para uma interpretação das regras de conflitos
estaduais adequada à sua missão eminentemente internacional, isto é, da compreensão e
coordenação de todas as legislações do mundo civilizado.
2) O método do Direito Internacional Privado:

2.1) A concepção clássica (ou tradicional)


europeia do DIP.:

Definimos o DIP. como «o ramo da ciência jurídica


onde se procuram formular os princípios e
regras conducentes à determinação da lei ou
das leis aplicáveis às questões emergentes das
relações jurídico-privadas internacionais e, bem
assim, assegurar o reconhecimento no Estado
do foro das situações jurídicas puramente
internas, mas situadas na órbita de um único
sistema de direito estrangeiro».

Ocupa-se, portanto, o DIP. das relações plurilocalizadas, ou seja,


daquelas relações que, correspondendo a uma actividade jurídica que não se comporta
nas fronteiras de um único Estado, entram em contacto, através dos seus elementos,
com diversos sistemas de direito e, assim sendo, acham-se sujeitas a uma condição de
particular incerteza e instabilidade, cabendo ao DIP., justamente, criar para tais relações
um disciplina que reduza esta instabilidade a um mínimo tolerável. Tem, portanto, o
DIP. por função precípua assegurar a estabilidade e continuidade das relações jurídicas
internacionais.
Segundo a orientação tradicional do DIP. (que corresponde
fundamentalmente ao sistema de SAVIGNY), considera-se que o problema que se
levanta é o de designar a lei competente, ou seja, a lei em cuja moldura deverão
procurar-se os preceitos materiais aplicáveis ao caso «sub judice». Esses preceitos
seriam aqueles que os tribunais do respectivo Estado aplicariam se o caso fosse
puramente nacional.
Contudo, e uma vez que se trata de relações conexas com diferentes
sistemas de direito e, muitas vezes, com diferentes tipos de regulamentação material,
pergunta-se, naturalmente, qual desses sistemas deverá ser chamado a reger a situação
concreta.
Para a concepção clássica, é através de normas de conflitos que o DIP.
cumpre a sua missão de prover à regulamentação das questões emergentes das relações
jurídico-privadas internacionais.
Foi com SAVIGNY que teve origem o método ainda predominante a que
chamamos «técnica das regras de conflitos» e que consiste em procurar, para
cada situação jurídica típica, o laço que mais estreitamente a prenda a um determinado
sistema de direito. Por outras palavras, o DIP. clássico utilizava como método básico as
regras de conflitos que procediam à escolha da lei competente para reger a uma
determinada situação, com base em critérios meramente localizadores (v.g.:
proximidade espacial, vinculação espacial mais forte). Cada uma destas normas de
conflitos tem a seu cargo uma tarefa que consiste em delimitar um sector ou matéria
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 67

jurídica, em recortar uma questão ou núcleo de questões de direito, e em designar o


elemento de conexão através do qual deverá determinar-se a lei a aplicar neste domínio.
A escolha da conexão relevante obedece a uma directiva geral: na
execução da aludida tarefa deverá proceder-se tendo em atenção que o fim em vista é o
de encontrar uma lei que seja verdadeiramente adequada ao seu objecto, isto é, à função
de regular determinada matéria ou sector da vida jurídica. Não se trata de escolher a
melhor lei, mas aquela que melhor colocada estiver para intervir na resolução do litígio,
e isso tendo em atenção a localização dos factos ou da relação dela com as pessoas a
quem os factos dizem respeito.
Isso significa que o problema do DIP. não é um problema de justiça
material: o papel da regra de conflitos não é o de escolher, de entre as soluções
decorrentes das várias leis em concurso, a que melhor convenha, em termos de justiça
material, à natureza e circunstâncias do caso «sub judice». O DIP., como já tivemos
a oportunidade de referir, está ao serviço de valores de certeza e segurança jurídicas: a
sua justiça é de cunho predominantemente formal. O intento primordial do DIP. está
em promover e garantir a continuidade e estabilidade das situações jurídicas
multinacionais através da unidade da respectiva valoração por parte dos diversos
sistemas interessados para, assim, evitar a frustração das expectativas que, com base
nelas, forem concebidas pelas partes e por terceiros.
Estas normas de conflitos caracterizam-se por duas notas:
a) Rigidez: na sua feição clássica, as regras de conflitos são regras rígidas («hard-and-
fast Rules»), isto é, normas que vinculam o juiz a utilizar um elemento de conexão
predeterminado ou determinável a partir de critérios enunciados pela própria norma,
sempre que se lhe apresentasse uma questão jurídica do tipo correspondente à respectiva
previsão. Assim, nesta altura, a regra de conflitos era vista como um «prius»
metodológico que não deveria ceder nem cedia perante nenhum outro método ou por
uma outra visão do método.
b) Neutralidade: certamente que em todos os sistemas jurídicos positivos se encontram
normas materiais criadas expressamente para determinadas categorias de situações
multinacionais. Tais preceitos de DIP. material são, por vezes, estabelecidos por uma
convenção internacional, outras vezes, oriundas de uma fonte jurídica interna. Contudo,
o método típico do DIP. é o método conflitual. Assim sendo, não compete ao DIP., por
si próprio, fornecer a norma material aplicável ao caso concreto, mas unicamente
designar a lei a que a norma aplicável deverá ser pedida. A regra de conflitos, assim,
não estava imbuída com preocupações materiais; tinha por detrás de si apenas os
valores do DIP. (segurança, tutela das legítimas expectativas das partes, etc.).

Relativamente à primeira das características assinaladas, ou seja,


relativamente à rigidez das regras de conflitos, convém assinalar que se vem
desenhando nos últimos tempos uma tendência para a abertura de largo espaço às
regras abertas ou flexíveis («open-ended Rules»).
Estas «open-ended Rules» concedem ao julgador ampla liberdade na
fixação, em cada caso concreto, da conexão mais apropriada.
Outras normas determinam a conexão em princípio relevante, mas
permitem a aplicação de outra lei quando se mostre que a situação concreta «sub
judice» se encontra mais fortemente ligada à ela.
A «cláusula de excepção em DIP.» é a expressão mais acabada da
tendência para não sujeitar o julgador a regras de conflitos rígidas, permitindo-lhe o
recurso a uma lei que ele entenda ter com o caso uma ligação mais estreita.
68 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— O Método do D.I.P. —

2.2) A crítica norte-americana:

É dos Estados Unidos que procedem os ataques mais violentos contra a


concepção tradicional do DIP. Tais críticas visam a própria legitimidade ou adequação
do método utilizado pelo DIP. para cumprir a sua função. Contudo, os autores norte-
americanos só estão unidos na rejeição da concepção clássica do DIP. e não quanto à
nova via metodológica a seguir. Sublinham-se principalmente os seguintes pontos de
divergência:
a) dificuldade, quando não mesmo
impossibilidade, de, em muitos casos, apurar-se a conexão mais
estreita ou mais significativa da relações jurídica;
b) alegada impropriedade das normas de
direito interno para regular as situações internacionais (situações
estas cujos problemas específicos elas ignoram), pois não foram
elaboradas tendo em conta tais problemas;
c) dificuldades que surgem no processo de
aplicação da regra de conflitos (v.g.: questões como as da
qualificação; da adaptação; do reenvio; da ordem pública).
Daqui resulta um estado de coisas que compromete
gravemente a previsibilidade das decisões judiciais e a estabilidade
da vida jurídica. Ora, entre os fins que o DIP. visa, ocupa
justamente lugar de primordial relevo o de assegurar a continuidade
e estabilidade das situações plurilocalizadas; e
d) por fim, diz-se que o método descrito
compromete a possibilidade de encontrar para as situações
multinacionais a solução materialmente mais consentânea com os
seus caracteres específicos.

Os autores norte-americanos começaram por elaborar um esquema


complicado e algo complexo nos termos do qual era preciso designar uma ordem
jurídica que tivesse dado nascimento ao direito, e se esse direito tivesse sido criado à luz
da ordem jurídica que se entendia ter-lhe dado nascimento, o respectivo direito era
reconhecido; caso contrário, não o seria.
É importante notar que o direito americano é um direito federal ― há
diversas legislações e não há leis uniformes. A doutrina elaborou uma compilação de
preceitos que a jurisprudência vai seguindo na prática. O «Restatement» é
constituído por um conjunto de princípios e regras que se entendem traduzirem na
prática definida e que funcionam como codificações.
Para compreendermos a «conflicts revolution» americana há que
conhecer dois pólos:
→ por um lado, o objecto da crítica (na circunstância, a doutrina
dominante em matéria de DIP.), representada por JOSEPH
BEALE, o autor do primeiro «Restatement of conflict of
laws»; e
→ por outro lado, o padrão em relação ao qual a realidade teórica era
apreciada e em nome do qual ela se via repudiada: no caso, uma
certa forma de pensar o direito.
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 69

A doutrina internacional-privatística nos Estados Unidos da América


(que tem justamente em JOSEPH STORY o seu primeiro representante) filia-se na
escola holandesa e com ela segue um princípio formal segundo o qual a validade das
leis, enquanto ordens do legislador, seria exclusivamente territorial, isto é, limitada ao
território onde se exerce a autoridade da qual elas tinham emanado ― princípio da
territorialidade → «comitas gentium».
Na esteira de STORY surge BEALE, que entende ser indiscutível o
carácter territorial do direito e a consequente impossibilidade de aplicação, no foro, da
lei estrangeira. É assim que os «vested rights» (direitos adquiridos no estrangeiro)
só relevam para o Estado do foro enquanto pressuposto necessário da criação no próprio
foro (e através de uma norma sua) de um direito de idêntico conteúdo. São, assim,
meros factos despidos de qualquer relevo jurídico autónomo, ainda que a sua existência
seja indispensável para que no Estado do foro se possa criar, com uma norma deste
mesmo Estado, um direito de conteúdo análogo.
Além disso, o reconhecimento da existência dos «vested rights»
estrangeiros dependeria de terem sido constituídos à luz da lei para tanto considerada
competente pela regra de conflitos do foro. É aqui que o DIP. americano se aproxima,
fundamentalmente, da concepção ao tempo vigente na Europa sobre a matéria. A
validade no foro de direitos e situações constituídas no estrangeiro depende, assim, de
terem sido criadas pela lei a que a regra de conflitos do foro atribui a correspondente
competência. Só que a concepção americana aparece ainda mais inutilmente
complicada que a europeia na medida em que, pretendendo arrancar do dogma da
territorialidade das leis, vê-se obrigada, para reconhecer situações e direitos adquiridos
no estrangeiro, a recorrer a construções rebuscadas e confusas como é o caso dos
«vested rights».
Contra esta corrente doutrinária, a que BEALE deu forma codificada no
primeiro «Restatement», levanta-se uma reacção fundamentalmente em atenção a
um modo de conceber o direito que, não sendo o tradicional, não era já também o
vigente, ao tempo, na Europa.

2.3) Principais posições críticas:

2.3.1) A crítica de DAVID CAVERS:

Em 1933, DAVID CAVERS publica um estudo no qual conclui que, nas


situações plurilocalizadas, o cerne é o conflito de normas materiais de diversas
proveniências que visam dirimir o litígio. Há várias normas materiais que podiam
resolver aquele conflito e a escolha da lei não deve ser orientada por critérios
meramente localizadores (assim como o fazia a doutrina clássica), mas sim pela justiça
material da solução, atendendo aos interesses das partes e à própria situação ― é este o
primeiro momento de CAVERS, o da negação da regra de conflitos.
CAVERS censura tal sistema pelo seu desinteresse pela solução a dar ao
caso concreto, funcionando por meio de elementos de conexão que abstraem por
completo do conteúdo substancial da lei.
As regras de conflitos, segundo CAVERS, seriam regras de aplicação
mecânica, mas, segundo ele, o conflito de leis deve ser encarado como um antagonismo
70 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— O Método do D.I.P. —

ou oposição concreta entre preceitos materiais: os preceitos que disputam entre si a


regulamentação de certo caso.
Para DAVID CAVERS, o problema do DIP. não se resume a um
problema de escolha entre sistemas de direito (de escolha entre regras materiais), sendo
forçoso resolvê-lo olhando ao conteúdo e fins destas normas. A determinação da
conexão decisiva depende tanto das circunstâncias de facto em que a conexão se vai
operar, como das soluções a que as diferentes leis em conflito conduzam.
O juiz só pode ter por findo o processo de averiguação da lei aplicável
depois de ter comparado as soluções fornecidas pelas normas materiais em concurso.
Defende CAVERS que a escolha da lei não pode ser resultado de uma
simples operação mecânica, para essa escolha devendo presidir, diferentemente, um
critério de justiça material.
A solução de CAVERS consistiria em entregar ao juiz a escolha da lei,
não em função da localização da situação, mas sim em função do resultado. Para
empreender tal desígnio, dois critérios deveriam guiar o juiz
→ a justiça devida às partes; e
→ os objectivos de política legislativa prosseguidos pelas normas em
concurso.

2.3.1.1) Críticas a esta teoria:

a) Insegurança, instabilidade e casuísmo,


pois os critérios para cada caso concreto podem ser diferentes e a
escolha da ordem jurídica estadual competente para reger em
termos materiais a questão vai depender de uma apreciação do juiz
(que terá de atender aos interesses das partes;
b) pode acontecer que uma solução não seja a
mais justa, mas aquela com a qual as partes contariam ― temos
aqui dois valores em conflito: justiça material e os interesses das
partes;
c) de qualquer forma, nunca se prescinde de
uma abordagem localizadora (o juiz vai apreciar as normas
materiais conectadas com aquela situação).

2.3.1.2) O segundo momento de DAVID CAVERS:

Posteriormente, CAVERS inflecte o rumo do seu pensamento,


oferecendo-nos algumas regras destinadas a solucionar os conflitos de leis, regras estas
que seriam o produto do seu método.
Em sua segunda fase, CAVERS adopta o método da pesquisa da
melhor lei («Better Law Approach»). A «better law approach» consiste numa
doutrina que não repudia o sistema da conexão. Segundo ela, será aplicável a lei,
escolhida dentre as leis conectadas com a situação concreta, que regular a situação
«sub judice» de modo mais adequado ou correcto (o mais justo). Ele julga ser
necessária a formulação de juízos de valor que possam orientar os tribunais e justificar,
assim, a preferência por uma daquelas normas em conflito, pois:
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 71

→ nem sempre é fácil chegar à solução das questões emergentes das


relações internacionais através da análise do conteúdo e dos fins das
normas em conflito; e
→ há inconvenientes e perigos derivados do método da solução «ad
hoc».

CAVERS estabelece critérios guia (os célebres princípios de


preferência ― «principles of preference») que são simples critérios de orientação
para o juiz, ou seja, deviam simplesmente orientar o juiz na solução de situações
privadas internacionais controvertidas, não tendo o carácter rígido de verdadeiras
normas de conflitos.
Trata-se do seguinte: CAVERS toma alguns casos de conflitos entre
instituições ou preceitos jurídico-materiais de diferentes sistemas de direito e diz-nos
qual o critério que, em tais hipóteses, deve presidir à solução do conflito de leis..
Assim sendo, perante uma situação internacional concreta, deveria o juiz:
1) limitar o âmbito de leis potencialmente
aplicáveis segundo o critério da maior proximidade; e
2) proceder à determinação da lei (dentre
aquelas conectadas à situação) aplicável através do recurso aos
critérios guia («principles of preference»).

CAVERS formulou princípios de preferência relativamente a duas


matérias:
→ responsabilidade civil extracontratual (protecção do lesado); e
→ responsabilidade civil contratual (salvaguarda do negócio
jurídico).

a) Responsabilidade civil extracontratual: se a


lei do local onde foi produzido o dano for mais responsabilizante
do que a lei da residência do autor do dano ou do que a lei onde o
acto lesivo foi praticado, deve aplicar-se a lei do local onde o dano
foi produzido, pois esta é a lei que melhor protege a vítima. Nós
temos algo de parecido com isso no artigo. 45º do Código Civil, já
que considera em seu n.º 1 que, em princípio, a lei competente para
regular a questão é a do Estado onde decorreu a principal
actividade causadora do prejuízo, mas, em seu n.º 2, abre uma
excepção, qual seja, a de, na hipótese de a lei, em princípio,
competente (ou seja, a lei do Estado onde decorreu a principal
actividade causadora do prejuízo) não considerar o agente como
responsável, deve ser aplicada a lei do Estado onde se produziu o
efeito lesivo, no caso de esta considerá-lo responsável.

CAVERS formulou, contudo, uma ressalva: segundo ele, existindo uma


relação especial e específica entre o autor do dano e o lesado, deverá o juiz aplicar a
lei do Estado competente para regular a relação.
Resumindo e concluindo, os mencionados princípios de preferência
(«principles of preference») se destinam, antes de mais, a delimitar o círculo de
leis utilizáveis em cada matéria sobre as quais pode recair a escolha. Assim, por
exemplo, quando a lei do Estado onde se verificou o dano consagra normas de conduta
72 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— O Método do D.I.P. —

mais estritas ou estabelece medidas mais elevadas de protecção financeira do que a lei
do Estado onde o réu agiu ou onde tinha a sua residência, é a lei daquele primeiro
Estado que deve prevalecer, a menos que a existência de uma relação entre o autor e a
vítima do dano justifique a aplicação da lei que rege esta relação.

No domínio da responsabilidade «ex delicto», as únicas leis a considerar são:


→ a do país onde se verificou a lesão jurídica;
→ a do país onde teve lugar o facto danoso;
→ a lei do domicílio do autor do facto; e
→ quando exista uma relação entre o autor do facto e a vítima do
dano, a lei reguladora desta relação.

Obviamente que a aplicabilidade de qualquer uma destas leis baseia-se


na conexão que apresenta com a situação da vida em que se levanta a questão da
responsabilidade civil a resolver, sendo que, portanto, até aqui, as coisas decorrem
inteiramente segundo as coordenadas do Direito Internacional Privado clássico, já que
as leis designadas o foram em função de puros critérios de localização espacial das
situações a regular, sem ter em consideração o conteúdo das normas em presença nem,
por conseguinte, a justiça material.
Após determinar as leis potencialmente aplicáveis ao caso «sub
judice», deve estabelecer-se os critérios de selecção definitiva da lei a aplicar. No caso
da responsabilidade civil extracontratual, esses critérios são dois:
→ um deles tem a ver com o conteúdo das leis em conflito, aplicando-
se a lei que conceder maior protecção à vítima do dano;
→ o outro parece utilizar o método tradicional da conexão, sendo
competente a lei reguladora de uma determinada relação existente
entre as partes, seja qual for a solução que daí decorra para o
problema de responsabilidade em causa.

2.3.1.3) Crítica ao segundo momento de CAVERS:

Como decorre das linhas anteriores, o método proposto por CAVERS é


um método que se aproxima do método tradicional, de modo que os «princípios de
preferência» são verdadeiras normas de conflitos, embora seja mais flexível e
maleável, não sendo também uma alternativa possível em todas as situações, uma vez
que nem sempre se consegue individualizar um valor ou um critério guia.

As diferenças entre esta posição de CAVERS e a posição tradicional são realmente


relevantes?

1) Os princípios de preferência destinam-se, antes de


tudo, a delimitar o círculo das lei aplicáveis em relação a cada
matéria, aquelas sobre as quais pode recair a escolha. Assim, por
exemplo, em matéria de responsabilidade civil extracontratual, as
únicas lei a considerar seriam, assim como já o frisamos:
→ a do país onde se verificou a lesão
jurídica;
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 73

→ a do país onde teve lugar o facto


danoso;
→ a do país do domicílio do autor do
facto; e
→ quando exista uma relação entre o
autor do dano e a vítima, a lei reguladora da relação.

Até aqui as coisas decorrem como no DIP. clássico: a aplicabilidade de


qualquer uma das leis baseia-se na conexão que apresente com a situação que levanta a
questão da responsabilidade civil (não se tem em conta a justiça material).

2) Tendo em conta os critérios de selecção definitiva


da lei a aplicar, ainda relativamente ao princípio de preferência em
relação à responsabilidade civil extracontratual, esses critérios são:
→ conteúdo das lei em conflito → será competente a lei que
oferecer maior protecção à vítima do dano; e
→ de forma semelhante ao método tradicional de conexão
será competente a lei reguladora da relação existente entre
as partes.

Tendo por função determinar, para cada caso, a lei aplicável, este
princípio de preferência por último referido é uma verdadeira norma de conflitos ―
apesar de não se limitar a utilizar um critério de conexão espacial, referindo-se também
ao conteúdo dos preceitos materiais em colisão.
Existe, como vemos, uma semelhança inegável entre esta última posição
defendida por CAVERS e a posição tradicional, ideia esta que se vê reforçada pelo
facto de o fim último dos princípios de preferência ser igual ao das normas de conflitos.
CAVERS considera que a validade de tais princípios depende de sua
aptidão para serem incluídos num direito comum a todas as nações → ponto de vista
universalista.
O recurso sistemático a critérios semelhantes aos formulados por
DAVID CAVERS, em toda a zona não recoberta por normas de conflitos de conteúdo
rígido, não é empresa realizável, pois:
→ não é possível prever todos os tipos de conflitos de preceitos
materiais susceptíveis de serem verificados; e
→ mesmo se o fosse, não seria possível, seguramente, formular para
cada um destes tipos uma válida razão de decisão, um princípio de
preferência baseado no conteúdo das leis em concurso e dotado de
aptidão para ser incluído num direito comum a todas as nações (v.g.:
problema da admissibilidade do divórcio sendo, por exemplo,
aplicável a lei que admite a dissolução do vínculo matrimonial →
esta solução não teria, decerto, acolhimento nos países menos
abertos a tal ideia, nunca podendo, portanto, converter-se em critério
de aceitação universal.

O método proposto por CAVERS oferece certas possibilidades de


utilização como método adjuvante do conflitual, mas não pode ser adoptado como via
principal para a resolução dos problemas a que o DIP. visa dar solução.
74 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— O Método do D.I.P. —

2.3.1.4) O DIP. e a CRP. Segundo CAVERS:

CAVERS começa por caracterizar o processo clássico: segundo ele, ao


aplicar a regra de conflitos, o tribunal parece brandir uma vara mágica, comprometendo-
se, assim, num teste cego na medida em que o juiz é absolutamente indiferente ao
conteúdo da lei, ao fim desta e aos resultados da sua aplicação.
Os inconvenientes deste processo são conhecidos, sendo, portanto,
importante que se descubra uma forma de escapar ao sistema tradicional.
A alternativa estaria em partir da ideia de que o tribunal não escolhe uma
lei, mas dirime uma controvérsia.
Assim, perante um caso concreto da vida internacional, o juiz deveria
analisá-lo nas suas ligações legislativas possíveis e comparar cuidadosamente as várias
leis que lhe poderiam ser aplicadas e os resultados concretos que dessas aplicações
adviriam. Depois, haveria que comparar os resultados à luz de estritas considerações de
justiça e dos imperativos de interesse social vinculados pelas leis em confronto. Só
após esta averiguação se escolheria a lei que, de acordo com estes cânones, conduzisse
aos resultados mais justos.
Esta seria a forma de conseguir que o conflito de leis deixasse de estar
focado nas normas e passasse a preocupar-se com as decisões concretas.
O radicalismo destas propostas vinha, no entanto, perturbar grandemente
o desenvolvimento das relações internacionais, na medida em que deixava as partes
totalmente às escuras quanto à lei que viria a ser aplicada às suas relações, abandonada a
escolha desta ao sentimento de justiça material do juiz.
CAVERS faz sua a finalidade que a doutrina tradicional atribuía ao DIP.
e que a escola realista tanto contestara, ou seja, a de resolver o litígio entre as leis em
presença.
Apesar deste grande recuo em relação às suas posições iniciais, o que
pode sempre dizer-se sem qualquer dúvida é ter CAVERS procurado introduzir no
método clássico correcções que o tornassem mais sensível aos factos da causa, em
suma, que o materializassem.
A crítica de CAVERS viria a conhecer uma expansão notável e, assim,
desenvolve-se uma tendência para descobrir os interesses que subjazem a cada lei, de
modo a permitir a sua aplicação em ordem ao seu conteúdo e fins respectivos.

2.3.2) A crítica de BRAINERD CURRIE:

CURRIE recusa frontalmente o método conflitual e propõe como


critério de escolha da lei aplicável o «government interest analyze». Há uma
ruptura total com o que de adquirido havia em DIP., preconizando a abolição da técnica
das regras de conflitos.
É a seguinte a base de construção dessa teoria: «toda a regra de
direito tem por finalidade a realização de uma certa política ou
função sócio-jurídica; por seu turno, o Estado que edita a norma tem
interesse na realização da política que à norma subjaz».
O domínio de aplicação de cada norma seria determinado em função do
interesse estadual a que a norma responde.
CURRIE parte daqui para oferecer uma categórica resposta ao conflito
de leis: perante uma situação internacional qualquer, os tribunais deveriam começar por
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 75

analisar as «policies» implícitas nas várias leis em concurso e as circunstâncias que


possam tornar desejável a promoção de políticas no caso concreto.
Apenas um Estado tem interesse na realização da finalidade sócio –
política da sua lei, sendo que a lei aplicável deve ser a desse Estado.
Ele divisa situações de conflito aparente, mas, da análise das mesmas, se
depreende que só há um interesse governamental (só há uma lei aplicável), logo, não há
nenhum conflito. Se isso não acontece e se um dos ordenamentos jurídicos
concorrentes for o do foro (se ele tiver interesse em se aplicar), vamos aplicar a lei do
foro. Se a lei do foro não se quiser aplicar e se houver outra lei com interesse em se
aplicar, aplica-se a lei estrangeira.

E se houver várias leis estrangeiras em concurso, o que é que o juiz deve fazer?

Neste caso, o juiz do foro chamado a conhecer do litígio não deve aplicar
nenhuma delas, já que não se pode substituir ao legislador estrangeiro, não podendo
escolher qual o interesse governamental superior. Sendo assim, deve ser aplicada a lei
do foro.
No caso de nenhuma lei querer ser aplicada, aplicar-se-á,
subsidiariamente, a lei do foro.
a) Conflito aparente;
b) lei do foro se esta se quiser aplicar;
c) aplica-se a lei estrangeira com interesse;
d) no caso de serem várias as leis estrangeiras em
concurso deve aplicar-se a lei do foro (mais tarde CURRIE admite
que, nesta situações, sejam constituídas regras de conflitos «ad
hoc»);
e) se nenhuma lei quiser ser aplicada, dever-se-á
aplicar a lei do foro a título subsidiário.

2.3.2.1) Críticas a esta teoria:

→ A posição de CURRIE opera uma subordinação do DIP. a valores


políticos, quando sabemos que o DIP. é um ramo do direito de cariz
privado, não se resumindo a um conflito de soberanias.
→ Potencia o «forum shopping» (escolha pelas partes, antes de
intentarem a acção, do tribunal que aplique o ordenamento jurídico
que mais lhe convém ― havendo uma manipulação da competência
internacional).
→ Casuísmo ― excessivos poderes atribuídos ao juiz (por vezes é
difícil retirar do conteúdo das normas o interesse governamental que
lhes está subjacente).
→ Viola o princípio da paridade de tratamento dos ordenamentos
jurídicos (privilegia a aplicação da «lex fori»).

2.3.2.2) O DIP. e a CRP. segundo CURRIE:


76 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— O Método do D.I.P. —

A posição de CURRIE sobre o DIP. filia-se no contexto de renovação


doutrinal empreendida nos Estados Unidos a partir dos anos 30 que pretendeu estender
também à nossa disciplina os processos metodológicos da escola do realismo jurídico.
A sua originalidade reside numa diferente ideia sobre o que, no fundo,
está em causa no conflito de leis.
Para CURRIE, o conflito de leis é uma consequência da interferência
recíproca da esfera de aplicação das várias leis nacionais. O autor vê aqui também um
conflito de interesses estaduais. O problema do DIP. não poderia ser assim concebido
de forma neutra, como se apenas fosse importante estabelecer o âmbito de
aplicabilidade de cada lei, mas tem antes de ser visto como uma questão que contende
com interesses estaduais ― é um problema político: o que está em causa é determinar o
interesse estadual que há-de prevalecer.
A questão do DIP. é um verdadeiro conflito de interesses estaduais e, na
sua resolução, qualquer que ela seja, implicará sempre o sacrifício de um ou mais
interesses desta natureza. Este é o núcleo da problemática.
Segundo CURRIE, a doutrina despolitizou o DIP. de tal forma que o
autor optou por construir um sistema de resposta que é, em si mesmo, uma fonte
acessória de nossa perturbação na matéria em causa:
1) cria problemas que não existiam antes,
nomeadamente naqueles casos em que, não havendo conflito de
interesses estaduais, a questão continua a ser posta e resolvida em
termos de conflitos de leis;
2) a situação é, por vezes, resolvida mediante a
preclusão do interesse de um Estado sem que, por isso, se promova e
realize o interesse de outro Estado;
3) em muitos casos promove-se, de facto, a aplicação
de uma lei lançando-se mão de expedientes que, se são
eventualmente os responsáveis pela sobrevivência do sistema até os
nossos dias, não deixam de o complicar extraordinariamente;
4) se há Estados com diferentes políticas e interesses
igualmente legítimos na aplicação das suas leis, o tribunal é uma
instância que não está em condições para ponderar o peso relativo
dessas políticas e decidir, por si, da aplicação delas.

CURRIE não segue CAVERS na defesa da escolha de uma solução em


função do resultado da aplicação de cada uma das leis em presença. Tal medida
incorreria também no vício de passar ao lado, ignorando-a, da função que CURRIE
atribui em primeira linha ao DIP.
O primeiro passo que CURRIE sustenta dever ser dado é uma
investigação de qual política legislativa subjacente a cada norma em questão e de quais
os interesses cuja protecção é por elas visada. Uma vez determinada a «policy» de
cada norma e os interesses por ela visados, a solução do problema do DIP. aparece
facilitada. Assim, onde e quando o Estado do foro manifesta interesse na aplicação da
sua lei, é a «lex fori» que será aplicada só quando não se verificar esta hipótese é que
haverá lugar à aplicação da lei estrangeira que, no entanto, só terá lugar quando se
conclua que ela manifesta interesse em se aplicar ao caso concreto: restam as situações
em que se não vislumbra qualquer interesse ― nem da «lex fori», nem da lei
estrangeira ― em regular o caso. Nestes casos, como não existe qualquer interesse
estadual em jogo, CURRIE sustenta, ainda que sem grande convicção, ser preferível a
aplicação da «lex fori».
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 77

O autor salienta como principal vantagem desta solução a facilidade com


que esta pode ser posta em acção e as numerosas complicações que evita e preocupa-se
em defendê-la da acusação de um excessivo «parochialism». Por um lado, o
esclarecimento e a cabal indagação da «policy» subjacente à cada norma afastaria a sua
indiscriminada aplicação a todos os casos que caíssem sob a sua previsão; por outro
lado, o sistema proposto não impede a procura, em certos casos, da melhor solução para
o litígio; e, finalmente, existem limites de ordem constitucional que limitam uma
absoluta promoção dos interesses estaduais.

2.3.2.3)Críticas a esta posição:

Esta doutrina foi alvo de várias críticas considerando que a referência ao


«governamental interest», enquanto único motivo de delimitação do campo de
aplicação das regras imperativas numa situação multinacional, conduz a consequências
absurdas.
A posição de CURRIE rompe fundamentalmente com o que de
adquirido havia na tradição do DIP.
Um dos momentos mais relevantes dessa rotura é a ideia de que não há
lugar no DIP. para o cálculo de interesses privados.
Mais grave ainda é que CURRIE procure preencher o vácuo resultante
da evicção dos interesses privados no domínio do DIP. com a redução deste à situação
de instrumento de extensão, a plano internacional, das polícias incorporadas nas leis
internas. O que CURRIE censura à regra de conflitos é, sobretudo, que, em lugar de
exprimir um critério normativo determinante, proclame a indiferença do Estado que a
formulou quanto ao êxito do processo, que a sua visão normativa não seja a da actuação.
Para CURRIE, o problema do conflito de leis tinha, por força, de ser
entendido, nesse contexto, como da determinação de qual o interesse estadual que em
cada caso deva prevalecer. E daí também a suprema facilidade com que CURRIE
resolve os problemas, apenas admitindo a aplicação da lei estrangeira onde e quando a
«policy» do Estado do foro não tenha interesse em se efectivar.
O DIP. já não é mais, para o malogrado autor norte-americano, nem um
direito neutro, nem um direito privado, mas, acima de tudo, o veículo de extensão às
relações internacionais das concepções e dos valores que iluminam a vida jurídica
interna e que se encontram consagrados nas suas regras legais.
A Constituição, longe de ser um corpo estranho ao DIP., deveria, antes,
ser compreendida como a peça fundamental da sua construção.

2.3.3) A crítica de ALBERT EHRENZWEIG:

Segundo este autor, o âmbito espacial das normas há-de decorrer da


análise das política legislativas subjacentes, mas diferentemente de CURRIE, admite a
coexistência de regras de conflitos.
Distinguem-se na doutrina de EHRENZWEIG dois domínios ou duas
etapas:
→ «lex certa»; e
→ «lex incerta».
78 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— O Método do D.I.P. —

a) «Lex certa»:
1) «Forum rule by non choice»:
aplicar-se-ia nestes casos a «lex fori» sem qualquer
ponderação (sem recurso a qualquer critério de escolha), já que
estão em causa normas imperativas do ordenamento jurídico do
foro (funcionam antes das regras de conflitos).
Fala também dos casos de qualificação procedimental.
No caso de tratar-se de uma questão procedimental, aplicar-se-
ia, automaticamente a lei do foro sem haver qualquer
ponderação. Tratando-se, porém de uma questão substancial, já
não poderia operar o «forum rule by non choice»,
tornando-se necessária uma prévia ponderação. Que questões
vamos qualificar como procedimentais ou como substantivas?
Considerava, por exemplo, a adopção e a capacidade
das partes como questões processuais.

2) Admite as regras de conflitos que podem


ser expressas por via legislativa, doutrinal ou jurisprudencial.
As regras de conflitos podiam ainda ser implícitas. O problema
da escolha da lei, segundo este autor, só se põe depois de se ter
chegado à conclusão de que não se trata de um daqueles casos
em que a aplicação da lei do foro é independente de escolha ―
uma vez chegada a esta conclusão, cabe então às regras de
conflitos indicar as normas materiais a aplicar.
― «Enchant rules»: são normas formuladas pelos tribunais,
mas não têm a força de precedente vinculativo, mas que
acabam por ter a mesma força das regras que são expressas
(jurisprudência).

b) «Lex incerta»: (quando não há uma regra de


conflitos)
Analisar-se-iam os interesses subjacentes à lei do foro, sendo que ela
teria aplicação residual. Só que ele refere que se poderia substituir a lei do foro por uma
lei estrangeira quando, por força de uma interpretação conscienciosa do juiz, a lei
estrangeira protegesse em maior medida os interesses da lei do foro. Se da «ratio» (da
interpretação da «lex fori») não resulta a aplicação da lei estrangeira, então a «lex
fori» será aplicada residualmente.
Este domínio não se confunde com as regras de conflitos bilaterais
porque, aqui, a competência da lei estrangeira não decorre de nenhuma regra de
conflitos, mas sim de uma regra material do foro (a aplicação de uma norma material
decorre de outra norma material).

Outra característica deste autor é a jurisdicionalização do DIP.


Tendência para a coincidência da competência jurisdicional com a
competência legislativa.
Apercebeu-se EHRENZWEIG que a sua posição («lex incerta»)
levaria a esta jurisdicionalização do DIP. e o «forum shopping» e tentou limitar esta
consequência através da fixação de critérios rígidos de competência internacional.
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 79

― «Forum non convenience» ―

Tal como CURRIE, EHRENZWEIG procedeu à determinação da lei


aplicável recorrendo a uma análise da política legislativa em que se fundamenta a norma
de direito material.
Há, contudo, divergências entre esses dois autores:
CURRIE se mostra completamente avesso à doutrina tradicional do
DIP., preconizando a abolição das regras de conflitos.
EHRENZWEIG, por sua vez, aceita expressamente as regras de
conflitos de origem legislativa, jurisprudencial ou doutrinal, tal como as
não formuladas ainda e que correspondem a tendências com alguma
expressão na prática judiciária.

Importa, porém, sublinhar que a «choice of law problem» não se


põe senão depois de se ter chegado à conclusão de que se não trata de um daqueles
casos em que a aplicação da lei do foro é independente de qualquer escolha, no sentido
de que não é comandada por uma regra de conflitos → «forum rule by non
choice».
Uma vez que se chegue a esta conclusão, as regras de conflitos do fórum
indicarão a norma material aplicável.
Na falta de regras de conflitos, a aplicação de uma norma estrangeira só
pode resultar da interpretação da norma da «lex fori» segundo a sua «ratio» ou a sua
«policy». É da análise da lei do foro que decorre a aplicação da lei estrangeira.
Daqui decorrem duas diferenças entre EHRENZWWEIG e CURRIE:
→ CURRIE, como já foi dito, pretende expulsar as normas de
conflitos do campo do DIP., diferentemente de EHRENZWEIG
que as aceita expressamente;
→ EHRENZWEIG faz depender a aplicação do preceito material
estrangeiro não da política legislativa específica a que esse preceito
corresponde, mas daquela a que obedeça a regra homóloga da «lex
fori», diferentemente de CURRIE.

À «lex fori» cabe um papel residual: se a interpretação da lei do foro


não nos leva à aplicação da lei estrangeira, é aquela (a «lex fori») que deve ser
aplicada.

2.3.3.1) Críticas a esta teoria:

→ Face aos objectivos gerais a que o DIP. se propõe,, nenhuma teoria


que preconize o primado da lei do foro pode justificar-se. Nós
aderimos ao princípio da paridade de tratamento entre a lei do
foro e as outras leis.
→ EHRENZWEIG admite a técnica tradicional do DIP. e a existência
de regras de conflitos, mas em tudo o que ultrapassa a zona
dominada por essas normas, o autor é susceptível das mesmas
críticas que foram apontadas a CURRIE.
→ Definir o domínio de aplicação espacial de uma norma estrangeira
em função do da regra nacional homóloga afigura-se-nos totalmente
80 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— O Método do D.I.P. —

inaceitável. Não tem fundamento esta união forçada e artificial de


elementos provenientes de normas pertencentes a sistemas diversos.
Nenhum preceito é separável da razão que o inspira. Toda norma
jurídica deve ser entendida como uma unidade essencial constituída
pela razão que a determina e em que se apoia o comando que
estabelece.

Mas nada impede que se defina o domínio de aplicação espacial de uma


norma estrangeira através de uma regra de conflitos da «lex fori», regra esta que pode
até resultar da bilateralização de uma norma unilateral.

Teoria da bilateralidade: a norma que só foi concebida e formulada para efeitos de


delimitação do sistema local é, em princípio, susceptível de
bilateralização ― a regra unilateral, enquanto expressão de justiça do
direito de conflitos, encerra em si mesma o embrião de uma norma
bilateral, na qual poderá, eventualmente, converter-se.

2.3.3.2) O DIP. e a CRP. segundo EHRENZWEIG:

EHRENZWEIG iria distinguir-se pelo aceso combate que moveria


contra o «Restatement of Conflict of Laws» e pela propositura de uma solução
que vê na «lex fori» a regra geral e o método adequado para a resolução dos problemas
internacionais.
Embora partindo da «lex fori», EHRENZWEIG não rejeita as regras
de conflitos tradicionais, antes salienta que elas são vinculativas para o juiz. No
entanto, em seu entender, estas, além de serem em muito pequeno número, são
normalmente criadas em função dos precedentes judiciais (jurisprudência) e não
legislativa, e pouco adiantam para a resolução dos problemas concretos. Fora dos casos
em que os problemas se resolvem por aplicação destas regras, haveria de recorrer à
elaboração teórica. O que chama a sua atenção é que, na maioria dos casos, os juízes
aplicam a lei do foro sem que, para tanto, tenham feito funcionar uma qualquer regra de
conflitos: são os casos por ele classificados de «forum rule by non choice», nos
quais os tribunais fazem funcionar um conjunto de expedientes para lograr a aplicação
da «lex fori». Daí a sua conclusão quanto ao carácter básico ou residual deste
ordenamento na solução dos conflitos de leis. Ao tomar esta posição, o autor pretende
ser coerente com a matriz inspiradora do seu pensamento: se a uniformidade total de
decisões é impossível, em lugar de ficcionar como ponto de partida uma igualdade entre
as várias ordens jurídicas que depois se vem negar, na prática, por inúmeros meios, vale
mais reconhecer à «lex fori» o seu autêntico papel de lei básica ou residual, o que, para
além de evitar a sobrevalorização de regras e excepções, permitirá articular as polícias
do foro que demandam a aplicação da lei estrangeira.
Na ausência de regras que resolvam esse problema, EHRENZWEIG
entende que deve partir-se da «lex fori» e que a sua vontade de aplicação ao caso
concreto será sempre decisiva. Na falta daqueles critérios de decisão, uma de três
hipóteses:
1) ou se verifica que a lei material do foro não
pretende abranger aqueles casos;
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 81

2) ou se conclui que ela é susceptível de


generalização mesmo para eles;
3) ou, finalmente, se afigura claro que é da intenção
da própria lei do foro que se aplique uma regra estrangeira.
A pedra de toque para a decisão seria sempre a «policy» da regra
material do foro.
Esta doutrina é uma espécie de expressão de desafio americano ao DIP.
tradicional. Como que se opera o fim da dissociação entre as competências
jurisdicional e legislativa. Por outro lado, o fulcro da questão é deslocado do sistema,
da ordem jurídica, para uma lei em concreto, sendo esta que é objecto da escolha.
Finalmente, o que determina a aplicação do direito estrangeiro não é, como se pretendia,
uma qualquer «super law ideology», mas a «policy» da própria lei do foro, que
traça, assim, os limites que os Estados se devem impor na aplicação da sua lei.

Momento jurisprudencial:

Caso BABCOCK vs. JACKSON: New York ― Ontario → acidente de viação;


indivíduo transportado gratuitamente morre; a lei de Ontario
não atribuía indemnização por danos causados a pessoas
transportadas gratuitamente e o Estado de New York atribuía.
O tribunal americano decidiu que se aplicava a lei de New York com
base em dois argumentos:
1) localizador: a questão tinha mais contacto com New York; e
2) o Estado de New York tinha mais interesse na aplicação da sua
norma → publicização do DIP.

Momento legislativo:

Segundo «Restatement»: é uma compilação que vale pelo prestígio dos seus
autores e incluía três níveis:
a) factores de orientação relevantes: factores
e interesses que auxiliariam o juiz a decidir a questão;
b) regra de conflitos; e
c) «open-ended Rules»: dão um maior
espaço de conformação ao juiz (v.g.: o artigo. 52º, n.º 2 do Cód.
Civ.).

2.4) A aproximação entre a doutrina europeia e a


perspectiva norte-americana:

Entre as principais características da perspectiva norte-americana


contam-se:
a) tendência para o abandono do método conflitual;
b) a ideia do primado da «lex fori»;
c) a propensão para atribuir um relevo importante, na resolução
dos conflitos de leis, ao factor representado pelo conteúdo e
fundamento das regras materiais em colisão.
82 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— O Método do D.I.P. —

Esta tendência foi fortemente encorajada pela feição impressa ao


Segundo «Restatement», sendo certo que suas regras eram, na sua grande maioria,
«open-ended Rules».
Enquanto um dos rasgos marcantes da doutrina americana, globalmente
considerada, consistia no papel atribuído ao conteúdo e fins dos preceitos materiais em
conflito, a doutrina clássica europeia via o DIP. como algo de formal, dotado de uma
teleologia peculiar que apontava para a designação da lei ligada à situação da vida pelo
laço mais forte, desinteressando-se por completo do modo como essa lei poderia dirimir
o conflito de interesses «sub judice».
Ora, sendo as coisas assim, a distância que separava ambas as
concepções constituía, realmente, um fosso intransponível. Contudo, confrontando o
método tradicional com as novas perspectivas norte-americanas, verificou-se uma
significativa aproximação entre elas, sendo que essa aproximação analisa-se em ambos
os sentidos, ou seja, houve um recuo da doutrina norte-americana e um avanço da
doutrina clássica europeia.
Deste modo, nem a perspectiva norte-americana actual se pode definir
por uma atitude de radical adesão a uma ideia de escolha da lei em função do resultado,
nem, tão pouco, a doutrina europeia actual se mostra totalmente avessa a tomar em
consideração as exigências da justiça material e o conteúdo e finalidades das normas a
aplicar. Muita coisa mudou tanto no pensamento jurídico norte-americano, como no
pensamento jurídico europeu sobre o conflito de leis:
→ por um lado, a crítica norte-americana moderou-se: o retrocesso
norte-americano está, sobretudo, patente na análise de CAVERS ―
começou por dizer que o juiz tinha ou deveria ter de escolher a lei
em função do resultado, ou seja, deveria escolher, dentre os
ordenamentos jurídicos em concurso, aquele que conduzisse a um
melhor resultado material (o que trazia consigo a imprevisibilidade e
desprotecção das expectativas das partes); num segundo momento,
porém, formulou critérios (os «principles of preference»)
pelos quais o juiz se deveria guiar, sendo que estas orientações se
aproximavam das regras de conflitos, mas delas se diferenciando
por não serem vinculativas e serem mais elásticas;
→ por seu turno, o sistema europeu evoluiu no sentido da sua
aproximação aos vectores que inspiravam as críticas: no próprio
momento da construção das normas de conflitos o DIP. possui uma
justiça, uma vez que a escolha do ordenamento jurídico declarado
aplicável não se faz em função do conteúdo da lei, mas do facto de
ser ela a que em melhor posição se encontra para intervir. Contudo,
nada obsta a que, em certos casos, a própria justiça material invada
o território do DIP., fazendo prevalecer aí os seus juízos de valor e
vindo, ela mesma, influir directamente na escolha da legislação
aplicável.
Assim sendo, verifica-se que o método tradicional abre-se
com certa largueza ao aproveitamento e valorização de critérios de
justiça material e do conteúdo e escopo das normas de direito
substantivo possivelmente aplicáveis ao caso concreto.

Deu-se um apuramento do sistema europeu clássico em duas frentes:


a) flexibilização;
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 83

b) materialização.

Pode ainda falar-se de uma terceira nota: uma progressiva publicização


do DIP. tendente a proteger valores públicos fundamentais. Esta terceira nota faz
lembrar CURRIE e já aparecia em SAVIGNY com a excepção da ordem pública
internacional.

2.4.1) A flexibilização:

Foi-se notando no sistema europeu, que era rígido, uma certa mutação no
sentido da aproximação deste à perspectiva norte-americana, nomeadamente, verificou-
se uma flexibilização da regra de conflitos, reconhecendo-se uma margem de
conformação judicial do princípio da proximidade ou localização. Começou a ser dado
um maior poder de decisão ao juiz, e isso por duas vias:
1) Dá-se ao juiz a possibilidade de identificar, no caso concreto,
qual a lei mais próxima a ele.
Os artigos. 52º, n.º 2 e 60º, n.º 2 do Cód. Civ., por
exemplo, contêm normas de conexão múltipla subsidiária (o
legislador estabelece três conexões que se vão aplicar
subsidiariamente no caso de a primeira não funcionar) ― v.g.: se
não há nacionalidade comum (primeiro elemento de conexão);
se não há residência comum (segundo elemento de conexão),
deve aplicar-se a lei com a qual a vida familiar se encontra mais
estreitamente conectada (terceiro elemento de conexão). É o
juiz que vai decidir qual a lei que se acha mais estreitamente
conectada com a vida familiar.

2) Concessão ao juiz do poder de não aplicar, numa situação


concreta, uma determinada lei, em princípio, competente, mas
sim uma outra lei com a qual a situação tem um contacto mais
forte (é esta a chamada cláusula de excepção).
Cfr. o artigo. 4º, n.os 1 e 5 e artigo. 6º, n.º 2, «in
fine» da Convenção de Roma sobre obrigações contratuais.
Nos termos do n.º 1 do artigo. 4º, o contrato é regulado
pela lei do país com o qual apresente uma conexão mais estreita,
sendo que esta é dada pela residência habitual da parte que está
adstrita à prestação característica do contrato (v.g.: no contrato
de compra e venda, o mais importante é a entrega da coisa, logo,
deverá ser aplicada a lei do vendedor).
O n.º 5 do mesmo preceito legal permite ao juiz
derrogar as presunções ilidíveis dos n.os 2, 3 e 4 do referido
artigo. Aqui o juiz vai excepcionar a conexão principal.

2.4.1.1) Cláusula de excepção:

O legislador indica qual a lei competente para regular uma determinada


situação jurídica, mas abre uma excepção: se o juiz entender que há uma lei com um
84 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— O Método do D.I.P. —

contacto mais forte com a situação «sub judice» poderá aplicar essa lei (trata-se aqui
de uma verdadeira flexibilização).
O artigo. 45º do Cód. Civ., depois de estabelecer que a lei aplicável ao
contrato de compra e venda (se as partes não escolherem uma) é a lei da residência do
vendedor, vem depois, em seu n.º 3, estabelecer: «se, porém, o agente e o
lesado tiverem a mesma nacionalidade ou, na falta dela, a mesma
residência habitual, e se encontrarem ocasionalmente em país
estrangeiro, a lei aplicável será a da nacionalidade ou a da residência
comum, sem prejuízo das disposições do Estado local que devam ser
aplicadas indistintamente a todas as pessoas» (princípio da maior
proximidade). Tratar-se-á aqui de uma cláusula de excepção?
Neste caso, o juiz poderá optar pela aplicação de outra lei, só que, neste
caso, esta lei também é indicada pelo legislador: é ele que descreve as circunstâncias
abstractas para a aplicação da lei que tenha com a situação um contacto mais forte e
qual é essa lei.
Sendo assim, não sendo o juiz, ele próprio, a escolher a lei a aplicar, não
se poderia, com propriedade, falar de cláusula de excepção, mas agora falamos de
cláusulas de excepção abertas e fechadas.
→ Cláusula de excepção aberta: cfr. os artigos. 4º, n.os 1 e 5 e 6º, n.º
2 da Convenção de Roma sobre obrigações contratuais.
→ Cláusula de excepção fechada: cfr. o artigo. 45º, n.º 3 do Cód.
Civ.

2.4.2) A materialização do DIP.:

O sistema europeu não é insensível à justiça material porque há regras de


conflitos que não se limitam a um objectivo de localização; quer dizer, há regras de
conflitos que procuram assegurar e garantir um certo resultado material, resultado este
que entende ser o mais justo (há regras de conflitos que visam produzir um dado
resultado). Esta característica faz lembrar CAVERS (no que diz respeito às críticas por
ele dirigidas ao método conflitual).
As regras de conflitos de conexão material ou substancial são aquelas
que mandam aplicar uma lei tendo em conta o seu conteúdo material, ou seja, mandam
aplicar uma lei que leve a um certo resultado material.
Esta característica deixa claro que o método conflitual tem vindo,
progressivamente, a materializar-se, ou seja, começou a ter em conta os resultados
materiais, e isso por duas vias:
1) Tem-se dado uma progressiva inserção de regras de conflito
materiais nos sistemas de DIP. conflitual. A escolha da lei
competente para regular uma determinada relação jurídico-
privada não é feita de acordo com o princípio da proximidade,
mas, antes, com o intuito de obter um determinado resultado
material.

Em regra, utilizam-se regras de conexão múltipla alternativa, operando-


se a escolha em função do resultado a obter (cfr. os artigos. 36º e 65º do Cód. Civ. E o
artigo. 9º da Convenção de Roma).
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 85

O artigo. 36º do Cód. Civ. dispõe sobre a forma do contrato; nos termos
do seu n.º 1: «a forma da declaração negocial é regulada pela lei
aplicável à substância do negócio; é, porém, suficiente a observância
da lei em vigor no lugar em que é feita a declaração, salvo se a lei
reguladora da substância do negócio exigir, sob pena de nulidade ou
ineficácia, a observância de determinada forma, ainda que o negócio
seja celebrado no estrangeiro». O n.º 2 do mesmo preceito estabelece: «a
declaração negocial é ainda formalmente válida se, em vez da forma
prescrita na lei local, tiver sido observada a forma prescrita pelo
Estado para que remete a norma de conflitos daquela lei, sem
prejuízo do disposto na última parte do número anterior».
Assim sendo, temos
→ 1ª conexão: lei reguladora da substância do negócio;
→ 2ª conexão: lei do lugar da celebração.
→ 3ª conexão: lei para a qual remete a lei do local da celebração (esta
terceira conexão não está prevista pelo artigo 9º da Convenção de
Roma).

Por qual das conexões optar?

Como as 3 (três) conexões nos são apresentadas em alternativa, podemos


aplicar qualquer uma delas, mas isso com vista a salvaguardar ou promover a validade
formal do negócio jurídico.

Suponhamos, então, que a lei A e a B consideram o negócio jurídico


inválido e a lei C considera-o como válido. Qual a lei que devemos
aplicar?

Devemos aplicar a lei C, pois apenas esta promove a validade formal do


negócio jurídico.
Imaginemos agora que todas as lei potencialmente aplicáveis consideram
o negócio jurídico inválido nos seguintes termos:

Lei A Lei B Lei C

Nulo Anulável Anulável

Prazo de 3 anos Prazo de 1 ano

Qual a lei que devemos aplicar?

A opinião do curso é a de que nesta situação, como o negócio jurídico


jamais será válido, devemos aplicar a lei que invalida menos, ou seja, a lei C, pois
passado 1 (um) ano, o negócio jurídico estabiliza-se, tornando-se inatacável.
86 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— O Método do D.I.P. —

Outros autores, contudo, entendem que, se o negócio jurídico em causa


jamais poderá ser considerado válido, não vamos promover o resultado material
desejável; e se já não há um resultado material a prosseguir, vamos escolher a conexão
que tenha um contacto mais forte com a situação, ou seja, a lei competente para regular
a substância do referido negócio, pois é essa a lei que está em primeiro lugar e porque já
a nível histórico a tendência é conseguir um estatuto unitário para os negócios jurídicos
(forma e substância reguladas pela mesma lei).
Imaginemos agora que há duas leis que consideram o negócio jurídico
válido e a outra como inválido, ou até as três o consideram como válido. Por qual das
leis em concurso devemos optar?
De acordo com o que dissemos supra, devemos aplicar a lei apontada
pela primeira conexão, ou seja, aquela que for competente para regular a substância do
negócio em causa, pois devemos prosseguir os fins do DIP.
Contudo, também se pode pensar em regras de conexão una ou simples
(ou seja, que só têm uma conexão ― v.g.: para os imóveis só se aplica a «lex rei
sitae») que também tenham em vista um determinado resultado material.

2) Regras que facilitam a constituição de certos estados ou que


visam assegurar certas faculdades ou liberdades jurídicas (artigo
60º, n.º 2 do Cód. Civ. ― promove a constituição do vínculo da
filiação adoptiva).

Há certos ordenamentos jurídicos em que, pelo menos na altura em que


outros ordenamentos proibiam o divórcio, tinham determinadas regras que
possibilitavam a dissolução do vínculo conjugal, ou seja, escolhiam o ordenamento
jurídico que possibilitasse o divórcio.
Outro caso: não se concedia um estatuto próprio à mulher casada;
determinadas ordens jurídicas propendiam para escolher as normas que concediam mais
liberdades.

3) Regras de conflitos que visam a protecção, em termos mais


amplos e mais efectivos, de uma determinada pessoa (em regra a
parte mais débil ― «favor personae»).
O artigo 45º do Cód. Civ. que prescreve as regras da responsabilidade
civil extracontratual trata de uma regra de conexão múltipla subsidiária (há duas
conexões, sendo que se a primeira não puder ser aplicada aplica-se a segunda que vai
ser aplicada segundo critérios materiais e não meramente localizadores).

2.4.3) Terceiro nível de aproximação:

Próximo da materialização (mas não se confundindo com ela) nota-se,


amiúde dos sistemas conflituais, uma sensibilização à influência do fim e conteúdo das
normas materiais como passo importante na determinação da sua aplicação espacial.
Visa-se a análise do conteúdo material das normas para determinar o seu
âmbito de aplicação espacial.
Quais os três momentos?
a) Qualificação;
b) adaptação; e
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 87

c) regras espacialmente auto-limitadas.

2.4.3.1) A qualificação:

A consideração do conteúdo e escopo dos preceitos jurídico-materiais


releva também no momento da qualificação. Isto é válido para quem aceite a ideia de
que toda a qualificação em DIP. ou, pelo menos, a chamada qualificação secundária
(que é uma qualificação de normas e não de relações jurídicas ou de factos).
O que se pretende é: dada uma lei potencialmente aplicável a
determinada situação jurídica em virtude de uma regra de conflitos do foro, devemos
averiguar se essas normas regulativas daquele tipo de situações correspondem à
categoria normativa visada pela própria regra de conflitos e expressa pelo respectivo
conceito quadro. Para tal, haverá que analisar-se, à luz do seu escopo ou função sócio-
jurídica, os preceitos materiais cuja aplicação está justamente em causa. Se tais
preceitos não se ajustarem às características definidas pelo conceito-quadro da regra de
conflitos, terá de concluir-se pela sua inaplicabilidade.
Porém, deve ser dito que não se trata de aplicar (ou não) tal preceito em
virtude da sua aptidão (ou não) para realizar a justiça material no caso concreto, ou
porque a política em que se inspira comanda ou, antes, desaconselha a sua aplicação. O
que decide da aplicação do preceito é tão somente a circunstância de ele se destinar, no
ordenamento jurídico a que pertence, a desempenhar uma função normativa idêntica ou,
pelo menos, semelhante àquela que o legislador do foro teve em vista ao estabelecer a
regra de conflitos em causa. Importa que o preceito material em análise constitua, de
alguma forma, uma resposta à questão formulada pela regra de conflitos, mas sem que
releve para quaisquer efeitos o teor concreto da resposta.
O problema que se põe não é um problema de escolha entre dois
preceitos ou duas séries de preceitos materiais provenientes de legislações diferentes, e
isso quer em função do resultado ou que uns e outros levariam no caso de espécie, quer
atendendo às políticas por elas prosseguidas. Não se trata, em suma, de estabelecer um
confronto entre aqueles preceitos, mas sim entre determinado preceito de direito
material, nacional ou estrangeiro, e uma regra de conflitos do foro.

2.4.3.2) A adaptação:

Há hipóteses em que se impõe o recurso ao método das soluções


materiais «ad hoc».
Na tentativa de resolver os problemas suscitados pelas relações
plurilocalizadas deparamos, por vezes, com situações de «cúmulo jurídico» ou de
«vácuo jurídico». Na primeira hipótese, trata-se de uma concorrência de normas,
porventura, contraditórias; na segunda hipótese verifica-se a ausência de toda e
qualquer norma aplicável.
Esta problemática, característica de todo o direito, assume especial
relevo em DIP., sendo uma das questões mais complexas oferecidas por este ramo do
direito. Estas situações devem, sempre que possível, ser obviadas através da criação de
regras de conflitos especiais (regras de segundo grau ou de segundo escalão) e, só
quando esta via esteja precludida é que deverá recorrer-se ao mecanismo da adaptação
― comparando as normas dos ordenamentos em presença, combinando-as, tentaremos
88 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— O Método do D.I.P. —

encontrar uma solução que, respeitando-lhes o sentido ou a «ratio», se adapte à


realidade do caso vertente. Esta técnica da adaptação é extremamente complicada e
falível e, como tal, já o dissemos, só em casos extremos é que se deverá lançar mão
dela.
O ponto de vista que se defende é que, perante situações de «cúmulo»
ou de «vácuo» jurídico, a primeira coisa a fazer é tentar descobrir uma regra de
conflitos especial, uma regra de conflitos de segundo grau ou de segundo escalão. Não
sendo isso viável, deverá, então, recorrer-se à adaptação. Aliás, a adaptação tanto pode
recair sobre normas de direito material, como sobre normas de DIP. A forma mais
importante e conhecida de adaptação é a que incide sobre preceitos jurídico-materiais.
Por força do processo de especialização («dépeçage»), visa-se
resolver o problema das extradições normativas.
No DIP., quando uma questão é suscitada, só raramente é que a podemos
resolver recorrendo a uma só regra de conflitos. Ou seja, cada questão pode levantar
vários problemas, problemas estes que o juiz deverá separar aplicando, a cada um deles,
a sua regra de conflitos, e desse facto podem resultar soluções contraditórias tendo o
juiz que corrigir isto através de uma concordância prática ou hierarquização dos
princípios.
Há uma incompatibilidade dos efeitos jurídicos produzidos por leis
diferentes, mas que são aplicáveis por força da regra de conflitos; contudo, não
podendo a decisão do juiz ser contraditória, impõe-se que seja operada uma correcção
através de «uma conformação concreta das relações jurídicas através da
sua decisão e no uso de uma faculdade quase legislativa» (BAPTISTA
MACHADO).

2.4.3.2) Normas espacialmente auto-limitadas ou auto-condicionadas:

O método tradicional de dirimir os conflitos de leis, como já ficou dito,


abriu-se com certa largueza ao aproveitamento e valorização de critérios de justiça
material e do conteúdo e escopo das normas de direito substantivo possivelmente
aplicáveis ao caso concreto.
As normas espacialmente auto-limitadas ou auto-condicionadas são
normas que só se querem aplicar às situações da vida que se encontram ligadas à ordem
sócio-jurídica do respectivo Estado por uma conexão espacial de certo tipo, desde que
essa conexão seja expressamente estabelecida pelo próprio preceito material, ou desde
que isso pudesse deduzir-se do seu escopo. A especificidade destas normas reside
exactamente em estas serem normas de direito material internas que, para além de
estabelecerem uma disciplina material, recortam, elas próprias, o seu âmbito espacial de
aplicação através de um processo técnico muito semelhante ao das regras de conflitos
(mas têm uma actuação diferente da regra de conflitos, já que são as próprias normas
materiais que vão delimitar o seu âmbito de aplicação material). Contudo, é do próprio
fim visado pela norma que derivam os limites impostos à sua aplicação material.
Podem ser formuladas expressamente ou implicitamente (infere-se por
interpretação de uma norma ou conjunto de normas por parte do tribunal ou por parte da
doutrina).
Ainda estão dentro do método conflitual, pois elas mesmas inscrevem
uma regra de conflitos «ad hoc» ao delimitar o seu campo de aplicação espacial, mas
não se confundem com as regras de conflitos.
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 89

Não se trata propriamente de emitir um juízo sobre a competência de


uma lei estrangeira, mas, tão somente, sobre o domínio de aplicação de uma norma da
lei previamente definida como aplicável a dado caso. Por consequência, a falta do
elemento de conexão exigido implicitamente pela norma só conduz ao seu afastamento,
mas não ao afastamento da legislação em que se insere, cuja competência aquela
circunstância em nada afecta.
Como a norma espacialmente auto-limitada é, por via de regra, uma
norma especial, a sua não aplicação só determinará que se passe à aplicação do preceito
de direito comum.
Se o juiz da causa se depara, ao analisar o ordenamento jurídico
declarado competente pela regra de conflitos do foro, com uma destas normas
espacialmente auto-limitadas de que temos vindo a ocupar-nos, não terá ele outra
atitude a tomar que não seja a de conformar-se estritamente com o que resulta da mesma
norma ou da disposição anexa. Aqui é do próprio preceito material (da sua «ratio»)
que decorrem os elementos modeladores desse âmbito; e se a razão da lei se incorpora
na própria lei, não tomar em conta aqueles elementos modeladores seria atraiçoar a
mesma norma a que eles pertencem e de que fazem parte integrante.
A doutrina exposta tem certas semelhanças com a doutrina de CURRIE.
Pois não pretende CURRIE resolver os conflitos de leis determinando o campo de
aplicação de cada norma através de uma análise da «policy» que lhe está subjacente?
Sem dúvida que sim. No entanto, há uma diferença fundamental entre as
duas posições. A de CURRIE define-se por uma atitude de rejeição radical das regras
de conflitos: o autor pensa ser possível e necessário inferir de cada norma de direito
material (da sua «ratio» ou da sua «policy») o seu domínio de aplicação espacial.
Diferentemente, a ideia central da teoria exposta é que, se se verifica que o fim da
norma concreta delimita efectivamente, por si próprio, o respectivo campo de aplicação,
há que aceitar todas as implicações deste facto. Na verdade, aplicar a norma
espacialmente auto-limitada fora das fronteiras que lhe assinalam, seja, embora, só de
maneira implícita, o seu escopo e fundamento, redundaria, em última análise, em aplicar
uma norma diferente... não aquela norma, mas outra.
Do exposto resulta que o reconhecimento da categoria das normas
materiais espacialmente auto-limitadas é um factor, ao lado de outros, que propicia a
relevância, no âmbito do direito conflitual, do elemento representado pelo conteúdo e
fins dos preceitos jurídico-materiais das leis concorrentes.
Afinal, o DIP. actual está bem longe de ser aquele conjunto de regras de
conexão de actuação mecânica, cegas para o conteúdo das normas substanciais
concorrentes e para os valores de justiça material que tantos autores e, seguramente,
muitos dentre os melhores se empenharam durante anos a criticar.

São duas as modalidades que podem assumir as normas espacialmente auto-limitadas:


a) normas espacialmente auto-limitadas em sentido estrito (que
são de carácter restritivo); e
b) normas espacialmente auto-limitadas de carácter ampliador
(são as NANI).

2.4.3.2.1) Normas espacialmente auto-limitadas de


carácter restritivo:
90 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— O Método do D.I.P. —

São normas do ordenamento jurídico do foro que exigem, para se


aplicarem a uma situação internacional, um contacto mais forte relativamente ao
contacto exigido pela regra de conflitos (têm, portanto, uma aplicação mais restrita).
Um determinado ordenamento jurídico vai ser competente para reger um certo
complexo de situações, mas dentro desse ordenamento inscreve-se uma norma deste
tipo. Isso significa que aquela norma não vai ser aplicada porque ela própria não se
quer aplicar (elas só se aplicam a situações especiais, exigindo sempre um contacto mais
forte com a situação a regular).
Exemplos característicos deste tipo de normas são os artigos. 36º do DL
248/86 (EIRL), 33º do Cód. Civ. e 3º do Código das Sociedades Comerciais., pois
para que este diploma seja aplicável, não basta que o EIRL tenha sede real e efectiva
em Portugal, é ainda preciso que ele tenha sido constituído em Portugal (critério da
constituição).

2.4.3.2.2) Normas espacialmente auto-limitadas de


carácter ampliado (NANI):

São normas materiais que delimitam (pelo seu fim e conteúdo) o seu
âmbito de aplicação espacial e que exige um contacto mais ténue e menos exigente do
que o exigido pela regra de conflitos, tendo, assim, uma força expansiva e aplicando-se
mesmo que o ordenamento jurídico onde se inserem não se queira aplicar (são
exactamente o contrário das outras).
Em regra, pela regra de conflitos o ordenamento jurídico onde se inserem
não é o competente, mas elas exigem um contacto mais ténue e são, por isso,
expansivas.
→ Visam proteger os interesses do foro.
→ São de aplicação necessária porque se aplicam de forma imperativa,
não admitindo, por isso, postergação, já que visam proteger valores
caros do ordenamento jurídico onde se inserem.
→ São de aplicação imediata porque prescindem (e podem,
inclusivamente, preceder) da actuação da regra de conflitos.
Isto muito embora suponham sempre um contacto espacial (elas inserem
uma regra de conflitos específica unilateral «ad hoc»).

2.5) O Direito Internacional Privado Material:

A concepção clássica do DIP. busca a solução dos seus problemas


através da regra de conflitos ― é este o sistema ou via conflitual, segundo o qual, em
face de cada situação da vida e da questão jurídico que, no caso, se levanta, a regra de
conflitos relativa a esse tipo de questões dirá qual a conexão relevante e, desse modo,
qual a lei aplicável.
Contudo, este não é o único caminho que se nos apresenta. Em
alternativa, oferece-se a solução de proceder à regulamentação das relações privadas
internacionais através da criação de normas especiais de direito material.
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 91

As normas de DIP. material são manifestações de um método diferente


do método conflitual e que consiste na criação de normas materiais especiais para
regular as situações internacionais.
Tal solução tem um célebre precedente histórico: o «ius gentium»
que não era outra coisa senão um sistema de regras materiais aplicáveis às relações dos
cidadãos romanos com os peregrinos (já nesta altura existiam normas específicas para
regular as situações internacionais).
ROBERTO AGO entende que, para a resolução dos problemas do DIP.,
tanto se poderia seguir o rumo tradicional como, ao invés, optar pela criação de um
sistema particular de normas de direito material aplicáveis às relações que se
apresentam como estranhas à vida jurídica do Estado local.

2.5.1) Vias pelas quais os defensores de uma


maior «materialização» do DIP. fizeram
avançar as suas propostas:

a) Redefinição do papel do juiz no processo, dando-


lhe o poder ― mais ou menos vinculado a alguns critérios ― de
escolher a lei mais adequada à resolução da situação concreta ou de
criar, mesmo, uma nova norma no caso de as circunstâncias assim o
exigirem.
Nos ordenamentos jurídicos da família romano-germânica,
o juiz não é a instância mediadora entre a lei e o caso, não
competindo a ele actualizar a intenção normativa do legislador de
forma a que o direito a aplicar resultasse de uma criação judicial. A
mais, o juiz também não é a «viva vox iuris civilis».
Na Europa continental, a tentativa de «materializar» o
DIP. não foi prosseguida por orientações que privilegiassem o poder
do juiz, e isso deve-se, principalmente:
→ a tradicional desconfiança perante a
actividade judiciária, vista quase unanimemente como fonte
de arbítrio e desigualdades.
Porque a lei, em princípio, resultado da vontade dos órgãos
representativos, é o resultado da emancipação da sociedade perante o
soberano, ele é o instrumento privilegiado da realização da justiça
entre os «cives» e as suas fórmulas possuem algo de mágico no
tocante às virtualidades de assegurar, dentro do espaço e do tempo,
que a sua vigência abrange a perfeita justiça.
O juiz, que é titular de uma força do Estado de dignidade
equiparável às restantes, quase surge como um mero órgão de
ligação, desprovido de qualquer autonomia na operação de aplicar os
comandos legais a um qualquer caso concreto a eles subsumido.

b) Criação de normas especiais de direito material


para regulamentarem as relações privadas internacionais.
92 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— O Método do D.I.P. —

2.5.2) Modalidades de normas de DIP. material:

2.5.2.1) Normas de DIP. material de fonte interna:

As normas de DIP. material de fonte interna podem ter as seguintes


origens:
a) legislativa;
b) jurisprudencial; e
c) doutrinal.

2.5.2.1.1) Normas de DIP. material de origem


legislativa:

A elaboração na ordem interna dos Estados de um sistema completo de


normas aplicáveis a determinada categoria de situações internacionais não corresponde
a qualquer firme tendência do direito contemporâneo. Ao invés, é com certa frequência
que nos deparamos, nas leis internas dos diferentes Estados, com normas materiais
expressamente criadas para regular determinados aspectos de certas situações
internacionais. Trata-se de normas que se aplicam fora do domínio definido pelas
regras de conflitos do ordenamento jurídico a que pertencem, mas cuja aplicação
depende, em todo o caso, da existência de um elemento de conexão entre a situação a
regular e o respectivo ordenamento jurídico. Exemplos:
→ Código Comercial da antiga Checoslováquia ― normas materiais
específicas para as situações internacionais: o sistema jurídico
interno era diferente do sistema que deveria reger as situações
internacionais (países de ideologia comunista).
Contudo, mesmo aqui não se prescindia do critério
espacial: as normas só se aplicavam quando as regras de conflitos
estabeleciam a competência do seu ordenamento jurídico.
→ O artigo 2223º do Cód. Civ., que disciplina o testamento,
estabelece que, se o testamento tiver sido feito no estrangeiro por
um português, este testamento só pode ser válido em Portugal se
tiver sido observada uma formalidade solene (é uma regulamentação
específica; não remete para nenhum ordenamento jurídico, pois dá
já a solução).
→ O artigo 52º, n.º 2 do Cód. Civ., «in fine», que disciplina o
casamento no estrangeiro de dois portugueses ou de um português
com um estrangeiro, estabelece que, em qualquer caso, o casamento
deve ser precedido do processo de publicação (aqui está a norma
material).
→ Os artigos. 32º e 35º da Lei 31/86, de 29 de Agosto regula a
arbitragem internacional quando esta ocorre em Portugal (critério
espacial).
→ O artigo 3º, n.os 2 a 6, do CSC., que regula as transferências
internacionais da sede das sociedades comerciais, é uma
regulamentação específica para as situações internacionais.
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 93

→ O artigo 3º, n.º 1, 2ª parte, do CSC., dispõe sobre o relevo da sede


estatutária em Portugal quando a sociedade seja estrangeira (sem
sede real e efectiva em Portugal).

2.5.2.1.2) Normas de DIP. material de origem


jurisprudencial:

As normas materiais de que até agora nos ocupamos apresentam a dupla


característica de serem normas de fonte legislativa e de inspiração internacionalista,
regras inspiradas pela intenção de dar satisfação adequada às necessidades específicas
do comércio jurídico internacional. Todavia, elas não operam à margem do jogo das
regras de conflitos, antes o pressupõem.
Há, contudo, outras normas materiais, de elaboração jurisprudencial
(também de inspiração internacionalista) que se poderia dizer estarem libertas do jogo
das regras de conflitos, pois actuariam só pelo facto de o litígio pertencer à esfera de
competência dos tribunais locais..
Nós entendemos que a criação, por via jurisprudencial, de tais regras de
DIP. material não é de encorajar. Não é pelo facto de essas regras se inspirarem nas
necessidades específicas do comércio internacional que elas perdem a natureza de
normas de direito interno: são normas especiais de direito interno. É, portanto,
indispensável, para que a sua intervenção se torne legítima, que o problema surja num
litígio que tenha com o Estado do foro alguma conexão efectiva... alguma conexão
válida à luz dos princípios gerais do DIP. Por outro lado, é chocante que um Estado
reserve para as relações nascidas da vida jurídica internacional um tratamento diferente
do que dispensa às relações puramente internas.
VON MEHREN invoca a esse respeito o princípio da igualdade,
advertindo que aquela diferença de tratamento só se justifica quando as circunstâncias
exijam claramente o afastamento da norma representada pelas soluções do direito
interno comum.
Contudo, estas considerações em nada infirmam o que dissemos acerca
das normas materiais espacialmente auto-limitadas. Em nosso entender, o recurso a esta
figura permitirá corrigir boa parte dos resultados «inadequados» a que conduziria a
aplicação pura e simples, aos casos internacionais, das normas mediante as quais a «lex
fori» procede à regulamentação das relações de direito interno.
O direito especial das relações internacionais, onde, porventura, exista,
quer provenha de fonte legislativa ou de fonte jurisprudencial, não exclui ou não deve
excluir o processo conflitual clássico.
Em regra, acontece no ordenamento jurídico francês. Numa situação
interna ou internacional as partes celebram um contrato e, adstrito a este contrato, um
acordo compromissório.
→ Nas situações jurídicas internas, quando o contrato é inválido, o
acordo também o é.
→ A jurisprudência, contudo, construiu uma norma de DIP. material
diferente: a nulidade do contrato não acarreta a nulidade do acordo,
assim, há a criação de um regime específico para as situações
internacionais, regime este estabelecido pelos próprios aplicadores
do direito.
94 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— O Método do D.I.P. —

2.5.2.1.3) Normas de DIP. material de origem


doutrinal:

Há uma variante doutrinal das normas de DIP. material (mas não é bem
uma fonte interna).
VON MEHREN adopta uma visão salomónica do DIP., propugnando
pela conciliação e reconhecimento dos pontos de vista de todos os ordenamentos
jurídicos em contacto.

Caso NEUMEIER vs. KUEHNER (1972)

Coloca-se questão da responsabilidade do transportador pelos danos causados ao


passageiro transportado gratuitamente, na hipótese de acidente de viação. O
transportado era nacional de Ontário, foi convidado por um amigo nova-iorquino a dar
um passeio no seu automóvel através desse país, veio a falecer em consequência dos
ferimentos aquando da colisão do carro com um comboio; o carro, de matrícula nova-
iorquina, era conduzido pelo proprietário na ocasião do acidente. O Ordenamento
jurídico de New York concedia o direito à indemnização ao transportado gratuitamente
em caso de acidente, enquanto que o ordenamento jurídico de Ontário não concedia tal
direito ao transportado gratuitamente. Na acção de indemnização, o tribunal de New
York considerou aplicável o direito de Ontário e, consequentemente, absolveu o réu.
VON MEHREN observa que para chegar a esta conclusão o tribunal
qualificou o conflito de leis como falso, considerando que a «guest-passenger law» do
Ontário, dada a sua «ratio», teria sido julgada aplicável, no caso em exame, pelos
tribunais desse Estado. A conclusão é contestada pelo autor: ele pensa que um tribunal
do Ontário teria justamente aplicado, no caso vertente, o direito em vigor em New York.
É perante um autêntico conflito de leis que nos encontramos ― um dos sistemas é
favorável e o outro contrário à indemnização pedida ― conflito negativo: cada uma das
jurisdições interessadas aplicaria a regra da outra.
Neste tipo de casos, VON MEHREN entende que é possível uma
solução de compromisso, uma solução que conceda um certo reconhecimento às
«políticas» em que se inspiram as duas leis concorrentes e que, por essa razão, seria
aceitável para ambas; o que nos poria no caminho da harmonia de decisões. Neste
caso, a solução de compromisso poderia consistir em reconhecer-se ao sucessor «mortis
causa» do passageiro canadiano o direito a metade da indemnização correspondente aos
prejuízos sofridos, pois a dita solução conciliaria ambas as perspectivas.
A ideia fundamental do autor: «dever-se-iam reconhecer os
pontos de vista de todas as ordens jurídicas que tenham uma
pretensão fundada a controlar uma certa situação multinacional, de
harmonia com a medida do interesse de cada uma delas em tal
situação».
A colocação do problema nestes termos implica uma concepção do DIP.
que nós não podemos aceitar. Há casos em que se faz mister olhar ao conteúdo de duas
leis, operando numa delas, ou eventualmente em ambas, as adaptações ou ajustamentos
tornados necessários pelo facto de a situação em causa se encontrar sujeita aos dois
sistemas em virtude das regras de conflitos da «lex fori». O problema que aí se levanta
é justamente o da adaptação.
É necessário, para que se torne legítimo recorrer ao expediente ou
técnica da adaptação, que ambas as leis em presença sejam chamadas pelas normas de
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 95

DIP. do forum a resolver a questão de direito suscitada. Quanto a nós, o problema de


saber se esta condição se encontra preenchida não pode solucionar-se tentando
determinar quais as leis que, pelos resultados que visam, têm um interesse legítimo na
situação multinacional considerada e podem, por isso, reivindicar o respectivo controle:
o problema não pode resolver-se senão tomando em consideração:
→ as finalidades gerais do DIP.; e
→ os objectivos específicos visados nos seus diferentes sectores.

Não cremos que no caso NEUMEIER a situação «sub judice»


apresentasse com o direito do Estado de New York um vínculo suficiente para justificar
a aplicação deste sistema jurídico. Logo, o tribunal de New York decidiu correctamente
o problema, ao declarar aplicável (unicamente) a lei do Ontário.
Não nos parece que a solução preconizada por VON MEHREN
constitua um compromisso aceitável para ambas as ordens jurídicas interessadas. Não é
para nós claro que se possa dizer que a lei do Ontário se julgava «desinteressada»
nesse caso e não queria ser-lhe aplicada. Se admitirmos que a «guest-passenger law»
aponta para dois alvos, sendo um deles desencorajar e frenar a ganância dos passageiros
ingratos, não podemos deixar de entender que, então, a norma alcança logo à cabeça os
residentes do Ontário «transportados em veículos que circulem no interior do país».
São eles, naturalmente, os primeiros destinatários da norma, na medida em que esta se
apoie no fundamento indicado.
Esta teoria cria uma situação de insegurança, pois é o próprio juiz que
constrói a solução material.

2.5.2.2) Normas de DIP. material de fonte internacional:

As normas de DIP. material de fonte internacional podem surgir por


ocasião de:
a) convenções de unificação; e
b) leis uniformes.

2.5.2.2.1) Convenções de unificação:

Estabelecem regras materiais específicas para as relações internacionais,


continuando as relações internas a ser regidas por normas internas, ou seja, estabelecem
regras exclusivamente destinadas a certa classe de relações internacionais, deixando
subsistir em cada Estado contraente o direito interno nacional, mas restringindo a
aplicação desse direito às relações não internacionais. A maior parte dessas convenções
limitam a aplicação do respectivo direito uniforme ou às relações que se desenvolvam
entre dois Estados contraentes, ou àquelas que tenham certa conexão com o território de
um desses Estados (v.g.: Convenção de Varsóvia sobre transporte aéreo internacional).
Outras convenções há, porém, que prescindem desse elemento de
localização, devendo as regras uniformes por ela criadas aplicar-se a quaisquer relações
internacionais da categoria em vista.

2.5.2.2.2) Leis uniformes:


96 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— O Método do D.I.P. —

Ao lado das convenções de unificação, encontramos as convenções que


estabelecem leis uniformes cujo destino é serem incorporadas na ordem jurídica interna
dos Estados contraentes para aí passarem a constituir direito comum da matéria jurídica
a que respeitam, ou seja, as leis uniformes estabelecem regimes jurídico materiais
aplicáveis tanto às situações internacionais como às internas.

2.5.3) Argumentos a favor desta teoria:

1) O processo clássico teria o inconveniente de gerar


soluções não adequadas à especificidade dos casos autenticamente
internacionais. As leis internas são elaboradas tendo em vista as
situações da vida jurídica nacional e a elas apenas seriam dirigidas. As
relações verdadeiramente internacionais dizem respeito a interesses e
levantam problemas que lhes são peculiares. Resolver estes problemas
através da aplicação de normas de direito interno é ignorar o risco
inevitável de se chegar a soluções inapropriadas.
2) Por outro lado, as dúvidas e as incertezas que são
inerentes ao método conflitual dificultam, ao mais alto nível, o
desenvolvimento do comércio internacional. O método conflitual não é
de molde a propiciar a realização da confiança, facilidade e segurança
que é necessária no DIP.
3) Criar por via legislativa as regras de conflitos mais
ajustadas à natureza das várias matérias do direito privado é uma tarefa
deveras complexa. E, se isso é grave, não menos grave é o problema da
sua interpretação e aplicação (controvérsias como a qualificação, o
reenvio, a ordem pública, a adaptação).
4) Há um desajustamento profundo entre o DIP.
como direito de conflitos e os objectivos para que aponta. Em muitos
casos, as partes têm uma grande dificuldade para determinar a lei a que a
sua relação jurídica ficará sujeita ou não terão, sequer, a possibilidade de
indicar, de modo seguro, essa lei, daqui resultando o conhecido
fenómeno do «forum shopping».
5) Este estado das coisas afecta profundamente a
previsibilidade das decisões judiciais e a segurança jurídica, o que, por
sua vez, impede a realização dos fins a que o DIP. se propõe.

2.5.4) Críticas a estes argumentos:

Contudo, estas razões não constituem base suficiente para justificar uma
adesão à via ou perspectiva «substancialista». É errado supor que a opção por
normas de DIP. material eliminaria o problema da conexão e da escolha da lei. Se
assim fosse, violaríamos um princípio fundamental de DIP.: o princípio da não
transactividade, segundo o qual, não é lícito aplicar a uma situação da vida uma lei que
lhe seja completamente estranha, uma lei que não tenha com ela qualquer contacto
efectivo. A fundamentação deste princípio (limitação espacial do campo de aplicação
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 97

da lei) consiste no facto de a regra de direito pretender influenciar o comportamento dos


indivíduos, fornecendo-lhes motivos que os levem a agir de certa maneira ou a abster-se
de determinadas condutas. Esta conexão é um pressuposto de aplicabilidade da lei,
pressuposto esse ao qual não é possível renunciar senão em casos verdadeiramente
excepcionais. Assim será principalmente quando se trata de evitar uma denegação de
justiça. Segundo o direito português (cfr. os artigos 23º e 348º do Cód. Civ.), quando
se torna impossível determinar o conteúdo do direito estrangeiro aplicável, recorre-se à
lei que for subsidiariamente competente; não é senão no caso de não se conseguir
estabelecer o conteúdo desta última lei que o juiz deverá recorrer ao próprio direito
material português, mesmo que nenhuma conexão exista entre este direito e a situação
em causa.
Outro caso excepcional no direito português é o do artigo 68º, n.º 2 do
Cód. Civ.: trata-se de uma norma relativa à comoriência e às presunções de
sobrevivência, regra esta que o artigo 26º, n.º 2 declara aplicável a qualquer caso,
desde que as presunções de sobrevivência das leis nacionais das pessoas falecidas se
mostrem incompatíveis.
Daqui se conclui que o direito material especial das relações
internacionais nunca poderá substituir-se ao direito de conflitos. A sua aplicabilidade a
dado caso concreto sempre haverá de pressupor a existência de uma qualquer ligação
entre esse caso e a legislação do país em que se contém o referido «ius» especial. Esta
ligação poderá ou não coincidir com a que seria exigida pela regra de conflitos geral do
respectivo sistema jurídico, mas não é isso que importa: o que importa é que se trate de
uma conexão real e efectiva.

Porventura a conclusão se altera pelo facto de a regulamentação especial provir de


fonte internacional?

Pense-se, por exemplo, na Convenção de Genebra sobre Letras e


Livranças de 07 de Julho de 1930.
Aqui, a aplicação das disposições da convenção pressupõe a existência
de uma certa conexão entre o caso a regular e o Estado onde a questão se põe. A regra
da convenção que formula essa exigência é uma regra de conflitos especial que tem
primazia sobre qualquer outra da «lex fori». Deste modo, não nos encontramos aqui
perante a hipótese de um direito material situado acima do direito de conflitos.
Mas é justamente esta a hipótese que se verifica no caso daquelas
convenções que instituem um regime uniforme para determinada categoria de relações
internacionais e cujo alcance, dentro dessa fronteira, é universal.
Assim, devendo os tribunais de um Estado contratante julgar um litígio
resultante de uma relação compreendida no âmbito das referidas convenções da Haia, o
direito aplicável será necessariamente o contido na respectiva lei uniforme.
Não nos parece que esta orientação seja a melhor. Nenhuma lei, por
mais perfeita que seja, pode ter a pretensão de reger situações que com ela não tenham
uma conexão efectiva: princípio da não transactividade.
Sem dúvida que a criação, por tratado, de normas materiais presta reais
serviços, visto contribuir para a unificação progressiva do direito privado, reduzindo o
espaço em que os conflitos de leis podem surgir (reduzindo, mas, note-se, não
eliminando). Assim, a criação, por via de convenções de unificação, de um direito
próprio das relações privadas internacionais é desejável, embora, na medida em que
reduz o espaço em que os conflitos de leis podem surgir, não constitui alternativa
válida, no plano metodológico, para o processo conflitual.
98 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— O Método do D.I.P. —

A tendência para a resolução do problema do DIP. através da elaboração


de soluções de nível ou índole material deriva basicamente do pressuposto da
inadequação dos resultados a que a via ou o processo conflitual nos conduziria com
frequência. Mas a tensão entre esses dois pólos ― a harmonia jurídica internacional e
a justiça dos resultados ― devia resolver-se pela prevalência do último.
A nossa opção é precisamente oposta. A adesão à tese por nós
contestada levaria ao sacrifício de um princípio ou pressuposto essencial de todo o
ordenamento jurídico: princípio da não transactividade.
Para além disso, a opção que rejeitamos, tomada em si mesma, realmente
não se justifica. E, dentre os fins gerais que o DIP. prossegue, é justamente à harmonia
jurídica internacional que cabe a primazia.
Consideremos agora que a inadequação das soluções decorrentes do
método da «localização» das situações plurilocalizadas resultará, quase sempre, das
circunstâncias do caso concreto assim como do conteúdo dos preceitos materiais que
nas leis em concurso se aplicam às relações homólogas de direito interno. Aos
inconvenientes resultantes da criação, por via legislativa, de normas materiais de DIP.,
viriam a somar-se os que são específicos do método de elaboração casuística de
soluções desse mesmo tipo.
No entanto, essa orientação tem impressionado muitos autores e acaba
de ser relançada por VON MEHREN: o autor tece considerações de grande interesse a
propósito de certas categorias de casos. São casos em que uma situação determinada se
encontra em contacto com duas leis que, ao regulamentar a matéria em questão,
reflectem ópticas diferentes e visam objectivos diferentes.
VON MEHREN entende que é possível uma solução de compromisso,
uma solução que conceda um certo reconhecimento às «políticas» em que se inspiram
as duas leis concorrentes e que, por essa razão, seria aceitável para ambas (o que nos
poria no caminho da harmonia das decisões). A ideia fundamental do autor é que
deveriam reconhecer-se os pontos de vista de todas as ordens jurídicas que tenham uma
pretensão fundada a controlar uma certa situação multinacional, de harmonia com a
medida do interesse de cada uma delas em tal situação.
Porém, colocar o problema nestes termos implica uma concepção de
DIP. que nós não podemos aceitar. É claro que há casos em que importa olhar para o
conteúdo de duas leis, operando, numa delas ou em ambas, as adaptações ou
ajustamentos tornados necessários pelo próprio facto de a situação em causa se
encontrar sujeita aos dois ordenamentos jurídicos em virtude da regra de conflitos da
«lex fori». O problema que se põe é, justamente, o da adaptação.
É necessário, para que se torne legítimo recorrer à adaptação, que ambas
as leis em presença sejam chamadas pelas normas de DIP. do foro a resolver a questão
«sub judice». Ora, este problema não se pode solucionar tentando determinar quais
as leis que, pelos resultados que visam, têm um interesse legítimo na situação
plurilocalizada considerada e podem, por isso, reivindicar o respectivo controle.

2.5.5) Principais conclusões:

→ As objecções dirigidas contra a concepção clássica de DIP. (ao


método conflitual) são, na sua maioria, inconvincentes.
O DIP. clássico (na sua ortodoxia, na sua justiça puramente
formal, na rigidez das suas normas) era presa fácil da crítica, mas o amplo
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 99

movimento contestatório de que se falou não leva na devida consideração


o facto de que o DIP. dos nossos dias perdeu muito dessa feição antiga,
pois tem vindo a adaptar-se gradualmente às novas exigências, a abrir-se a
mais rasgadas perspectivas.

→ As outras soluções imaginadas para o problema do conflito de leis


não são alternativas válidas ao método conflitual.
Desde logo, a orientação segundo a qual haveria que deduzir a
solução do nosso problema de uma definição do domínio de aplicação das
normas materiais em causa, graças ao método da «governamental
interest analysis» ou equivalente. É que esta doutrina opõe-se
frontalmente à teleologia própria do DIP. Por outro lado, as dificuldades,
ambiguidades e incertezas inerentes aquele método não podem facilmente
clarificar-se.
Tão pouco é recomendável a tese que preconiza a substituição
do sistema clássico da localização das situações plurilocalizadas pela da
escolha da regra material susceptível de conduzir ao resultado mais
adequado. Esse método não deixaria de causar grave dano à certeza
jurídica das partes.
Outro tanto se diga da tendência para a elaboração sistemática
de normas materiais de DIP. Esse DIP. material não poderá prescindir de
uma ideia de conexão espacial, ou seja, não se pode substituir ao direito de
conflitos.
Quanto às regras materiais de fonte jurisprudencial, se a
razoabilidade de algumas soluções a que se chegou por esta via não sofre
contestação, não é menos certo que a idêntico resultado se teria podido
chegar por outro caminho.
Resta o caso do DIP. material criado por tratados. Ao falar das
convenções que estabelecem leis uniformes e das convenções de
unificação, notamos que tão pouco aí se deveria prescindir da referida ideia
de localização ou de conexão espacial das situações contempladas, mas
nem sempre as coisas se passam assim.

→ Não obstante as críticas que lhe têm sido dirigidas, é ao método


conflitual que convém recorrer para solucionar os problemas
derivados das situações plurilocalizadas. Contudo, há que
reconhecer que o método conflitual não implica, necessariamente, a
existência de normas de conflitos de leis. A regra de conflitos
estabelecida na lei não é senão um dos caminhos que nos podem
levar ao resultado desejado (à designação do ordenamento jurídico
que tenha com o caso a conexão mais significativa). A outra
solução que se nos oferece consiste em confiar ao juiz a tarefa de
definir, ele próprio, tendo em conta certos factores dentre os quais se
contam a natureza e circunstâncias do caso «sub judice» e as
expectativas dos interessados) a lei mais estreitamente conectada
com a situação a regular.
O que agora se considera é um casuísmo de carácter ou nível
conflitual e não material.
100 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— O Método do D.I.P. —

→ A nossa preferência vai para a solução tradicional das regras de


conflitos legislativas.
Porém, contra a codificação do DIP. têm sido levantadas
certas objecções:
a) aponta-se o facto de que, em matéria de conflito de leis, a
ciência jurídica não logrou ainda atingir uma fase de plena
maturidade;
b) produziu-se também o argumento de que a publicação de
uma lei entrava sempre a evolução, coisa que seria
particularmente nociva em matéria de conflitos de leis;
c) segundo NEUHAUS, a objecção de maior monta contra a
codificação do DIP. é a de que ela poderá entravar a
uniformização das regras de conflitos a nível
internacional.

→ Preconizaremos a codificação do DIP. e ninguém dirá que o


imperativo de certeza do direito se faz sentir com menor
intensidade no campo das relações multinacionais do que no das
relações puramente internas. Todos os países têm a necessidade de
normas que dêem aos tribunais a possibilidade de decidir com
justiça qualquer caso que lhes seja submetido.
Uma vez assente a ideia da necessidade de directivas
consagradas na própria lei quanto à maneira de resolver os conflitos
entre sistemas jurídicos, põe-se a questão de saber que forma
deverão revestir essas regras. Vejamos os principais modelos que
se nos oferecem:
a) «Restatement Second» e as regras do
Segundo «Restatement» são, na sua maioria, «open-
ended rules»: concluiu-se que, no estado actual dos nossos
conhecimentos, o máximo que se poderia fazer (e mesmo isso
só em determinadas hipóteses) seria indicar um certo número
de elementos de conexão, competindo ao tribunal determinar,
em cada caso, conforme os princípios gerais (enunciados na 6ª
Secção), o mais significativo dentre eles ― «the most
significant relationship». V.g.: o art. 145º sobre a
responsabilidade «ex delicto».
A ideia fundamental do «Restatement», sem
embargo do considerável interesse que apresenta para o
progresso do DIP., presta-se largamente à crítica. A principal
objecção que contra ele é tecida é a que vem do seu próprio
redactor, o Professor W. REESE, quando reconhece que, num
futuro imediato, os tribunais não poderão fazer outra coisa que
não seja decidir cada caso à luz dos princípios gerais que estão
na base do DIP. e que a referida Secção 6ª formula. As suas
decisões terão de ser, fundamentalmente, meras decisões «ad
hoc».

b) Por nós, continuamos a propender para o


modelo da regra de conflitos.
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 101

Todavia, estas regras de conflitos não devem ser


olhadas como algo de preciso, definido e concluso, mas apenas
como balizas ou marcos indicativos: a sua função não é tanto
impor dogmaticamente um percurso sem desvios, como, antes,
definir apenas uma linha de rumo; o rumo a observar em tanto
quanto corresponder às razões que ditaram a opção. Não
vamos pôr aqui em questão a validade desta ideia pelo que toca
às normas jurídicas em geral. Seja como for, ela é, para nós,
válida justamente no que tange ao DIP.: um sector da ciência
jurídica ainda em plena evolução... ainda longe da maturidade.
É fundamental aceitar a ideia de que as regras de
conflitos são regras instrumentais relativamente aos valores
axiais do DIP. e aos objectivos específicos visados nos seus
diversos sectores. Num estudo recente, MOURA RAMOS
sublinha, com razão, a vantagem de concebermos as regras de
conflitos «como um meio ao serviço dos fins do DIP.,
da justiça conflitual, numa concepção em que a
regra de conflitos tem um papel instrumental,
com uma actuação que está, portanto,
subordinada aos fins do DIP.».

c) Não deixará de se opor à doutrina aqui


preconizada a objecção de que ele também reduz a margem de
certeza jurídica que se poderia esperar da codificação do DIP.
Ora, nós não contestaremos que assim seja, mas negaremos que
isso ponha em causa o bem-fundado da doutrina; de resto, é
indiscutível que a solução proposta afectará muito menos a
certeza jurídica do que uma orientação do tipo da do
«Restatement».
3) Parte Geral:

3.1) As regras de conflitos:

3.1.1) Conceito, «modus operandi» e elementos


estruturais da regra de conflitos:

O DIP. actua por adjudicação ou adstrição de tarefas normativas aos


vários sistemas de direito conectados com as diferentes situações interindividuais da
vida internacional.
O fenómeno das situações plurilocalizadas, ou seja, das situações
conexas com diferentes ordenamentos jurídicos nacionais, compele à elaboração de
normas ― estas normas são as comumente chamadas «regras de conflitos». É a
estas regras de conflitos que cabe a tarefa de coordenar essas diferentes ordens
jurídicas na sua aplicação, de modo a que cada aspecto, perfil ou efeito da relação
jurídica concreta só por uma dessas ordens ou leis venha a ser valorada.
A cada regra de conflitos cabe delimitar um sector ou matéria jurídica,
uma questão ou núcleo de questões de direito, e indicar, de entre os elementos da
factualidade concreta, aquele por intermédio do qual se há-de apurar a lei aplicável em
tal domínio. A norma bilateral obedece a um esquema lógico: as questões jurídicas
pertencentes à categoria X serão resolvidas em conformidade com os preceitos a que a
situação concreta estiver ligada através de uma conexão da espécie Y.
Limitam-se as regras de conflitos a indicar-nos as ordens jurídicas
estaduais que hão-de reger essas relações. A sua estatuição traduz-se numa
consequência jurídica «sui generis» que consiste em dirimir um conflito de leis; e fá-
lo destacando um elemento da situação de facto susceptível de apontar para uma (e
apenas para uma) das leis em concurso («leis interessadas»).
Seu específico «modus operandi» consiste em eleger, dentre os
elementos pertencentes à estrutura das situações a regular, aquele por cujo intermédio
haverá de ser encontrada a lei a aplicar no âmbito correspondente a determinado sector
ou matéria jurídica, e determinada questão ou núcleo de questões de direito.
A norma de conflitos é constituída por três partes:
a) o conceito quadro (objecto da conexão);
b) o elemento de conexão (elemento que estabelece a conexão); e
c) a consequência jurídica.

O primeiro, ou seja, o objecto da conexão ou objecto de referência da


norma, é definido por meio de um conceito técnico-jurídico ― o conceito-quadro da
regra de conflitos ― designativo de determinada matéria, instituto ou categoria
normativa. É no âmbito por ele traçado que opera a conexão escolhida pela norma,
sendo esta conexão representada por um dos elementos ou circunstâncias da
factualidade concreta.
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 103

Ao segundo (ao elemento de conexão) cabe a «tarefa» de localizar a


situação jurídica num espaço legislativo determinado; cabe-lhe a tarefa de «situar» a
situação jurídica no quadro de um certo sistema de direito. Por outras palavras, a norma
de conflitos desempenha a sua missão peculiar deferindo certa matéria ou sector de
regulamentação ao sistema nacional que for designado, em concreto, por certo elemento
da situação de facto ― funcionando como elemento referenciador da lei cujos preceitos
materiais são chamados a intervir, com a exclusão de quaisquer outros, no âmbito
demarcado pelo conceito quadro ― e é a este elemento que costuma chamar-se de
«elemento de conexão».
Por fim, a consequência jurídica consiste na declaração de
aplicabilidade de preceitos jurídicos materiais da lei que for designada pelo elemento de
conexão. Por outras palavras, a consequência jurídica da regra de conflitos consiste na
atribuição de competência à lei que, em concreto, for designada pela conexão relevante
― a lei aplicável à questão concreta a resolver será aquela com a qual a relação «sub
judice» estiver em contacto através do elemento de conexão considerado decisivo pela
regra de conflitos.
Assim sendo, se considerarmos, por exemplo, o artigo 45º do nosso
Código Civil:
→ Conceito quadro: «responsabilidade extracontratual»;
→ Elemento de conexão: «lugar onde ocorreu o facto
danoso»;
→ Consequência jurídica: «aplicação da lei do ordenamento
jurídico do Estado onde ocorreu
o facto danoso».

Considerando agora o artigo 46º, n.º 1 do mesmo diploma legal:


→ Conceito quadro: «posse, propriedade e detenção de
direitos reais»;
→ Elemento de conexão: lugar onde as coisas se situam «lex rei
sitae»;
→ Consequência jurídica: declaração de que, em tal domínio, a lei
competente é a «lex rei sitae».

A norma de conflitos bilateral enuncia a sua consequência jurídica em


termos absolutamente genéricos. A uma norma de conflitos não corresponde uma
única consequência jurídica, mas tantas quanto forem os ordenamentos jurídicos
existentes. Para dirimir as questões de direito pertencentes ao âmbito do instituto X,
qualquer lei pode ser competente, contudo, para dirimir as questões desse tipo que se
levantarem nas diferentes situações concretas da vida, só será chamada a lei com a qual
a situação a regular estiver ligada através de uma conexão do tipo Y.

3.1.1.1) Conceito-quadro:

3.1.1.1.1) Noção e natureza:


104 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Parte Geral —

É o conceito-quadro que, na regra de conflitos, designa a matéria,


questão jurídica ou sector normativo relativamente ao qual é decisivo o elemento de
conexão por essa mesma regra escolhido.
Uma qualquer norma de direito é constituída por dois elementos: a
hipótese e a estatuição. O conceito-quadro seria aquilo que, numa norma jurídica
comum, se designaria por «hipótese da norma». Mas a hipótese da regra de
conflitos, diferentemente do que ocorre com uma norma de direito material, não é
descrita em termos factuais. Ao contrário, enuncia-se uma hipótese que resulta sempre
de conceitos técnico-jurídicos aptos a receber uma multiplicidade de conteúdos e de
extensão muito variável.
Em qualquer regra de conflitos faz-se referência a um instituto jurídico (a
uma figura jurídica) ― v.g.: casamento, filiação, estado, capacidade, etc.
O conceito-quadro é, em suma, um conceito técnico-jurídico através do
qual o legislador define o objecto de conexão, ou recorta a categoria normativa que
operará a conexão escolhida.

3.1.1.1.2) Objecto:

Reinam grandes divergências na doutrina quanto à natureza do objecto


do conceito-quadro, isto é, do objecto imediato de referência da norma de conflitos
(quanto ao conteúdo de categorias de conexão):
a) SAVIGNY entende que é a relação jurídica que constitui o
objecto designado pelo conceito-quadro.
VON BAR contesta um tal entendimento e ensina que a
qualificação de uma relação da vida como relação jurídica só
pode fazer-se com base numa lei determinada, à qual só é
possível chegar justamente através da norma de conflitos, assim
sendo, entende esse autor que não se pode partir do conceito de
relação jurídica, pois, então, estar-se-ia a cair num círculo
vicioso. Precisando tal posição, é interessante referir que,
segundo ENNECERUS – KIPP – WOLFF, a relação
jurídica é uma relação da vida ordenada pelo direito.
LARENZ, por sua vez, ensina que importa distinguir entre
relação da vida («Lebensverhältnis»), que constitui o objecto
da ordenação normativa, e relação jurídica
(«Rechtsverhältnis»), entendida como a regulamentação
daquela relação.
b) AGO, por sua vez, entende que o objecto de conexão é uma pura
relação ou situação da vida, isto é, puros factos ainda não
juridicamente qualificados.
Uma tal concepção, contudo, não está, também ela,
imune de críticas. Destarte, segundo WENGLER, o objecto da
conexão não pode deixar de ser um conteúdo jurídico. Não é a
puros factos que a regra de conflitos se refere. Os mesmos factos
podem ser apreciados segundo perspectivas ou pontos de vista
diferentes, ou seja, no quadro e para efeitos de questões jurídicas
distintas, às quais correspondam outras tantas normas de DIP.
(v.g.: nascimento de um indivíduo → pode ser apreciado por
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 105

sistemas jurídicos diversos, consoante se trate de um problema


relativo ao começo de personalidade jurídica, relações do filho
ilegítimo com os pais, etc.).
c) ZITELMANN entende que o conceito-quadro da norma de
conflitos se refere a uma questão jurídico-privada.
Reparos a esta teoria: uma questão jurídica determinada só se
põe, dizem alguns autores, em face de um ordenamento jurídico
também determinado, já que diferentes ordenamentos jurídicos
podem ver na mesma situação de facto questões jurídicas
diferentes.
d) O conceito-quadro designa e circunscreve um certo grupo, classe
ou categoria de normas materiais.

Supondo uma qualquer situação da vida ligada a um ordenamento


jurídico através de certo elemento de conexão, a aplicabilidade de normas que, nesse
ordenamento jurídico, regulam tal situação depende delas terem certa natureza ou
pertencerem a certa categoria.
As normas materiais, assim, constituiriam o objecto de apreciação para o
juízo de aplicabilidade da norma de conflitos e formariam o conteúdo ou objecto do
conceito-quadro (é esta a posição por nós defendida).
Entre a teoria proposta por ZITELLMANN e esta última teoria por nós
defendida não existem, é certo, diferenças essenciais:
1) se por conceito-quadro se entende o enunciado de uma questão
ou conjunto de questões de direito a resolver pelo sistema com o
qual a situação a regular tiver o tipo de contacto erigido em factor
de conexão, então é às respostas ou soluções dadas a esses
problemas pelo sistema jurídico assim designado que se refere,
em última análise, a regra de conflitos;
2) esta é a visão que melhor se ajusta à finalidade que atribuímos à
norma de conflitos e respectivo conceito-quadro, ou seja, a
norma de conflitos existe para realizar uma tarefa de
coordenação entre as várias ordens jurídicas conectadas com a
situação da vida a regular, de modo a evitar a apreciação de
uma mesma questão jurídica vir a caber a diferentes leis ― as
normas de conflitos são normas de segundo grau que não nos
dizem quais são os factos materialmente relevantes, mas qual das
normas antinómicas deve prevalecer sobre a outra (são normas
sobre normas);
3) o objecto do direito de conflitos considerado globalmente é
diferente do objecto da norma de conflitos individual: o direito
de conflitos, olhado como um todo, visa, ainda que por via
indirecta, a regulamentação das relações privadas de carácter
internacional; a norma, por sua vez, é o instrumento adequado à
realização dos fins a que o DIP. se propõe (se o concebermos
como dirigido a estabelecer os pressupostos de aplicabilidade de
dada categoria de preceitos da lei concretamente designada pelo
elemento de conexão) ― é, portanto, a normas materiais que o
conceito-quadro da norma de conflitos se refere;
4) a norma de conflitos unilateral não pode deixar de entender-se
como referida a determinada categoria de preceitos ou leis
106 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Parte Geral —

materiais do mesmo ordenamento a que pertence, único de cuja


aplicação especial se ocupa (v.g.: a alínea 3ª do art. 3º do
Código Civil francês estabelece que as leis concernentes ao
estado e capacidade aplica-se aos franceses, mesmo que estes
residam no estrangeiro). Decide-se, portanto, aqui, aceitar os
limites de aplicabilidade a dada categoria de regras da legislação
francesa → regras que, quando aplicáveis, aplicam-se às
situações de facto que se ajustarem à sua hipótese; mas a regra
de conflitos não pretende submeter essas situações concretas da
vida.
O mesmo se diga quanto à normas de conflitos bilaterais,
pois todas têm uma face voltada para o ordenamento jurídico
interno. Estas normas bilaterais podem decompor-se em várias
normas unilaterais → dificilmente se compreenderia que a
estrutura lógica dessas várias normas unilaterais não fosse
uniforme.
Concluindo, o sentido da norma de conflitos é apontar
para aquela circunstância que, quando se realiza, tornará
aplicáveis determinados preceitos materiais de dada legislação
aos factos que esses mesmos preceitos contemplam e pretendem
disciplinar.
5) Como norma que unicamente define o critério de aplicabilidade
doutras normas, o objecto das normas de conflitos só pode ser as
normas materiais.

Qualquer que seja a perspectiva de que se tenha partido, é sempre com


regras materiais que se vem a deparar. São estas o verdadeiro objecto de referência da
norma de conflitos: o «quid» que importa subsumir ao conceito-quadro da norma.

3.1.1.1.3) Função:

O conceito-quadro surge para designar ou circunscrever o tipo de


matérias ou de questões jurídicas dentro do qual é relevante ou decisivo, para a fixação
da lei competente, o elemento de conexão a que a mesma regra de conflitos se refere.
Há-de, pois, reportar-se a essas matérias ou questões jurídicas.
O conceito-quadro tem, pois, a função de definir a tarefa normativa de
que há-de incumbir-se a lei indicada pelo elemento de conexão e que preencherá a
esfera de competência dessa lei. Tem uma função determinativa de competência do
ordenamento jurídico designado; isso significa que o ordenamento jurídico competente
se aplica, por exemplo, à tutela.

3.1.1.2) O elemento de conexão:

3.1.1.2.1) Noção e natureza:


José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 107

O expediente técnico através do qual a regra de conflitos opera a


designação do direito aplicável, consiste na individualização de um dos elementos que
estabelecem a ligação dos factos ou situações plurilocalizadas com as leis de diferentes
Estados. Será competente a lei com a qual a relação estiver em contacto justamente por
intermédio desse elemento ― elemento de conexão.
O elemento de conexão é o elemento da situação de facto a que podemos
imputar a consequência jurídica específica do direito de conflitos, ou seja, é o elemento
da situação de facto susceptível de apontar para uma (e apenas uma) das leis em
concurso («leis interessadas»).
Já a natureza do elemento de conexão é variável:
a) lei atende aos sujeitos da relação → factor decisivo:
→ à sua vontade ― lei escolhida pelas partes (convenção das
partes → princípio da autonomia da vontade);
→ à sua ligação com certo Estado ― pelo domicílio → «lex
domicili»;
― pela nacionalidade.

b) a designação do direito aplicável cabe a um elemento de


carácter real:
→ objecto material sobre que verse a relação jurídica;
→ acto ou facto pelo que se constitui, modifica ou extingue.

O factor decisivo da competência será:


1) a situação da coisa ― «lex rei sitae»
(v.g.: direitos reais);
2) lugar da celebração do negócio jurídico
― «lex loci actus»;
3) lugar da prática do facto ilícito ― «lex
loci delicti commissi»;
4) lugar da execução da obrigação.

c) por vezes, o peso decisivo incide no elemento «garantia» da


relação jurídica, ou seja, a acção judiciária, a qual tem de ser
proposta perante o tribunal de um determinado Estado ―
competência da «lex fori».
Direito do foro aplicável ― tramitação do processo
― fundo da causa.
Artigo 348º, n.º 3 → quando é possível averiguar o conteúdo do direito
estrangeiro.
Artigo 23º, n.º 2 → quando não se consiga determinar o elemento de
facto ou de direito de que depende a designação
da lei primária aplicável, será designada como
competente a lei subsidiariamente indicada.

Em suma, os elementos de conexão potencialmente decisivos para


efeitos de DIP. são pessoais e reais (ou subjectivos e objectivos respectivamente).
As conexões consistem fundamentalmente nas relações ou ligações
existentes entre as pessoas, objectos ou factos e as ordens jurídicas estaduais.
108 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Parte Geral —

Nota: também pode funcionar como elemento de conexão o nexo de interligação com
uma outra ordem jurídica.

→ Pessoais ― referem-se aos


sujeitos da relação;
Elementos de conexão → Reais ― referem-se ao objecto
ou factos

→ Factuais: os elementos de conexão


consistem em dados de natureza
puramente factual (v.g.: lugar da
Conexões situação da coisa);
→ Jurídicas: os elementos de conexão
consistem em dados normativos (v.g.:
nacionalidade, lugar do cumprimento
da obrigação.

3.1.1.2.2) Espécies: conteúdo da conexão, conexões


«localizadoras» e «substanciais»:

Quanto ao conteúdo:
→ nacionalidade, residência, domicílio, sede (no caso de pessoas
colectivas);
→ situação duma coisa («lex rei sitae»);
→ lugar do cumprimento de uma obrigação;
→ convenção das partes sobre a lei aplicável;
→ lugar onde o processo decorre («lex fori»);
→ lugar da prática de um facto («lex loci actus», «lex loci
delicti commissi»); e
→ nexo de interligação com outra relação jurídica.

3.1.1.2.3) Tipos de conexão:

É também em função dos interesses que se fazem valer nos vários


sectores de DIP. que se optará, nos diferentes casos, ou por um sistema de conexão una
ou simples, ou por um sistema de conexão plúrima ou complexa.

3.1.1.2.3.1) Regras de conflitos de conexão una ou simples:

No sistema da conexão única ou simples há apenas um elemento


de conexão que vai apontar para o ordenamento jurídico competente
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 109

e, portanto, indica apenas uma lei como aplicável (cfr. os artigos 30º, 37º e 40º do Cód.
Civ.)
Mas, convém salientar, este sistema nem sempre conduzirá à
determinação de uma só lei. Como adverte WENGLER: há factores de conexão que,
eventualmente, podem levar-nos por duas ou mais vias. Em tais casos, há que,
normalmente, arredar a hipótese de a aplicação simultânea dessas leis corresponder ao
sentido da regra de conflitos; sendo assim, deve, neste caso, proceder-se a uma nova
escolha entre as conexões que se nos apresentarem no caso concreto.
Toda vez que essa anomalia se verificar, o critério que deverá presidir a
esta forçosa especificação ulterior do elemento de conexão não poderá ser outro senão
aquele que levou à escolha do factor utilizado pela regra de conflitos.

3.1.1.2.3.2) Regras de conflitos de conexão múltipla ou


complexa:

Trata-se aqui de regras de conflitos que inscrevem várias


conexões (vários elementos de conexão) que apontam para várias
leis como sendo potencialmente aplicáveis ou competentes.
Os interesses a cuja satisfação o DIP. vai dirigido aconselham, por vezes,
o recurso a duas ou mais conexões para uma só matéria (v.g.: quando o que releva é
garantir a validade de um acto, proteger certas liberdades ou facilitar a constituição
ou extinção de certa relação jurídica).

3.1.1.2.3.2.1) Regras de conflitos de conexão múltipla alternativa:

Se se considerar que a importância do fim o justifica, opta-se por um


sistema de conexão múltipla alternativa.
Neste caso, a regra de conflitos inscreve várias conexões que apontam
várias leis como sendo potencialmente aplicáveis, mas não há entre elas uma qualquer
relação de hierarquia; mas, sendo assim, por qual das leis potencialmente aplicáveis
devemos optar? (cfr. os artigos 36º e 65º do Cód. Civ. e o artigo 9º da Convenção de
Roma).
Das leis indicadas virá a ser escolhida aquela que conduza, na espécie, ao
resultado tido, «a priori», por mais justo. Contudo, por vezes, a alternativa desaparece
para dar lugar à competência exclusiva de uma das leis designadas, quando se dê o caso
de esta lei formular certas exigências (cfr. o artigo 65º, n.º 2 do Cód. Civ.).

3.1.1.2.3.2.2) Regras de conflitos de conexão múltipla cumulativa:

No polo oposto ao do sistema da competência alternativa de duas ou


mais leis, vamos encontrar o da competência cumulativa.
Neste caso, há várias conexões que apontam para leis diferentes, só se
produzindo um determinado efeito jurídico caso as várias leis vocadas competentes
concordem com a sua produção, assim sendo, a conexão cumulativa traduz-se na
efectiva aplicação simultânea de 2 (duas) ou mais leis a uma mesma questão jurídica.
Por outras palavras, trata-se aqui de subordinar a produção de certo
evento jurídico ao acordo de duas leis, ou seja, à satisfação dos requisitos estabelecidos
110 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Parte Geral —

em cada uma delas; e isto com vista a evitar a criação de situações que não podem
aspirar ao reconhecimento num dos Estados com elas mais estreitamente conexionado.
Aqui, o escopo visado é o da harmonia jurídica internacional (cfr. o artigo 60º, n.os 1
e 4 do Cód. Civ., que faz depender a constituição do vínculo da adopção do voto de
conformidade de duas leis, a do adoptando e a lei reguladora das relações entre o
adoptando e a sua família de origem ― tem-se em consideração que a adopção não põe
somente em causa os interesses do adoptante e do adoptado, mas afecta também a
família natural desse último). Conclui-se, assim, que há aplicação cumulativa
propriamente dita quando duas ou mais leis consideradas como
competentes para a resolução da mesma questão jurídica concorrem
em plano de igualdade, sendo ambas (ou todas) competentes a título
primário, de modo tal que certos efeitos jurídicos só se produzem
quando sejam simultaneamente reconhecidos pelas leis em concurso.
A cumulação tem uma função negativa, qual seja, a de afastar a
consequência jurídica que, sendo estatuída por uma das leis, o não seja também pela
outra, sendo que, sob este aspecto, exerce uma função oposta à da conexão alternativa.
Este sistema, porém, não é recomendável como critério geral e dele só
encontramos raras aplicações nas legislações mais recentes. BATIFFOL entende que
tal sistema «dá mais do que promete» ― promete aplicar cumulativamente duas
leis em presença para, ao fim e ao cabo, aplicar apenas uma: a mais restritiva.

3.1.1.2.3.2.3) Regras de conflitos de conexão múltipla distributiva:

É mister não confundir competência cumulativa com aplicação


distributiva de duas leis: aqui também se trata de fazer apreciar por dois sistemas
jurídicos as condições de validade do mesmo acto, porém, em termos de a matéria ser
entre eles repartida conforme determinado critério.
Trata-se aqui de uma aplicação combinada, acoplada ou conjugada de
vários ordenamentos jurídicos: neste caso, cada um dos ordenamentos
jurídicos chamados por conexões diferentes vai apreciar apenas um
aspecto da situação jurídica.

3.1.1.2.3.2.4) Regras de conflitos de conexão múltipla subsidiária:

Outra categoria de conexões múltiplas é a das conexões subsidiárias:


aqui há uma hierarquia entre as conexões apresentadas. Mas, como se
passa de uma conexão para a outra? Não se densificando a conexão principal. É uma
questão localizadora.
Prevendo a hipótese de faltar o elemento erigido como factor primário
de conexão, a norma de conflitos designa o elemento sucedâneo a que, em tal hipótese,
haverá que recorrer.
Pode utilizar-se o mesmo sistema quando se torna impossível averiguar o
conteúdo do direito estrangeiro designado através do elemento de conexão estabelecido,
ou quando não se consiga determinar o conteúdo dos preceitos da respectiva lei
nacional.
Este sistema de conexão subsidiária destina-se, fundamentalmente, a
obviar uma situação de impasse.
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 111

A relevância do elemento de conexão escolhido pela regra de conflitos é,


por vezes, colocado sob determinada condição. É possível que uma lei seja declarada
aplicável sob a condição de ela própria se considerar competente. É o que se passa,
desde logo, em virtude do reenvio.
Noutros casos, a não verificação da condição terá por consequência a
aplicação de um sistema jurídico designado, também ele, pelo DIP. da «lex fori», e
designado mesmo em via principal: assim, a regra de conflitos poderá estipular que as
sucessões por morte serão reguladas pela lei pessoal do autor da herança, a menos que a
lei da situação dos bens (imóveis) se considere exclusivamente competente.
Aponte-se ainda o caso em que a condição de que depende a
aplicabilidade de uma lei está ligada ao seu conteúdo jurídico-material; a lei
concretamente designada pelo elemento de conexão da norma de conflitos não será
aplicada se conduzir a uma solução gravemente inadequada do ponto de vista do
legislador que criou a mesma norma. Prevendo esta hipótese, a regra de conflitos
determina o elemento de conexão a que se há-de recorrer.

3.1.1.2.4) Espécies de conceitos designativos da


conexão:

A referência à lei aplicável contida no direito de conflitos não é uma


referência de mera pressuposição, antes, visa um «quid facti» e, no chamamento da lei
aplicável por parte daquele direito, as normas desta lei são tomadas em si mesmas
enquanto critérios normativos. Ou seja, as normas da lei estadual «chamada» não são
tomadas como pressupostos de facto a que o ordenamento «a quo» (do foro a que
pertence o DIP.) atribua efeitos jurídicos decorrentes de uma valoração jurídico-material
feita por sua própria conta, mas são reconhecidas em si mesmas como normas válidas e
aplicáveis.
A regra de conflitos tem por função dirimir os concursos entre leis
potencialmente aplicáveis ou «interessadas», e fá-lo indicando qual a conexão a que
se deverá dar preferência para este ou aquele tipo de questões de direito privado; daqui
resultará, em concreto, a opção por aquela lei que esteja ligada à situação de facto
através daquela conexão ― mas isso não quer significar que na regra de conflitos não
haja referência a pressupostos de facto. Esta referência aos pressupostos de facto não
há, em princípio, no conceito-quadro, mas há no elemento de conexão.
A conexão da situação da vida com esta ou aquela lei é a causa ou facto
operativo da consequência do direito de conflitos. Assim, a referência que se faça a tal
pressuposto é sempre uma referência a um «quid facti», mesmo quando vá dirigida a
um dado normativo (v.g.: nacionalidade).
Concluindo, o conceito que, na regra de conflitos, designa o elemento de
conexão é sempre um conceito designativo de um «quid facti», ou seja, um conceito
para cuja aplicação se tem de proceder a uma constatação de dados de facto.
Os conceitos designativos da conexão podem ser:
→Conceitos puramente descritivos: limitam-se a descrever uma
realidade de facto (v.g.: lugar da situação das coisas).
→Conceitos técnico-jurídicos: refiram-se ou não a factos, são
conceitos já elaborados por outras normas do sistema
jurídico, achando-se as suas compreensão e extensão
112 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Parte Geral —

predeterminadas por esses outros complexos


normativos.

3.1.1.2.5) Diferença entre conexões factuais e


conexões jurídicas:

Conexão factual designada por conceitos técnico-jurídicos: conceitos


que designam a conexão de residência ou de domicílio são conceitos técnico-jurídicos e
exprimem conexões factuais. Com eles, a regra de conflitos pretende designar os
mesmos factos que, no respectivo direito interno material, preenchem o conceito de
residência ou domicílio.
O conceito técnico-jurídico utilizado pela regra de conflitos para
designar o elemento de conexão pode ter um de dois sentidos:
→ traduzir um simples processo sintético de designação dos factos que
são abrangidos por esse conceito, segundo o alcance que ele tem em
outras normas ou complexos normativos da «lex fori» (refere-se
directamente a factos);
→ significar que a conexão é constituída pela existência de uma certa
posição ou qualidade jurídica (refere-se a um dado normativo, em
termos de referência pressuponente).

Não é a factos que estão na base de atribuição da posição ou qualidade


jurídica que o conceito designativo da conexão se refere, mas àquele dado normativo em
si mesmo (v.g.: nacionalidade de uma pessoa ― a regra de conflitos não quer reportar-
se às circunstâncias de facto na sua base, mas à própria posição ou qualidade jurídica de
cidadão desse Estado, qualidade esta que há-de ser apurada em face da lei cuja
cidadania esteja em causa).

3.1.1.2.6) Interpretação e aplicação dos conceitos


designativos de qualidades jurídicas:

Se o conceito técnico-jurídico se referisse, em último termo, a factos, não


poderíamos, sem cair numa contradição, aferir em cada caso da existência ou
inexistência dessa conexão normativa em face da lei estrangeira cuja aplicabilidade
estivesse em causa. Isso equivale a dizer que se regra de conflitos (que utiliza tal
conceito para designar o elemento de conexão) põe determinados factos como
pressupostos de determinação e chamamento da lei aplicável, seria contraditório dizer-
se depois que a mesma regra de conflitos aceita, como pressupostos de aplicabilidade e
chamamento de certa lei, os factos diferentes que esta lei abranger sob o conceito
técnico jurídico em causa.
Os conceitos utilizados pela lei hão-de ser interpretados no contexto
(geral ou especial) do complexo normativo em que se inserem.
Os conceitos utilizados pela regra de conflitos hão-de ser
necessariamente interpretados em face da «lex fori», isto é, com o significado que têm
no direito a que pertence a regra de conflitos, tendo, embora, em conta o sentido
específico que eles possam revestir no sistema de DIP. (trata-se aqui de um princípio
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 113

hermenêutico de expressão de unidade e coerência do sistema jurídico que impõe-se


como uma necessidade lógica inarrredável).
Quanto à nacionalidade estrangeira como elemento de conexão, não
devemos aqui abrir mão desse princípio: dever-se-ia, por vontade própria da «lex
fori», proceder a uma interpretação «lege causae» do conceito usado pela regra de
conflitos.
As dificuldades são superadas se entendermos que certos conceitos
técnico-jurídicos não se reportam a factos empíricos, mas a dados normativos.
É ainda por interpretação da regra de conflitos que se há-de decidir se o
objecto da referência do conceito é um dado empírico (se esse «quid» for constituído
por factos da vida, estes não poderão ser determinados pelo recurso a sistemas jurídicos
estranhos ao sistema «a quo» ou da «lex fori») ou um dado normativo (o «quid»
constituído por um dado normativo poderá ser determinado mediante o recurso a um
sistema diferente do sistema «a quo» ― a intervenção deste outro sistema traduz-se
apenas na constituição e no fornecimento do dado, do «quid» a subsumir, e não já na
valoração dele para os efeitos previstos pelo referido sistema «a quo»; teremos aqui
uma simples referência pressuponente ao sistema interveniente ― sistema «ad quem»
― sendo que este tipo de referência não envolve a absorção ou recepção de critérios
normativos do sistema «ad quem» ― a este vai-se, tão somente, buscar o objecto de
aplicação de critérios normativos próprios do sistema «a quo»).
→ Interpretação: problema de determinação de «facti-species» normativas por via
geral e abstracta, respeitando ao significado conceitual, à compreensão e extensão,
determinadas por via geral e abstracta, dos termos usados pelo legislador ― têm que
ser resolvido no contexto (geral ou especial) do ordenamento em que esses termos
se inserem.
→ Aplicação: problema de identificação ou «constituição» da «facti-specie»
concreta correspondente; essa aplicação concreta dos conceitos ou termos,
consistente na verificação ou «constatação» da existência em concreto dos dados
da realidade que são subsumíveis a tais conceitos. Trata-se de emitir juízos da
ordem do ser que vão referidos ao domínio da realidade a que aqueles conceitos se
reportam.
Se é a regra de conflitos da «lex fori» que define os pressupostos por
ela designados e a extensão e compreensão do respectivo conceito («quaestio iuris»),
também tal pressuposto, sendo um dado normativo, tem de ser verificado e afirmado
através de um juízo de realidade baseado nas normas do sistema «ad quem» de que
depende a constituição ou a existência do mesmo dado («quaestio facti») ― estas
normas, neste contexto, funcionam como normas constitutivas, nada interferindo com as
valorações e decisões das normas do sistema «a quo», isto é, com a resolução da
«quaestio juris».
Esta forma de remissão a um sistema estranho não esvazia de conteúdo a
norma do sistema «a quo», é à face deste sistema e norma que se define o sentido e
âmbito geral do conceito que vai ser aplicado aos dados normativos fornecidos pelo
sistema «ad quem».

3.1.1.2.7) Elemento de conexão e conceito-quadro


― diversidade de sentido e função:
114 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Parte Geral —

O conceito designativo do elemento de conexão refere-se sempre a um


«quid facti» que bem poderia ser um dado normativo.
Função da regra de conflito: na previsão de hipóteses em que as situações de facto de
carácter internacional se apresentam como «plurilocalizadas», o legislador de DIP.
vê-se na necessidade de prevenir ou dirimir concursos entre as várias leis estaduais
«interessadas» ― necessidade de fazer corresponder a cada tipo de conexão um
determinado «âmbito de competência» (um determinado sector de matérias ou
questões jurídicas que adjudica à lei estadual individualizada pela conexão daquele tipo.
Dentro de tal âmbito de competência a lei é reconhecida como aplicável,
os seus critérios normativos são acolhidos e aplicados pelo juiz do Estado do foro.
A função do conceito-quadro, por sua vez, é definir o âmbito de competência

Se o elemento de conexão funciona como pressuposto de


aplicabilidade ou competência de certa lei, o conceito-quadro
funciona como critério de medida dessa aplicabilidade ou
competência. Conclui-se, assim, que são diversas as funções desempenhadas.

Dado por assente que o conceito-quadro se refere a dados normativos, não poderia
entender-se que naquele conceito se contém também uma referência pressuponente
a esses dados normativos?

A referência feita pelo DIP. do foro a um direito estrangeiro não pode


ser uma referência de tipo pressuponente, mas tem de ser uma referência atributiva de
competência ou recognitiva.
As normas da lei estrangeira são tomadas como critérios normativos,
com as suas próprias valorações jurídico-materiais e as consequências jurídicas por elas
estatuídas, e não como dados de facto, como pressuposto de uma consequência jurídico-
material a ditar pela lei do foro.
Isto não obstaria a que o conceito-quadro da regra de conflitos se
referisse às normas materiais da lei estrangeira aplicável como dado ou pressuposto de
estatuição da mesma regra de conflitos a aplicabilidade da lei estrangeira. A referência
contida nessa estatuição... essa é que não poderia ser senão do tipo recognitivo.
Poder-se-ia dizer que se o conceito-quadro se referiria a um «quid
facti», nele também haveria uma referência pressuponente à «lex causae».
Contudo, teremos de afirmar que no conceito-quadro de uma regra de
conflitos típica não há referência a um «quid facti», mas a simples questões jurídicas
― na aplicação desse conceito jurídico não há que verificar-se uma «quaestio facti».
O sistema jurídico designado como competente para regular determinada
questão jurídica suscitada por certo facto concreto é competente para regular tal
questão concreta mesmo que a não regule, isso quer dizer que, mesmo que o facto em
causa seja havido, em face deste sistema e sob o aspecto considerado, como
juridicamente irrelevante, já que não cabe na hipótese de nenhuma norma nem suscita
um verdadeiro problema de integração da lei (lacuna). A decisão quanto à irrelevância
do facto a extrair do sistema designado é, ainda, uma decisão jurídica.
Quanto ao conceito designativo do elemento de conexão, importa
verificar, de modo positivo, a existência da conexão mediante a resposta a uma
«quaestio facti».
Se não se verifica ou constata como um «quid» positivo em relação a
dado sistema estadual, a conexão prevista pela regra de conflitos carece de um
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 115

pressuposto do «chamamento» desse sistema, falta o próprio título de sua vocação


ou da sua competência e ele não será aplicável ao caso.
Contudo, se dada conexão se verifica de facto, mas não se encontra, no
sistema designado, qualquer norma pertinente ao sector jurídico a que se refere o
conceito-quadro da regra de conflitos que utiliza a dita conexão que cubra com a sua
hipótese o facto concreto a regular, apesar disso, a lei «chamada» continua a ser
competente, pois afasta a aplicabilidade de qualquer outra lei e o facto em causa deve,
consequentemente, ser considerado juridicamente irrelevante na perspectiva da questão
jurídica em apreço.

Numa breve conclusão:

Elemento de conexão: só opera se se descobre um «quid» positivo que corresponde


ao conceito que o designa, o que significa que a aplicação deste conceito envolve a
indagação e resolução de uma «quaestio facti».
Conceito-quadro: não exige, para a sua aplicação ou funcionamento, a descoberta de
algum dado positivo em que se concretize o seu conteúdo, ou seja, não exige a resposta
a uma «quaestio facti».

Coloca-se, assim, a descoberto a raiz da heterogeneidade funcional dos


dois elementos estruturais da regra de conflitos, o que não está no facto de o conceito-
quadro se referir a dados normativos e o elemento de conexão a dados factuais, pois o
conceito designativo do elemento de conexão também se pode referir a dados
normativos sem que a dita heterogeneidade desapareça; quando tal acontece, esses
dados normativos são por este conceito assumidos como pressupostos ou como dados
de facto.
A heterogeneidade de funcionamento dos dois elementos estruturais da
regra de conflitos fornece-nos a explicação e a razão de ser do diferente tratamento que
a doutrina dominante lhes dá em matéria de interpretação e aplicação dos respectivos
conceitos.
Para a grande maioria dos autores modernos, o problema da
qualificação, na especificidade que assume no DIP., só se põe e discute a propósito da
aplicação do conceito-quadro.

3.1.1.3) A consequência jurídica:

Como já foi dito várias vezes, a regra de conflitos tem uma função
bilateral, referindo-se tanto ao direito do foro como aos direitos estrangeiros. Vem de
longe a caracterização da regra de conflitos como norma de remissão ou reenvio,
sendo este o verdadeiro sentido desse referência.
Para muitos autores como, por exemplo, AGO, esta caracterização
significa que a regra de conflitos funciona como verdadeira norma de remissão através
da qual o legislador do foro proveria à regulamentação de certas situações da vida
mediante o chamamento de normas estrangeiras que viriam integrar o ordenamento
jurídico-material do foro. Assim sendo, as norma de DIP. teriam a função de inserir
direito estrangeiro no ordenamento jurídico interna do foro.
Para outros autores, a designação da regra de conflitos como norma
indirecta significa apenas que ela é uma norma que se limita a indicar o sistema jurídico
aplicável.
116 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Parte Geral —

Nossa posição é a de que o direito de conflitos situa-se num plano


distinto e autónomo relativamente ao direito material e em que a regra de conflitos
deve ser concebida como uma norma sobre concursos de normas ― como uma norma
que, com vista a prevenir conflitos, define o âmbito da competência das leis aplicáveis.
Ora, logo se vê que esta concepção não se concilia de modo algum com a
figuração da regra de conflitos como norma indirecta ou norma de remissão «ad alius
ius».
Por outro lado, a regra de conflitos também se refere ao ordenamento
material do sistema jurídico a que pertence, portanto, não se concebe, sem
artificialismo, que as normas deste ordenamento material careçam de ser chamadas
através da regra de conflitos do foro para que sejam aplicáveis.
Isso não nos impedirá de reconhecer que o sistema jurídico do foro,
através de um princípio imanente ao seu DIP., atribui competência às leis estrangeiras e
confere validade no Estado do foro a conteúdos normativos que, doutro modo, não a
teriam ― a atribuição de competência não é obra específica da regra de conflitos.
A regra de conflitos tem a função de dirimir os concursos de leis, mas
mais não faz que delimitar ou referir o âmbito de competência das leis em concurso.
Para decidir com clareza se a regra de conflitos é uma verdadeira regra
de remissão, temos que analisar as seguintes definições:
→ Reenvio ou remissão de leis: é um expediente de técnica
legislativa em que, por uma razão de economia de meios que visa
evitar repetições, uma norma indica qualquer dos seus elementos
constitutivos, no todo ou em parte, mediante referência (expressa ou
implícita) a outras normas.

→ Intra-sistemático: quando feito relativamente a normas do


mesmo sistema normativo;

Reenvio
→ Extra-sistemático ou «ad aliud ius»: quando feito
relativamente a normas de um sistema
normativo diferente.

No reenvio intra-sistemático, o legislador resolve (ou pensa resolver)


certo problema jurídico em dado ponto do sistema, ao disciplinar outro ou outros
institutos em que um problema idêntico se levanta, se remete para aqueles preceitos que,
naquele outro ponto do sistema (lugar paralelo), fornecem a solução desejada (v.g.:
artigos 289º, n.º 3; 594º; 678º; 913º; etc.).

→ Expressa;
Remissão

→ implícita (assume feição legal).


José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 117

O mais frequente é a norma indirecta apresentar-se como uma norma


que, para a hipótese por ela referida, determina a consequência jurídica indirectamente,
mediante remissão para outras normas jurídicas. Trata-se sempre de aplicação
analógica da norma «ad quem» no domínio de matérias ou institutos jurídicos a que
se reporta a norma de remissão ― daí que se fale de aplicação «correspondente» ou
com «as devidas adaptações» ― a norma «ad quem», só mediatamente, através
de uma norma paralela ou correspondente pode aplicar-se ao sector de matérias coberto
pela norma remetente.
Importa salientar: a norma paralela, que se vai achar mediante uma
adaptação apropriada da norma «ad quem», desempenha neste sector jurídico
exactamente a mesma função que a dita norma «ad quem» desempenha no seu ― o
problema a resolver tem a mesma natureza neste ou naquele ponto do sistema.
A propósito da remissão «ad aliud ius» valem as mesma
considerações feitas para a remissão intra-sistemática, só que, aqui, se trata de recorrer
a normas de um sistema normativo estranho para integrar o sistema «a quo», no qual
se opera uma verdadeira recepção das normas do ordenamento estranho que é objecto
da referência (ou de normas paralelas a estas normas).
Tratando-se de uma remissão material (remissão feita com vista à
disciplina de questões de direito material) «ad aliud ius», as norma chamadas (ou
respectivas normas paralelas) ficam a fazer parte integrante do ordenamento material do
sistema «a quo». Compreende-se que as normas sejam directamente abrangidas pela
referência que o DIP. do foro faça ao dito sistema «a quo», isto é, o sistema que as
acolhe, pois dentro do âmbito de competência que lhe caiba, este sistema pode decidir
as questões de direito material como bem entenda, seja regulando-as directamente, seja
indirectamente mediante a remissão para um ordenamento estranho.

Será a regra de conflitos uma verdadeira norma indirecta? Resolve a norma de


conflitos o seu problema, ou manda resolvê-lo através de outra norma?

Sendo o direito de conflitos autónomo face ao direito material, ele há-de


ter a sua questão ou problema específico.
Por outro lado, na remissão material da norma indirecta, o problema que
resolve a norma «ad quem» é da mesma natureza que o problema que pretende
resolver a norma de remissão.
Não podemos concordar com a questão posta, pois entendemos que a
regra de conflitos resolve directamente o seu problema, responde directamente à
questão que ele lhe põe e não o manda resolver por normas materiais, que decidem
questões de outra natureza.
Será uma verdadeira norma indirecta a regra de conflitos que remete para
outra regra de conflitos (cfr. o artigo 55º, n.º 1 do Cód. Civ.).
Na doutrina, por vezes, encontram-se confusões relativamente a este
ponto, confusões estas que nos arrastam para fora do plano e da perspectiva próprios do
direito de conflitos. O erro desta doutrina está em pretender referir-se a regra de
conflitos a factos da vida, entendendo-a como norma que remete para outra norma de
regulamentação desses factos.
Esquece-se que a remissão pressupõe que a norma de remissão e a norma
«ad quem» se situam no mesmo plano normativo e desfoca-se e deforma-se a visão
dogmático-metodológica de todo o direito de conflitos.
118 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Parte Geral —

A regra de conflitos deve conceber-se como norma num certo sentido


exterior ao direito enquanto ordenamento material, norma que se situa em plano
superior, autónomo, relativamente a este ordenamento.
Por outro lado, as normas materiais estrangeiras «chamadas» pelo
DIP. do foro não vêm situar-se no interior do respectivo ordenamento material, mas ao
lado dele, como normas que têm um âmbito de competência diferente do das desse
ordenamento e que regulam factos que, caindo fora da competência dele, ele não teria
competência para regular nem mesmo por remissão (remissão material «ad aliud
ius») para normas estrangeiras.
Assim sendo, rejeitamos a ideia de AGO, segundo a qual, a finalidade da
regra de conflitos se traduz em inserir direito estrangeiro no direito interno, ao jeito de
norma material que opera uma remissão receptícia a um determinado direito estrangeiro.

3.1.1.3.1) Relevância indirecta do direito


estrangeiro:

Temos de considerar a referência contida na hipótese de uma norma ao


resultado da aplicação de outras normas.
→ Remissão ou referência pressuponente ou de pressuposição: verifica-se no caso
de uma norma (norma remetente ou pressuponente) estabelecer como um dos
pressupostos da consequência jurídica que estatui a existência de uma situação ou
qualidade jurídica (v.g.: qualidade de filho, de português, etc.) que é já produto de
aplicação de outra norma (norma «ad quem»).
→ Normas pressuponentes: são normas directas em cujas hipóteses se inserem
pressupostos normativos (designados através de conceitos técnico-jurídicos), sendo
estes pressupostos (os resultados do funcionamento de outras normas) tomados
como se fossem puros dados de facto a que aquelas normas ligam efeitos de direito
por elas mesmas estatuídas.
A referência indirecta ou implícita da norma «ad quem» contida na
norma pressuponente apenas nos fornece um meio de constatar ou verificar a efectiva
existência daquele pressuposto em concreto (trata-se de solucionar uma pura
«quaestio facti»).
Ora, esta referência pode ir endereçada ao «ad aliud ius», no sentido
de se dirigir a situações ou qualidades criadas à sombra deste sistema. Neste caso, um
elemento do enunciado legal duma norma do ordenamento «a quo» é constituído pela
verificação de um certo efeito de direito no ordenamento «ad quem», pelo produto de
uma valoração jurídica estrangeira, que é tomada como pressuposto de efeitos ulteriores
por este mesmo ordenamento estatuídos.
A referência pressuponente refere-se apenas a uma «quaestio facti»
(para efeitos de concreta aplicação da norma pressuponente). As outras formas de
referência são utilizadas com vista a responder à «quaestio iuris» (a dar solução a um
problema de regulamentação jurídica).
Pode dizer-se que a remissão do direito de conflitos e a remissão
material «ad aliud ius» implicam o reconhecimento, no sistema «a quo», da
validade das próprias normas do ordenamento «ad quem» (ou de normas paralelas a
essas) que são objecto da referência e implicam o directo reconhecimento dos efeitos
jurídicos ligados por essas normas aos factos a que se referem.
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 119

Ora, na referência de pressuposição, a remissão não coenvolve o


reconhecimento de validade à norma «ad quem», nem o reconhecimento dos efeitos
atribuídos por esta norma aos factos que regula.
A norma remetente limita-se a ligar, à situação jurídica criada pela
norma «ad quem», efeitos que ele próprio, norma remetente, dita (efeitos ulteriores)
sem que isto signifique sequer o reconhecimento daquela situação jurídica com o seu
conteúdo próprio com os efeitos que lhe atribui a norma «ad quem»).
Trata-se de resolver um diferente conflito de interesses, de responder a
uma questão jurídica totalmente diversa, de ligar a situação jurídica em causa (em
combinação com um outro facto central que integre a hipótese da norma remetente)
outros efeitos que o próprio sistema «ad quem», que a criou, pode não lhe reconhecer.

Exemplos de referência pressuponente:

→ no direito internacional público, quando se recorre aos


ordenamentos estaduais para se determinar quem é Chefe de Estado,
agente diplomático, etc.;
→ no DIP, encontram-se sob a forma de uma questão prévia e em
alguns elementos de conexão das regras de conflitos que são
designados através de conceitos técnico-jurídicos (v.g.:
nacionalidade).

A referência pressuponente não juridifica as normas dos complexos


normativos estranhos a que, indirectamente, vai dirigida. Ela apenas confere relevância,
na medida em que confere relevância a situações, qualidades ou qualificações jurídicas
por elas criadas, ao tomar estas situações ou qualidades como pressupostos ou dados de
facto.
A referência pressuponente tanto pode achar-se numa norma de direito
material como numa norma de direito de conflitos (mas, neste último, só acontece para
efeitos de determinação de um pressuposto de aplicabilidade de certa lei).
A referência pressuponente difere da referência recognitiva ou
atributiva de competência, pois esta última é uma referência contida no chamamento de
certa lei por parte da norma do direito de conflitos.
120 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Parte Geral —

3.1.2) Relevância do factor «tempo» na actuação


das regras de conflitos:

3.1.2.1) Sucessão de regras de conflitos do foro:

É a posição, relativamente a determinado ordenamento jurídico, do facto


ou estado de facto ou de direito que constitui a conexão relevante, que permite
considerar este ordenamento como aplicável dentro da esfera circunscrita pelo conceito-
quadro da regra de conflitos ― conclusão que esgota a questão do direito conflitual.
Contudo, nem sempre é assim, dado à existência de:

→ Lugar da situação do imóvel;


Fixos no tempo → lugar da prática de um facto ilícito;
ou invariáveis → lugar da realização de um acto
Elementos de jurídico
conexão

Mutáveis ou → Nacionalidade, domicílio, residência;


móveis → lugar da situação de um móvel;
→ vontade das partes;
→ sede da pessoa colectiva.

De todos os elementos de conexão referidos, só um é insusceptível de ser


situado ou deslocado por vontade dos interessados: situação dos bens imóveis. Todos
os outros são «disponíveis», ou seja, susceptíveis de serem «situados» ou
transferidos pelas partes ― são as chamadas «conexões deslocáveis» ou
«transferíveis» por acto das partes, mas só no sentido de que os factos juridicamente
relevantes podem praticar-se em qualquer lugar (v.g.: pretenso facto ilícito
extracontratual ocorreu num país que acaba, justamente, de reformar a sua legislação em
matéria de responsabilidade aquiliana ― trata-se aqui, evidentemente, de um problema
de direito transitório ou de conflito de leis (materiais) no tempo).
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 121

Há, efectivamente, conexões que se localizam, simultaneamente, no


espaço e no tempo. A referência do lugar da prática de um facto ou celebração de um
negócio jurídico não implica uma simples nota de localização espacial, mas coenvolve
uma nota de situação temporal. «o que ocorreu em determinado lugar,
ocorreu, obviamente, em determinado momento».
Apesar de, na sua maioria, os elementos de conexão não serem
susceptíveis de deslocamento ou transferência (intencional ou acidental) após o
nascimento da relação, já porque não precisados, simultaneamente, no tempo e no
espaço, já porque apresentam um carácter de instantaneidade.
A mobilidade dos elementos de conexão está na origem de certos
problemas: as pessoas podem mudar de nacionalidade ou domicílio; se o fazem e a
conexão relevante é precisamente o domicílio ou a nacionalidade, precisamos saber a
que momento entende reportar-se a norma de conflitos que atribui relevância a tal
elemento. Uma tal questão, note-se, só se põe quando a mudança tenha ocorrido depois
do nascimento da situação jurídica «sub judice» ― problema de sucessão de
estatutos ou do conflito móvel.
Os elementos de conexão utilizados por normas de conflitos são
abstractamente constantes (os que se referem ao conteúdo das situações jurídicas
pessoais e reais). Mas eles podem ser concretamente modificados por um facto
posterior ao nascimento da situação jurídica em causa ― e esta modificação dos
elementos de conexão conduz à competência sucessiva de diferentes leis estaduais para
regular o conteúdo da mesma situação jurídica (é esta combinação dos factores
«tempo» e «espaço» que provoca os conflitos a que se chama «conflito móvel»).
Sempre que a coligação da norma de conflitos se faz através de uma
conexão mutável, importa concretizar o momento temporal em que essa conexão deve
ocorrer a fim de que o respectivo preceito adquira suficiente precisão.
É principalmente o pensamento jurídico de ZITELLMANN que vamos
encontrar na doutrina ainda hoje dominante.
ZITELMANN resolve a questão de saber qual o problema que, perante
uma situação concreta, deve ser solucionado em primeiro lugar ― se o de DIP., se o de
direito transitório ― pela precedência do primeiro. Resolvida a questão da
aplicabilidade, no espaço, das regras de conflitos, importa, então, resolver o da
aplicabilidade no tempo das mesmas regras quando estas tenham sofrido alterações. A
aplicação retroactiva da norma de DIP. implicaria a violação dos direitos adquiridos, tal
como implicaria uma aplicação retroactiva do direito material.
Outra opinião, contudo, sustentou KAHN. Entende este autor que
ZITELMANN ignorou que há uma diferença fundamental entre a questão transitória e
a questão de DIP. transitório.
Essa diferença reside em que, na primeira, apenas se considera o factor
tempo, ao passo que, na segunda, se tem que considerar também o factor espaço. Não
faria sentido aplicar as antigas regras de conflitos se estas, hoje revogadas, nunca
tiveram qualquer conexão com a relação jurídica a julgar.
«Com a alteração da regra de conflitos, não temos uma
alteração no círculo de leis «eficazes, mas apenas uma alteração do
critério de escolha de uma dessas leis». A regra de conflitos do DIP. apenas
se limita a intervir dentro do âmbito demarcado pelo princípio fundamental do DIP.,
segundo o qual a quaisquer factos só podem ser aplicadas as leis que com ele estejam
em contacto (princípio da não transactividade). Aquela regra opera como
norma ou critério de resolução de conflitos de normas e a sua esfera de aplicabilidade
no espaço e no tempo é limitada.
122 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Parte Geral —

Assim, os contactos entre as leis materiais e as situações a regular são


sempre respeitados, tanto pela regra de conflitos antiga, como pela nova.
Contudo, a regra de conflitos pode também operar como «regula
agendi» dentro da esfera de eficácia do ordenamento jurídico a que pertence
principalmente quando se trate de garantir a validade da constituição de uma situação
jurídica.
Sendo este o caso, «é de aplicar a nova regra de conflitos
mesmo à relações anteriormente constituídas num país estrangeiro e
que nunca tiveram qualquer espécie de conexão apreciável com o
direito do Estado local» («lex fori»). Se, pelo contrário, está em causa uma
situação jurídica anteriormente constituída, tendo esta constituição tido lugar no Estado
do foro ou tendo ocorrido num momento em que existia entre este Estado e aquela
situação uma conexão relevante, não pode deixar de se aplicar a regra de conflitos
antiga sob pena de retroactividade.

3.1.2.2) Sucessão de leis no ordenamento jurídico aplicável:

Falaremos agora do conflito transitório do direito estrangeiro aplicável.


Para a resolução de tal questão, seria abstractamente possível admitir a opção pelo
direito intertemporal do foro. Mas esta solução não estaria em consonância com o
sentido da atribuição de competência a um direito estrangeiro para a regulamentação de
uma situação plurilocalizada. Perante uma hipótese de sucessão de normas (materiais)
aplicáveis, deve caber à «lex causae» a tarefa de indicar os princípios com base nos
quais se optará por um ou por outro dos regimes sucessivamente vigentes. Só assim se
conseguirá a aplicação do direito estrangeiro nas mesmas condições em que ele seria
aplicado pelo julgador da «lex causae», o que contribuirá para a harmonia jurídica
internacional.
A esta doutrina há, contudo, que fazer duas ressalvas:
1) a primeira ressalva diz respeito aos casos em que o
direito transitório da «lex causae» acolhe uma solução
contraditória com o sentido da atribuição de competência ao direito
estrangeiro, apurado através de judiciosa interpretação da regra de
conflitos pertinente e do contexto do sistema geral de conflitos do
foro;
2) em segundo lugar, não se aplicará o direito
intertemporal estrangeiro quando conduza a resultados incompatíveis
com a ordem pública internacional do Estado do foro.

Considerações análogas devem tecer-se a propósito do conflito


transitório de regras de conflitos estrangeiras que devem ser tidas em consideração por
força do DIP. do foro.

3.1.2.3) O conflito móvel:

É o problema suscitado pela mudança na concretização do factor de


conexão e consiste em determinar qual a influência que poderão exercer em situações
jurídicas já existentes as mutações verificadas nas circunstâncias de facto ou de direito
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 123

em que se funda a determinação da lei aplicável. Ou seja: perante concretizações


sucessivas do factor de conexão, a qual delas deveremos atender para regular uma
situação jurídica constituída em momento anterior à última dessas concretizações.
Segundo a doutrina que se nos afigura a mais correcta, quando o
legislador não o soluciona directamente (cfr. o artigo 29º do Cód. Civ.), este problema
deve resolver-se em face de cada norma de conflitos singular, tendo em conta as razões
que estão na base da escolha do elemento de conexão que ela indica. Não é possível
obter uma solução satisfatória através do recurso a uma fórmula geral.
O conflito móvel é, conceitualmente, um conflito de leis no espaço e não
um conflito de leis no tempo. Não se trata de um fenómeno de sucessões de leis no
interior de certo ordenamento jurídico estadual, mas da «movimentação» de uma
relação jurídica através de espaços em que imperam diferentes soberanias e diferentes
sistemas de DIP. A opção a tomar é entre duas leis, ambas vigentes em Estados
diferentes.
Enquanto o problema do DIP. é um problema de dinâmica das relações
jurídicas, o problema do direito transitório ou intertemporal é um problema de dinâmica
de leis.
Eis porque nos aparece justificada a ideia segundo a qual à escolha de
uma das concretizações do factor de conexão só se pode chegar por via de interpretação
da norma de DIP. em causa. A lei aplicável tem de ser determinada tanto no espaço
como no tempo. Se o legislador não curou disso, será ao intérprete que caberá executar
a tarefa «norma por norma».
O conflito móvel supõe uma conexão móvel. Segundo a classificação de
H. LEWAL, as conexões relevantes são:
→ constantes (v.g.: imóveis);
→ variáveis (v.g.: nacionalidade; domicílio ou residência;
localização de uma coisa móvel...).

3.1.2.3.1) Solução do conflito móvel no âmbito do


estatuto pessoal:

Excepção feita às relações entre os cônjuges respeitantes a convenções


antenupciais e regime de bens, deve entender-se que a actual lei pessoal é aplicável à
constituição de relações novas e, bem assim, à determinação dos efeitos
correspondentes a uma situação já existente na conformidade da lei antiga, mas ainda
não produzidos ao tempo da mudança do estatuto. No entanto, a validade de um acto
celebrado no domínio do antigo estatuto julgar-se-á por aplicação dos respectivos
preceitos jurídico-materiais e não de outros.
Solução diferente estaria em contradição com o fim primordial do DIP.
(promover e assegurar o respeito e a continuidade das situações criadas ao abrigo de
uma lei com a aplicação da qual os interessados podiam contar).

3.1.2.3.2) Solução do conflito móvel no âmbito do


estatuto real:
124 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Parte Geral —

Há que sublinhar que são principalmente os interesses gerais do


comércio jurídico que levam a preferir o «sitos rei» como conexão preponderante em
matéria de direitos sobre coisas móveis corpóreas (cfr. o artigo 40º do Cód. Civ.).
Há que preferir a lei da situação actual da coisa. Mas, sem, por isso,
negligenciar os direitos que sobre ela se constituíram durante a sua permanência em
outro lugar e ao abrigo da legislação desse Estado.
Uma situação diferente lesaria de forma intolerável o que é um princípio
universal do direito (o respeito das situações jurídicas validamente constituídas ao
abrigo da lei que então as regia).

3.1.3) Função das regras de conflitos:

3.1.3.1) As regras de conflitos bilaterais e unilaterais — regras de


conflitos imperfeitamente bilaterais:

A norma paradigmática do modelo tradicional da regra de conflitos é a


norma bilateral: esta indica-nos a lei competente para dirimir qualquer questão jurídica
concreta que seja subsumível à respectiva categoria conflitual, pouco importando que
essa lei seja a do país onde o problema se levanta («lex fori») ou uma lei estrangeira.
Por outras palavras, às regras de conflitos bilaterais cabe determinar tanto a aplicação do
ordenamento material do foro, como a de direitos estrangeiros, e em que termos.
As normas de DIP. designam, em termos gerais, a legislação aplicável às
relações e factos do comércio jurídico internacional em ordem a habilitar os tribunais a
resolver todo e qualquer caso sujeito à sua apreciação, quer seja através de princípios de
direito local, quer através de algum outro sistema legislativo. Assim, o artigo 7º da Lei
de Introdução ao Código Civil Brasileiro (LICC.) dispõe: «a lei do país onde
for domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e fim
da personalidade, nome, capacidade e direitos de família». Seja qual for
a estrutura do caso concreto (pessoa com domicílio no Brasil ou noutro país) o juiz
brasileiro terá sempre um critério para o resolver ― aplica a lei do domicílio, não sendo
esta uma norma que trata de balizar a esfera de competência do direito interno local.
Ao sistema bilateral opõe-se o sistema unilateral: este último propõe-se
apenas a delimitar o domínio de aplicação das leis materiais do ordenamento jurídico
onde vigora ou apenas determinam a aplicação de um ordenamento jurídico
estrangeiro, mas não o do foro (v.g.: as questões jurídicas da categoria X serão
resolvidas pelo direito local, desde que entre a situação a regular e este ordenamento
jurídico haja uma conexão do tipo Y).
Caso intermédio é o das normas imperfeitamente bilaterais. Estas
determinam tanto a aplicação do direito local como a de leis estrangeiras, mas que, no
entanto, não se ocupam senão de certos casos caracterizados pela existência de
determinados elementos que os relacionam com a vida jurídica do Estado do foro (cfr.
o artigo 51º, n.º 1 do Cód. Civ.).

Contudo, por qual sistema optar?

3.1.3.1.1) O sistema da bilateralidade:


José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 125

Existem duas variantes na doutrina que atribui à regra de conflitos uma


dupla função:
→ concepção tradicional: a regra de conflitos refere-se tanto ao ordenamento jurídico
do foro como aos ordenamentos estrangeiros, podendo determinar a aplicabilidade
de normas de qualquer outro ordenamento, conforme o que for designado através do
seu elemento de conexão;
→ segundo outros autores, a regra de conflitos poderia designar como aplicáveis tanto
o ordenamento do foro como qualquer outro ordenamento jurídico estrangeiro, mas,
pelo que diz respeito àquela sua primeira função, ela só interviria determinando a
aplicabilidade da «lex materialis fori» nas hipóteses em que houvesse elementos
alienígenas (e não nos casos puramente internos em que a lei do foro seria aplicável
directamente ou de «per si»).

3.1.3.1.2) O sistema da unilateralidade:

Por vezes, as regras de conflitos unilaterais, onde existam, são


consideradas, na prática, como disposições incompletas, pelo que se torna necessário
colmatar as lacunas do sistema através da sua extensão analógica, isto é, convertendo as
referidas regras em normas bilaterais. Mas, então, a criação de normas de conflitos
unilaterais resultaria, preferentemente, de razões de oportunidade ou de técnica
legislativa, contudo, não é este o verdadeiro sistema da unilateralidade.

3.1.3.1.2.1) A justificação tradicional ― crítica:

Para fundamentar este sistema pode-se partir de pontos de vista


completamente distintos:
a) princípio segundo o qual o legislador interno
não tem poderes senão para delimitar a esfera de competência das
suas próprias leis: trata-se aqui de uma concepção de inspiração
internacionalística, já que entronca directamente na teoria que vê no
chamado conflito de leis um conflito de soberanias e, no DIP., um
sistema de normas tendente a coordenar as diferentes soberanias
estaduais.
Crítica: devemos conceber o DIP. como um conjunto de regras que visam a resolução,
em termos justos, das questões jurídicas decorrentes das relações jurídico-privadas de
carácter internacional e, designadamente, a estabilização dessas mesmas relações
privadas internacionais através do seu reconhecimento em qualquer lugar.

b) Supõe-se que, quando o Estado aplica uma lei


estrangeira, está a exercer a soberania estrangeira e, reciprocamente,
a soberania nacional só pode exercer-se pela aplicação do direito
nacional.
O erro fundamental desta teoria está no facto de a soberania não poder exercer-se senão
mediante o emprego de certos mecanismos de coacção sobre as pessoas ou as coisas. É
evidente que, no território de um Estado, só a soberania nacional pode tornar-se efectiva
126 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Parte Geral —

― ela manifesta-se no poder de fazer cumprir a lei, sendo que a aplicação de uma
norma jurídica não põe em jogo senão a soberania territorial. Daqui resulta que não é
possível deduzir dos limites territoriais da soberania nacional os limites de
aplicabilidade dos vários direitos estrangeiros. Se a aplicação do direito estrangeiro
pusesse, realmente, em causa a soberania estrangeira, concluiríamos que os órgãos de
um qualquer Estado nunca poderiam aplicar senão o direito vigente nesse mesmo
Estado.
O DIP. não pode conceber-se como um conjunto de princípios ou normas
tendentes à resolução de conflitos de soberania.
Para defender o sistema da unilateralidade, podemos enveredar por dois
caminhos:
a) tese unilateralista extroversa: entende-se que a
única função da regra de conflitos é a de chamar, para a
regulamentação dos factos da vida jurídica externa, um determinado
ordenamento jurídico estrangeiro, pelo que, só indirectamente, ela
delimitaria o âmbito de aplicação da lei interna; e
b) tese unilateralista introversa (QUADRI): o
unilateralismo pode ser defendido com base noutros argumentos.
Não será ele o sistema mais consentâneo com o principal escopo e
desígnio do DIP.: salvaguardar a estabilidade e continuidade das
situações multinacionais através do seu reconhecimento em todos os
países?
Para QUADRI, a aplicabilidade de uma norma estrangeira
resulta de uma regra do sistema a que ela pertence, ou seja, da
«vontade de aplicação» desse sistema à situação controvertida.
Para que uma lei estrangeira se torne aplicável «in foro
domestico» têm que estar preenchidas duas condições:
→ que a situação «sub judice» não esteja ligada à «lex fori»
através do elemento de conexão que esta lei considera decisivo
no sector em causa; e
→ que entre a situação e a lei estrangeira exista precisamente a
relação que essa lei requer a fim de se reputar competente.

É só através do cumprimento desta dupla condição que o


sistema estrangeiro se torna aplicável «in foro» e, não, aliás, por
direito próprio, senão em virtude de um princípio geral fundamental:
princípio de coordenação com as ordens estrangeiras.

O unilateralismo, uma vez liberto dos preconceitos internacionais e


publicistas, é uma doutrina merecedora da maior atenção. Analisada à luz da vocação e
finalidade essencial do DIP., talvez deva admitir-se que ela leva vantagem à doutrina da
bilateralidade.
O sistema unilateralista desdobra-se em duas proposições:
a) não estando em causa a competência do direito
local, há que aplicar à situação controvertida o direito que se julgar
competente para regê-la;
b) jamais se deve decidir um caso pelas disposições
de uma lei que o não inclua no âmbito de aplicação.
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 127

Contudo, não está demonstrado ainda que o sistema da bilateralidade não


possa ganhar, graças à introdução de certas correcções e ajustamentos, a destreza
necessária para rivalizar neste campo com o sistema oposto. Por outra parte, por
grandes que sejam os méritos do unilateralismo, é extremamente duvidoso que elas
possam compensar os seus aspectos negativos.

Como resolver certos problemas?

Cúmulo jurídico: a solução tradicional é optar por um dos sistemas ou uma das
normas, mas pode perguntar-se: com base em que critérios isso se
faz? Se se fizer com base num critério substancialista, seria
contra-indicado pelo seu casuísmo.
Pareceria melhor solução a de elaborar expressamente para este
tipo de situações normas de conflitos especiais. Tais normas
podem ser de uma ou outra de duas espécies:
a) ou normas que operassem a escolha em função do resultado;
b) ou regras que utilizassem o método tradicional da conexão
espacial.

Contra a primeira das soluções avançadas, seriam de invocar as críticas a


CAVERS e aos seus princípios de preferência.
Pelo que toca à segunda, resta perguntar se não seria mais aconselhável
recorrer às próprias regras unilaterais da «lex fori» que, para tal efeito, seriam
bilateralizadas.
Fosse como fosse, a lógica do sistema ficaria abalada. Por isso mesmo,
QUADRI recusa este caminho. Para este autor, o problema deveria ser resolvido sem
atraiçoar o princípio da efectividade das normas jurídicas e do respeito das justas
expectativas dos interessados.

Vácuo jurídico: a teoria unilateralista defronta-se com graves dificuldades. O recurso


sistemático à «lex fori» não constituiria solução recomendável.
Anotando o facto de QUADRI não nos propor aqui qualquer critério
claro e firme, DE NOVA sugere, no espírito da teoria desse autor,
que, uma vez verificada a ausência de toda a disposição relativa ao
nosso problema, se poderia tentar sair do impasse através da criação
de uma regra especial, tanto quanto possível, conforme ao sentido
daquele sistema jurídico que tenha com o caso vertente a conexão
mais estreita. Porém, uma tal solução afectaria gravemente a certeza
do direito.

A solução de DE NOVA é um expediente destinado a encobrir a


realidade inegável da violação deste princípio.
Encarando agora a questão no seu conjunto, pensamos que, sob o ponto
de vista da certeza do direito, a doutrina da bilateralidade suplanta a da unilateralidade.
Razão tem BATIFFOL quando observa que os partidários da doutrina da
unilateralidade, quando surge um conflito, renunciam a encontrar uma solução de
direito e remetem para o juiz a decisão em sede de matéria de facto.
Só que, reconhecido isto, importa acrescentar que o sistema bilateralista,
na sua forma pura, não é, concerteza, aceitável: há necessidade de lhe introduzir
128 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Parte Geral —

algumas correcções. A nosso ver, não é propriamente o bilateralismo, senão apenas a


sua concepção tradicional, que, de todo, não corresponde aos visos do DIP.

3.1.3.2) A doutrina da auto-limitação espacial da regra de conflitos


(FRANCESCAKIS):

Para resolver o problema do conflito de sistemas de DIP.,


FRANCESCAKIS entende que deveria aceitar-se a ideia de que o domínio de
aplicação das regras de conexão de um sistema jurídico não é ilimitado. Deveria
admitir-se a existência de duas categorias de relações multinacionais:
a) aquelas que não tendo, embora, com o nosso
sistema, o contacto elevado por este sistema ao papel de elemento de
conexão, todavia apresentam, com ele, outros contactos.
Aqui, a «lex fori» seria admitida a fazer valer o seu próprio ponto de
vista, podendo, pois, submetê-las à lei designada pela sua norma de conflitos (bilateral).

b) Situações definitivamente constituídas em país


estrangeiro e num momento em que se encontravam totalmente
desligadas da ordem jurídica do foro. Estas situações estariam fora
da alçada de nossas regras de conflitos.

Abordando o problema da lei aplicável às situações absolutamente


internacionais, o autor conclui que essa lei é a que tiver sido efectivamente aplicada,
sem que deva submeter-se a sua competência a um controle prévio. Somos, assim,
reconduzidos a um princípio fundamental do unilateralismo: aplicável em determinado
caso é a lei que queira aplicar-se a este caso e lhe tenha sido efectivamente aplicada.
Não nos parece que esta orientação seja de seguir.

3.1.3.2.1) Críticas à teoria de FRANCESCAKIS:

a) Segundo o autor em causa, o que justifica a aplicabilidade do


sistema de conflitos do foro «é o interesse da ordem jurídica francesa
em vigiar estreitamente as situações que têm com o sistema
francês, não aquele contacto que constitui para este sistema o
elemento de conexão relevante, mas outros contactos».
QUADRI, por sua vez, defende que a solução mais lógica seria a
solução proposta pela doutrina unilateralista: as regras francesas limitar-se-iam a
balizar o campo de aplicação da lei interna francesa.

b) As regras de conflitos não têm como principal escopo outro


que não seja o de resolver um conflito de leis: elimina uma situação de
concorrência ou de concurso entre preceitos materiais procedentes de ordenamentos
jurídicos distintos.
c) É errado pensar que o sistema jurídico nacional não tem
interesse em ver aplicadas as suas normas de DIP. a situações que não tenham com
ela qualquer conexão ou uma conexão estreita. Isto só seria verdade se se aceitasse
que o legislador é dominado pelo propósito de dar satisfação a interesses e a
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 129

necessidades da sua comunidade nacional. Seria, pois, para o sistema da


unilateralidade integral que FRANCESCAKIS nos levaria.
Se, por seu turno, o legislador se orienta para a criação de normas
bilaterais, cumpre atender a outras considerações: importa agora aceitar como a melhor
via para atingir os objectivos que decorrem da própria essência do DIP.

d) Até aqui discutimos a questão de saber se na natureza e


função das regras de conflitos bilaterais haverá qualquer coisa que se oponha a que
elas intervenham sempre que um verdadeiro conflito de leis se apresente, inclusive
na hipótese de falta total de contacto entre a situação a regular e a «lex fori».
Agora consideraremos outro ponto: seria justo e razoável reconhecer toda a
situação validamente criada no estrangeiro só pelo facto de
se ter constituído ao abrigo de uma lei que se reputa
competente?
Nós entendemos que há que colocar reservas a este ponto de vista. É
bem possível que a conexão existente entre a situação a reconhecer e a lei estrangeira se
mostre claramente insuficiente para justificar a competência da referida lei.

3.1.3.2.2) Posição adoptada:

Como entendemos a regra de conflitos como uma norma destinada a


dirimir concursos entre leis potencialmente aplicáveis, devemos aderir à segunda
variante da doutrina bilateralista: a norma de DIP. só intervém quando existe
possibilidade de escolha entre vários ordenamentos jurídicos (quer entre vários
ordenamentos jurídicos estrangeiros, quer entre um ou vários ordenamentos jurídicos
estrangeiros e o nosso). A regra de conflitos não tem que intervir, quer nos casos
puramente internos em relação ao Estado do foro, quer nos casos puramente internos
relativamente a um Estado estrangeiro (casos relativamente internacionais). Em
qualquer dos casos a lei competente é directamente determinada pela regra de conflitos.
A regra de conflitos nada mais faz do que dirimir o concurso entre as leis designadas
como potencialmente aplicáveis.
Assim, é fácil responder às objecções que os unilateralistas movem
contra os bilateralistas.
→ A tese bilateralista não implica a usurpação de uma autoridade
supraestadual por parte do legislador estadual das regras de conflitos
do DIP. As regras de conflitos limitam-se a desempenhar a função
de dirimir concursos entre várias leis potencialmente aplicáveis.
→ É verdade que a concepção bilateralista coloca em pé de igualdade o
direito material do foro e os direitos estrangeiros, mas só para
efeitos de resolução de concursos entre aquele e estes, nas hipóteses
em que a situação da vida esteja em contacto com um e outros.
→ Além disso, a tese unilateralista, na sua visão introversa
(QUADRI), ao afirmar que a regra de conflitos é uma norma
unilateral que tem por função exclusiva delimitar o domínio de
130 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Parte Geral —

aplicação das normas materiais do foro, confunde direito material e


direito de conflitos e nega a autonomia das regras de conflitos.
→ Contra a tese unilateralista extroversa (AGO), vale dizer que ela
assenta numa concepção da função da regra de conflitos que,
confundindo esta com uma norma material de remissão «ad aliud
jus», implica igualmente uma negação da autonomia do direito de
conflitos face ao direito material.

3.1.3.3) A doutrina de ROLONDO QUADRI (apreciação dos seus


princípios orientadores) ― crítica:

QUADRI é o autor expoente do unilateralismo introverso.


As regras de conflitos não têm por única função circunscrever ou balizar
o domínio de aplicação do direito material do sistema a que pertence. A aplicação de
uma lei estrangeira não pode resultar jamais de uma norma de DIP. do foro; ela só pode
decorrer de uma norma do próprio sistema jurídico de que se trata, isto é, da «vontade
de aplicação» deste sistema à situação controvertida.
A aplicação «in foro» de uma lei estrangeira depende de duas
condições:
→ que a situação a regular não tenha com a «lex fori» o contacto por
esta lei designado como elemento de conexão;
→ que entre a situação em causa e a lei estrangeira exista, justamente,
a ligação do tipo considerado decisivo pelo DIP. da referida lei.

Verificada esta dupla condição, o direito estrangeiro torna-se aplicável


«in foro» , em virtude de um princípio geral fundamental a que se pode chamar de
princípio da adaptação da ordem do Estado às ordens estrangeiras ou da
coordenação com as ordens estrangeiras.
Se cada Estado é levado a aceitar a coordenação do seu próprio sistema
jurídico com os sistemas dos outros Estados, isso significa que ele deixa-se guiar pelo
propósito de assegurar a unidade e a continuidade da vida jurídica internacional dos
indivíduos ou a harmonia das decisões nesse plano. O fundamento da aplicabilidade da
lei estrangeira só pode encontrar-se na própria «vontade de aplicação» dessa lei.
Daqui resulta o corolário de que o facto estrangeiro, que se supõe ter
provocado a criação, modificação ou extinção de uma relação jurídica, terá «in foro»
exactamente o mesmo valor jurídico e os efeitos que lhe tiverem sido conferidos pela
ordem jurídica sob o império da qual se produziu e cujos preceitos materiais, por assim
dizer, o impregnaram.
Assim sendo, o sistema unilateralista se desdobra em duas proposições:
→ sempre que não esteja em causa a competência do direito local, há
que aplicar à situação controvertida aquele direito estrangeiro que se
julgar competente para a disciplinar;
→ o juiz deve, invariavelmente, abster-se de decidir um caso pelas
disposições de uma lei que não inclua a situação no seu âmbito de
competência.

Contudo, estas condições levantam problemas:


José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 131

1) Conflito positivo (cúmulo jurídico):


vamos optar de acordo com o princípio da efectividade (relações
localizadoras; maior cumprimento do que depois for
determinado);
2) Conflito negativo (vácuo jurídico):
QUADRI não dá solução a estas situações, foram os autores que
vieram depois dele que tentaram interpretar a sua teoria e, assim,
responderam a esta questão.

DE NOVA aplica o princípio da efectividade.


FERRER CORREIA, contudo, critica esta posição, pois entende que,
por esta via, estaremos a bilateralizar as regras de conflitos do foro.

3.1.3.4) Diferenças entre CURRIE e QUADRI:

Por quê é que se diz que CURRIE é um unilateralista selvagem ou «ab


intrinsecum»?

De facto, CURRIE aplica, na maioria dos casos, as regras de conflitos


do foro. Mas, por quê? Qual o mecanismo que despoleta a aplicação da regra de
conflitos do foro?
CURRIE, inicialmente, recusava as regras de conflitos, mas, depois,
veio a admitir a sua aplicação quando os interesses do Estado do foro assim o
determinam. São estes interesses que despoletam a aplicação das regras de conflitos do
foro.
«Ab intrinsecum», pois é das próprias normas materiais que
CURRIE retira a sua vontade de aplicação.

Casos de cúmulo jurídico.

CURRIE aplica a lei do foro porque não vai optar por nenhuma
soberania estrangeira; num segundo momento, admite a criação e aplicação da regra de
conflitos «ad hoc».
QUADRI aplica o princípio da efectividade (princípio de DIP.) que é
muito mais universalista.
Por quê é que é um unilateralista selvagem? Porque não atende à
coordenação das ordens jurídicas e à harmonia jurídica internacional (nacionalista).
QUADRI pretende isto e este é o fundamento da sua doutrina e o
instrumento para a atingir é o princípio da cooperação e da boa-fé entre as ordens
jurídicas. Isto leva-nos a concluir que QUADRI é um universalista.
Porém, ambas violam o princípio da paridade de tratamento.

FRANCESCAKIS, por sua vez, só é unilateralista nas situações a


reconhecer que não têm qualquer contacto com a lei do foro. Em todo o resto é
bilateralista.
132 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Parte Geral —

3.1.4) O problema da qualificação:

É por meio de conceitos técnico-jurídicos que as regras de conflitos


definem e delimitam o respectivo campo de aplicação. Tais conceitos têm a
característica peculiar de serem aptos a incorporar uma multiplicidade de conteúdos
jurídicos; são, pois, conceitos-quadro.
Da natureza destes conceitos nascem delicados problemas. São eles que,
no seu conjunto, constituem a famosíssima «quaestio» da qualificação em DIP.
Os problemas que se levantam são dois:
a) o primeiro é o da interpretação dos conceitos-
quadro ― o do critério geral a utilizar nessa tarefa imperativa.
Tal questão não se colocaria se de meros conceitos descritivos ou de
facto se tratasse, pois, então, tudo se resumiria em descrever as situações factuais
contidas na prescrição normativa e, depois, face ao caso concreto, em subsumí-lo a
categoria apropriada do direito de conflitos. Só que esta realidade é diferente: serão,
concerteza, muito contados os casos em que o legislador de conflitos enveredará por tal
caminho ao elaborar as suas normas.
É, pois, de conceitos constituídos pela técnica jurídica que a norma de
DIP. se utiliza para demarcar o objecto da conexão e, sendo assim, logo se põe a
questão de saber como interpretar tais conceitos.
O problema em análise tem sido resolvido de maneiras diferentes:
1) segundo a perspectiva tradicional (teoria da qualificação da «lex
fori»), a determinação do conteúdo dos aludidos conceitos obtêm-se
recorrendo ao direito material do ordenamento jurídico local. Os
conteúdos subsumíveis ao conceito quadro de dada norma de
conflitos seriam precisamente os que correspondem a esse mesmo
conceito enquanto conceito próprio do sistema de regras materiais da
lei do foro, ou seja, na execução da aludida tarefa interpretativa
deveria proceder-se em termos de uma referência automática aos
conceitos homólogos do sistema de preceitos materiais da «lex
fori». Este ponto de vista, contudo, não pode admitir-se.
2) Outra doutrina (defendida, sobretudo, por RABEL) é a que sustenta
a necessidade de construir e interpretar a norma de conflitos em
função dos vários sistemas jurídicos cuja aplicação ela é susceptível
de desencadear. Na interpretação das regras de conflitos, o recurso
ao direito comparado é, pois, imprescindível. Só pelo método da
comparação jurídica se torna possível aplicar o conteúdo dos
conceitos utilizados pelas normas de DIP.
3) A importância de que se reveste o direito comparado no âmbito do
direito de conflitos é inegável. Na categoria normativa própria de
cada regra de conflitos hão-de poder incluir-se os múltiplos preceitos
e numerosos institutos estrangeiros que, no ordenamento jurídico a
que pertencem, se proponham realizar a função social que o
legislador do foro teve em vista ao aludir a tal categoria, ou em
função substancialmente análoga.

O recurso ao direito comparado, no momento da aplicação das normas de


conflitos e da subsunção aos respectivos conceitos quadro dos conteúdos jurídicos que
se oferecem, constitui, portanto, tarefa indeclinável. Porém, duvidamos que seja
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 133

necessário propugnar a via comparatista no que toca ao momento da definição «in


abstracto» dos referidos conceitos. Todo o conceito-quadro deverá ser tomado nos
mais latos termos, em ordem a poder abranger uma série indeterminada de preceitos e
de institutos jurídico-materiais.
Agora chegamos ao ponto essencial da questão que é a descoberta da
razão ou fundamento da norma de conflitos.
A interpretação de toda a regra de conflitos só pode ser uma
interpretação teleológica segundo a «lex formalis fori».
Se o DIP. tem a sua intencionalidade e a sua «justiça» própria, então
por aqui se deixa ver que a interpretação dos seus preceitos e dos respectivos conceitos-
quadro tem de ser conduzida com certa autonomia. Pertencendo a norma de conflitos à
«lex fori», a esta lei não podemos nós entender aqui a «lex materialis», senão a
«lex formalis», o DIP. dessa lei. Um mesmo conceito pode assumir conteúdos
diversos consoante o contexto normativo em que figura. Uma teoria da qualificação
que propugne aquela ideia de referência automática logo a um primeiro exame se revela
gravemente desajustada ao espírito do DIP.

Conclusão primordial: um conceito-quadro abrange todos os institutos ou conteúdos


jurídicos, quer de direito nacional ou estrangeiro, aos quais convenha,
segundo a «ratio legis», o tipo de conexão adoptado pela regra de
conflitos que utiliza o mesmo conceito. Esta conclusão reveste-se de
fundamental importância para a resolução do problema da delimitação do
âmbito das normas de conflitos, umas em face das outras.

O problema da qualificação assume a sua verdadeira importância no


momento da aplicação da norma: naquele em que se trata de averiguar se dado instituto
ou preceito do ordenamento jurídico designado por uma regra de conflitos da «lex
fori» pode subsumir-se à categoria normativa visada pela regra de conflitos. A
qualificação cabe à «lex fori».
Quanto ao material normativo a ordenar, esse pertence ao sistema
jurídico em que se enquadra.
Nenhuma norma... nenhuma instituição jurídica... poderá ser
correctamente entendida se não a situarmos no seu contexto próprio, se a isolarmos do
todo orgânico a que pertence. Nesta ideia inspira-se o preceito do artigo 15º do Cód.
Civ.

Síntese: se à «lex fori» compete decidir se os preceitos considerados correspondem,


na verdade, atentas às suas características primordiais, ao tipo visado na regra
de conflitos; é no quadro da «lex causae» que vão pesquisar-se essas
características.

3.1.4.1) O problema do objecto da qualificação ou da qualificação


propriamente dita:

Vendo o assunto de outra perspectiva, diremos que o problema central da


qualificação reside na definição do seu objecto; o «quid» a subsumir ao conceito-
quadro. Por seu turno, o problema do objecto da qualificação não é senão o do objecto
da própria norma de conflitos.
134 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Parte Geral —

A regra de conflitos destina-se a coordenar os diversos sistemas jurídicos


conexos com a situação da vida a regular em ordem a evitar que leis diferentes sejam
chamadas a decidir a mesma questão de direito. A norma de conflitos do DIP. tem
como objectivo prevenir ou eliminar conflitos entre preceitos materiais oriundos de
ordenamentos jurídicos distintos. Ela individualiza um instituto ou matéria jurídica,
recorta uma questão ou núcleo de questões de direito, e a religa à lei designada por certo
elemento de conexão.
Sendo essa a função do conceito-quadro, logo se conclui que é a outros
preceitos jurídicos que a norma se refere em última análise. São eles que darão resposta
ao tipo de questões jurídicas visadas pela regra de conflitos em causa.
Da lei designada pela norma de conflitos só podem considerar-se
aplicáveis os preceitos correspondentes à categoria definida e delimitada pelo respectivo
conceito-quadro, ou seja: uma lei nunca é convocada na sua totalidade... na totalidade
das suas regras materiais, mas a regra de conflitos da «lex fori» recorta, no sistema a
que se refere, um sector determinado e localiza nele a competência atribuída a esse
mesmo sistema. A regra de conflitos incumbe, à determinada lei, a execução de
determinada tarefa normativa, isto é, confia-lhe a resolução de questões de direito de
certo tipo.
O problema central da qualificação consiste em averiguar quais sejam,
de entre os preceitos materiais do ordenamento jurídico designado por certa regra de
conflitos, os correspondentes à categoria definida pelo conceito-quadro dessa norma.
Nesta averiguação é que reside a qualificação «proprio sensu»: a
qualificação como problema de subsunção de um caso concreto a um conceito ou a
uma categoria abstracta da lei.
Temos de atender ao conteúdo e à função dos preceitos em causa,
situando-os, para tanto, na moldura do respectivo ordenamento jurídico.
Em suma, a qualificação visa determinar que normas jurídicas
materiais do ordenamento jurídico competente se subsumem ao
conceito-quadro. Temos de interpretá-las de acordo com a função e fundamento
que têm no ordenamento jurídico em que se inscrevem. O chamamento é funcional e
circunscrito, pois só as normas que se integram no conceito-quadro é que vão ser
chamadas.

Em suma: a qualificação trata do problema da aplicação das regras de conflitos.


Como é que vamos fazer funcionar a regra de conflitos?
Esta é uma questão que, em DIP., assume contornos específicos:
1) O conceito-quadro da regra de conflitos não descreve situações
de facto, mas sim, questões jurídicas ― é um conceito técnico-
jurídico (que difere do conceito de normas materiais);
2) O que é que a ela se vai subsumir? Normas jurídicas materiais
do ordenamento jurídico considerado competente.

Concluindo: se à «lex fori» compete decidir se os preceitos considerados


correspondem efectivamente, atentas à suas características principais,
ao tipo visado na regra de conflitos; é no quadro da «lex causae»
que vão colher-se essas características. E assim se logra superar a
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 135

tradicional antinomia entre qualificação «lege fori» e qualificação


«lege causae».

3.1.4.2) Doutrina seguida em Portugal:

O ponto de partida reside na ideia de que a qualificação em DIP. tem por


objecto preceitos jurídico-materiais. A ela acresce a ideia de WENGLER de que só a
qualificação das regras jurídicas nos levará a ter em conta o facto de que existem, em
cada legislação civil, nexos teleológicos entre as diversas normas estabelecidas por um
legislador. E estas são as razões básicas em que o nosso legislador se inspirou.
A qualificação tem por objecto preceitos jurídico-materiais. O problema
da qualificação «proprio sensu» consiste em averiguar se tal norma ou complexo de
normas de uma hipotética «lex causae», atentas as características que reveste nessa
lei, entra na categoria de conexão de uma regra de conflitos da «lex fori»: é
precisamente da regra de conflitos que derivará, em caso de resposta afirmativa à
questão formulada, a aplicabilidade daquele sistema.
O artigo 15º do Cód. Civ. diz que perante um sistema de direito e uma
norma desse sistema vai começar-se por considerar aquele sistema como
hipoteticamente aplicável ao caso vertente. O passo seguinte consiste em apreciar se a
norma, considerados o seu conteúdo e escopo, corresponde realmente à categoria de
conexão de uma determinada regra de conflitos da «lex fori» (de que se partiu para
julgar hipoteticamente aplicável o sistema de direito em questão). Se sim, declara-se tal
disposição aplicável à situação jurídica concreta, se não, terá de se concluir pela
inaplicabilidade do respectivo sistema de direito.
O nosso legislador afastou-se da teoria que preconiza o recurso ao ponto
de vista do direito material da «lex fori» para resolver o problema da qualificação.
Repudia o processo clássico, segundo o qual, para chegar-se à determinação da regra de
conflitos aplicável, há que começar por submeter a situação jurídica concreta às
disposições do direito interno do foro a que caberia solucionar a questão «sub
judice».

3.1.4.2.1) Críticas a tal procedimento:

a) Não se julgou necessário, pois toda a situação da


vida internacional contém, em si mesma, os seus pontos de contacto,
as suas conexões, e traça, por si mesma, o círculo de leis
interessadas. E isso basta para tornar desnecessária a famosa
qualificação primária ou de 1º (primeiro) grau (AGO,
ROBETSON).
b) Por outro lado, o nosso método é o único
conforme ao princípio da igualdade. Este princípio postula que as
condições que decidem da aplicabilidade «in casu» da lei
estrangeira sejam as mesmas que determinariam a aplicação da «lex
fori»: é mister que uma legislação estrangeira seja declarada
aplicável à situação concreta desde que possa dizer-se que, em
circunstâncias análogas de facto e de direito, a «lex fori» se julgaria
competente. Ora, a aplicação desta lei não depende senão da
136 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Parte Geral —

existência de uma relação de correspondência entre as normas por


mediação das quais ela se propõe resolver a questão litigiosa e o
«tipo normativo» da regra de conflitos que a designa.
Este é o único caminho que permitirá alcançar a harmonia
jurídica entre as legislações consideradas.

3.1.4.3) As fraquezas do art. 15º do CC. do ponto de vista da doutrina


dominante ― refutação:

O método anteriormente descrito foi o que o legislador português optou.


A seu favor podem aduzir-se os seguintes argumentos: a denominada qualificação
primária ou de 1º (primeiro) grau é uma «démarche» inútil, contrária a esse espírito
de rasgada abertura que deve continuar a ser a pedra de toque de todo o sistema de DIP.

3.1.4.4) A doutrina dominante ou teoria da dupla qualificação


(ROBERTSON):

Para este autor, no processo de qualificação temos que distinguir 2


(duas) operações:
Primeira: incide sobre a situação de facto que dá origem à questão ou controvérsia
jurídica. O problema que aí se levanta é o da subsunção da factualidade
«sub judice» a uma categoria abstracta da lei, em regra, à determinação
do ordenamento jurídico competente. Em regra, é da própria «lex fori»
que depende a solução deste problema.
Segunda: é uma qualificação de normas. A qualificação primária tornou possível a
individualização da lei ou das leis aplicáveis aos diversos aspectos da
situação litigiosa. Trata-se agora de averiguar se uma norma particular ou
complexo de normas de um sistema ou de um dos sistemas designados
como competentes pertence ou não à ordem de questões que a regra de
conflitos do foro deferiu a esse mesmo sistema. Esta definição compete ao
próprio sistema jurídico de que faz parte o preceito ou grupo de preceitos
em causa.

Esta teoria não difere assim tanto da nossa no que diz respeito à
qualificação secundária. O grande ponto de divergência é a questão da qualificação
primária.
ROBERTSON observa que o nosso problema surge, por vezes, como
incidente no processo de actuação da norma de conflitos já determinada como aplicável
em momento anterior; em tal hipótese, a única questão susceptível de pôr-se é uma
questão de qualificação secundária. Simplesmente, o conhecimento de qual seja a
regra de conflitos aplicável ao caso supõe que se tenha previamente «qualificado» a
situação factual que se apresenta ao juiz, isto é, que se tenha previamente operado a sua
subsunção a uma das categorias do direito conflitual do foro. É nesta operação que
consiste a qualificação primária. Qualificados os actos, está definida a norma de
conflitos aplicável e fixada em definitivo a competência da lei. A qualificação primária
seria, assim, um passo obrigatório e decisivo para a determinação de regra de conflitos
apropriada ao caso e da legislação competente.
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 137

O certo, contudo, é que este entendimento das coisas está longe de ser
forçoso.

3.1.4.5) ROBERTO AGO, ANZILOTTI, FEDOZZI:

Para ROBERTO AGO há também que desdobrar a questão da


qualificação em dois problemas:
Primeiro: é um problema a resolver no âmbito da «lex fori»; consiste em averiguar
quais as relações da vida que a regra de conflitos pretende designar através
de uma determinada qualificação jurídica. A resposta é que essas relações
são precisamente aquelas que, se não fosse a circunstância de se
apresentarem como estranhas à vida jurídica local, encontrariam a sua
disciplina nas normas substanciais do ordenamento jurídico do foro que
atribuem a referida qualificação às hipóteses que contemplam.
Segundo: resolvido este ponto, está determinada a regra de conflitos aplicável ao caso
e encontrada a lei competente. Resta averiguar que regulamentação deriva
dessa lei para a relação concreta. Para tanto, há que qualificar novamente
esta relação; e, como o problema que se levanta agora é relativo à
interpretação e aplicação de normas do sistema jurídico estrangeiro indicado
como aplicável pelo DIP. do foro, nenhuma dúvida há de que é à luz deste
sistema que cumpre resolvê-lo.
Assim, podemos concluir que tanto ROBERTSON como AGO seguem
a doutrina tradicional da qualificação, segundo a qual nela se distinguem dois
momentos:
1) qualificação primária ou de competência; e
2) qualificação secundária ou material.

O que dizer desta teoria da dupla qualificação?

1) Em primeiro lugar, a teoria de AGO difere da de ROBERTSON na


medida em que a segunda qualificação, ao invés da segunda
qualificação de ROBERTSON (que vai chamar só as normas que
tenham uma natureza jurídica idêntica à da situação em causa ―
natureza familiar ― v.g.: não havendo nenhuma norma daquela
natureza vai chamar, supletivamente, outra), não tem por função
localizar a competência atribuída a uma lei em determinado capítulo
ou sector do sistema, mas vai, tão somente, dirigida à pesquisa de
normas que, na lei designada, regulam os tipos de situações em que
se enquadre a situação concreta, ou seja, dentro do único
ordenamento jurídico competente, vai chamar todo o tipo de normas
para regular aquela situação (chamamento
indiscricionado).
Trata-se, assim, de uma doutrina que se desinteressa da
«natureza» que os preceitos estrangeiros aplicáveis assumem no
sistema legislativo a que pertencem.

2) Questão da qualificação da competência.


138 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Parte Geral —

a) Para AGO, este problema consiste em averiguar a que situações


da vida quer a regra de conflitos referir-se mediante o emprego de
determinada noção jurídica ― a questão resolve-se recorrendo a
normas substanciais da «lex fori» que utilizam o mesmo
conceito para delimitar a esfera de relações que pretendem
disciplinar.
Esta posição articula-se com a concepção geral do DIP.
AGO entende as regras de conflitos como exclusivamente
destinadas a definir e balizar o campo de aplicação dos sistemas
jurídicos estrangeiros. O DIP. seria uma disciplina jurídica
especial instituída para aquelas relações que, por serem estranhas
à vida interna do Estado, não seria adequado submeter ao
ordenamento jurídico local.
Para nós, o DIP, é o conjunto de critérios normativos
através dos quais se há-de apurar, em qualquer hipótese de
conflitos ou concurso de leis, qual deverá ser aplicada.
É justo que o DIP. coloque os diferentes sistemas jurídicos
em pé de igualdade, ou seja, que a legislação estrangeira seja
considerada competente sempre que, se ela fosse a «lex fori» e
as mesma as circunstâncias ocorrentes, a «lex fori» se
apresentasse como aplicável.
Contudo, tal solução só resultará possível se se renunciar à
ideia que há que proceder inicialmente a uma qualificação da
situação factual concreta, recorrendo, para tanto, ao sistema de
regras materiais do ordenamento jurídico do foro.
b) A doutrina a que aderimos assegura, de imediato, a aplicação ao
caso concreto de todos os preceitos da lei declarada competente
que se relacionem, de modo essencial, pelo conteúdo, fins e
conexões sistemáticas, com a matéria ou questão de direito em
causa. Ou seja, a referência da norma de DIP. a uma lei não
abrange a totalidade das suas disposições, mas vai apenas dirigida
às que possam subsumir-se na categoria normativa da regra de
conflitos.
c) Só a posição adoptada pela doutrina portuguesa e o Código Civil
toma na devida conta o princípio da paridade de tratamento,
pois só ela se mantém fiel à ideia de que os factores
determinantes da aplicabilidade das leis estrangeiras deverão ser
os mesmos que decidem da aplicação das nossas próprias leis.
Toda a qualificação «lege fori», pois que privilegia esta lei,
obrigando a subsumir ao seu sistema de regras materiais a
questão de direito em causa à fim de chegar à identificação da
regra de conflitos aplicável, lesa manifestamente o princípio da
igualdade de tratamento.

3.1.4.6) Os problemas (+/-) de qualificação:

O nosso Código Civil não propõe aqui qualquer directiva. Por nós,
pensamos que a solução dos mencionados problemas deve, normalmente, buscar-se no
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 139

plano do próprio DIP. Para tanto, tentar-se-á definir uma relação de hierarquia entre as
qualificações conflituantes. E o critério norteador dessa hierarquização será,
fundamentalmente, o dos fins a que as várias normas de conflitos vão apontadas.
Mas, se o critério geral é este, por vezes, a questão só poderá ser
correctamente resolvida se nos colocarmos numa perspectiva diferente, uma perspectiva
jurídico material. Haverá, então, que ter em conta as soluções oferecidas pelas próprias
leis em presença, já para entre elas optar, já para as harmonizar entre si (adaptação), em
termos de se tornar possível a sua aplicação combinada, já para aplicar uma única dentre
elas, mas depois de convenientemente ajustada à nova situação que se apresenta.
O facto de a doutrina propugnada sobre a qualificação poder engendrar
dificuldades do tipo das referidas, não há razão para condená-la. Só uma posição de
rígida sujeição à «lex fori», como a defendida por AGO, poderia eliminar estes
problemas, porém, esta tese é absolutamente inaceitável. Por outro lado, é certo que a
produção de situações destas está longe de ser uma consequência exclusiva do método
de qualificação adoptado.

3.1.4.7) A questão do conflito de qualificações:

3.1.4.7.1) Conflitos positivos de qualificação:

3.1.4.7.1.1) Conflito entre a «qualificação forma» e a


«qualificação substância»:

Este tipo de conflitos resolve-se sem dificuldade de maior e, justamente,


pela atribuição de primazia à «qualificação substância» e à norma de conflitos
relativa aos requisitos de fundo do acto jurídico.
3.1.4.7.1.2) Conflito entre a «qualificação real» e a
«qualificação pessoal»:

Aqui, a qualificação pessoal terá que ceder. Mas por quê?


A qualificação pessoal terá que ceder perante a qualificação real, pois a
ligação da coisa ao Estado territorial é muito mais forte do que a do indivíduo ao Estado
nacional: este não tem nenhum poder efectivo sobre coisas situadas em território
estrangeiro, e a efectividade de tais decisões dos seus tribunais em relação a tais coisas
depende da cooperação que lhes queiram prezar as autoridades do Estado territorial.
140 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Parte Geral —

E, deste modo, teremos o aproveitamento do chamado princípio da


maior proximidade para resolver uma das formas mais típicas do conflito de
qualificações. Por ele se resolverão, em muitos casos, as dificuldades suscitadas pela
diferente caracterização do direito do Estado a assenhorar-se, em certos termos, das
heranças abertas por óbito de particulares.

3.1.4.7.1.3) Conflito entre a qualificação «regime


matrimonial» e «sucessório»:

Neste tipo de caso não há, em regra, uma relação de contradição ou de


mútua exclusão entre dois preceitos materiais ou duas séries de preceitos materiais
procedentes de ordenamentos jurídicos diferentes; e as dificuldades que se apresentam
resolver-se-ão considerando que os 2 (dois) estatutos são de aplicação sucessiva:
aplica-se primeiro o estatuto matrimonial e, depois, o estatuto sucessório do supérstite.
À lei da sucessão só pertencerá a devolução dos bens que constituam a herança.

3.1.4.7.2) Conflitos negativos:

Aqui, só se levanta um verdadeiro problema quando exista uma autêntica


lacuna de regulamentação segundo o ponto de vista da «lex fori», isto é, quando a não
aplicação das duas leis, em princípio, aplicáveis, produza um resultado insatisfatório.
Outro ponto é que, muitas vezes, o conflito é, tão só, aparente, pois aos
preceitos em causa de uma das leis interessadas pode vir a caber a qualificação
correspondente àquela que põe em movimento a norma de DIP. que designa esta lei
como aplicável.

3.1.4.8) Passos lógicos do processo de qualificação:

Que questões são englobadas pelo processo de qualificação?

O processo de qualificação engloba a questão da interpretação do


conceito-quadro ; seu objecto é a determinação do âmbito do conceito-quadro.

Como vai ser esta interpretação?

De acordo com a «lex formalis foris» (lei formal do foro); vamos


interpretar esse conceito-quadro teleologicamente, de acordo com os princípios que
orientam o sistema conflitual do foro; de acordo com o fim e sentido das normas
conflituais do foro. Vai ser também uma interpretação autónoma das normas materiais
do foro.

E isto para quê?


José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 141

Para evitar situações claudicantes (v.g.: a adopção não era admitida


entre nós; se interpretássemos o conceito-quadro de acordo com as nossas normas
materiais, víamos que nós, nem mesmo conhecíamos este instituto).
Mas, na interpretação do conceito-quadro temos que abranger também os
outros ordenamentos jurídicos.
No artigo 15º do Cód. Civ. não há qualquer referência a esta matéria,
pois pressupõe que este é um passo lógico.

Resolução de um caso de qualificação:

1º passo: Tratando-se de um caso de qualificação, o primeiro passo a tomar é definir a


qualificação;
2º passo: o passo inicial da resolução do caso propriamente dito está na aplicação do
princípio da não transactividade para, assim, recortar o âmbito das leis
potencialmente aplicáveis ao caso «sub judice». Este passo é muito
importante para se provar a desnecessidade da qualificação primária da
doutrina tradicional defendida por ROBERT AGO e por ROBERTSON e
destinada a determinação do ordenamento jurídico definitivamente
competente. Por outro lado, a aplicação do princípio da não transactividade
mostra que a regra de conflitos não deve ser considerada como um «prius»
metodológico, pois, por esta via, se prova que o DIP. não se resume a uma
mera soma de regras de conflitos;
3º passo: mobilização das regras de conflitos em causa ― ver quais as questões que
regulam e quais as leis que chamam (devemos apreciar a estrutura da regra de
conflitos, ou seja, devemos averiguar se se trata de uma regra de conflitos de
conexão simples, de conexão múltipla subsidiária, alternativa, cumulativa).
Este exercício corresponde à interpretação do conceito-quadro das regras de
conflitos, interpretação esta que deve ser feita de acordo com a «lex
formalis fori» ― interpretação autónoma e teleológica. Trata-se de um
passo imprescindível para a resolução da questão da qualificação no seu todo,
muito embora, não esteja mencionada no artigo 15º do Código Civil;
4º passo: falar sobre a interpretação da «lex materialis fori»;
5º passo: segundo momento ― objecto da qualificação (cfr. o artigo 15º do Código
Civil), ou seja, devemos dizer em que consiste este momento. Assim: qual é
a natureza da norma material em causa?

Nota: ver se há duas questões diferentes dentro do mesmo caso para,


assim, as tratá-las em separado.

6º passo: subsumir as normas ao conceito-quadro de uma das regras de conflitos,


dando a conclusão ao caso.
Nota: se a lei é declarada aplicável a título de estatuto real, não fará
sentido admitir a inclusão, no âmbito da competência dessa lei,
de preceitos situados fora dessa categoria. O chamamento que a
regra de conflitos faz é sempre circunscrito e funcional, ou seja,
não chama todas as normas.

7º passo: ver se, no caso de não se aplicar a nossa lei, se há algum mecanismo que
possa, no entanto, levar à sua aplicação (v.g.: normas de aplicação
142 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
— Parte Geral —

necessária e imediata ― NANI ―; cláusula de excepção de ordem pública


internacional).
4) Casos práticos:
Caso 1
A, português, residente na Irlanda, morreu em Lisboa solteiro. B,
irlandesa, invocando a circunstância de viver há mais de 2 (dois) anos com A,
inicialmente em Portugal e, depois, na Irlanda, como se fossem casados, invoca o
disposto no art. 2020º do CC. «Quid iuris» sabendo que o direito irlandês não
reconhece quaisquer direitos à união de facto. Mobilize as seguintes regras de conflitos:
arts. 52º, 53º, e 72º do CC.

Resposta:

Estamos aqui perante uma questão de aplicação / realização da regra de


conflitos. O passo inicial nesta matéria está na utilização do princípio da não
transactividade (o que demonstra que o DIP. não é um mero somatório de regras de
conflitos ― as regras de conflitos não são o «prius» metodológico em torno do qual o
DIP. gravita), princípio este que recorta âmbito dos ordenamentos jurídicos
potencialmente aplicáveis.
Os ordenamentos jurídicos em contacto nesta situação são:

→ lei da nacionalidade de A;
Lei portuguesa
→ lei da residência comum ao início da união de facto
→ «lex fori».

Lei irlandesa → Lei da residência comum à data do óbito

Este primeiro passo arreda e prova a desnecessidade de recorrer à


qualificação primária utilizada pela doutrina tradicional para designar o ordenamento
jurídico definitivamente competente (AGO; ROBERTSON). Atendemos, mais
especificamente à regra de conflitos que somos chamados a mobilizar para resolver esta
questão jurídica.
→ Temos o artigo 72º do Cód. Civ. que rege as relações sucessórias e chama a
lei nacional do «de cujus» ao tempo da sua morte (lei portuguesa).
→ O artigo 52º do Cód. Civ. rege o estatuto pessoal e patrimonial primário
matrimonial e chama, na falta de nacionalidade comum, a lei irlandesa.
Trata-se de uma regra de conflitos de conexão múltipla subsidiária, pois só
no caso de não se preencher a primeira conexão é que se irá aplicar a
segunda; é também uma regra de conflitos de conexão móvel, pois o que
releva é sempre a lei da residência comum actual ― e esta pode mudar a
qualquer altura).
14 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
4 — Casos Práticos —

→ O artigo 53º do Cód. Civ., por fim, regula o regime patrimonial secundário
e chama a lei da nacionalidade comum e, na falta desta, a lei da residência
comum ao tempo do casamento (contudo, no nosso caso, não há casamento,
mas uma simples união de facto) ― chama a lei portuguesa. Trata-se de
uma regra de conflitos de conexão múltipla subsidiária fixa (concretiza-se
num determinado tempo).

Este exercício de interpretação do conceito-quadro das regras de


conflitos, isto é, de determinação do seu âmbito normativo (que questões jurídicas é que
ele engloba) designado por critérios de qualificação é um passo imprescindível para a
resolução de qualquer questão de qualificação no seu todo, muito embora não decorra
especificamente do disposto no artigo 15º do Cód. Civ. (e não consta, pois o legislador
entendeu que era um passo lógico do processo de qualificação):
→ ZITELMANN → questões jurídicas;
→ SAVIGNY → meras relações jurídicas; e
→ AGO → situações de facto.

Esta interpretação deve ser autónoma e teleológica de acordo com o


critério «lex formalis foris», isto é, de acordo com as específicas valorações e
finalidades subjacentes ao direito de conflitos, de modo a permitir a absorção de
institutos jurídicos análogos aos do direito material do foro (cfr., o artigo 30º do Cód.
Civ.), de forma a englobar, neste caso particular, as relações para-familiares (união de
facto).
Não temos nenhuma norma para a união de facto, sendo assim, temos
que subsumir esta questão a uma outra norma (familiar).
No nosso caso, se interpretarmos o conceito quadro do artigo 52º como
apenas se referindo às normas materiais especiais sobre o casamento, estaríamos a fazer
uma interpretação «legis materialis foris», nunca poderíamos englobar neste
conceito-quadro a união de facto (cônjuges). Igualmente ilógico revelar-se-ia o recurso
à «lex causae» para interpretar o conceito-quadro da regra de conflitos, uma vez que
só após o exercício da qualificação é que se chega ao ordenamento jurídico competente.
Profundamente interligado com este problema e, logicamente, deste
indissociável, coloca-se-nos o problema do objecto da qualificação (cfr. o artigo 15º do
Cód. Civ.) que consiste na subsunção de normas materiais do ordenamento jurídico
competente de acordo com o conteúdo e função que assumem as mesmas no conceito-
quadro da regra de conflitos que as chama. Este chamamento é um chamamento
discriminado (diferentemente do que sustenta AGO), só se subsumindo as normas
materiais que dêem resposta à tarefa normativo-problemática enunciada no conceito-
quadro.

Será então que o art. 2020º do CC. tem uma natureza sucessória ou familiar?

Quanto a nós, defendemos que tem natureza familiar. Parece não ter
natureza sucessória, já que B não é chamado a herdar, pois não se integra em nenhuma
classe sucessória. É certo que o direito a alimentos tem efeitos sucessórios, mas é uma
questão meramente reflexa. O essencial é a configuração do próprio direito a alimentos
que decorre da prévia existência de uma relação familiar ou para-familiar.
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 145

Esta norma do artigo 2020º do Cód. Civ. subsumir-se-á ao artigo 52º ou ao art. 72º
do Cód. Civ.?

Este direito a alimentos é visionado não como um direito patrimonial e,


muito menos, como um direito patrimonial dependente de um específico regime de bens
que nem sequer existe, mas como um direito de natureza pessoal que encontra o seu
fundamento no direito à assistência entre as pessoas que fazem parte dessa união. Logo,
subsume-se ao conceito-quadro do artigo 52º do Cód. Civ. e, como este artigo chama a
lei irlandesa para intervir na regulamentação de questão jurídica em causa, o artigo
2020º do nosso Código Civil não pode ser mobilizado para resolver esta questão.
Como o ordenamento jurídico irlandês (chamado por força do artigo 52º do Cód. Civ.)
não conhece este instituto, o juiz português, com base nesse facto, nunca poderia deferir
o direito a alimentos.

Caso 2:
A, suíça, morreu em Portugal tendo deixado em testamento todos os seus
bens aos médicos (portugueses) que a assistiram. Aberta a sucessão, os familiares
suíços, residentes na Suíça, invocam a invalidade do testamento com base no artigo
2194º do Código Civil português. O direito suíço não se opõe à validade do
testamento. «Quid iuris». Mobilize as regras de conflitos dos artigos 25º e 62º,
ambos do Cód. Civ.

Resposta:

→ O artigo 25º do Cód. Civ. dispõe: «o estado dos indivíduos, a


capacidade das pessoas, as relações de família e as sucessões por
morte são reguladas pela lei pessoal dos respectivos sujeitos...».
Mas pergunta-se: capacidade de quem? Dos médicos (capacidade de receber ―
capacidade passiva). Por aqui, seria competente a lei portuguesa.
→ O artigo 62º do Cód. Civ. estabelece: «a sucessão por morte é regulada
pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento
deste, competindo-lhe também definir os poderes do
administrador da herança e do executor testamentário». Este
preceito legal, portanto, declara competente a lei nacional do «de cujus» ao tempo
da sua morte, por esta via, competente seria a lei suíça.
Resta-nos agora apurar da natureza do artigo 2194º do Cód. Civ. Terá
este uma natureza pessoal ou, antes, uma natureza sucessória? O que se pretende
proteger?
Pretende-se proteger os interesses sucessórios, ou seja, o próprio
património do «de cujus»; pretende-se evitar uma pressão sobre o «de cujus». Os
médicos têm uma indisponibilidade relativa para receber.
O preceito legal em causa, assim, possui uma natureza sucessória,
integrando-se, portanto, no artigo 62º do Cód. Civ. que chama a aplicar a lei suíça.
Logo, o testamento é válido, pois não existe qualquer indisponibilidade dos médicos
face ao direito suíço.

Caso 3:
A, francês, residente em França, encarregou B, também francês e
residente em França, nos termos de uma relação jurídica contratual, de transporte de
14 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
6 — Casos Práticos —

determinados bens para Portugal. Perto de Viseu ocorreu um acidente de viação por
exclusiva culpa de B. C, português, sofreu danos avultados. Invocando o artigo 500º
do Cód. Civ., este último vem demandar A e B nos tribunais portugueses.
Na contestação, A pretende não ser responsabilizado pelos actos
culposos de B, uma vez que, segundo o direito material francês que regularia as relações
entre comitente e comissário, aquele não responderia pelos actos deste.

Resposta:

→ Nos termos do artigo 41º do Cód. Civ.: «as obrigações provenientes de


negócio jurídico, assim como a própria substância dele, são
reguladas pela lei que os respectivos sujeitos tiverem designado
ou houverem tido em vista». Contudo, no enunciado, nada é dito
relativamente à questão da escolha da lei pelas partes. Deste modo, aplicar-se-á, a
regra de conflitos subsidiária constante do artigo seguinte.
→ Prescreve o artigo 42º do Cód. Civ.: «na falta de determinação da lei
competente..., nos contratos, à lei da residência habitual comum
das partes».
→ O artigo 45º do Cód. Civ., por sua vez, prevendo a hipótese da lei competente para
regular as situações de responsabilidade extracontratual, estabelece: «a
responsabilidade extracontratual fundada, quer em acto ilícito,
quer no risco ou em qualquer conduta ilícita, é regulada pela lei do
estado onde decorreu a principal actividade causadora do
prejuízo...». Por esta via, competente seria a lei portuguesa.
Resta-nos, agora, apreciar a natureza do artigo 500º do Cód. Civ.; nos
termos deste preceito legal: «aquele que encarrega outrem de qualquer
comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o
comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação
de indemnizar». Este preceito do Código Civil português possui uma natureza
extracontratual, já que se trata de uma questão de responsabilidade pelo risco, que é
uma responsabilidade objectiva. Ela destina-se a proteger não a relação contratual, mas
os interesses de um terceiro (lesado).
Aqui conclui-se que dever-se-á aplicar o artigo 45º do Cód. Civ. que
chama a aplicar a lei portuguesa. Deste modo, a regra material que irá regular o caso
consta do artigo 500º do Cód. Civ., nos termos do qual o lesado, C, poderá demandar
os dois e obter a responsabilização de A, sendo que depois, a nível interno (ou seja, a
nível da relação contratual existente entre A e B) será competente a lei francesa,
havendo ou não direito de regresso consoante o ordenamento jurídico francês.

Caso 4:
A, português e B, italiana, casaram-se em 1985 em Milão. Quando
casaram, A tinha 77 anos e B apenas 35. Em 1986 fixaram residência com carácter
estável e permanente em Barcelona. Em 1990, na comemoração do 5º aniversário de
casamento, A ofereceu a B um jipe que havia adquirido meses antes em Coimbra. A
doação realizou-se em Espanha.
C, filho de A pretende invalidar a doação invocando para tal os artigos
1720º e 1762º do Cód. Civ. Deveria o juiz dar razão a C sabendo que a doação é válida
face ao direito espanhol que chama para reger a doação entre casados a «lex locit
celebrationis»?
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 147

Resposta:

→ O artigo 25º do Cód. Civ., que regula a capacidade, chama a lei portuguesa;
→ o artigo 42º do Cód. Civ. que disciplina as obrigações chama a lei da residência e,
portanto, a lei espanhola;
→ o artigo 52º do Cód. Civ. que regula as relações entre os cônjuges, atribui
competência à lei da residência comum habitual e, portanto, também atribui
competência à lei espanhola; e
→ o artigo 53º do Cód. Civ. que dispõe sobre as convenções antenupciais e regime de
bens, chama a aplicar a lei da primeira residência comum do casal e, portanto,
também a lei espanhola.

Resta agora descobrirmos a natureza dos artigos 1720º e 1762º, ambos


do Cód. Civ. Possuem uma natureza familiar que se protege na capacidade. A não tem
capacidade para tal doação (possui reflexos secundários sobre o estatuto contratual).
Visa proteger o património de cada um dos cônjuges e pretende evitar o
defraudamento do próprio regime de separação de bens.
Sendo assim, ou aplicamos o artigo 52º ou o artigo 53º do Cód. Civ.
Por qual deles optar?
O artigo 52º do Cód. Civ. regula as relações pessoais e patrimoniais
primárias e aquelas que não dependem de nenhum regime de bens. Já o artigo 53º do
Cód. Civ. disciplina as relações patrimoniais (secundárias) dependentes de um regime
de bens. Logo, deveremos aplicar o artigo 53º do Cód. Civ., que atribui competência à
lei espanhola, segundo a qual a doação é válida.

Caso 5:
A e B, canadianos, residentes em Portugal, celebraram em Coimbra, em
1983, um contrato de mútuo; alguns meses depois casaram-se; em 2000 divorciaram-
se e o mutuante A intenta agora, em 2001, em Portugal, uma acção condenatória para o
pagamento da dívida. B alega a prescrição da dívida alegando que, segundo o direito
canadiano, o prazo de prescrição é de 5 (cinco) anos e não existe no Canadá qualquer
causa de suspensão semelhante à do artigo 318º, alínea a) do Cód. Civ.
Resposta:

→ O artigo 40º do Cód. Civ., que regula a prescrição e caducidade dos negócios
jurídicos dispõe: «a prescrição e a caducidade são reguladas pela lei
aplicável ao direito a que uma ou outra se refere».
→ Não podemos aplicar o artigo 41º do Cód. Civ., pois o enunciado não se refere a
qualquer declaração tendente a designar a lei competente para regular a respectiva
relação jurídica.
→ Sendo assim, nos termos do artigo 42º do Cód. Civ.: «na falta de residência
comum, é aplicável..., a lei do lugar da celebração», ou seja, a «lex
loci celebrationis». Deste modo, no nosso caso, seria aplicável a lei portuguesa.
→ O artigo 52º do Cód. Civ., que rege as relações entre os cônjuges, dispõe: «as
relações entre os cônjuges são reguladas pela lei nacional comum
dos cônjuges», ou seja, por esta via seria aplicável a lei canadense.
14 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
8 — Casos Práticos —

Resta agora averiguarmos a natureza do artigo 318º, alínea a) do Cód.


Civ.
Nos termos deste preceito legal: «a prescrição não começa nem
corre entre os cônjuges, ainda que separados judicialmente de
pessoas e bens». A natureza deste preceito legal não é contratual como, à primeira
vista, poderia parecer; esta norma possui uma natureza familiar, já que visa proteger a
paz familiar.
Logo, à primeira vista, seria aplicável o artigo 52º do Cód. Civ.,
preceito este que atribui competência à lei canadense, pois é esta a lei da nacionalidade
comum dos cônjuges. Contudo, esta norma não pode ser aplicada, pois nunca se pode
aplicar uma norma material que não seja chamada e/ou que não tenha a natureza que se
exige; no nosso caso, o artigo 318º tem natureza familiar e o artigo 52º não pode ser
aplicado, já que tem uma natureza pessoal e patrimonial primária.
Podemos, contudo, chamar outra norma material com natureza contratual
(o artigo 309º do Cód. Civ.) que estipula o prazo normal de prescrição de 20 (vinte)
anos.

Caso 6:
Em Fevereiro de 1998, A, português residente em Munique, e B, também
português, mas residente em Viena, ambos trabalhavam nas respectivas cidades de
residência, celebraram em Roma um contrato de compra e venda de um prédio urbano
situado em Berlim, elegendo a lei portuguesa como competente para regular o contrato.
Dois meses depois, pretendendo B ocupar o respectivo prédio, A recusou-se a entregá-
lo. Em seu favor alega ser ainda o titular da propriedade do mesmo por não se ter ainda
verificado o acto de carácter real exigido pelo direito alemão, não se deu ainda a
transferência do direito de propriedade. B, por seu turno, contesta alegando os artigos
408º, n.º 1 e 879º, alínea a).

Resposta:

→ O estatuto real é regulado pela «lex rei sitae» que, no nosso caso,
é a lei alemã (BGB);
→ o estatuto contratual, por sua vez, nos termos do artigo 3º da
Convenção de Roma, é regulado pela «lex contractus» que, no
caso, é a lei portuguesa.

Devemos averiguar a natureza dos artigos 408º e 879º do Cód. Civ.


Estes preceitos legais não têm natureza contratual, mas sim real. Sendo assim, não
podem ser invocados, pois a nossa lei não é a «lex rei sitae»... «lex rei sitae»,
como já vimos, é a lei alemã.
Deste modo, subsistem as normas do ordenamento jurídico alemão que
exigem a tradição para que haja a transferência da propriedade.
B, assim, não tem direito a exigir o prédio, pois ainda não houve entrega,
ele tem apenas um direito obrigacional. Será que podemos fazer alguma coisa a favor
de B?
Sim, na verdade, B pode exigir, segundo a nossa lei («lex
contractus») uma indemnização por parte de A.

Caso 7:
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 149

A, portuguesa, e B, nacional da então RFA, casados em regime de


comunhão de adquiridos, residem habitualmente em Colónia; encontrando-se em
Lisboa, A vende nesta cidade a C, aí residente, um prédio da sua propriedade, sito em
Portugal. Junto de tribunais portugueses, B pretende obter a anulação da venda com
fundamento no artigo 1682º-A do Cód. Civ.

Resposta:

→ Nos termos do artigo 41º do Cód. Civ.: «as obrigações provenientes de


negócios jurídicos, assim como a própria substância dele, são
reguladas pela lei que os respectivos sujeitos tiverem designado
ou houverem tido em vista». Natureza contratual.
→ Segundo o artigo 42º do Cód. Civ.: «na falta de determinação da lei
competente, atende-se..., nos contratos, à lei da residência
habitual comum das partes» e, «na falta de residência habitual
comum, a lei do lugar da celebração», ou seja, no nosso caso, e por esta
via, seria competente a lei portuguesa. Natureza contratual.
→ Prescreve o artigo 52º, n.º 2 do Cód. Civ. que, não havendo nacionalidade comum,
a relação entre os cônjuges é regulada pela lei da residência habitual comum, logo,
por esta via, seria competente a lei de Colónia. Natureza pessoal e patrimonial.

Resta-nos averiguar a natureza do artigo 1682º-A do Cód. Civ. Apesar


de este preceito possuir reflexos patrimoniais, tem natureza familiar, já que, em último
termo visa a protecção do património familiar.
Assim sendo, este preceito não pode aplicar-se, dado que a lei reguladora
do casamento é a lei alemã.

Caso 8:
A e B, espanhóis, casados, adoptaram plenamente na Espanha, nos
termos do direito espanhol, uma criança de nacionalidade portuguesa. Algum tempo
depois, D pretende reconhecer a paternidade de C. A e B invocam o artigo 1987º do
Cód. Civ. Para impugnar o reconhecimento, ao que D contrapõe o facto de o direito
espanhol não conhecer nenhum preceito análogo àquela disposição. «Quid iuris»,
movimentando as normas dos artigos 56º e 60º do Cód. Civ.

Resposta:

→ Nos termos do n.º 1 do artigo 56º do Cód. Civ.: «à constituição da filiação é


aplicável a lei pessoal do progenitor à data do estabelecimento da
relação»; assim, por esta via, seria competente a lei portuguesa.
→ Estabelece o n.º 2 do artigo 60º do Cód. Civ.: «se a adopção for realizada
por marido ou mulher..., é aplicável a lei comum dos cônjuges...»;
por tal via, aplicável seria a lei espanhola.

Resta agora apreciarmos a natureza do artigo 1987º do Cód. Civ., nos


termos do qual: «depois de decretada a adopção plena não é possível
estabelecer a filiação natural do adoptado nem fazer a prova dessa
filiação fora do processo preliminar de publicações». Este preceito legal,
15 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
0 — Casos Práticos —

portanto, visa a protecção da adopção (a família do adoptado e a sua inserção na família


adoptante). Daqui resulta que esta norma subsume-se ao artigo 60º do Cód. Civ.
Contudo, não a podemos aplicar, dado que esta regra de conflitos chama,
como competente para regular em termos materiais a questão, a lei espanhola.
Podemos, todavia, evitar isto alegando a ordem pública internacional ou
pelas normas de aplicação necessária e imediata (NANI).

Caso 9:
Em Junho de 1996, JAMES, cidadão inglês domiciliado na Inglaterra,
foi atropelado em Coimbra por CARLOS, cidadão português residente na Lousã. Em
Outubro JAMES veio a falecer em Coimbra em consequência dos traumatismos
causados pelo acidente e após um longo período de hospitalização, solteiro e sem
descendentes.
Por morte de JAMES, os seus pais, com base nos artigos 495º, n.º 3 e
496º, ambos do Cód. Civ., reclamam a indemnização por danos não patrimoniais e
alimentos que recebiam de JAMES, e apoiados no artigo 2161º, n.º 2 do Cód. Civ.
reclamam metade da herança. Agora, ANGELINA, herdeira testamentária reclama ser
a única herdeira uma vez que o testamento é válido segundo o direito inglês e que este
ordenamento jurídico não reconhece qualquer direito sucessório aos ascendentes. Na
verdade, no testamento de JAMES, ANGELINA era considerada a única e universal
herdeira.
a) «Quid iuris» considerando os artigos 45º e 62º do Cód. Civ. e o
facto de a lei inglesa regular a sucessão pela lei do último domicílio
do «de cujus» e considerando ainda que a responsabilidade
aquiliana é regulada pela lei do local de ocorrência do facto?
b) Se partilharmos da concepção de AGO, «quid iuris»?

Resposta:

→ Segundo o n.º 1 do artigo 45º do Cód. Civ.: «a responsabilidade


extracontratual fundada, quer em acto ilícito, quer no risco ou em
qualquer conduta lícita, é regulada pela lei do Estado onde
decorreu a principal actividade causadora do prejuízo...»; sendo
assim, competente para regular a questão seria a lei portuguesa.
→ Estabelece o artigo 62º do Cód. Civ.: «a sucessão por morte é regulada
pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento
deste, competindo-lhe também definir os poderes do
administrador da herança e do executor testamentário». Logo, este
preceito legal estabelece a competência do ordenamento jurídico inglês.

Temos neste caso duas questões para resolver:


a) uma questão de indemnização por responsabilidade civil
extracontratual; e
b) uma questão relativa à sucessão.

Relativamente a primeira questão (ou seja, relativamente à


indemnização), devemos identificar a natureza dos artigos 495º, n.º 3 e 496º, ambos do
Cód. Civ.
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 151

Nos termos do primeiro preceito referido, têm direito à indemnização


«os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o
lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural». Por
sua vez, o artigo 496º do Cód. Civ. se refere ao montante da indemnização a prestar.
Vê-se logo, pois, que os preceitos supracitados não têm uma natureza
sucessória, antes possuem uma natureza compensatória, já que visa compensar aqueles
que mais sofrem com a morte do ente querido. Deste modo, esta norma subsume-se ao
conceito-quadro do artigo 45º do Cód. Civ. que tem em vista reparar a situação
provocada pelo causante, compensando o prejuízo sofrido pelos entes queridos,
tentando, por outras palavras, colocar as coisa em seu «status quo ante». Trata-se
de uma sanção compensatória.
Logo, esta norma de conflitos chama a lei portuguesa para ser aplicada
ao caso «sub judice», o que permite aos pais de JAMES receberem a indemnização.

No que diz respeito à segunda questão suscitada no caso concreto (ou


seja, no que diz respeito à sucessão), temos que analisar a natureza do n.º 2 do artigo
2161º do Cód. Civ.
Nos termos do preceito citado: «se o autor da sucessão não
deixar descendentes nem cônjuge sobrevivo, a legítima dos
ascendentes é de metade ou de um terço da herança, conforme
forem chamados os pais ou os ascendentes de segundo grau e
seguintes». Logo se vê, portanto, que tal preceito legal possui uma natureza
sucessória (escopo / fim / «ratio legis» e integração / localização sistemática). Esta
norma, portanto, subsume-se ao artigo 62º do Cód. Civ., mas não vai poder ser
aplicada, dado que esta regra de conflitos declara como competente para reger o estatuto
sucessório, assim como o vimos, a lei inglesa e não a portuguesa. Como tal, não
reconhecendo a lei inglesa qualquer direito à legítima, ANGELINA deverá ser
considerada a única e universal herdeira de JAMES. O pedido dos pais de JAMES
seria indeferido pelo juiz português.

Caso compartilhasse-mos da opinião do AGO, deveríamos, antes de


mais, recorrer à qualificação primária, de modo a que chegaríamos à seguinte
conclusão:
Tratando-se aqui de uma questão sucessória, por força do artigo 62º do
Cód. Civ., o único ordenamento jurídico competente seria o inglês e, dentro desse
ordenamento jurídico, são chamadas todas as normas jurídicas que o compõem.

Qualificação primária Situação de facto

O facto predominante tem


natureza sucessória

Diferentemente de AGO, ROBERTSON apenas vai chamar as normas


jurídicas que possuírem a natureza jurídica da regra de conflitos. Só supletivamente,
para evitar o recurso às normas jurídico-materiais da «lex fori» é que vai chamar uma
norma jurídico-material do ordenamento jurídico competente com natureza diferente.
15 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
2 — Casos Práticos —

Caso 10:
A, cidadã italiana, casou-se com B, português, em 1986, passando ambos
a residir em Portugal. Em Fevereiro de 1989 foi aberta a sucessão de C, italiano, que
em seu testamento havia nomeado A como sua herdeira. Todavia A, ainda nesse mês,
declarou repudiar essa herança. Volvido 1 (um) mês, B veio pedir a anulação desse
repúdio invocando para tal os artigos 1683º, n.º 2 e 1687º, n.os 1 e 2 do Cód. Civ., ao
que se contrapõem os herdeiros legítimos de C invocando, para tal, que no artigo 519º
do Código Civil italiano não havia qualquer disposição idêntica à do referido preceito
do Código Civil português.
Aduzindo ainda que A, face ao direito italiano, não padecia de qualquer
incapacidade, suponha que o direito italiano adoptava soluções conflituais idênticas à
portuguesas.
a) Com base nos artigos 25º, 52º e 62º do Cód. Civ.,
«quid iuris»?
b) e se seguisse-mos a concepção de AGO?

Resposta:

→ Nos termos do artigo 25º do Cód. Civ.: «o estado dos indivíduos, a


capacidade das pessoas, as relações de família e as sucessões por
morte são reguladas pela lei dos respectivos sujeitos...». Este
preceito declara competente, no nosso caso, a lei italiana. Tal preceito não se refere
a uma incapacidade, mas, antes, a uma mera ilegitimidade conjugal.
→ estabelece o n.º 2 do artigo 52º do Cód. Civ. que se ambos os cônjuges não tiverem
a mesma nacionalidade, «é aplicável a lei da sua residência habitual
comum...». Desta forma, relativamente às relações entre os cônjuges e no nosso
caso, competente seria a lei portuguesa. A natureza deste preceito legal não é
eminentemente sucessória, mas, antes, familiar, dado que visa, em primeira linha,
proteger o património familiar.
→ por fim, preceitua o artigo 62º do Cód. Civ.: «a sucessão por morte é
regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do
falecimento deste...». Competente, portanto, para regular o estatuto sucessório
seria a lei italiana.

Resta-nos agora averiguar a natureza dos artigos 1683º, n.º 2 e 1687º,


n.os 1 e 2.
Nos termos do primeiro dos preceitos citados: «o repúdio da
herança ou legado só pode ser feito com o consentimento de ambos
os cônjuges, a menos que vigore o regime de separação de bens».
O artigo 1687º, por sua vez, nos diz qual o efeito da falta de
consentimento e em que termos pode ser exercido.
Vemos, assim, que ambos os preceitos a que nos referimos têm natureza
familiar e, deste modo, subsumem-se ao artigo 52º do Cód. Civ., sendo que este
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota 153

preceito declara competente a lei portuguesa, de modo que B poderia invalidar, ou


melhor, pedir a anulação da declaração de repúdio por parte de A.
Todo o resto, ou seja, tudo o que disser respeito à matéria sucessória
deverá ser regulado pelo direito italiano, assim como se infere do preceituado nos
artigos 25º e 62º do Cód. Civ.

Se, contudo, adoptasse-mos a concepção de AGO, assim como já


sabemos, deveríamos, antes de mais, proceder à qualificação primária. Nesta,
deveríamos descobrir a natureza da questão principal da causa (no nosso caso, a questão
principal tem natureza familiar). Posteriormente, iríamos subsumir esta questão (de
natureza familiar) à regra de conflitos competente (no nosso caso, o artigo 52º do Cód.
Civ., dado que este possui natureza familiar), descobrindo, assim, o ordenamento
jurídico competente.
Deste modo, as nossas normas, ou seja, as normas do ordenamento
jurídico português deveriam ser aplicadas, não importando, para tal, a natureza das
normas, pois, segundo AGO, a regra de conflitos chama todas as normas do
ordenamento jurídico declarado competente para a resolução do caso «sub judice».

Caso 11:
A, português e residente em França, casou-se com B, francesa e residente
no Luxemburgo. O casamento foi validamente celebrado em Junho de 1994. Como na
altura A tinha apenas 16 anos de idade, obteve a necessária autorização dos pais nos
termos do artigo 1604º-A do Cód. Civ. Após o referido casamento o casal fixou
residência no Luxemburgo. Em Fevereiro de 1995, A desloca-se para Portugal para aí
vender uma casa de férias situada no Algarve de que era proprietário desde 1990.
No momento da realização da escritura pública, o notário recusa-se a
realizar o acto invocando o facto de que, segundo o direito competente para reger os
efeitos do casamento, este não implicava a plena aquisição da capacidade de exercício.
Efectivamente, no direito de Luxemburgo não há qualquer disposição com conteúdo
idêntico ao dos artigos 132º e 133º do nosso Cód. Civ., e, assim, o casamento não
implica a emancipação dos menores. «Quid iuris» considerando os artigos 25º, 47º e
52º do Cód. Civ.

Resposta:

→ Estabelece o artigo 25º do Cód. Civ. relativo ao âmbito da lei pessoal: «o estado
dos indivíduos, a capacidade das pessoas, as relações de família e
as sucessões por morte são regulados pela lei pessoal dos
respectivos sujeitos...». Tal preceito possui natureza pessoal e declara
competente em tais casos a lei portuguesa.
→ Nos termos do artigo 47º do Cód. Civ. é definida pela lei da situação da coisa «a
capacidade para constituir direitos reais sobre coisas imóveis ou
para dispor deles, desde que essa lei assim o determine; de
contrário, é aplicável a lei pessoal».
→ Por fim, preceitua o n.º 2 do artigo 52º do Cód. Civ.: «não tendo os cônjuges
a mesma nacionalidade, é aplicável a lei da sua residência
habitual comum...». Este preceito tem natureza patrimonial e, no nosso caso,
declararia competente a lei de Luxemburgo.
15 Direito Internacional Privado – 1.º Semestre FDUC
4 — Casos Práticos —

Resta-nos agora apreciar a natureza dos artigos 132º e 133º, ambos do


Cód. Civ.
Nos termos do primeiro dos preceitos citados: «o menor é, de
pleno direito, emancipado pelo casamento». Assim sendo, o direito
português atribui capacidade plena de exercício de direitos em caso de emancipação por
casamento.
No mesmo sentido, o artigo 133º do mesmo diploma legal estabelece:
«a emancipação atribui ao menor plena capacidade de exercício de
direitos, habilitando-o a reger a sua pessoa e a dispor livremente dos
seus bens como se fosse maior...».
Logo se conclui que ambos os preceitos transcritos têm natureza pessoal,
dado que é uma questão de capacidade.
O instituto da emancipação existe porque se entende que uma pessoa que
casa com esta idade tem já maturidade e responsabilidade para tratar dos seus assuntos
patrimoniais, ou seja, entende a nossa lei que se um dado indivíduo já consegue reger a
sua pessoa, então também já tem capacidade para reger o seu património.
Tendo os artigos 132º e 133º do Cód. Civ. natureza pessoal, não
poderíamos subsumí-los ao artigo 52º do mesmo diploma legal, pois este tem natureza
patrimonial. Deste modo, apenas nos restam os artigos 25º e 47º do Cód. Civ.
O artigo 47º trata de uma capacidade específica para constituir direitos
reais, enquanto o artigo 25º trata de uma capacidade em sentido amplo, ou seja, de uma
capacidade para a realização de todos e quaisquer negócios jurídicos.
Como a emancipação tem efeitos para todo o tipo de actos que o menor
venha a praticar, logo, devemos subsumí-la ao artigo 25º do Cód. Civ.
Sendo assim, o notário não podia recusar-se a praticar o acto, tendo,
portanto, que fazer a escritura pública.

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