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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Everton Rangel Amorim

DEPOIS DO ESTUPRO
Homens condenados e seus tecidos relacionais

RIO DE JANEIRO
2020
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Everton Rangel Amorim

DEPOIS DO ESTUPRO
Homens condenados e seus tecidos relacionais

Tese de doutorado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Antropologia Social,
Museu Nacional, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como requisito parcial à
obtenção do título de Doutor em
Antropologia Social.
Orientadora: Profª Drª María Elvira Díaz-
Benítez

Rio de Janeiro
2020
Espaço para ficha catalográfica: http://fichacatalografica.sibi.ufrj.br/
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Everton Rangel Amorim

DEPOIS DO ESTUPRO: Homens condenados e seus tecidos relacionais

Tese de doutorado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Antropologia Social,
Museu Nacional, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como requisito parcial à
obtenção do título de Doutor em
Antropologia Social.

Aprovada em 17 de fevereiro de 2020


Banca Examinadora:
______________________________________________
Prof.ª Dr. ª María Elvira Díaz-Benítez (Presidente)
PPGAS/MN/UFRJ
______________________________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte
PPGAS/MN/UFRJ
______________________________________________
Prof. Dr.ª Adriana de Resende Barreto Vianna
PPGAS/MN/UFRJ
______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Claudia Lee Williams Fonseca
PPGAS/UFRGS
______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Filomena Gregori
PAGU/UNICAMP
______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Claudia Coelho
PPCIS/UERJ
______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Laura Lowenkron (Suplente)
IMS/UERJ
_____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Camila Fernandes Pinto (Suplente)
PPGAS/MN/UERJ
AGRADECIMENTOS

À minha mãe, Márcia Rangel, devo os meus trinta anos. Sem o seu suporte não haveria tese
sequer passível de ser imaginada, quiçá concretizada.

À minha família, Carol Rangel, Conceição Rangel, Robson Rodrigues e Felipe Rangel,
agradeço por me ensinarem a ser através da partilha dos dias.

Mylena Curvello, Marielle Javarys, Mohara Valle, Débora Soares, Julio Dalmaso, Damarys
Oviedo e Pedro Esteves chegaram antes da antropologia. Amigos com os quais fiz as
primeiras descobertas da vida e as primeiras grandes burradas. À Mylena, mais uma vez, pelo
tanto que o 665 (Tijuca-Pavuna) nos uniu.

Com a universidade, Guilherme Marcondes e Tássia Áquila deram novos contornos à palavra
amizade. Mostraram-me a felicidade e o perdurar das relações. Com Stephanie Lima, Felipe
Magaldi e Luiza Tanuri somo mais de uma década de afetos, trocas acadêmicas e zoeira.

São muitos os que entraram na minha vida junto ao IFCS. Com Carol Dias, Caroline Farias,
Caio Figueiredo, Nicolas Wasser, Roberta Coroa, Francisco Vieira, Bruna Ramalho, Paola
Almeida, Fernanda Vianna acumulo uma infinidade de histórias. Impensável descrever o
tanto que vivemos até aqui. A Maria Barroso, Octávio Bonet, Jean François, Yvonne Maggie,
Ana Pires Prado, Karina Kuschinir, Bila Sorj, Maria Laura de Viveiros de Castro, Pedro
Paulo de Oliveira e Helga Gahyva, agradeço pelos anos de formação.

Lucas Freire, Morena Freitas, Victor Hugo Barreto, Michel Carvalho, Barbara Pires, Aline
Rabelo e Camila Fernandes estão comigo desde 2013, ano em que passamos a frequentar
cursos no Museu Nacional. Não imaginávamos o quanto nossos caminhos se entrelaçariam.
Sou grato ao NuSEX pelas trocas acadêmicas e pelos amigos que ali encontrei: Lorena
Mochel, Carol Castellitti, Nathanael Araújo, Natália Gonçales, Fátima Lima, Caio Maia,
Brena O’Dwyer, Oswaldo Zampiroli e Samara Freire. Entraram para a minha vida, também
através do Museu Nacional, Samantha Gaspar, Gustavo Onto, Viviane Fernandes, Marlise
Rosa, Anelise Gutterres, Dibe Ayoub, Bárbara Rossin, María Rossi, Lucas Bártolo, Uliana
Esteves, Veloso, Jefferson Scabio, Laura Carvalho, Aymara Escobar, Marcela Rabello, Igor
Rolemberg, Telma Bemerguy, Aline Sabino, Iréri Ceja e Bárbara Dias. Cafés, festas, aulas,
felicidades, brigas, congressos, bares, leituras, cursos de orientação e tanto mais. Com alguns
deles, até a analista compartilho. Obrigado!
Aos professores Luiz Fernando Dias Duarte, John Comerford, Maria Elvira Díaz-Benítez e
Adriana Vianna agradeço pelos cursos que fundamentam esta tese.

Agradeço também a Antônio Carlos de Souza Lima, Olívia Cunha, Luiza Elvira Belaunde,
Giralda Seyferth, Márcio Goldman, Renata Menezes. Cada um, à sua maneira, fez parte da
minha trajetória no Museu. Tantas são as antropologias.

A Eduardo Dullo agradeço pelas sugestões de leitura, várias delas incorporadas neste trabalho.
A Laura Lowenkron devo a possibilidade de imaginar esta tese. Ao Caio Maia, pela leitura e
revisão de todo o material. A Natalia Padovani, Natalia Negretti, Roberto Efrem, Natália
Lago, Juliana Farias, Cilmara Veiga, Isadora Lins França, Silvia Aguião, Paulo Victor Leite
Lopes, Marco Martínez e Vanessa Sander, agradeço pelas trocas acadêmicas e afetivas.

Na Argentina, no Centro de Investigação María Saleme de Burnichon da Universidade


Nacional de Córdoba, Eduardo Mattio, Negra Lugones e Mariana Sirimarco contribuíram
com leituras e novos olhares. Ao Eduardo, uma vez mais, pela dedicação. À Negra, pelo
carinho.

A Maria Filomena Gregori, Adriana Vianna e Luiz Fernando Dias Duarte pelos comentários
decisivos na ocasião da qualificação. A eles, bem como a Maria Claudia Coelho e a Claudia
Lee Williams Fonseca, por terem gentilmente aceitado participar de uma banca de defesa
cujos membros não poderiam ser outros.

Com Maria Elvira Díaz-Benítez, somo sete anos de crescimento pessoal e profissional.
Tempo que não faz justiça à grandeza da nossa amizade, nem ao vigor do meu carinho, menos
ainda à inspiração que ela me propicia.

Ao João Henrique Bandeira, agradeço por me permitir conhecer o sentido forte de viver junto.
Impossível mensurar a presença dele em mim.

Agradeço à Dulce de Carvalho pelo incrível trabalho realizado na Biblioteca Francisca Keller.
A Márcio Nunes, Afonso Santoro e Anderson Arnaud por movimentarem o PPGAS. A
Adriana Valcarce, que durante tantos anos foi a alma desse programa.

Agradeço à Defensoria Pública do Rio de Janeiro, especialmente à defensora que nesta tese
convencionei chamar de Fabiana, pela abertura ao trabalho acadêmico, empenho político e
trocas passadas e vindouras. Sou especialmente grato às famílias que abriram suas casas e às
pessoas que se dispuseram conversar comigo sobre suas vidas.

Ao CNPq e à FAPERJ pelas bolsas concedidas durante o período do doutorado.


RESUMO

Resultado de trabalho de campo efetuado no e através do Núcleo do Sistema Penitenciário


da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (NUSPEN-DP-RJ), esta tese analisa de que maneira
a condenação de pais, filhos, maridos, irmãos ou tios por crimes sexuais impacta as dinâmicas
familiares, bem como de que maneiras as relações interpessoais conformam as práticas de
gestão desses homens em manicômios e presídios. O enquadramento fenomenológico das
relações, das experiências e da governança desdobra-se a partir das seguintes perguntas: (1)
o que implica levar a vida com homens condenados por crimes sexuais para as mulheres que
com eles compartem laços afetivos, partilham os dias e trabalham para tornar essa vida
viável; (2) como o acionamento de determinadas tecnologias de gestão é impactado pela
percepção dos administradores (defensores e psicólogos, sobretudo) sobre os casos de
estupro e pelas relações interpessoais entre eles; (3) qual o lugar da figura do estuprador no
“sistema penal”. Trata-se de uma etnografia dedicada à análise da “ética ordinária” enquanto
inseparável das emoções, das normas de gênero e da governança. Se, por um lado, abrir a
“caixa-preta do estupro” requer a descrição do que acontece no interior de “tecidos
relacionais” (práticas de humanização, “conciliações fraturadas”, mentiras, etc.), por outro,
demanda a análise das formas relacionais de regulação de criminosos sexuais no sistema
penal. Aborda-se a relação entre administrados e administradores também para demonstrar
que a compreensão do lugar do “estuprador” nas cadeias cariocas requer a descrição de uma
“política da humilhação”. Dividida em duas partes, uma mais voltada aos estudos sobre
família e a outra aos estudos sobre Estado, esta tese tem como tema a violência sexual e a
relacionalidade.

Palavras-chave: Estupro; Gênero; Relações; Estado; Família.


ABSTRACT

Result of fieldwork carried out in and through the Public Defender Office of Rio de Janeiro
(NUSPEN-DP-RJ), this thesis analyzes how the conviction of parents, sons, husbands,
brothers or uncles for sexual crimes impacts family dynamics, as well how interpersonal
relationships shape the management practices of these men in asylums and prisons. The focus
in a phenomenological framework of relationships, experiences and governance unfolds by
the following questions: (1) what demands to live with men’s convicted of sex crimes to the
women who share with them emotional ties and days and work to make that life viable; (2)
how the determination of certain management technologies is impacted by the perception of
administrators (defenders and psychologists, above all) about rape cases and the interpersonal
relationships between them; (3) what is the place of the rapist in the “penal system”. It is an
ethnography dedicated to the analysis of “ordinary ethics” as inseparable from emotions,
gender norms and governance. If, on the one hand, opening the “black box of rape” requires
the description what happens inside “relational tissues” (humanization practices, “fractured
reconciliations”, lies, etc.), on the other hand, it is demands the analyze of the relational
forms of regulation of sex offenders in the penal system. The relationship between
administrators and administrators is also addressed in order to demonstrate that
understanding the place of the “rapist” in the Rio de Janeiro’s prisons requires the description
of a “humiliation policy”. Divided into two parts, one more focused on family studies and
the other on State studies, this thesis has as it themes sexual violence and relatedness.

Keywords: Rape; Gender; Relations; State; Family.


RESUMEN

Resultado de trabajo de campo efectuado en y a través del Núcleo del Sistema Penitencial de
la Defensoría Pública de Rio de Janeiro (NUSPEN-DP-RJ), esta tesis analiza de qué maneras
la condenación de padres, hijos, maridos, hermanos o tíos por crímenes sexuales impacta las
dinámicas familiares, así como de qué maneras las relaciones interpersonales conforman las
prácticas de gestión de esos hombres en manicomios y prisiones. El marco fenomenológico
de las relaciones, de las experiencias y de la gobernabilidad se despliega a partir de las
siguientes preguntas: (1) Qué implica vivir la vida con hombres condenados por crímenes
sexuales para las mujeres que comparten con ellos lazos afectivos, comparten los días y
trabajan para hacer la vida viable; (2) Cómo el accionar de determinadas tecnologías de
gestión es impactado por la percepción de los administradores (defensores y psicólogos,
principalmente) sobre los casos de violación y por las relaciones interpersonales entre ellos;
(3) Cuál es el lugar de la figura del violador en el “sistema penal”. Se trata de una etnografía
dedicada al análisis de la “ética ordinaria” como siendo inseparable de las emociones, de las
normas de género y de la gobernabilidad. Si, por un lado, abrir la “caja negra de la violación”
necesita la descripción de lo que se pasa dentro de los “tejidos relacionales” (prácticas de
humanización, “conciliaciones fracturadas”, mentiras, etc.), por otro, demanda el análisis de
las formas relacionales de regulación de los violadores en el sistema penal. La tesis aborda
la relación entre administradores y administrados también para demonstrar que la
comprensión del lugar del “violador” en las cárceles de Rio de Janeiro requiere la descripción
de una “política de la humillación”. Dividida en dos partes, una que focaliza los estudios
sobre familia y otra los estudios sobre el Estado, esta tesis tiene como tema la violencia sexual
y la relacionalidad.

Palabras-clave: Violación; Género; Relaciones; Estado; Familia.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ADA – Amigos dos Amigos


ADEPERJ – Associação dos Defensores Públicos do Rio de Janeiro
BOPE – Batalhão de Operações Especiais da Polícia
CFP – Conselho Federal de Psicologia
CRAF – Central de Recebimento de Adultos e Famílias
CRE-RJ – Coordenadorias Regionais de Educação do Estado do Rio de Janeiro
CRP – Conselho Regional de Psicologia
CV – Comando Vermelho
DECAV – Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítima
DPGE-RJ – Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro
NUDEM – Núcleo Especial de Direito da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro
NUDIVERSIS – Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual
NUSPEN – Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública Geral do Estado do Rio
de Janeiro
SEAP – Secretaria de Administração Penitenciária
SOE/SEAP – Serviço de Operações Especiais da Secretaria de Administração Penitenciária.
TCP – Terceiro Comando Puro
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 19

PARTE 1 ............................................................................................................................... 47

1 O MAL E OS AMORES DIFÍCEIS .................................................................................. 49

1.1 “Fazer falar” as relações ................................................................................................. 49

1.2 Os sentidos e os efeitos da desconfiança ........................................................................ 55

1.3 O coração da máquina de fazer dinheiro ........................................................................ 63

1.4 De Helena para Altair: a forma burocrática do amor ..................................................... 69

1.5 Quebra temporal ............................................................................................................. 74

1.6 A importância do mal ..................................................................................................... 78

2 MENTIRAS FAZEM FAMÍLIAS .................................................................................... 83

2.1 Ocultar, destruir e levar a crer ........................................................................................ 83

2.2 Abrindo a caixa-preta do estupro: tempo, (des)confiança e raça.................................... 92

2.3 Do otimismo cruel à irritação ....................................................................................... 107

3 CONCILIAÇÃO FRATURADA .................................................................................... 113

3.1 Tentar perdoar............................................................................................................... 113

3.2 A memória como prática moral .................................................................................... 120

3.3 A recusa e a aceitação de um mandato ......................................................................... 126

3.4 Um ou dois comentários sobre violência ...................................................................... 131

3.5 O impossível e o impagável .......................................................................................... 135

PARTE 2 ............................................................................................................................. 139

4 DEFENDENDO O (IN)DEFENSÁVEL ......................................................................... 141

4.1 Em busca de uma feminilidade benevolente ................................................................ 145

4.2 Dos casos ordinários aos casos paradigma ................................................................... 149

4.3 O espetáculo humanitário ............................................................................................. 152

4.4 A vitrine do horror como caso de repercussão ............................................................. 156


4.5 O clitóris de Sísifo.........................................................................................................161

4.6 Governar junto ..............................................................................................................164

5 POLÍTICA DA HUMILHAÇÃO ....................................................................................167

5.1 Ritual de vingança .........................................................................................................169

5.2 Além da honra masculina ..............................................................................................172

5.3 Os vivos e os mortos .....................................................................................................176

5.4 Povo de Israel ................................................................................................................184

5.5 “H” maiúsculo x “h” minúsculo ....................................................................................189

5.6 Racismo, Justiça e Dona Luiza .....................................................................................191

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................................197

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................211

APÊNDICE A – Mapa Relacional ......................................................................................227


19

INTRODUÇÃO

“Pode-se levar uma vida boa em uma vida ruim?”


(Butler, 2018)1

O que demanda estar junto?

“A gente vai abrir junto a caixa-preta do estupro”. Foi o que me disse Dona Luiza, já
se preparando para deixar a sede do Núcleo do Sistema Penitenciário (NUSPEN) da
Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro (DPGE-RJ) e enfrentar, na rua, uma
primavera com vontade de ser verão. A frase, tão clara quanto aquele dia já próximo ao final
do ano de 2015, posicionava o estupro na escuridão de uma caixa e designava os responsáveis
por abri-la. Algo que não era conhecido poderia ser revelado, mais ou menos como acontece
quando são tornadas públicas informações cruciais que ficam armazenadas em dispositivos
resistentes até mesmo a acidentes capazes de ocasionar a destruição total de aeronaves e a
morte de passageiros e tripulantes. Dona Luiza, do alto dos seus sessenta e tantos anos,
parecia me dizer que a conhecer era um ato que se assemelhava ao de encontrar um desses
equipamentos no fundo do mar, próximo a destroços. Justamente porque essa senhora era
mãe de um homem, Marquinhos, condenado por ter estuprado a própria filha, Luana, entendi
que a caixa-preta à qual ela fazia alusão poderia ser a pessoa que de pé se despedia, levando
consigo as relações que a fizeram ir até aquela repartição pública. O conhecimento que essa
mãe carregava pela cidade inscrito nas rugas da sua pele negra, ao ser comunicado a mim,
vinculava a pesquisa à tarefa arriscada de fazer circular a perspectiva de Dona Luiza sobre o
crime documentado em cantos onde ela não circulava. O verbo “abrir”, sugerindo a
necessidade de liberação do que está trancado, apenas relativamente trancado, me angustiava
menos do que o emprego do adjetivo “junto”. “Abrir junto” soava como projeto político
comum.
Já no primeiro instante, eu me afeiçoei a Dona Luiza e ao seu jeito de acomodar as
palavras. Não era difícil estar com ela, pelo contrário. Complicado, em termos éticos,
políticos e morais, seria fazer da narrativa de injustiça proferida por Marquinhos, por sua mãe

1
Esse é o título de um artigo de Butler inspirado, como reconhece a autora, nas formulações de Adorno (1993)
sobre uma pergunta semelhante em “Minima Moralia: reflexões sobre a vida danificada”.
20

e pelas irmãs dele um projeto antropológico de desqualificação das narrativas estabilizadas


nas páginas do processo que culminou no cumprimento de pena 2 pelo pai de Luana. O
questionamento, por Dona Luiza, da sentença condenatória é politicamente controverso
porque resulta, por exemplo, no descrédito da narrativa da sua neta – uma criança que teria
sido manipulada pela própria mãe, Jurema, e então inventado “coisas”. Escrever sobre o
estupro de Luana, aquele que existe em documentos estatais, a partir do que Dona Luiza
afirma é mobilizar um tecido relacional no qual Marcos é afetivamente tratado no diminutivo,
Jurema é classificada como “cobra” e a verdade jurídica, mesmo negada, insiste em insinuar
a sua presença no cotidiano. Se esta tese tem uma pergunta principal, trata-se da seguinte: o
que implica levar a vida com homens condenados por crimes sexuais para as mulheres que
com eles compartem laços afetivos, partilham os dias e trabalham para tornar essa vida
viável?
Seria tão ingênuo dizer que não existem falsas acusações (LANCASTER, 2011)
quanto descrever a narrativa de injustiça de Marquinhos e seus familiares como sendo tudo
o que existe. Parto do princípio de que somente há injustiça quando empreendedores morais
(GOFFMAN, 2012) alcançam algum sucesso em suas campanhas acusatórias, baseadas em
evidências concretas ou não. As acusações, se operacionalizadas através da administração
pública (SOUZA LIMA, 2002), se transformadas em sentenças condenatórias, produzem
efeitos experienciais que não se limitam àquele que foi punido. Nesse sentido, ao menos uma
parcela da vivência de Dona Luiza e suas filhas é fruto da capacidade de um processo de
“estupro de criança” afetar um tecido relacional. Estou interessado em descrever a relação de
sujeição à verdade jurídica, dando-lhe um contorno experiencial, tão individual quanto
coletivo. Como preocupo-me em pensar a sujeição como algo que perpassa não somente as
pessoas, mas também a relacionalidade, dou atenção especial à relevância do mal, do amor,
da mentira e do perdão, bem como do gênero, da classe, da geração e da raça, na sedimentação
disso que estou chamando de tecidos relacionais: limites relacionais estreitos onde
minhas(meus) interlocutoras(es) 3 habitavam e fomentavam processos de humanização
daqueles que foram considerados criminosos sexuais. Descrevo processos, lutas e/ou práticas
afetivo-morais que, sem dúvida, eram extenuantes, prazerosos e doloridos – vivíveis.

2
A sanção penal é um tipo de restrição que a lei impõe a um indivíduo que praticou um ato ilícito, antijurídico
e culpável.
3
Quando relevante à minha argumentação, utilizo as palavras “interlocutor” e “interlocutora” de modo a
explicitar a existência de experiências generificadas, bem como os seus efeitos no meu material etnográfico.
21

Quando conheci a mãe de Marquinhos, ele estava cumprindo pena em uma unidade
penitenciária de regime semiaberto no centro do Rio de Janeiro. Isso significa que, assim
como os outros homens ali encarcerados, Marquinhos trabalhava e/ou estudava fora do
sistema penitenciário. A maior parte dos condenados com os quais conversei passaram por
essa prisão e, por conseguinte, foram assistidos 4 da defensora Fabiana. O fato é que eu
somente pude conhecer Dona Luiza porque Fabiana recebeu a mim com entusiasmo,
interesse e uma demanda: se ia pesquisar através do seu gabinete os efeitos do que foi
documentado como crime sexual, deveria expandir o meu horizonte de interesse e incluir na
tese o encontro entre crimes sexuais e as formas de gestão de homens portadores de transtorno
mental. A minha relação com Fabiana floresceu baseada em uma troca plausível: ela me daria
acesso às famílias e aos homens que aceitassem conversar comigo sobre estupro na
Defensoria e eu voltaria atenção também aos manicômios judiciários da cidade. Aceitando a
troca, aceitei um projeto de pesquisa. Fabiana, então, protocolou os meus interesses de
análise; enviou ofícios notificando o então coordenador do NUSPEN e o então defensor
público geral sobre a minha existência; criou um grupo de estudo e pesquisa vinculado à
Associação dos Defensores Públicos do Rio de Janeiro (ADEPERJ), local onde discutíamos
textos de filosofia, sociologia, antropologia e direito; me levou, junto a outros pesquisadores,
para inúmeras reuniões oficiais e unidades prisionais; e, baseando-se no princípio da
confidencialidade, facultou a mim algum acesso a documentos.
Segui Dona Luiza na intenção de encontrar Marquinhos, o que aconteceu somente
quando Fabiana, auxiliada pela servidora e pelos estagiários que trabalhavam em seu
gabinete, conquistou a concessão da liberdade condicional dele, precisamente a possibilidade
de ele terminar de cumprir em liberdade a pena que lhe foi imposta. Enquanto Dona Luiza
me levava da Defensoria até a sua casa, Fabiana me levava aos manicômios judiciários onde
presenciei os atendimentos realizados por ela na companhia de equipes técnicas compostas
por psicólogos, profissionais do serviço social e outros especialistas. Aos poucos, pude notar
que, tal como Dona Luiza, Fabiana se tornou uma pessoa afetivamente próxima, que me
vinculava a outras e me permitia visualizar certos aspectos correlacionados a estupros – e não
outros. Seguindo a defensora tive a oportunidade de observar as práticas de governança a
partir das relações interpessoais em três âmbitos, dentre os quais sublinho o destaque que
atribuo ao primeiro e ao terceiro: (1) a relação entre administradores; (2) a relação entre

4
Para uma análise do termo, ver Freire (2015).
22

administradores e administrados; (3) a relação entre administrados. Pode-se dizer que o


segundo eixo analítico desta tese se desdobra a partir das seguintes perguntas: o que implica
administrar homens condenados por crimes sexuais e qual o lugar desses homens no universo
prisional?
A tese está dividida em duas partes que guardam em comum a aposta na
relacionalidade como eixo analítico, ainda que a partir de ênfases diferentes: a primeira parte
está mais associada aos estudos de família e parentesco e a segunda, centrada em uma
discussão sobre as práticas de governança. Essa separação é uma abstração que faz sentido
somente até certo ponto, uma vez que combino a discussão sobre família e Estado através de
um enfoque fenomenológico das relações que repercute em todo o material: se em um
primeiro momento preocupo-me em descrever os efeitos da presença estatal nos tecidos
relacionais, sob o signo da sentença condenatória, no segundo momento preocupo-me em
descrever de que maneira as relações interpessoais fazem o Estado, isto é, dão carnatura
notavelmente particular aos procedimentos que regulam casos, corpos e o lugar dos
criminosos sexuais no contexto administrativo-prisional. Em outras palavras, Dona Luiza e
Fabiana são interlocutoras que me habilitaram a enxergar de maneira específica os homens
pelos quais buscava e encontrei. Como destinei momentos específicos para a discussão das
questões colocadas por cada uma delas, sugiro aos leitores que, assim como as segui, me
sigam; ou melhor, acompanhem a ordem dos capítulos, porque os meus argumentos seguem
um movimento espiralado: vão sendo adensados, retorcidos ou repetidos de novos ângulos
conforme novas pessoas e novas relações emergem. A leitura do último capítulo, mais do que
a de todos os demais, tende a exigir familiaridade com alguns dos homens que ali aparecem
de maneira fortuita, mas foram em sua maioria anteriormente apresentados a partir da
descrição das relações em que habitavam. Nos anexos, está disponível um mapa afetivo-
moral das relações que serve para situar as(os) minhas(meus) principais interlocutoras(es).

A figura do estuprador e os tecidos relacionais

Quando iniciei o trabalho de campo em meados de 2015, não imaginava que a


relacionalidade assumiria um caráter crítico no meu material etnográfico. Pensava que, assim
como Machado (1998) e Segato (2003), me dedicaria mais diretamente à análise do que
dizem os criminosos sexuais. Esse ímpeto não se reproduziu firmemente, dentre outras
razões, por um fato bastante objetivo: mães, tias, vizinhas, conhecidas, namoradas, filhas e
23

afins, nas terças-feiras, dia de atendimento de família, lotavam o NUSPEN. Assim como as
filas dos presídios (LAGO, 2019), as das instituições de justiça a eles vinculadas costumam
ser femininas, fato que em si mesmo carrega assimetrias de gênero em torno de aspectos
como cuidado e/ou lida com a burocracia. A convivência com essas mulheres, bem como
com os seus entes queridos, me obrigou a centralizar a discussão da tese menos em uma
análise das masculinidades, questão central no capítulo cinco, do que em uma análise das
relações de gênero em sentido amplo. Enquanto Segato e Machado enfatizam o machismo
e/ou a dominação patriarcal naturalizadas pelos seus interlocutores a ponto de estupros serem
por eles descaracterizados como violência, descrevo as assimetrias das relações de gênero
sobretudo a partir do modo como as minhas interlocutoras respondiam a elas, isto é, a partir
do modo como essas mulheres respondiam a homens que não eram quaisquer homens, mas
aqueles em quem elas depositavam expectativas sociais sólidas e múltiplos afetos, nem todos
valorados como positivos em nosso horizonte cosmológico.
Pode-se dizer que descrevo a normatividade das relações de gênero, descendo as
normas a um plano ordinário (DAS, 2007), buscando enxergar o que acontece ali onde um
criminoso sexual é também um filho em quem se confia, que tanto se ama e tanto irrita. Foi
olhando para as mulheres que me vi obrigado a refletir sobre o que é ter um estuprador na
família, mais precisamente sobre o que é conviver com alguém que a Justiça afirma ter
praticado algum crime sexual. Se todos os homens com os quais conversei tivessem sido
condenados após o ano de 2009, os seus crimes seriam os de estupro e/ de estupro de
vulnerável, especialmente este último, o que não ocorre exatamente assim porque vários deles
foram condenados em momento anterior à última mudança do Código Penal. Utilizo mais
frequentemente a categoria abrangente de crime sexual para não ter que especificar tipos
penais que já não existem e são menos relevantes à minha análise do que as categorias morais
de uso corrente, tais como “estuprador”, “pedófilo”, “estuprador de criancinha”, “Jack” 5,
“duzentão”6, “do artigo”7, etc.
Debert e Gregori (2008), há mais uma década, alertaram sobre a importância de
distinguirmos as práticas de violência dos processos que criminalizam abusos porque as

5
Referência ao filme “Jack, o Estripador” e, mais amplamente, à figura de um “assassino em série” que atuou
nos arredores de Londres no século XIX.
6
Referência aos tipos penais definidos pelos artigos 213 (estupro) e 217 (estupro de vulnerável) do Código
Penal.
7
Referência aos tipos penais em abstrato.
24

categorias jurídicas para enquadrar tais processos não são autoevidentes, e sim objeto de
disputa. Essas categorias têm uma história político-social, mas também histórias
administrativas8. Desse ângulo, cabe observar que a violência sexual narrada em sede policial
por Jurema, a ex-mulher de Marquinhos, somente aos poucos transformou-se em crime
sexual. Foi durante o curso desse processo lento e burocrático que Dona Luiza passou a
investir firmemente na narrativa de injustiça que combatia o que Jurema disse à Justiça e que
a Justiça, a seu ver, erroneamente transformou em verdade jurídica. Devo dizer também que,
antes mesmo de Marquinhos ser condenado, ele foi preso e sua captura foi televisionada.
Trataram-no como um estuprador, um pedófilo, um monstro. Estou ciente, portanto, de que
faço referência a processos sociais distintos: a identificação de dada prática como violência
sexual, sua transformação em categoria jurídica e a atribuição político-moral de
monstruosidade operada em larga escala. Há, porém, algo performativo entre essas três
dimensões da vida social, algo que se combina e dá vida à figura do estuprador. Não estou
dizendo que a Justiça forja monstros, e sim que, ao construir criminosos sexuais, sedimenta
uma verdade à qual se atribui forte valor social e que legitima a afirmação, por exemplo, de
que Marquinhos é um estuprador, afinal, quem disse isso “foi o Estado”, e não somente
Jurema ou os programas de reportagem de cunho sensacionalista. A condenação é um
momento grave para os meus interlocutores também porque faz da narrativa de injustiça uma
fala com pouco valor. Trata-se do início figurativo de algo que já havia acontecido, mas não
nos mesmos termos e não com o mesmo poder de verdade. Algo que remete à Jurema, à
acusação por ela promovida, mas em muito a ultrapassa. Algo não que termina de acontecer,
mesmo quando o corpo condenado é liberto. A figura do estuprador, especialmente de
menores, está sempre se projetando um pouco mais adiante e assim sujeitando pessoas e
relações.

8
Debert e Gregori (2008) descrevem como se constituiu a associação entre violência e gênero, enfatizando o
papel desempenhado pelos feminismos e pelo mundo jurídico na conformação de categorias que antecederam
a de “violência de gênero”: “violência contra a mulher”; “violência conjugal”; “violência doméstica”; etc. Cada
uma dessas categorias se correlaciona não somente com a conformação de um sujeito político (vítima) inscrito
em relações classificadas como violentas, mas também com institucionalidades que operacionalizaram a
transposição dessas múltiplas formas de violência em crimes. Essa perspectiva está presente em estudos
anteriores e posteriores a esse trabalho tão claro no que se refere à diferença entre crime e violência. Vieira
(2007) analisou processos históricos, políticos e jurídicos que culminaram na especificação da categoria abstrata
de “violência sexual” em categorias penais específicas em momento anterior à última mudança do Código Penal,
a de 2009. Lowenkron (2015), mais recentemente, explorou em detalhes o processo de combate político e
policial do que veio a chamar de monstro contemporâneo, o pedófilo. E outras análises priorizaram as rotinas
estatais de produção da violência sexual como crime, tais como Vargas (1993) e Nadai (2012).
25

Faço uso da expressão “figura do estuprador” buscando sinalizar, dentre outras coisas,
que no plano ordinário as pessoas chamam de estuprador aquele que também classificam
como “pedófilo”, “monstro”, “verme”, etc. Se, por um lado, sei que a gravidade do estupro
contra crianças é ímpar, que mais horror despertam os estupros seguidos de morte, que o
incesto é um crime dos mais indigestos, que os estupros coletivos causam choque particular,
por outro lado, percebi que a figura do estuprador opera no dia a dia como um vetor
catalisador dos horrores mais e menos graves. Nem sempre as pessoas especificam os crimes
aos quais se referem e, às vezes, o fazem depois de apelarem a uma categoria de acusação
mais englobante. Nesses casos, o “estuprador” torna-se somente aos poucos um “estuprador
de meninas(os)”. As pessoas podem também começar classificando alguém como “pedófilo”
e, posteriormente, denominá-lo como “estuprador”. O horror pode, portanto, transportar-se
de uma categoria mais crítica a outra mais geral. Mesmo que a figura do estuprador esteja
sempre sendo preenchida com cores, tons e notas afetivo-morais específicas, ela preserva um
sentido mínimo de gravidade e horror, a ser acrescido conforme os contextos e as pessoas em
interação. Trata-se de uma figura relevante à minha análise por dois motivos intimamente
conectados: (1) quando um homem é acusado de praticar algum crime sexual no seio de uma
família, emerge um corte entre aqueles que acreditam que a acusação é verdadeira e aqueles
que não; (2) os que pensam que a acusação é falsa passam a habitar o tecido relacional onde
a narrativa de injustiça é cotidianamente revivida. Nesse sentido, a expressão “tecido
relacional” é uma forma de descrever um corte nas relações familiares fabricado pela figura
do estuprador e também uma forma de demarcar a extensão limitada das relações que
facultam a possibilidade do condenado não ser somente um monstro, mas também alguém a
quem o bem pode ser feito.
É fundamental enfatizar que a figura do estuprador que mais aparece ao longo deste
trabalho é a do “monstro contemporâneo” − para usar a expressão cunhada por Lowenkron
(2015) −, o pedófilo, que tanto assusta e tanto exige dos que o circundam. Para desde já dar
carnatura às minhas colocações, volto à Dona Luiza e sua família. Quando Jurema acusou
Marquinhos de estuprar Luana em sede policial, a figura do estuprador adentrou nesse
universo familiar e provocou o realçar de mágoas anteriores ao próprio estupro, de tal modo
que era preciso explicar quem Jurema sempre fora para que então o seu ato de maldade fosse
compreendido como tal. Era preciso discursar sobre o passado para sedimentar um tecido
relacional e substancializar o mal no empreendedor moral responsável pela acusação, tema
do capítulo 1. A questão é que a figura do estuprador − do pedófilo, nesse caso − não somente
26

se dirigia ao passado para promover desde lá um corte relacional justificado pela maldade,
como também projetava-se em direção ao futuro ocasionando esforços para distanciar
Marquinhos da sua ex-mulher, através da formalização de um divórcio que nunca se
concretizava, mas também não deixava de ser objetivado e tentado. Acredito que, porque a
figura do estuprador move-se do presente em direção ao passado e do passado em direção ao
futuro, ela incide não somente sobre a maneira como as pessoas experienciam o tempo, mas
também sobre a forma atual das relações. A temporalidade é tematizada do capítulo 1 ao 3, a
partir de diferentes ângulos de observação e argumentos, justamente para não encapsular em
um único esquema interpretativo os efeitos que a figura do estuprador e/ou o estupro
promovem no interior dos tecidos relacionais. Aqui, ressalto apenas que a compreensão dos
tecidos relacionais criados, sedimentados e/ou afetados pelo estupro, geralmente negado,
exige um olhar voltado ao passado, ao presente e ao futuro que não será.
Logo no início do trabalho de campo, tomei uma decisão que marcou a minha
percepção dos cortes que venho mencionando e que criam essa zona estreita e interior à qual
dedico atenção, os vários tecidos relacionais. Optei tanto por não encontrar Jurema, algo que
Dona Luiza dizia que eu deveria fazer para que visse com os meus próprios olhos a pessoa
que a sua ex-nora era, quanto por não estar presente em situações de comensalidade que
juntavam as crianças que foram violadas aos pais que as violaram, segundo os documentos
estatais. Mesmo sem atravessar as fronteiras dos tecidos relacionais, logo dei-me conta de
que os seus limites, por mais enfatizados que fossem, eram manipuláveis. Vale frisar então
que não estou construindo uma distinção abrupta entre o lado das vítimas e o lado dos
condenados, porque existem formas de atravessá-los, de minorá-los, mas não exatamente de
ignorá-los como se nada grave houvesse acontecido. Depois que um homem é condenado por
algum crime sexual, as pessoas que o querem bem tendem a adensar as suas relações a partir
da narrativa de injustiça, e os que nela não acreditam, a se afastarem, movimento que pode
em algum ponto e por alguma razão, das mais grandiosas às mais bestas, reduzir de
intensidade, quiçá estancar. O capítulo 3, não à toa intitulado de “conciliação fraturada”, é
um exercício no sentido de entender o que acontece quando cortes relacionais existem, mas
são cruzados, retorcidos e costurados: quando o pai é o violador da filha que o quer perdoar,
quando uma senhora sabe que o seu affair estuprou dezenas de mulheres e quando almoços
de família incluem o tio que é considerado um pedófilo.
Os tecidos relacionais são histórias afetivo-morais das relações, modalidades de
percepção do comportamento passado de uns em relação a outros que influenciam o estado
27

atual das relações e, por conseguinte, o comportamento julgado adequado no presente. É


porque A fez algo com B que B disse que A estuprou, mas hoje A entende as razões de B;
porque C queria algo que D tinha, C disse que D estuprou, acusação que D jamais tolerou;
porque E queria separar-se de F, F disse que E estuprou, mas depois se arrependeu. Cada
caso corresponde a uma história afetivo-moral das relações, a um corte relacional cujo motivo
“original” está sempre aquém e além do momento da condenação e, ainda, a uma designação
do padrão de conduta de fulano em relação a sicrano, e vice-versa. Os tecidos relacionais são,
nesse sentido, histórias relacionais anteriores à acusação que não deixam de ser formas de
organização das relações atuais entre fulano, sicrano e terceiros – todas aquelas pessoas
(mães, tios, primas, vizinhos, etc.) que se sentem próximas o suficiente para julgar quem os
outros são e se estupros aconteceram ou não. Trata-se de pessoas que adotam de maneira
mais ou menos consciente linhas de comportamento em relação a acusadores e condenados,
que se estabilizam sem se fixarem de modo absoluto. Há algo que varia no comportamento
individual, mesmo quando as relações parecem seguir o seu fluxo mais habitual e estão
marcadas pelo senso de pertencimento a uma família. Como se verá, estou interessado na
moralidade dos comportamentos tanto em um nível discursivo (modalidades de organização
da história das relações centradas na confiança na injustiça) quanto em um nível mais
concreto (comportamentos direcionados no presente a pessoas específicas). Devo dizer ainda
que, em última instância, a concepção de tecido relacional com a qual estou trabalhando não
é redutível a um corte no interior da familiar nuclear, nem mesmo ao parentesco estendido,
pois refere-se também a cortes nas relações de proximidade, por exemplo: entre os vizinhos
que creem na injustiça e os que não creem, existindo entre os dois extremos uma infinidade
de percepções flutuantes, ambíguas, etc.
Em After Kinship, Carsten (2004) argumenta que uma resposta para a pergunta “o que
é ser parente?” depende de uma ênfase nas emoções, nas práticas morais e no gênero, muito
negligenciada pelos estudos clássicos. Até certo ponto, tal como a autora, invisto em uma
análise do parentesco / relatedness a partir das experiências cotidianas e sem divorciá-las dos
processos políticos, isto é, sem deixar de lado a análise da presença do Estado nas famílias
ou, de maneira ampla, nas relações de proximidade. Utilizando a pergunta de Carsten como
parâmetro, a minha seria: o que demanda estar junto de homens condenados por crimes
sexuais? Como na próxima seção discorro brevemente sobre os estudos que orientam a
maneira como articulo relações entre moralidade, emoções e gênero, enfatizo agora o modo
como penso a relação entre Estado e família / relações de proximidade. Parto do princípio de
28

que esse tipo de preocupação analítica não é uma novidade nos estudos sobre família, como
bem aponta Fonseca (2010) em balanço da produção nacional sobre o tema. Destaco, a título
de exemplo, os trabalhos da própria autora (2010; 2013) e os de Vianna (2005; 2011), cujas
formulações versam sobre moralidade, Estado e/ou afeto sem serem redutíveis ao conjunto
de significados que o termo relatedness veio a assumir. A especificidade do meu material
deriva da relevância que os meus interlocutores atribuíam à condenação, especialmente os
homens, como produtora de uma alteração radical em suas vidas. Era comum que as falas
deles sobre a injustiça da Justiça ganhassem destaque maior do que a experiência prisional,
bem como apontassem, ainda que muitas vezes em tom menor, a existência de uma plêiade
de trabalhos femininos de amortização do impacto da figura do estuprador. Se o Estado está
contido nessa figura como uma chancela para a sua projeção e estabilização em homens de
carne e osso, posso dizer que a minha preocupação com o Estado é uma preocupação com a
condenação, mais detidamente com o efeito da legitimidade da verdade jurídica, seja no que
se refere à produção de cortes relacionais, seja no que se refere ao impacto que causa no
interior dos tecidos relacionais.
Se é incomum o olhar voltado ao que acontece “depois do estupro” nos tecidos
relacionais onde habitam os condenados, não é incomum a atenção destinada ao que
poderíamos chamar de maneira relativamente vaga de problemas de família: brigas, intrigas,
mortes, fofocas, fraturas, expulsões, singularidades, autoafirmação – toda sorte de questões
que levam ou podem levar a desavenças, que, em certos casos, cruzam a administração estatal
e a cena pública. As pesquisas de Fonseca (2000), Marques (2007), Velho (2009), Piscitelli
(2006) e Duarte e Gomes (2008), dentre outros autores, fizeram parte da minha formação e
certamente inspiram a maneira como construo esta tese. Marques, na apresentação de livro
dedicado às relações pessoais, aos conflitos e à política, temas frequentes do NUAP (Núcleo
de Antropologia Política), sintetiza uma proposta coletiva para a abordagem da questão do
conflito, que remete a Simmel (2011), e certamente reverbera ao fundo no modo como
construí a minha etnografia:

Ao fazer das circunstâncias de conflito ou de aspectos conceituais ligados


ao tema um objeto de análise, busca-se elementos de organização próprios
dos diferentes conflitos, e não de uma ordem ou paz que lhe seja superior
ou englobante. Assim concebida, a mesma disposição analítica pode ser
estendida aos momentos e conceptualizações relativos à solidariedade e
harmonia. Dessa forma, hipoteticamente coextensivos, conflito e
solidariedade, violência e paz são tomados como provisórios, como
29

alcances diferenciados e dotados de significados específicos, que


pretendemos desvelar (MARQUES, 2007, p. 8).

Selecionei esse trecho de um texto que se propõe a pensar sobre a temática do conflito
e da ordem em largo espectro, desde as abordagens clássicas desses fenômenos, porque nele
a ideia de ambivalência aparece de modo implícito, inscrita na coextensão entre conflito e
harmonia. O meu esforço, na próxima seção, é exatamente o de tornar explícito o que entendo
por ambivalência. A tese de Andrade (2018) sobre narrativas femininas de amor e sofrimento
em relacionamentos violentos e destrutivos foi particularmente importante para que eu me
desse conta da qualidade ambivalente dos fenômenos com os quais lidei em campo e sobre
os quais escrevi. Sua proposta de “fazer falar as relações” foi sem dúvida alguma um ponto
de partida, pois esta expressão requer e diz respeito à própria abordagem do conflito proposta
por Marques (2007), bem como abre espaço para a caracterização dos dilemas da vida em
proximidade a partir de um contorno existencialista. Tenho a impressão de que tive menos
dificuldade em descrever as experiências de amor, perdão e humilhação como ambivalentes
do que em aprofundar a análise das ancoragens religiosas dessas experiências. Cada vez que
me esforçava para fazer falar as relações, me via imerso em um mundo cristão – repleto de
sinuosidades e vivências específicas da fé – ao qual mais aponto do que elucubro sobre.
Conversões às religiões protestantes, compreensões bíblicas e afetos que remontam ao
cristianismo e suas relações com o secularismo são lacunas a serem exploradas à medida que
venha a avançar em leituras e treinos apenas iniciados nesta etapa. De todo modo, preferi
manter a presença dessas questões na minha etnografia do que apagá-las. Se não as deixo
soltas, sem algum tipo de localização e análise, também não dedico a elas a mesma atenção
que dedico ao gênero, à ética ordinária e às emoções.

Habitar relações, habitar normas

Utilizo o verbo habitar para descrever a presença das(os) minhas(meus)


interlocutoras(es) nos tecidos relacionais porque quero demarcar o engajamento das(os)
mesmas(os) com as relações e no interior das relações, especialmente se comparado ao
engajamento de quem somente trafega nessas relações – o antropólogo, os administradores
estatais, os especialistas particulares, etc. Em uma cosmologia que privilegia a noção de
indivíduo, os processos de individualização e a compreensão das relações como exteriores às
30

pessoas (DUARTE, 2012; STRATHERN, 1992), a condenação por qualquer crime sexual,
inseparável da figura do estuprador, produz a acentuação da importância dos tecidos
relacionais e marca o engajamento interpessoal nesses tecidos. Isso acontece não somente
porque a vida na prisão gera muitas demandas para os que ficam do lado de fora dos seus
muros (peregrinações burocráticas, dinheiro, visitas, afetos, etc.), mas também, e sobretudo,
porque a própria humanidade de quem está sujeito a ser nada mais que um monstro depende
em muito da extensão dos tecidos relacionais, dessas faixas estreitas onde a figura do
estuprador é combatida, afastada e/ou questionada. Para ser mais fiel aos meus dados, devo
salientar desde já que buscarei demonstrar que a figura do estuprador projeta sobre os ombros
das mulheres o trabalho de cuidar, amar, perdoar e silenciar, bem como a tarefa de dizer
através dos sentimentos, dos atos e das palavras: vejam, esse não é um estuprador, ou então,
esse não é somente um estuprador. Essa projeção está diretamente relacionada à
normatividade das relações de gênero, isto é, aos mecanismos que normalizam tanto o que
“é” e “deve ser” o feminino quanto o que “é” e “deve ser” o masculino. Segundo Butler
(2006; 2014), as repetições normativas das noções de masculinidade e feminilidade, das
formas de ser e sentir-se homem e mulher, consolidam as normas de gênero produzindo a sua
aparente naturalidade; contudo, a própria necessidade de repetição dessas normas assegura a
possibilidade de que vacilem, trazendo à vida repetições subversivas capazes de
desnaturalizar e de desconstruir os padrões de conduta tidos como femininos e masculinos,
bem como o próprio binarismo que se autoalega natural9.
Quando digo que os meus interlocutores, homens e mulheres, habitavam tecidos
relacionais, levo em consideração o trabalho de Saba Mahmood (2005), particularmente a
proposta de descrever não exatamente o modo como os sujeitos resistem às normas, algo que
para a autora teria sido superenfatizado pela teoria da performatividade do gênero 10 articulada

9
“Quer estejamos nos referindo à ‘confusão de gênero’, ‘mistura de gêneros’, ‘transgêneros’ ou ‘cross-
gêneros’, já estamos sugerindo que gênero se move além do binarismo naturalizado. A assimilação entre gênero
e masculino/feminina, homem/mulher, macho/fêmea, atua assim para manter a naturalização que a noção de
gênero pretende contestar” (BUTLER, 2014, p. 254).
10
Em sua crítica à teoria da performatividade proposta por Butler (2008), Saba Mahmood (2005) infere que há
uma inclinação dualista na forma de pensar as normas: ora a partir de sua atualização, ora através de sua
subversão. O problema estaria no fato da agência ser localizada por Butler expressivamente nos momentos de
ressignificação das normas. Mahmood defende que seria preciso não delimitar a priori os modos de agência, já
que estes revelam-se não apenas como uma capacidade de resistir ou subverter, mas também como algo que se
realiza nas múltiplas maneiras de habitar as normas. Partindo desse ponto de vista, a autora demonstrou em seu
livro, Politics of Piety (2005), como mulheres adeptas a um movimento político religioso no Egito trabalhavam
sobre si mesmas de modo a constituírem as suas condutas como virtuosas. A agência foi entendida como
manifesta no exercício de cotidiano de fazer de si uma muçulmana melhor. Politics of Piety é um livro que
31

por Butler (1990), e sim as maneiras como os mesmos as habitam com empenho e vigor. No
centro da formulação de Mahmood, está o conceito foucaultiano de paradoxo da subjetivação
(FOUCAULT, 1982): os sujeitos são habilitados por relações de sujeição específicas e
somente através dessas relações tornam-se aptos a agir e a sentir de uma dada maneira. O
problema analítico enfrentado pela autora recobre frentes de investigação relevantes aos
meus propósitos. Destaco, a princípio, a crítica à compreensão do habitar as normas enquanto
gesto passivo e dócil, como se esse habitar não requisitasse esforço, treino e maleabilidade.
Nesse sentido, os modos julgados bons e belos de ser, sentir e se portar não existem fora das
relações de poder que viabilizam o trabalho que as pessoas executam sobre si mesmas
visando atingir um modo de conduta considerado virtuoso em dado contexto e em relação a
certas pessoas. Trata-se, enfim, de uma abordagem centrada na demonstração da capacidade
de agência enquanto imanente às relações de poder, conclusão bem caracterizada no trecho a
seguir:

Para esclarecer este paradoxo [da subjetivação], nós podemos considerar o


exemplo da pianista virtuosa que submete a si mesma ao regime, muitas
vezes doloroso, da prática disciplinar, bem como às estruturas hierárquicas
de aprendizado visando adquirir a habilidade – a agência requisitada – para
tocar o instrumento com maestria. Com efeito, a agência dela está baseada
em sua capacidade de ser ensinada, uma condição classicamente
denominada “docilidade”. Embora tenhamos vindo a associar docilidade
com o abandono da agência, o termo literalmente implica a maleabilidade
requerida de alguém de forma a ser instruída em uma determinada
habilidade ou conhecimento – um significado que carrega menos o sentido
de passividade do que o de luta, empenho, esforço e conquista
(MAHMOOD, 2005, p. 29)11.

O exemplo da pianista me é caro porque faculta a possibilidade de entendermos os


esforços das minhas interlocutoras em relação aos homens condenados com quem elas

questiona os limites da imaginação política liberal que informa teorizações e práticas feministas/pós-estruturais:
“If we recognize that the desire for freedom from, or subversion of, norms is not an innate desire that motivates
all being at all times, but is also profoundly mediated by cultural and historical conditions, then the question
arises: how do they analyze operations of power that construct different kinds of bodies, knowledges, and
subjectivities whose trajectories do not follow the entelechy of liberatory politics?” (Mahmood, 2005, p. 14).
11
No original: “To clarify this paradox, we might consider the example of a virtuous pianist who submits herself
to the often painful regime of disciplinary practice, as well as to the hierarchical structures of apprenticeship, in
order to acquire the ability – the requisite agency – to play the instrument with mastery. Importantly, her agency
is predicated upon her ability to be taught, a condition classically referred to as ‘docility.’ Although we have
come to associate docility with the abandonment of agency, the term literally implies the malleability required
of someone in order for her to be instructed in a particular skill or knowledge – a meaning that carries less a
sense of passivity than one of struggle, effort, exertion, and achievement” (Mahmood, 2005, pg. 29).
32

partilhavam a vida como agência, sem, no entanto, quitar o fato dessa agência estar ela mesma
envolta em uma relação de sujeição às normas de gênero, mas também à verdade jurídica.
Podemos pensar que a condenação representa um momento crítico na vida dessas mulheres
porque as sujeita a revisar tanto as relações em que habitam quanto os seus modos de agir
diante do outro, isto é, as obriga a tomar decisões, nem sempre ancoradas em processos
reflexivos agudos, sobre como conduzir a si mesmas quando a acusação de estupro ocorre,
depois da condenação e, enfim, diante dos homens que, após saírem da cadeia, voltam a
habitar com elas um mesmo tecido relacional. A injustiça, nesse sentido, é um discurso
afetivo-moral, um modo de levar a vida, que, ao passo em que combate o poder da Justiça de
sedimentar a verdade, o referenda. Nos casos mais graves, processos de revisão criminal 12
são elaborados com objetivo de que a Justiça, a partir da sua própria lógica de funcionamento,
diga que errou. A sujeição à verdade jurídica não liquida a legitimidade do aparato
burocrático, bem ao contrário, pois parece demandar modalidades de agência daqueles que
foram condenados e daquelas que os circundam, modalidades essas que muitas vezes
reiteram em termos normativos as assimetrias de gênero inscritas nas formas de amar, perdoar
e/ou cuidar.
A questão que parece circundar o trabalho de Mahmood é justamente a de como
entender a agência. A meu ver, trata-se de um vocabulário contemporâneo cuja força política
e relevância é inegável, mas nem sempre, do ponto de vista analítico, é bem explorado. Ao
tratar dos modos femininos bons e belos de ser e se portar enquanto normas, a autora não
somente compreende o gênero, os sentimentos e os valores como imersos em relações de
poder, mas também aproxima o conceito de agência da ideia aristotélica de virtude, da ética
pensada em termos de virtudes. Sua defesa é a de que não devemos nos perguntar o que essa
ética significa, e sim o que ela faz, produz ou traz ao mundo. Nesse sentido, as práticas
virtuosas são positividades porque permitem que pessoas operem um conjunto de ações sobre
si mesmas, visando à aquisição de modos de conduta em acordo a um dado estilo de vida, a
uma dada forma de sentir e pensar compartilhada localmente. Parece que o trabalho de si
sobre si mesmo não é bem compreendido se percebido como algo puramente individual, um
autocentramento ou uma renúncia ao outro. Trata-se, antes, da presença do outro em si, de

12
Segundo o Art. 621 do Código de Processo Penal, “A revisão dos processos findos será admitida: I – quando
a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos; II – quando a
sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos; III –
quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que
determine ou autorize diminuição especial da pena” (BRASIL, 1941).
33

um trabalho que não se faz completamente sozinho e que está destinado ao outro. Estou
buscando demarcar, por um lado, que a noção de agência se associa na linguagem de
Mahmood à compreensão da ação enquanto prática moral, e, por outro lado, que a ação,
embora seja habilitada pelas normas, não é por elas determinada. Diria, então, em acordo
com Butler (2014), que as normas não são o mesmo que as ações, ainda que as primeiras
governem e tornem inteligíveis as últimas13. Na medida em que existem ações passíveis de
serem governadas e reconhecidas pelas normas como pertencentes ao campo do social, é
ímpar entender as normas como parâmetros de legibilidade e exclusão. No limite, mesmo as
ações que se dão fora das normas, ou as que as subvertem desde o seu interior, não deixam
de ser definidas pelas normas que consolidam o social e regulam o que será idealizado como
um padrão a ser seguido e o que será posto de lado de fora. Nesse tipo de abordagem, o
exterior é sempre constitutivo do interior, nascem em relação de codependência.
As formulações de Mahmood sugerem, enfim, a necessidade de pensarmos quais os
benefícios e os custos da compreensão da agência enquanto prática virtuosa. Sem a menor
pretensão de resumir o sofisticado caminho etnográfico desbravado pela autora, limito-me a
dizer que sempre me chamou atenção o seu esforço no sentido de articular os conceitos
foucaultianos de disciplina e docilidade, presentes no livro Vigiar e Punir (1997), com outras
formulações do próprio autor, a exemplificar pela preocupação dele com o cuidado de si e
com os modos de conduzir-se. Convencido de que a leitura da agência em termos ético-
morais no interior das normas complexifica a abordagem da ação cotidiana – nos obriga a
complexificar a nossa imagem das práticas habituais e, portanto, do que vem a ser a vida
ordinária –, passo à crítica de Schielke (2000) à etnografia de Mahmood enquanto produto
revelador de histórias de sucesso. Para o autor, o foco nas virtudes redundaria no
subdimensionamento das ambivalências da vida social: se há vitalidade quando alguém
efetiva uma conduta virtuosa no interior de certas normas, deve haver também dor, falência,
sensação de exaustão, incapacidade de responder de modo belo, desgosto provocado pela
reiteração do virtuoso e dezenas de outros desconfortos – para ficar com uma palavra amena.
Custos a serem dimensionados. Seguindo um caminho centrado na análise desses custos, Jack

13
“Para que o gênero seja uma norma, isso sugere que ele esteja sempre e apenas tenuamente incorporado num
ator social específico. A norma governa a inteligibilidade social da ação, mas não é o mesmo que a ação que
ela governa. A norma parece ser indiferente às ações que ela governa, e com isso quero dizer apenas que a
norma aparenta ter um estatuto e efeito independente das ações governadas por ela” (BUTLER, 2014, p. 252-
253).
34

Halberstam (2011) contrapõe-se à ênfase na formação dos sujeitos, presente no material


etnográfico de Mahmood, e argumenta que é preciso dar atenção às formas de deixar de ser,
isto é, aos modos de evasão das promessas de felicidade e sucesso 14 costumeiramente
desiguais, excludentes e produtoras da frustração individual e coletiva. Evitando recair em
uma postura que priorize a virtude em detrimento da falência, ou o inverso, que trate as
proposições teóricas e políticas como se fossem autoexcludentes, esta ou aquela, Díaz-
Benítez, Fernandes e eu ressaltamos que:

Os sujeitos que habitam normas podem se sentir repletos de tédio,


insatisfações e mágoas e, concomitantemente, podem imaginar futuro
outro, dias melhores, a felicidade por vir e o sucesso ainda a alcançar. O
desfazer dos sujeitos não está necessariamente em oposição ao fazer. Se as
normas existem em dinâmicas sociais passíveis de serem descritas, tanto a
estabilidade quanto a instabilidade das múltiplas respostas individuais
devem ser consideradas. O questionamento das fórmulas de sucesso e
felicidade atravessa a compreensão das formas de participação dos sujeitos
(DÍAZ-BENÍTEZ; RANGEL; FERNANDES, 2018, p.19).

Ao longo desta tese, preocupo-me com as experiências ambivalentes dos meus


interlocutores: tentativas de perdão que provocam o reviver do estupro, amores que
dilaceram, práticas de cuidado que irritam, regozijos provocados pela prática da humilhação,
sentimentos de confiança pesados demais para manterem-se integralmente firmes, ideais de
masculinidade perseguidos e frustrados, etc. Deslocando a preocupação de Mahmood, mas
ainda assim partindo dela, diria que me interesso pelas condutas que, mesmo quando falham
em serem virtuosas, alcançam algum sucesso – mais limitado que o pretendido e, por isso
mesmo, produtor de frustração, quiçá de irritação. A classificação de um dado fenômeno
como ambivalente, sugere Strathern (1999), levanta sempre a dificuldade de sabermos se tal
fenômeno, uma dada experiência, é de fato inerentemente ambivalente ou se essa
classificação não releva apenas uma incompetência descritiva do etnógrafo. Para escapar da
possibilidade de falhar em termos etnográficos, aposto na interação como unidade análise
(GOFFMAN, 2012; COELHO, 2013). Volto-me aos modos de apresentação de si frente ao
outro, às formas assumidas pela relacionalidade marcada pelo controle das impressões e pelos
afetos e, ainda, ao fundo falso das palavras, às dinâmicas de ordem mais inconsciente
presentes na interação e trabalhadas aqui de maneira um tanto tentativa. Ao passo que avanço

14
Para uma análise da promessa da felicidade, ver Ahmed (2010).
35

em minhas descrições, o vocabulário de partida, a agência lida numa chave ético-moral, é


cruzado a outras formulações, visando complexificar a nossa imagem da ação habitual. Passo
da agência como prática moral ao otimismo cruel (BERLANT, 2010), do trabalho emocional
(HOCHSCHILD, 2013) ao mandato transgeracional (DUARTE, 2011), sem abandonar a
preocupação com as nuances da vida ordinária.
Os trabalhos interessados nas “texturas” (DAS, 2018) e nas “tonalidades” (LAMBEK,
2015) do cotidiano guardam em relação à minha etnografia semelhante enfoque na ética
enquanto inseparável das emoções, da ambiguidade e da incerteza15 – em torno da repetição
das normas, das experiências e dos efeitos das ações nas relações. Contudo, a importância
que atribuo às colocações de Foucault e Butler no conjunto das minhas formulações
aproxima-se mais diretamente do trabalho de Mahmood, o que certamente está relacionado
a uma insistência conjunta em torno do paradoxo da subjetivação e da análise dos modos de
habitar as normas, ainda que a partir de ênfases diferentes. A relevância de Foucault faz-se
notável também em outro conjunto de postulados que referendo e me serve de inspiração, tal
seja, a perspectiva “micropolítica das emoções” (REZENDE; COELHO, 2010). Desse
ângulo, não basta dizer que as emoções têm uma história social que escapa às pretensões
biologizantes, pois elas estariam relacionadas também a contextos específicos e a relações
igualmente específicas entre os sujeitos. A noção foucaultiana de discurso é fundamental à
perspectiva micropolítica, notadamente inspirada na abordagem contextualista de Lutz e
Abu-Lughod (1990), já que as emoções, assim como os discursos, estão imersas em relações
de poder e têm a capacidade de produzir a realidade, isto é, de gerar efeitos na relacionalidade
e dramatizarem e/ou tensionarem as hierarquias sociais. Se quisermos, seria possível em
última instância categorizar esta tese como uma “etnografia do particular” – para ficarmos
com a expressão cunhada por Abu-Lughod (1991) em análise da relação entre normas de
gênero, moralidade e emoção entre beduínos, ou melhor, em sua descrição de um mundo de

15
No prefácio de uma coletânea sobre perspectivas antropológicas da ética, Michael Lambek, Veena Das,
Didier Fassin e Webb Keane escrevem juntos: “We are agreed, though, that there is no moral or ethical essence
to be studied. Ethics can never be pure or absolute. It may be seen for some of us as a dimension of action, for
others as part of our life in language, or both. In any case, ethics draws on human affordances, has fuzzy
boundaries, is fraught with contingency, and is never free of emotion. Ethics is a part of life as it is lived with
others, worked out in interaction and conversation with others rather than transcendent of them, and within a
given historical, cultural, and social context. Our respective analyses try to address, acknowledge, and respect
complexity, uncertainty, and even ambiguity, to let them reveal themselves, rather than to resist, reduce, conceal,
or dissolve them” (LAMBEK; DAS; FASSIN; KEANE, 2015, s. p.).
36

mulheres (vários, para ser mais exato), bastante distinto do(s) mundo(s) que apresento nas
páginas a seguir.
Fiz do acesso à intimidade uma forma de reflexão sobre emoções específicas – muitas
vezes, fundamentalmente relacionadas a outras, assumindo a forma de complexos
emocionais (COELHO, 2010), e, outras tantas, vinculadas às formas tão individuais quanto
coletivas de experienciar as relações de gênero, os processos de racialização e as dinâmicas
geracionais. Cada interlocutor levou-me na direção de um autor, de modo que terminei
mobilizando formulações que nem sempre tomam as palavras “emoção”, “sentimento”,
“afeto” e “humor” como significando o mesmo. Tendo como sustentáculo a abordagem
micropolítica das emoções, trato essas palavras como sinônimos e faço distinções apenas nos
casos extremos, quando me parecem indispensáveis à compreensão do que tenho a dizer. O
meu compromisso está menos direcionado às categorizações – por exemplo, a da irritação
como um humor (NGAI, 2005), e não como uma emoção – do que à compreensão das
experiências e seus efeitos nos tecidos relacionais. Em linhas gerais, esta tese pode ser lida
numa chave emocional, seja no que se refere à narrativa de injustiça, ao otimismo cruel, às
práticas de silêncio e às queixas, seja no que se refere ao perdão, ao amor, à humilhação, à
frustração, etc. Os autores que cito estão inscritos em tradições de estudo pelas quais
sobrevoo, mas não necessariamente replico. Passo de Derrida (2005) a Katz (2013), de Miller
(1993) a Ngai (2005) e de Lorde (2007) a Berlant (2010), controlando conceitos a partir dos
meus dados. Estou mais interessado na forma como analisaram emoções específicas do que
nas políticas acadêmicas que culminaram em viradas – turns –, dentre elas a afetiva.

Relacionalidade e Estado

Seria limitado dizer que Fabiana foi quem mais me permitiu observar o particular sem
reduzi-lo a uma dimensão doméstica e privada, já que outras interlocutoras mostraram-me,
por exemplo, que a vida a dois pode bem exigir esforços no sentido da transformação do laço
de amor em uma ferramenta política e burocrática que parte do lar, mas nele não se esgota à
medida que avança na direção da Justiça, materializando-se em laudos que disputam o
próprio sentido de verdade da condenação por crimes de natureza sexual. Como a forma
burocrática do amor é um dos temas do capítulo 1, basta dizer agora que a Justiça na fala dos
meus interlocutores assume a qualidade de uma ideia, de um símbolo ao qual se atribui
legitimidade e com o qual se disputa, a partir de um lugar fundamentalmente assimétrico, o
37

poder de verdade (ABRAMS, 2006). A presença da Justiça nos tecidos relacionais pode ser
compreendida a partir da figura do árbitro que regula a relação entre algozes e vítimas e
impõe a todos que estão relacionados a essas figuras certos efeitos experienciais. Quando
Lacerda (2012) propôs lermos o Estado como um terceiro presente na relação entre vítimas
e algozes, ela apropriou-se do conceito simmeliano de tríade (2013), de modo a demonstrar
que a alocação do Estado como um árbitro produzia as famílias que tiveram os seus filhos
emasculados como vítimas fracas diante de um Estado poderoso que deveria não somente
protegê-las, mas também atribuir legitimidade à luta por justiça. As famílias com as quais
majoritariamente lidei encontravam-se em posição bastante diferente, porque se sentiam
prejudicadas por uma Justiça que apostou na autoevidência das vítimas de estupro e gerou
condenações injustas. O Estado, desse ângulo, é um árbitro cuja maldade é conhecida, mas
ao qual se recorre na esperança de que esse terceiro injusto um dia se revele justo. Esse parece
ser um exemplo da força da crença na legitimidade estatal, da simbologia da Justiça justa,
pois se mantém mesmo quando as revisões criminais falham.
Contudo, o Estado, como bem sugeriu o próprio Abrams (2006), existe não somente
como ideia, mas também em sua dimensão de administração e governança. Foi precisamente
a essa dimensão que Fabiana me chamou atenção ao mostrar-me que a burocracia pode operar
através da relacionalidade, isto é, radicalizando a relevância dos conflitos interpessoais, do
gênero e da moralidade no cotidiano das práticas de governo. Herzfeld (1993) reconheceu o
lugar das relações no aparato administrativo da seguinte maneira:

um burocrata pode oferecer uma xícara de café, um cigarro ou


simplesmente alguns comentários amigáveis aparentemente criados para
deixar o cliente à vontade. Isso não é necessariamente uma marca da
incompletude da burocratização em certos países, embora o jogo de
estereótipos muitas vezes o represente como tal. Pelo contrário, indica o
reconhecimento por todas as partes de que a burocracia é, na prática, uma
questão de relações sociais (HERZFELD, 1993, p. 177)16.

Defende-se, portanto, que a caracterização do aparato administrativo como exercício


de poder puramente formal, institucional e impessoal incorre ao risco de estereotipação,

16
No original: “a bureaucrat may offer a cup of coffee, a cigarette, or simply some friendly remarks apparently
designed to put the client at ease. This is not necessarily a mark of the incompleteness of bureaucratization in
certain countries, although the play of stereotypes will often represent it as such. Rather, it indicates a
recognition by all parties that bureaucracy is, in practice, very much a matter of social relations” (HERZFELD,
1992, p. 177).
38

comum quando se confunde a versão tipo-ideal da burocracia (WEBER, 1963) com a sua
forma empírica. Sugerir que o mundo oficial é ele mesmo pessoalizado não é, a meu ver, o
mesmo que renegar o valor atribuído à burocracia como desumanizada ou destituir a força
simbólica do tipo racional-legal, aquele que quer distanciar dos “negócios oficiais o amor, o
ódio e todos os elementos pessoais, irracionais e emocionais que fogem ao cálculo”
(WEBER, 1963, p. 251). Trata-se da oposição entre uma versão idealizada do Estado e outra
de cunho mais pragmático, ou melhor, de uma distinção entre as categorias tal como
estabelecidas em um dado horizonte cosmológico e tal como vividas no mundo que mira a
esse horizonte. Essas considerações são importantes para a compreensão do capítulo 4,
voltado em boa parte às modulações relacionais promovidas por administradores que ora
operam mirando a despessoalização dos procedimentos, ora operam pessoalizando-os, por
vezes até ao ponto em que a densidade relacional atinge uma forma que impede o trabalho
conjunto. Minha descrição da governança dos casos dos homens condenados por crimes
sexuais, tanto daqueles que cumpriam pena quanto medida de segurança17, volta-se a uma
análise das relações interpessoais, pois assumo que as relações contam algo não somente
sobre os administradores, como também, e principalmente, sobre o cotidiano das instituições
às quais eles pertencem. Buscando pensar o fazer do Estado a partir da relacionalidade, na
segunda parte desta tese não mobilizo a ideia de tecido relacional, deixando-a mais
circunscrita a uma leitura da presença estatal nas famílias.
Como mais adiante analisarei o que implica pesquisar na e através da Defensoria,
mobilizando inclusive dados para além da minha relação com Fabiana, limito-me agora a
explicar por que falar sobre as relações no contexto das pesquisas sobre crimes sexuais. Como
atenção foi destinada às técnicas administrativas, majoritariamente aos processos de
produção e circulação de papéis, desde a pesquisa seminal de Vargas (1997) até a de Nadai
(2012), passando ainda pela de Vieira (2007), optei por trazer para o primeiro plano a análise
da interação entre administradores. Não estou dizendo que as relações interpessoais não são
debatidas nesses trabalhos, e sim que não são o seu foco de análise. Vargas dedicou-se ao
que chamou de “fluxos” do Sistema de Justiça Criminal18 de Campinas; Nadai descreveu as
convenções narrativas e as técnicas de escrita adotadas em um Delegacia de Defesa da

17
“A medida de segurança é uma sanção de caráter preventivo, aplicada ao sujeito que não tem plena ou
parcial capacidade de culpabilidade, em decorrência da prática de um injusto penal, com a finalidade de retirá-
lo do convívio social e submetê-lo a tratamento com o intuito de cessar a sua periculosidade” (BATISTA,
2018).
18
Refere-se a instituições como Polícia, Ministério Público, Defensoria Públicas e Varas Criminais.
39

Mulher, também em Campinas; e Vieira optou por uma análise de cunho histórico da
violência sexual e sua transposição como crime no Brasil, bem como pela observação dos
procedimentos levados a cabo em uma Delegacia da Mulher em Porto Alegre. O foco na
interação é mais desenvolvido no trabalho de N. Lima (2018) sobre grupos de atendimento
psicossocial voluntário a homens autores de violência sexual em Manaus. Se, por um lado, a
pesquisa do autor aproxima-se da minha ao tematizar as relações entre administrados e
administradores e as relações intrafamiliares dos violadores, por outro, sua abordagem do
gênero e da violência difere da que realizo. A leitura desse trabalho, etnograficamente rico,
me fez perceber que seria interessante correlacioná-lo à pesquisa de P. Lopes (2016) e à de
Martínez-Moreno (2018) sobre “violência doméstica”, bem como ao meu próprio material,
visando perscrutar de que maneira as masculinidades estão sendo debatidas em relação à
violência, seja doméstica, seja sexual – algo que, certamente, escapa ao meu objetivo atual.
Embora pertença ao conjunto das teses e dissertações brevemente mencionadas
acima, destaco a pesquisa de Lowenkron (2015). A primeira razão está diretamente
relacionada ao fato de ter sido essa a etnografia que me habilitou a enxergar a possibilidade
de realizar uma pesquisa junto a criminosos sexuais. Quando escrevi uma resenha para o livro
da autora (RANGEL, 2015), imaginava que o encontro com o “pedófilo” de carne e osso
contaria algo sobre os processos de sua humanização, na contramão da monstruosidade
afirmada e celebrada na “CPI da Pedofilia” (LOWENKRON, 2015). Como sabia que o
cinema e a literatura, cada um à sua maneira, rabiscavam por vezes a figura do monstro, ainda
em 2013, neófito no Museu Nacional, escrevi um trabalho de final de curso em que buscava
correlacionar um filme, Little Children, dirigido por Todd Field e baseado no romance de
mesmo nome de Tom Perrotta, com a então recém-defendida tese de Lowenkron. O que eu
não imaginava, àquela altura, era que viria a me ver envolto em uma pesquisa que me faria
retornar a esse trabalho para produzir uma ilusão de cunho biográfico. Terminei supondo que
encontrei em Dona Luiza algo da personagem que mais me intrigava em Little Children, a
mãe do pedófilo, uma senhora de feição debilitada estrategicamente apresentada nas telas de
cinema para provocar a empatia do espectador, não exatamente com o seu filho, mas com o
próprio drama maternal. Há também, na estética do filme, uma ambivalência que chama a
minha atenção porque se relaciona à construção da vida cotidiana em um pacato bairro dos
Estados Unidos como infeliz na sua própria felicidade, por mais contraditória que possa
parecer a expressão. Toda essa conversa para dizer que há algo da maneira como vi esse filme
presente nesta etnografia e que, não à toa, esse algo contrasta com a monstruosidade
40

trabalhada em detalhes por Lowenkron. De todo modo, devo dizer que, quando iniciei o
trabalho de campo, não estava buscando por pessoas como Dona Luiza, ainda que nutrisse a
sensibilidade que me permitia enxergá-las.
A segunda razão do destaque que atribuo à pesquisa de Lowenkron diz respeito à sua
percepção das tecnologias de gestão tanto como generificadas quanto produtoras daquilo que
governam: monstros, documentos e populações. Essa formulação remete à compreensão do
gestar e do gerir (SOUZA LIMA, 2002) enquanto tônicas, uma pedagógica e maternal, outra
persecutória e masculina. Já em sua tese, a autora insistia que as tecnologias de gestão não
são independentes das normas de gênero, e sim forjadas através delas, perspectiva
complexificada posteriormente, junto a Adriana Vianna, em artigo sobre o “duplo fazer do
Estado e do gênero” (VIANNA; LOWENKRON, 2018). Os estilos de exercício de poder que
descrevo adiante forjam a sua inteligibilidade através das proposições dessas autoras, mas
também através daquelas que, como Padovani (2018a) e Eilbaum (2008), levaram a sério a
discussão sobre o lugar da relacionalidade nos processos de formação de Estado. Embora
faça uso mais expressivo das considerações de Eilbaum, porque me permitem passar da
discussão sobre os tecidos relacionais a uma discussão sobre os estilos generificados de
exercício de poder, a etnografia de Padovani está presente nesta tese desde a sua base, dado
o seu esforço em caracterizar os presídios como lugares de produção, circulação e governo
de relações e afetos que se expandem até as periferias urbanas. É clara também a influência
de Padovani na análise de Lago (2019) sobre a relação entre famílias, ativismo e prisão e,
ainda, as controvérsias em torno da classificação de dadas práticas estatais como humilhação.
Mobilizando um conjunto de etnografias sobre prisão, estupro, definhamento e morte, no
último capítulo desta tese, sugiro pensarmos em uma política da humilhação que se
movimenta a partir de níveis de intensidade, um com H maiúsculo e outro com h minúsculo
(MILLER, 1993), e entre dois planos: o das relações entre as masculinidades encarceradas e
o das tecnologias de governo, um incidindo sobre o outro e dando contornos específicos ao
lugar da figura do estuprador no sistema penal; mas também fora dele, uma vez que o que ali
acontece não está dissociado das moralidades e dos pânicos sexuais que insistem em rebaixar
os violadores sexuais até o limite mínimo de humanidade, isto é, até o ponto em que ainda
há um vivente a ser esculachado, execrado e/ou humilhado. Minha aposta, por razões a serem
demonstradas, é a de que a humilhação, antes de objetivar a expulsão da figura do estuprador
do terreno da humanidade, visa mantê-la em suas margens.
41

Os capítulos

Parte 1

– O mal e os amores difíceis

Inicio o primeiro capítulo desta tese refazendo, de outro ângulo, parte do percurso da
discussão sobre ética ordinária e gênero relevante à minha análise. Ao mesmo tempo em que
certa exaustão pode ser sentida pelos leitores já familiarizados com os autores que mobilizo,
acredito que a explicitação lenta e espiralada dos meus argumentos facilita a compreensão
dos que estão vinculados a outros campos de estudo temático, seja na antropologia, seja em
outras áreas. Baseando-me na preocupação de Lambek (2015) em relação ao modo como as
ações nos importam e importam aos nossos interlocutores, busco descrever e analisar os
sentidos e os efeitos da desconfiança e da confiança em torno da narrativa de injustiça. O que
acontece quando o antropólogo inviabiliza que a fala de um interlocutor sobre o estupro de
uma menor se estabilize como a única verdade a que o leitor terá acesso? Por um lado, o
“perigo da história única” (ADICHIE, 2019) é combatido; por outro lado, o informante
termina transformado em um mentiroso. Em vez de apagar a presença desse tipo de problema
ético-moral, optei por analisá-lo no contexto da minha própria pesquisa, isto é, sem buscar
inventar protocolos gerais de atuação. A discussão central do capítulo está voltada à
compreensão dos efeitos da confiança, seja no que diz respeito às práticas de
substancialização do mal em empreendedores morais, seja no que diz respeito aos gestos de
amor que combatem a injustiça da Justiça. Busco construir a força da presença da sentença
condenatória nos tecidos relacionais como uma quebra temporal que divide a vida não
somente em um antes e um depois do processo, mas também entre passados – um profundo
e outro recente – aos quais valores morais distintos são atribuídos e que influenciam o modo
como os meus interlocutores vivenciam as suas condenações, bem como os atos daquelas que
os amam.

– Mentiras fazem famílias

Dedico a primeira parte do capítulo 2 à discussão sobre a relação entre mentira e


ocultação, baixando as formulações de Arendt (2005) e Derrida (1996) a um plano ordinário,
isto é, dando um contorno eminentemente etnográfico à problemática. Estou particularmente
42

interessado em refletir sobre a maneira como a mentira cria o espaço de tempo necessário à
solidificação de relações amorosas que, se profundamente desejadas, são igualmente
produtoras de sofrimento. Busco indicar que as mentiras se articulam a queixas (GREGORI,
1992) e assim sedimentam a certeza de que uma relação com aquele que mentiu sobre o crime
que cometeu, apesar dos pesares, ainda existe. À medida que passo da discussão da relação
entre Célia e Tonico ao tecido relacional habitado por Dona Luiza, Marquinhos e outras
pessoas, o tema da mentira / ocultação torna-se mais claramente uma discussão sobre a
duração do engano do outro, sobre o trabalho com o tempo (VIANNA, 2015) e seus
contornos político-morais. Nesse movimento, a quebra temporal apresentada no capítulo
anterior ganha uma terceira profundidade, a do passado colonial que Dona Luiza narrava e
trazia para o presente. Ao desmantelar o tempo que foi em recente, colonial e profundo,
impossíveis de serem acoplados em sentido linear, busco demonstrar as camadas raciais da
narrativa de injustiça e a irritação da minha interlocutora com o seu filho, mas não somente
com ele, como um custo do trabalho com o tempo, do racismo e mesmo da prática de
ocultação da condenação direcionada a Ivete – diretora de uma creche com quem Marquinhos
se envolveu afetivo-sexualmente e, pouco a pouco, passou a habitar no mesmo tecido
relacional que ele. Pude observar ainda de que maneira, em que momento e para quem a
confiança na injustiça vacilava. Ao invés de sugerir que Dona Luiza e Célia se
autoenganavam em relação a um filho e a um marido, argumento que otimismo delas em
relação a eles era cruel (BERLANT, 2010).

– Conciliação fraturada

A pergunta principal do terceiro capítulo é a seguinte: o que demandam as relações


com homens que cometeram crimes sexuais? Lilian foi estuprada pelo pai que tentava
perdoar; Dona Teresinha viveu um affair com um cavalheiro que a filha dela não a deixava
esquecer que era também um estuprador; e Alice, diferente da maior parte dos parentes da
geração da sua mãe e assim como a maior daqueles em sua própria geração, sabia que o seu
tio Ivan havia estuprado a própria filha e também uma das irmãs dele. Com a expressão
“conciliação fraturada” intento dar conta dessas formas de estar ou viver junto de
estupradores que implicam, inevitavelmente, a repercussão de memórias, dores e cicatrizes
que não se curam, mas também não se tornam a totalidade da vida daquelas que são as
vítimas, conhecem as vítimas ou então buscam, mesmo sem conseguir, não pensar sobre elas.
43

O perdão impossível (DERRIDA, 2003), o trabalho emocional (HOCHSCHILD, 2013), a


memória como prática moral (LAMBEK, 1996), o silêncio (CHO, 2008) e noção de mandato
(DUARTE, 2011) me fornecem substrato analítico à descrição dos três casos mencionados.
Devo dizer ainda que, à diferença de Ivan, tio de Alice, que parecia saudável, o pai de Lilian,
Edson, estava lentamente morrendo e o affair de Dona Teresinha, Nelson, morreu pouco
depois que a conheci. Revelo essas informações desde já não somente porque a enfermidade
e a morte, ou sua proximidade, são inseparáveis da conciliação fraturada, do senso de
urgência em torno dela, mas também para que o leitor perceba que a cadeia, a despeito das
razões que levaram alguém a cumprir pena, governa, ora aniquilando, ora fazendo definhar
(MALLART, 2019). Mesmo quando doenças não são incitadas e mortes não acontecem, os
efeitos dos modos de governança não se esgotam assim que o condenado “pega condicional”
ou é liberto, pois essa pessoa, ou o que restou dela fora da cadeia, segue para algum lugar e
é nesse lugar que os custos das formas de gestão se enunciam e demandam alguma abertura
do outro – que, por sua vez, pode responder ou não ao chamado de quem encarna a figura do
estuprador.

Parte 2

– Defendendo o (in)defensável

Antes de conhecer a defensora Fabiana e, assim, os manicômios judiciários e outras


unidades do sistema penal, estive algumas vezes em um presídio de regime fechado no
Complexo de Bangu com a defensora Paula. Com ela, pude acompanhar atendimentos
jurídicos até o dia em que os homens que ali cumpriam pena foram transferidos para outra
unidade prisional. Foi nesse meio tempo que conheci, através da coordenadora do NUSPEN,
Fabiana. Os dois estilos de exercício de poder que descrevo estão vinculados às portas de
entrada e saída que encontrei para o sistema penal, mas também às formas de modulação das
relações entre administradores e administrados e entre os próprios administradores. Ainda
que o exercício de poder no sentido foucaultiano do termo seja uma malha que atravessa as
pessoas e as instituições sem a elas se limitar, já que são racionalidades e/ou regimes de
inteligibilidade de longa duração, acredito que os estilos do exercício de poder não podem
ser separados dos jeitos de ser, das formas de colocar a voz e ser percebido pelos demais.
Não fosse por isso, sequer seria necessário chamar atenção ao conflito entre a defensora
44

Fabiana e a psicóloga Marta no que dizia respeito ao caso de Leandro e ao caso de Juliano, o
primeiro, do ponto de vista da defensora, passível de ser transformado em causa política e o
segundo não, dada a gravidade dos crimes em questão. Enquanto o estupro que Leandro
cometeu revelou-se como passível de ser tratado como um ruído no interior das práticas
administrativas focadas em sua desinternação, os estupros e as mortes provocadas por Juliano
o tornavam uma “vitrine do horror” (LOWENKRON, 2015). Marta (saúde) discordava das
premissas que faziam Fabiana (direito) não apelar ao espetáculo humanitário como
tecnologia de governo aplicável ao caso Juliano e, por isso, mas não somente, se enfureceu
com ela – e indiretamente comigo, pois acreditava que eu legitimava um exercício de poder
feminino imponente e, a seu ver, excessivo. Neste capítulo, pergunto-me ainda sobre os
modos de regular, dividir e hierarquizar casos em “ordinários”, “paradigma” (TORRES,
2017) e “de repercussão” (KANT DE LIMA, EILBAUM, MEDEIROS, 2017).

– Política da humilhação

Enquanto a descrição do capítulo 4 remete até certo ponto ao que pode acontecer em
qualquer repartição pública, motivo pelo qual muitas vezes o imaginei como uma briga de
departamento entre professores que se conhecem de longa data e acumulam muitos motivos
para sentarem distantes uns dos outros em reuniões, a do capítulo 5 é mais específica porque
não existe sem a forma que a governança dos criminosos sexuais assumiu nos presídios e,
nesse caso, refiro-me mais diretamente aos presídios do Rio de Janeiro. A ênfase que provoco
na humilhação deriva, em grande parte, das conversas com os meus interlocutores sobre os
presídios “de seguro” (aqueles onde são segregados os criminosos sexuais, a população
LGBT, as pessoas que cometeram crimes de repercussão, os bandidos de facção que
“vacilaram”, etc.) como território do Povo de Israel, um povo “sofredor” e “humilhado”.
Volto-me menos a uma pergunta sobre o sentido bíblico dessa referência do que a uma
pergunta sobre o que significa pertencer a uma comunidade moral internamente retalhada e,
sobretudo, humilhada. Como o próprio estabelecimento do Povo de Israel em um território
seguro está relacionado a um momento em que esse território não existia e os estupradores
eram alvo de estupros de vingança e morte, faço uso mais sistemático do que em outros
capítulos de dados de outros autores. Tento entender por que tantas vezes me perguntaram se
os estupradores eram estuprados nos presídios e por que os meus interlocutores me contavam
histórias sobre outras práticas de humilhação, mas não sobre estupros. Na mesma medida em
45

que trato a humilhação como uma tecnologia de governo e uma relação entre masculinidades
– quiçá entre “bandidos” e “pacatos”, para usar os termos de um interlocutor –, busco
correlacioná-la ao que Mallart (2019) categorizou como “política do definhamento”, um
modo de fazer babar e apodrecer o corpo ainda vivo. A relação entre definhamento e
humilhação parece ser da ordem do contínuo. Ondas de calor progressivas, mas que não
emanam de todos os lados e não se dissipam por todos os lados, nem sobre todos os corpos,
da mesma maneira e com a mesma intensidade.
Parte 1
48
49

1 O MAL E OS AMORES DIFÍCEIS

Existem também razões específicas à antropologia que trazem à tona


preocupações de longa data com o ético como temas explícitos de
discussão. Isso inclui a compreensão cada vez mais profunda da natureza
histórica de tudo o que falamos, a mudança decisiva da perspectiva das
sociedades e culturas como entidades ou essências discretas para entendê-
las como produtos em constante mudança das forças e ações históricas. Isso
leva a uma mudança de ênfase da estrutura à prática e, especialmente, a
considerações mais sutis da ação humana do que aquelas que podem ser
compreendidas apenas pelo que Clifford Geertz (1973a) chamou de teoria
da tensão e teoria do interesse. O próprio Foucault veio ampliar suas
exposições extremamente influentes da importância da sujeição com
atenção à autoformação ética (1997). Uma maior apreciação pelo trabalho
dos filósofos preocupados com assuntos que vão da prática à linguagem, à
paixão e à receptividade nuançou a nossa compreensão da ação e da pessoa
e aguçou a atenção à imagem fenomenológica mais ampla de estar no
mundo (LAMBEK, 2015, n. p.)19.

1.1 “Fazer falar” as relações

Dentre os homens que conheci, excluídos aqueles com transtorno mental, apenas um
admitiu ter cometido estupro (ver capítulo 3). Esse dado revela o empenho frequente dos
meus interlocutores em se afastar da monstruosidade atribuída aos que cometeram crimes
sexuais. Embora explore neste capítulo apenas o discurso de condenados pelo estupro de
crianças e adolescentes, cabe sinalizar um argumento de Machado (1998) relevante à
discussão que proponho. A autora defende que o estigma de estuprador era vivenciado pelos
seus interlocutores, acusados de estuprarem mulheres, como um aspecto mais crítico do que
a discussão sobre a violência sexual. Nesse sentido, é a ideia de estuprador, e não a de estupro,
que parece não ser da ordem do cotidiano. Sente-se vergonha do estigma mas não exatamente
da relação sexual criminosa, a tal ponto que a violência pode assumir qualidade trivial nos

19
No original: “There are also reasons specific to anthropology that bring longstanding concerns with the ethical
to the surface as explicit subjects of discussion. These include the ever-deepening realization of the historical
nature of everything we talk about, the decisive shift away from seeing societies and cultures as discrete entities
or essences to understanding them as continuously changing products of historical forces and actions. This
brings a shift of emphasis from structure to practice and especially to more nuanced considerations of human
action than those that can be comprehended by what Clifford Geertz (1973a) called strain theory and interest
theory alone. Foucault himself came to broaden his extremely influential expositions of the salience of
subjection with attention to ethical self-formation (1997). Greater appreciation for the work of philosophers
concerned with matters ranging from practice to language to passion and receptivity have nuanced our
understanding of action and person and heightened attention to the broader phenomenological picture of being
in the world”.
50

relatos masculinos. Raras as exceções, os meus interlocutores usualmente sobressaltavam


que era injusto que fossem tratados como monstros que deviam ser empurrados para fora do
terreno da humanidade, nem chegavam a banalizar explicitamente a violência sexual. Ao
contrário, o comum era que negassem autoria dos crimes a eles imputados e reafirmassem a
atrocidade do estupro de vulnerável, afinal, não se pode atribuir desejos, nem mesmo
qualquer consentimento, a menores de idade sem que o autor dessa declaração seja
instantaneamente maculado. Enquanto alguns dos entrevistados de Machado culpabilizavam
as vítimas, como se elas dissessem “não” querendo dizer “sim”, nas conversas com os
homens que conheci pude perceber que a sacralização da infância costumava operar como
um limite moral contundente, algo que deveria ser repetido com ar de concordância, ainda
que o objetivo principal do discurso fosse a limpeza moral ou o afastamento da máscara do
estuprador.
Menos do que contestar a realidade desse esforço, a minha intenção é a de objetivá-
lo, refletindo, por um lado, sobre o quadro estabilizado de relações que os condenados e as
pessoas a eles ligadas afetivamente buscavam compor narrando no presente os meandros da
injustiça da qual foram alvos no passado, e, pelo outro, sobre as ações daqueles que creem
continuamente nesse discurso moral. O trabalho ao qual os meus interlocutores se dedicavam
sugere o quão indispensável era a produção, tanto narrativa quanto “concreta”, de tecidos
relacionais onde os próprios acusados podiam habitar como homens injustiçados vinculados
a pessoas que os amavam em atos e junto a eles clamavam por justiça. Ao descrever o habitar
em tecidos relacionais afetados por acusações vividas como falsas, porém legitimadas pelo
Estado como verdade jurídica, busco responder três perguntas principais: (1) por que a
moralidade do mal era vital à estabilização narrativa de relações?; (2) qual vínculo existe
entre empreendedores morais responsáveis pela acusação de estupro e a Justiça em
maiúsculo?; (3) como amores construíam a realidade da injustiça?. A minha aposta mais
abrangente é a de que a possibilidade dos homens condenados viverem no mundo que
compartilhamos como homens honestos, e não como monstros, depende de uma atividade
relacional de cunho ético manifesta em atos morais, afetivos e/ou discursivos capazes de
cruzar temporalidades. Pergunto-me, dentre outras questões, qual é o passado ao qual pessoas
que há muito se conhecem se agarram quando administram no presente os efeitos da
condenação por estupro de vulnerável que se projeta sobre os tecidos relacionais. Estou
admitindo a possibilidade de aquilo que se conhece, diz e faz por esses homens estar muitas
vezes vinculado a um passado vivido em conjunto em momento anterior à condenação. O
51

leitor perceberá, no entanto, o meu esforço no sentido de ofertar marcos interpretativos para
a compreensão da relação entre tempo e condenação por estupro, sem reduzir a singularidade
das experiências aos marcos eleitos.
A cada homem condenado ou “familiar” que conhecia, mais claro ficava que certos
traços congelavam-se nas narrativas que descaracterizavam estupros: sempre havia ao menos
um(a) empreendedor(a) moral responsável pela acusação, majoritariamente mulheres, e
elas(es) eram costumeiramente percebidas(os) de maneira bastante negativa: invejosas(os);
loucas(os); ciumentas(os); vingativas(os); manipuladoras(es); etc. “Ela queria ficar com o
meu carro”, ouvi mais de uma vez. Nessa frase, relativa a um processo lento de separação, a
esposa que aparece implicitamente foi descrita enquanto interesseira, como se a ganância
dela fosse uma razão suficiente em uma dada circunstância relacional. Havia outras: “ela
queria ficar com as crianças”; “não aceitou a traição”; “não tem limites”; “queria me ferrar
de qualquer jeito”; “não era direita”; etc. Os homens podiam também sentir-se responsáveis
indiretamente pela acusação descabida: “eu traí muito”; “o relacionamento não era legal”;
“estava metido com jogo”; “bati nela”; “a bebida era o problema”; “caímos na porrada”; etc.
Estou menos interessado no amplo repertório de porquês “individuais” do que na
compreensão do que pareciam aspectos constantes: mulheres más, homens bons – ou nem
tão bons assim –, relacionamentos afetivos e/ou profissionais complicados e acusações
infundadas. Ao longo deste capítulo, buscarei demonstrar como a moralidade do mal está
associada às relações de gênero, mais frequentemente ao feminino, no discurso dos
condenados e das pessoas afetivamente a eles ligadas. Para compreender essa recorrente
produção discursiva da responsabilidade feminina pela injustiça, inspiro-me na proposição
de Austin (1962): a linguagem não é meramente referencial, simples constatação do mundo,
pois, ao contrário, os enunciados operam como atos, produzindo aquilo que nomeiam –
inclusive o mal manifesto através da plêiade de características negativas acionáveis. Embora
saiba que toda narrativa estabiliza-se através da repetição dos atos de fala, dos movimentos
não lineares e das alterações de sentido, acentuarei o quadro congelado de relações que os
meus(minhas) interlocutores(as) objetivavam fomentar porque desse congelamento dependia
a própria substancialização do mal em empreendedores(as) morais contrapostos(as) aos
agentes benfeitores.
Certamente, podia-se também afastar-se do estigma através de sua ocultação das
pessoas que desconheciam a sentença condenatória. Ao longo desta tese, discutirei estratégias
desse tipo, mas neste capítulo irei me ater aos efeitos da desconfiança que nutri em relação a
52

um interlocutor em razão da mentira por ele promovida e direcionada a mim e à sua


namorada. Pode-se dizer que evito situar-me no texto etnográfico unicamente na posição de
agente replicador de discursos de verdade centrados na injustiça. Busco alternar as posições
a partir das quais lidei com pessoas, narrativas e relações, de modo a complexificar o que se
pode apreender dos atos de fala e das práticas de ocultação. Como um antropólogo pode fazer
fracassar uma narrativa que se pretendeu bem-sucedida? Quais são as condições de felicidade
dos atos de fala? Ao me preocupar com o congelamento da narrativa da injustiça e com as
condutas decorrentes da crença nessa narrativa ou decorrentes da desconfiança em torno dela,
volto-me à análise da moralidade dos comportamentos. Considero que é preciso atentar para
o modo como os sujeitos reconhecem a si mesmos não simplesmente como agentes, mas
sobretudo como sujeitos de uma dada ação ético-moral (FOUCAULT, 1998). Não basta dizer
que tanto a confiança quanto a desconfiança são sentimentos morais cultivados em relação a
alguém, nem mesmo que a tomada de posição moral deriva desses sentimentos (LUTZ,
1988)20, pois é preciso reconhecer também como as pessoas com eles se relacionam, como
os sustentam, como os transformam em atos, a quem os devotam, por quê e em quais
circunstâncias, mantendo a análise em um plano eminentemente ordinário. Na medida em
que estou fazendo alusão às disposições éticas cultivadas na interação cotidiana com homens
que, se para mim eram interlocutores, para outros eram pais, maridos, namorados,
companheiros, filhos e afins, não posso deixar de demarcar que, conforme variavam as
relações, bem como a proximidade e a densidade dos laços, variavam também as disposições
para ação.
Longe de afirmar que o parentesco define regras de comportamento e sentimento a
serem seguidas de modo automático, como se estivesse defendendo a obrigatoriedade do
sentimento de confiança transformado por uma esposa em ato de amor devotado a seu
marido, quero sugerir que um enorme trabalho de automodelação pode informar os atos e
perpassar o cultivo das disposições morais em relação a alguém. Foucault diria que não há
“necessidade de algo como um texto que faça a lei [do parentesco, no caso], mas de uma
tcheme ou de uma ‘prática’, de um savoir-faire que, levando em conta os princípios gerais,
guie a ação no seu próprio momento, de acordo com o contexto e em função de seus próprios
fins” (FOUCAULT, 1998, p. 77). Com essas proposições o autor questiona a relevância da

Segundo a autora, “morality requires emotion because affects provides the motivation for taking particular
20

moral positions towards events” (LUTZ, 1988, p. 76-77).


53

ênfase kantiana na ética como conduta passível de generalização e reclama a análise dos
modos de ser e se portar, além das justificações da conduta. O argumento é o de que a ética
excede a simples perseguição de regras sancionadas ou indivíduos voluntaristas, já que é
relativa às práticas, cujas cores precisas vinculam-se ao largo a repertórios de pensamento e
ação historicamente tornados possíveis. O trabalho de automodelação, sempre alinhado a um
outro, implícito ou explícito, revela-se assim como prática ética a ser analisada em acordo
aos contextos. De uma perspectiva antropológica isso é particularmente interessante, pois
comporta um mandamento etnográfico: a atenção é dirigida aos engajamentos ordinários de
uns com os outros e de si consigo mesmos, sem que seja desconsiderada a existência de
relações de sujeição que habilitam, mas não determinam, os atos. Para dar carnatura a essa
colocação, pode-se pensar que a sentença condenatória sujeita não apenas aquele que foi
preso, mas também as pessoas que a ele se irmanam. Desse ângulo, a injustiça é um efeito da
condenação: um discurso moral dos que perderam, isto é, não puderam fazer das suas
verdades a verdade jurídica, mas persistem trazendo ao mundo atos de amor e suscitando
desconfianças.
A longa epígrafe que escolhi para iniciar esse capítulo insinua que a reflexão
antropológica contemporânea em torno da ética deriva de uma ênfase na prática e culmina
em abordagens centradas na experiência. A preocupação de Lambek (2015) com a
“tonalidade da vida” está aliada à compreensão da ética não como um domínio estanque da
realidade, e sim enquanto qualidade imanente às ações, melhor compreendida como advérbio
ou adjetivo do que como substantivo (“a ética”). Dentre as várias questões levantadas pelo
autor a respeito da relevância da observação dos atos trazidos ao mundo e por ele
constrangidos, existe um postulado crucial: através das ações (discursivas ou não) as pessoas
exibem o que importa a elas. Com quais valores, símbolos, proclamações e/ou regras de
conduta mais se preocupa uma pessoa? Como é realizado o balanço entre os compromissos
com os quais se identifica e com os quais não? Volto as perguntas de Lambek ao material
etnográfico de que disponho e, nesse movimento, descrevo a distinção entre confiança e
desconfiança a partir da diferença entre o que importava a mim e o que importava aos meus
interlocutores nos momentos em que interagimos. Enquanto estava preocupado em forjar
maneiras de não repercutir ingenuamente discursos de verdade de homens condenados por
crimes sexuais, as pessoas que conheci pareciam interessadas em afastar o estigma e construir
narrativas críveis. Se, do ponto de vista de um(a) deles(delas), o meu sentimento de
desconfiança é questionável, do ponto de vista que nutri por certo tempo em campo,
54

desconfiar era uma modalidade de ação eticamente orientada no sentido do que entendia
serem causas feministas – refiro-me, por exemplo, à luta para que a desconfiança deixe de
recair sobre as vítimas e deixe de culminar no descrédito da denúncia de estupro. Como me
debruçarei sobre a discussão da desconfiança, basta evidenciar por ora que não há uma
substância per se do que seja a ação ética, pois não é possível defini-la ou adjetivá-la sem
que se saiba o que importa a cada um em cada contexto ou sem que se descreva como disputas
de sentido de mundo podem informar, temporariamente ou não, a condução da pesquisa
acadêmica.
Quando direciono a análise ao que importava aos meus interlocutores, bem como ao
que importou a mim em momentos precisos, estou pensando também que os atos éticos têm
tanto a ver com automodelações, ponderações ou exercícios reflexivos quanto com
disposições internalizadas, hábitos sedimentados ou respostas a chamados de terceiros que
nos invadem sem muita mediação consciente. A questão não é, portanto, a de definir
fronteiras estáveis entre o que é refletido ou não em um comportamento, mas entender
precisamente como os discursos nos pertencem, as ações nos importam e ambos emanam
de/em relações. Como a tendência é a de associarmos a prática ética às situações-limite,
aquelas que implicam um processo lento e meticuloso de julgamento moral, é preciso
“complexificar nossa imagem do hábito e mostrar como uma disposição ética é cultivada no
âmbito do ordinário como uma atenção intensificada no interior do hábito, em vez de fora
dele” (DAS, 2012, p. 345). O leitor perceberá que me desloco de uma ênfase a outra,
embaralhando-as e atribuindo relevância aos momentos reflexivos intensivos e aos gestos de
devoção imediata. A ideia de contínuo mobilizada por Lambek (2015) é uma boa alegoria,
se entendermos que não se trata somente de identificar como se passa de um ponto ao outro,
nem somente de graus, pois nas relações o refletido e o irrefletido se cruzam, esbarram,
separam, colidem e fundem de múltiplas maneiras.
Pablo, Carlos e Altair, dada a dimensão monstruosa do crime que empreendedores
morais afirmaram que eles cometeram e procedimentos judiciais corroboraram, não mais
podem ser plenamente os homens que eram, mas a eles cabe uma vida digna especialmente
no que depende daquelas que os amam em atos. Ao voltar-me à vida afetada pelo mal e
cuidada por intermédio dos gestos de amor, como os de Roberta e Helena, distancio-me dos
estudos que, na antropologia, analisam o discurso de homens condenados por estupro em
aproximação aos escritos da psicanálise (SEGATO, 2003). Faço esse movimento na
esperança de retirar rendimentos analíticos do que pude escutar, mas sobretudo das relações
55

que os meus interlocutores e minhas interlocutoras estabilizavam em narrativas sobre o


passado e dos tecidos relacionais nos quais eles(elas) habitavam durante o curso da pesquisa.
A injustiça é, nesse sentido, uma vocalização que permite que as pessoas afetivamente
vinculadas reconheçam a si mesmas, ajam umas em relação às outras e atribuam
conjuntamente sentido negativo às práticas daqueles que elas substancializam como
malfeitores. Se deixo de perseguir neste capítulo o investimento nas teorias do inconsciente,
é porque o desafio analítico ao qual me devoto inicialmente é o de “fazer falar as relações”,
bela expressão cunhada por Fabiana Andrade (2018), em um plano mais fenomenológico.
Quero assim dizer não somente que me preocupo com a ordem do acontecimento, como
também que escutar aos meus(minhas) interlocutores(as) implicava ser envolvido e levado
pelas relações. Nelas trafegando, passei a perguntar-me sobre a extensão do mundo em que
os homens condenados e aqueles(as) que os(as) amavam habitavam. Passei a indagar como
as relações transportavam discursos de verdade, para quais direções tais discursos seguiam e
até que ponto se sustentavam nas relações.

1.2 Os sentidos e os efeitos da desconfiança

Pablo cumpria pena no regime semiaberto quando nos conhecemos no gabinete da


defensora pública Fabiana. Oficialmente, ele podia trabalhar de segunda a sexta em horário
comercial e retornar à unidade carcerária, localizada na região central do Rio de Janeiro, no
final de cada expediente. Para ir à Defensoria reclamar benefícios, Pablo recebia dispensa
temporária do serviço e a ele retornava munido de uma ressalva – documento que atestava a
sua presença no NUSPEN e o período que lá permaneceu. A ressalva possibilitava também
que, ao tempo dedicado à assistência jurídica, fosse somado o tempo despendido com a minha
pesquisa, gerando um período único controlado pela defensora. É acertado dizer que, através
dos procedimentos de regulação do deslocamento de Pablo pela cidade, foram abertos “vasos
comunicantes” (GODOI, 2015) que me permitiram trafegar brevemente pelo tecido
relacional desse homem. Ele dizia que não podia ter sido acusado de ter cometido estupro, já
que tinha “namorado” Marlene, a jovem de cerca de dezesseis anos transmutada em vítima
pelo inquérito policial que amparou a acusação prosseguida pelo Ministério Público.
Diferente do que geralmente ocorria, não pude gravar o que ele me contou. Estava claro que
o meu interlocutor desconfiava das minhas intenções e buscava controlar o que eu poderia
vir a dizer sobre o modo como ele discursivamente colocava em tensão a violência sexual e
56

as relações afetivas. Em seu relato, Marlene não podia ser tratada como vulnerável devido à
sua idade e à maneira como era caracterizada.
Pablo conheceu Marlene numa festa organizada pela Prefeitura de um município
adjacente à região metropolitana do Rio de Janeiro em comemoração ao dia do trabalhador.
Tanto ele quanto a mãe de Marlene trabalhavam na prefeitura. Pablo ocupava um cargo
comissionado de assessoria, ela era uma das copeiras. Dentre os dois, situava-se a disparidade
de cunho salarial e também a de prestígio. O primeiro beijo trocado com a jovem,
publicamente, na festa, teria resultado em passeios que reuniam toda a família. Por vezes,
Marlene levava seu filho de aproximadamente dois anos para os encontros. O relacionamento
seguiu até o momento em que Pablo decidir reatar o casamento com a sua ex-mulher. A mãe
de Marlene teria então ficado enfurecida, porque via em Pablo um provedor capaz de
sustentar a sua filha e o seu neto. A recusa dele em permanecer sendo tal homem resultou, a
seu ver, na denúncia que sua então sogra fez à polícia. O estupro de Marlene seria elaboração
de sua mãe – uma pessoa ardilosa, cujo gesto de vingança vela o interesse financeiro e
simbólico. Desse ângulo, Marlene existe como objeto de troca constitutivo da relação entre
a sua mãe e o seu namorado. Se a mãe autoriza a relação proibida com base em demandas,
Pablo desfruta do prazer propiciado por Marlene pagando jantares, dando presentes ou
simplesmente “ajudando”. A filha/namorada aparece como objeto ativo de troca. Ela é
descrita como provocadora, figura semelhante à da novinha (FERNANDES, 2017), que
conhece os termos da relação na qual se engaja e que tira vantagem do proibido sem ser
vingativa como a sua mãe. À figura do provedor vincula-se a figura da mãe má que agencia
a própria filha num trânsito relacional que não à toa é retratado em aproximação à
prostituição.
Posta nesses termos, a acusação de estupro emerge maculada pela cafetina que a mãe
de Marlene é no interior do tecido relacional narrativamente congelado pelo meu interlocutor
em menos de uma hora de conversa. Quando percebeu que eu havia compreendido o sentido
da dinâmica relacional que narrava, Pablo me deu seu número de telefone, bem como passei
o meu para ele. Combinamos que seguiríamos conversando na próxima vez que ele fosse ao
atendimento e deixamos em aberto a possibilidade de conhecer a sua família. Estranhei não
mais o ter visto, porque era comum os assistidos retornarem semanalmente à Defensoria.
Meses depois, um tanto ingenuamente, telefonei para ele durante a tarde – período em que
estaria trabalhando no almoxarifado de uma repartição pública. Como ninguém atendeu,
desisti. Horas depois, recebo uma ligação do número que Pablo havia me dado. Atendi, me
57

identifiquei e a pessoa do outro lado da linha disse ser a namorada dele. Roberta tinha ficado
com o celular devido a um incidente. Pablo havia sido transferido para um presídio em
Bangu, o que significava que ele não mais sairia para trabalhar e nem mesmo seria atendido
pela defensora Fabiana.
Roberta estava desesperada porque alguém tinha denunciado que Pablo, aos sábados,
não trabalhava. Ele passava o dia na casa dela. “Por que isso está acontecendo justo agora?”,
Roberta perguntou a mim como se não esperasse uma resposta. O que ela queria saber era o
que aconteceria com seu namorado e, sobretudo, como poderia visitá-lo. A sua voz estava
trêmula quando começou a agradecer o fato de eu ter me disposto a buscar informações
jurídicas, ainda que estranhasse a situação de trabalho relatada por ela. Após dizer que Deus
tinha me colocado em seu caminho, Roberta me contou que conheceu Pablo em um site de
relacionamentos e que, no início, teve dificuldade para entender a “situação dele”. Ela não
mencionava o crime que eu imaginava estar em questão, estupro, nem mesmo descrevia
circunstâncias que pudessem me fazer entrevê-lo. Trava-se da “situação dele”. Fazia meses
que estavam se relacionando. “Deus não escreve por linhas tortas”, disse. Era amor o que
sentia e só o amor pode a tudo suportar. Roberta finalizou a ligação recitando a bíblia, trechos
de 1 Coríntios 13, e cantando a música Monte Castelo, de Renato Russo, inspirada no mesmo
versículo bíblico.

Ainda que eu falasse


A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor eu nada seria
É só o amor! É só o amor
Que conhece o que é verdade
O amor é bom, não quer o mal
(Monte Castelo, Renato Russo)

Tal como prometi, retornei a ligação. Roberta estava na igreja. Seu filho, Junior, me
orientou a ligar para o celular dela. Quando conversamos, Roberta frisou que Junior também
sentia falta de Pablo. A sua esperança era a de que eu conseguisse ajudá-la a fazer uma
carteirinha de visitante para que, mesmo sem Junior, pudesse entrar no Complexo de Bangu
e então abraçar o seu namorado. A família de Pablo não a ajudava a conseguir o documento
por causa da “situação dele”: a irmã o detestava; a mãe fazia o mínimo possível; a ex-mulher,
Roberta sequer conhecia; os filhos do primeiro casamento, havia visto apenas através das
fotografias que ele exibia em momentos saudosos. Àquela altura, a expressão “situação dele”
58

operava como uma omissão de uma informação que parecia importante manter não
esclarecida. Seguimos conversando sobre a família de Pablo até o momento em que Roberta
muito rapidamente disse: “a família não supera a situação do menino”. “Que menino?”,
perguntei. Ela, tergiversando, como se buscasse as palavras que lhe fugiam, mencionou um
homicídio. Foi atendo-me ao que Roberta me contou, de forma breve e sem detalhes, que
deixei de contar a ela o que Pablo, meses antes, tinha me dito sobre o crime pelo qual teria
sido injustamente condenado. A expressão “situação dele” seguia, contudo, me intrigando.
Aquele que eu conhecia, Roberta nunca namorou. O homicídio que o amor contornava não
existia para mim como declaração de Pablo. Do meu ângulo, “a morte do menino” era uma
mentira contada pelo meu interlocutor à sua namorada. Mas, vendo do ângulo de Roberta,
era a narrativa de injustiça que eu conhecia que sequer tinha sentido. Existiriam ainda
informações no processo de conhecimento 21 dele que eu desconhecia? Existiriam dois
processos, um de homicídio e outro de estupro?
Pedi um modelo de petição de desarquivamento a Fabiana para fazer o requerimento
do processo de conhecimento de Pablo, protocolei o pedido na ficha dele e coloquei o
documento em cima da pilha de papéis que precisavam ser averiguados, corrigidos e
assinados para então serem expedidos. Estava claro que eu não poderia transmitir aos
assistidos e aos seus familiares informações contidas em processos de conhecimento e
reguladas pela confidencialidade jurídica. O combinado que fiz com a defensora era o de que
a leitura desses documentos orientaria não somente a análise antropológica, como também a
prática jurídica no sentido dos propósitos que lhe eram inerentes no gabinete de Fabiana.
Esperava-se que o desarquivamento de qualquer processo alimentasse a instrução da
defensora e sua equipe em uma linguagem a ser traduzida em ações aptas a beneficiar aos
assistidos na fase de execução penal (ver capítulo 5). Se uma petição de desarquivamento
pode terminar realizando-se como materialização da desconfiança que cultivei em relação a
Pablo, a decisão de não mais contatar Roberta é um gesto informado, por um lado, pela lógica
da confidencialidade jurídica que não permitia que eu contasse a ela sobre o que existe nos
autos, e, por outro lado, pela demanda ética de não intervir em prejuízo de nenhum
interlocutor, ou assistido da defensora Fabiana, que tivesse aceitado participar da pesquisa.

21
“O processo de conhecimento é a fase em que ocorre toda a produção de provas, a oitiva das partes e
testemunhas, dando conhecimento dos fatos ao juiz responsável, a fim de que este possa aplicar corretamente o
direito ao caso concreto, com o proferimento da sentença” (“PROCESSO…”, 2019).
59

Parece indispensável, antes de apresentar o que contam os documentos, perscrutar melhor os


sentidos e os efeitos da desconfiança, além da relação desse sentimento com o da confiança.
Matthew Carey (2017) argumenta que a ênfase sociológica – simmeliana, a seu ver –
na confiança como sustentáculo indispensável à formação da sociedade vincula-se à
percepção segundo a qual a desconfiança é socialmente ácida: se a primeira solda os laços, a
segunda os ameaça. O próprio ato de confiar, no entanto, pode ser desconfortável, azedo, já
que riscos são assumidos por quem se fia na expectativa de que os atos de alguém se
configurem como o esperado. Nesse sentido, a confiança tanto revela a dependência entre as
pessoas quanto implica alguma aceitação do controle relativo, por vezes diminuto, que se
pode exercer em relação ao comportamento do outro. O autor reconhece a vitalidade da
análise do risco como aspecto inerente ao ato de confiar, refuta a ideia de que onde há
confiança não há desconfiança e questiona qual é o efeito da hipótese da confiança como
cimento do social sobre a análise da desconfiança. Uma de suas conclusões é a de que:

As hipóteses da confiança e desconfiança não são maneiras mutuamente


exclusivas de ver os outros, mas são, em certa medida, constitutivas uma da
outra. Cada uma implica a sombra da outra: onde as pessoas assumem que
outros podem ser conhecidos e então são confiáveis, eles também estão
cientes de que às vezes isso não se aplica; e onde eles assumem que outros
são amplamente desconhecidos, eles também sabem que alguns são menos
desconhecidos que outros (CAREY, 2017, p. 10)22.

Na etnografia de Carey, é claro o esforço em demonstrar que laços sociais podem


derivar também da desconfiança. Defende-se que no Alto Altas, Marrocos, a desconfiança é
uma prática generalizada que, ao invés de indicar quebras na socialidade, faz a sociedade de
maneira específica: amigos que desconfiam sistematicamente uns dos outros podem mais
rapidamente perdoar danos sofridos, isto é, uma pessoa “x” pode deixar de lado o efeito da
desconfiança de “y” sobre si porque ela conhece a potência da sua própria atitude de
suspeição. Certa tolerância em relação ao outro seria provocada através da desconfiança.
Embora não seja o meu interesse adentrar nas especificidades do material de Carey, como o
faz Mayblin (2019), devo dizer que a autora argumenta que em “Mistrust: an ethnographic

22
No original: “The hypotheses of trust and mistrust are not mutually exclusive ways of viewing others, but are
to an extent constitutive of one another. Each implies its shadow: where people assume that others can be known
and so trusted, they are also aware that sometimes this does not hold; and where they assume that others are
largely unknowable, they are also aware that some are less unknowable than others”.
60

theory” deixa-se de lado a compreensão do modo como a desconfiança participa do processo


de construção das instituições. O patriarcado é pensado pela autora como uma instituição
caracterizada pela suspeição entre mulheres e homens, presente em Alto Atlas e não analisada
no livro em questão. Por um lado, isso aconteceria porque a visão estreita de Carey das
instituições como composições formais, duráveis e coercitivas, leva-o a argumentar que a
própria ideia de instituição é pouco operativa no Alto Altas; ali, imperaria um anarquismo
sustentado pela generalização da desconfiança. Por outro lado, o patriarcado não seria
analisado porque a desconsideração dos estudos voltados ao gênero impediria a identificação
pelo autor da relevância da relação entre honra e vergonha em seu material etnográfico, bem
como dificultaria a compreensão de que, ainda que tal relação possa culminar em tolerância,
não há por que recusar que violência e morte são também efeitos possíveis do patriarcado.

O patriarcado é uma instituição chave nos contextos de “honra e vergonha”,


pois abrange outras instituições, como a linhagem, o casamento e os
padrões duradouros relacionados à propriedade e herança. Em meu próprio
campo, onde o patriarcado estruturava a vida em vários níveis – nem todos
seriam imediata ou obviamente aparentes para um etnógrafo –, a
desconfiança era bastante difundida, principalmente entre homens e
mulheres. No entanto, essa desconfiança foi amortecida por um tipo de
complexo de vergonha e honra que, longe de gerar tolerância diante da
traição, prescrevia retaliação violenta e, às vezes, até morte (MAYBLIN,
2019, n. p.)23.

O primeiro ponto a ser assinalado em relação ao caso de Pablo é o de que a


combinação entre a desconfiança que nutri e a que ele sentiu não resultou em tolerância, mas
gerou efeitos (busca por documentos e impossibilidade de gravar falas) que deram vida à
configuração precisa que a nossa relação assumiu. Carey parece, desse ângulo, correto em
dizer que a desconfiança está presente na formação dos laços, não sendo, portanto, apenas
corrosiva. Já a preocupação de Mayblin com a relação entre gênero e desconfiança é
pertinente para fazer ver que, desconfiando de Pablo, eu buscava distinguir modelos de
masculinidade, reservando ao meu interlocutor uma performance mais próxima ao que a
autora poderia chamar de patriarcal em função das características da narrativa de injustiça

23
No original, “Patriarchy is a key institution in ‘honour and shame’ contexts, as it encompasses other
institutions such as the lineage, marriage and perduring patterns related to property and inheritance. In my own
field-site, where patriarchy structured life at various levels – not all of which would be immediately or obviously
apparent to an ethnographer – mistrust was fairly pervasive, particularly between men and women. However,
that mistrust was buffered by an under-the-counter sort of honour-shame complex which, far from generating
tolerance in the face of betrayal, prescribed violent retaliation and sometimes even death”.
61

dele. Pensando na relação entre Roberta e Pablo, pode-se dizer que não é exatamente a
desconfiança que faz a tolerância, mas sim o amor que tudo pode. A essa altura, deve estar
claro que tanto a confiança quanto a desconfiança estão, a meu ver, intricadas às relações de
gênero, mas talvez ainda esteja pouco evidente que, embora entenda a importância da
aproximação do par honra-vergonha ao patriarcado na argumentação de Mayblin, opto por
não restringir a compreensão das relações de gênero ao modelo analítico do patriarcado. Faço
esse movimento não apenas para afastar-me da possibilidade do patriarcado revelar-se como
unidade monolítica de poder24 (PISCITELLI, 2002), mas também, e sobretudo, para agregar
dinamismo às múltiplas relações entre masculinidades e feminilidades no que tange aos
sentidos da confiança e da desconfiança.
Quando Roberta confia em Pablo, ela está fazendo a si mesma a partir de uma versão
do feminino disposto a amar, a tolerar e/ou a cuidar; quando desconfio dele, estou fazendo a
mim mesmo a partir de um apelo a uma masculinidade que se quer alinhada aos discursos
igualitários; quando Pablo desconfia de mim, faz a si mesmo a partir da figura do provedor
traído por uma mãe vingativa. São essas diferenças valorativas que fazem com que eu opte
por pensar as relações de gênero menos como instituição patriarcal, cujos contornos são a
priori conhecidos, e mais como performatividade 25 – grosso modo, conjunto de atos

24
Refletindo sobre a emergência do conceito de gênero e o seu impacto político e teórico, Piscitelli argumenta
que, durante certo tempo, “em termos teóricos, elas [as feministas] trabalharam com uma ideia global e unitária
de poder, o patriarcado, numa perspectiva na qual cada relacionamento homem/mulher deveria ser visto como
uma relação política. […] O conceito foi importante na medida em que distinguia forças específicas na
manutenção do sexismo e útil, em termos da tentativa feminista de mostrar que a subordinação feminina, longe
de ser inevitável, era a naturalização de um fenômeno contingente e histórico, era que se o patriarcado teve um
início poderia ter um fim. […] O problema é que a utilização desse termo fora do seu contexto obscurecia a
compreensão das relações sociais que organizam diversas formas de discriminação. (PISCITELLI, 2002, p. 6-
7). Reitero aqui o argumento da autora e o seu complemento: “O que me interessa reter de tudo isto é que o
conceito de gênero começou a ser desenvolvido como uma alternativa ante o trabalho com o patriarcado. Ele
foi produto, porém, da mesma inquietação feminista em relação às causas da opressão da mulher. A elaboração
desse conceito está associada à percepção da necessidade de associar essa preocupação política a uma melhor
compreensão da maneira como o gênero opera em todas as sociedades, o que exige pensar de maneira mais
complexa o poder. Vemos, assim, que as perspectivas feministas que iniciaram o trabalho com gênero mantêm
um interesse fundamental na situação da mulher, embora não limitem suas análises ao estudo das mulheres”
(PISCITELLI, 2002, p. 11).
25
A conceituação do gênero enquanto performatividade está emaranhada às relações de poder no sentido
foucaultiano do termo. Grosso modo, o poder, ao invés de repressivo, é positivo. Para assumir que os corpos
são tornados possíveis em discurso, não basta sugerir a ineficácia da metafísica da substância (sexo e corpo
como entidades materiais e naturais), mas é preciso perceber que os enunciados, para além de descritivos, são
capazes de produzir aquilo que nomeiam. Quando se diz “é uma menina” se atribui um sexo e um gênero a um
corpo que não existe fora desta produção discursiva. “If the power of discourse to produce that which it names
is linked with the question of performativity, then the performative is one domain in which power acts as
discourse. Importantly, however, there is no power, construed as a subject, that acts, but only, to repeat an earlier
phrase, a reiterated acting that is power in its persistence and instability” (BUTLER, 1993, p. 225). Se, por um
lado, a prescrição e reiteração de comportamentos e falas fundados em uma matriz heterossexual conformam
62

reiterados que tanto pode sedimentar as relações de gênero de maneira hierárquica e/ou
violenta quanto pode desestabilizá-las (BUTLER, 1990). Pensar o gênero como
performatividade possibilita a intensificação da atenção voltada ao sentido e aos efeitos dos
atos – aqui analisados sob o signo da moralidade ou da ética –, sejam aqueles despendidos
pelos(as) meus interlocutores(as), sejam aqueles efetuados por mim. Ao dar-me conta, ainda
em campo, que o sentimento de desconfiança que alimentei fazia de Pablo um homem que
não se resume àquele que ele fez questão de narrar a mim, nem mesmo ao namorado que
Roberta conheceu, entendi que os meus atos faziam as relações de gênero circularem no meu
material de maneira específica. Pablo tornou-se o efeito de uma composição discursiva e
relacional que difere do modo como pude compor Carlos e Altair, figuras sobre as quais
falarei adiante, porque desses últimos fui me aproximando em um movimento de afastamento
relativo das práticas administrativas que facultavam a aparição da verdade jurídica. Pode-se
dizer que a interação baseada na desconfiança e a interação mais focada no que as pessoas
colocavam à mostra distinguem-se enquanto modalidades de socialidade que permitem ver
facetas particulares dos sentimentos e atos morais que fazem o gênero e os vínculos
interpessoais em contextos precisos.
Desfecho: Roberta seguiu em sua casa amando o seu namorado, mas sem poder visitá-
lo em Bangu; Pablo passou a responder pela infração cometida durante a execução penal; e
eu segui esperando o desarquivamento do processo de conhecimento dele. Quando
finalmente o mesmo foi remetido, folheando-o percebi que as personagens que compunham
a injustiça narrada por Pablo não existiam ali. Nenhum sinal de Marlene ou sua mãe. Nos
autos, o estupro que existia era o de uma menina de dois anos. Esse é um caso crítico porque
reúne à narrativa de injustiça elementos não convencionais: uma vítima diferente daquela
anunciada a mim, o homicídio de um jovem e uma mulher religiosa apaixonada. A história
de Pablo, ao evidenciar a capacidade mais ou menos eficaz que os sujeitos têm de modular a
verdade sedimentada pela administração estatal, explicita a força da máscara monstruosa
posicionada sobre a face dele. Pablo prefere ser um assassino a ser um estuprador. Parece

diariamente as verdades do gênero e sedimentam a sua performatividade, por outro, a necessidade de repetição
desses mesmos atos indica que o sucesso completo das citações normativas nunca é alcançado, pois sua
coerência e estabilidade estão sempre ameaçadas pela impossibilidade de realização plena dos ideais de
feminilidade e masculinidade. Neste sentido, a performatividade pode ser compreendida como um processo que,
em sua capacidade produtiva, também conforma, habilita, repetições subversivas: “As the effects of a subtle
and politically enforced performativity, gender is an ‘act’, as it were, that is open to splittings, self-parody, self-
criticism, and those hyperbolic exhibitions of the ‘natural’ that, in their very exaggeration, reveal its
fundamentally phantasmatic status” (BUTLER, 1990, p. 200).
63

preferir também ter namorado Marlene a tê-la estuprado. Mas ele prefere, sobretudo, não ter
estuprado a criança que existe nas peças processuais. É em situações como essa que impera
a sacralização da infância como um limite moral ou um dispositivo capaz de regular o dizível
a um antropólogo e a uma mulher com a qual uma relação amorosa foi desenvolvida.

1.3 O coração da máquina de fazer dinheiro

Os primeiros seis meses… Foi muito difícil, mas… Foi uma ingratidão; tipo
assim, tudo de bom que você tem na sua vida, você recebeu, você doa para
alguém. Você recebe um mal muito grande. Os piores momentos da minha
vida foram essas pessoas que me proporcionaram – para mim, para os meus
filhos, para a minha esposa, tá entendendo? E, inclusive, para as pessoas
que estavam à nossa volta. Os primeiros seis meses foram uma coisa muito
grande, uma apreensão muito grande. Mas eu conheci, voltei… por amor à
minha vida e aos meus filhos, eu liberei perdão. E também conheci o meu
caráter como pessoa, dentro do sistema infelizmente. Ali, você decide ser
bom ou… não tem meio termo, tá entendendo? Não tem. Ou você mantém
os teus conceitos, os teus princípios, ou você debanda de vez. Imagina, eu
com dois filhos prontos para fazer faculdade. Hoje, só um que faz,
entendeu? É uma coisa muito… Para a minha família, é como se fosse uma
tragédia (Carlos em gravação realizada na Defensoria, junho de 2016).

Carlos, ao contrário de Pablo, narrou a injustiça nos encontros que tivemos sempre a
partir de pessoas e relações que constam nos autos processuais. Ele fazia questão de
apresentar a mim diversos documentos carregados, de um lado ao outro, como recursos para
a produção afetivo-moral de si como homem honesto, trabalhador e bom pai. Todos esses
documentos eram relativos à fase de conhecimento. Já na primeira vez que conversamos, fui
orientado a ler os depoimentos inscritos nos seus dois processos para que então pudéssemos
discutir os meandros dos acontecimentos. Naquela data, Carlos estava cumprindo pena por
ter “supostamente” estuprado a sua sobrinha e ainda respondia a um processo pelo estupro
igualmente “suposto” de sua filha. Sem perder tempo com perguntas ao estilo “quem é
fulano?”, ele queria apontar-me falhas como, por exemplo, a designação de uma data “a”
para um evento decorrido em “b” – fator, a seu ver, relevante na produção incorreta da sua
condenação. Dizia que os advogados que atuaram no primeiro processo, o da sobrinha,
trabalharam de maneira insuficiente e que, somente depois de ter sua prisão decretada,
começou a buscar entender como a Justiça opera. Esses profissionais tinham transmitido a
ele a sensação de que acusação feita pela irmã de sangue da sua esposa “daria em nada”.
Carlos acreditou nisso porque a acusação lhe parecia absurda. Havia uma clara sobreposição
64

no discurso dele entre as práticas jurídicas e as ações de empreendedores morais específicos.


Falando sobre a Justiça, como um ente personificado, o meu interlocutor necessariamente
falava sobre pessoas de carne e osso responsáveis pelo que ele viveu e ainda estava vivendo.
Fazer com que eu repetisse a palavra “suposta” era um modo discursivo de
deslegitimar a verdade jurídica e também um meio de afirmar a si como alguém que se
qualificou na arte dos trâmites burocráticos. A história contada por Eduarda, irmã da esposa
dele, em sede policial, parece ter sido o estopim dos dois processos. O conhecimento forjado
na lida com a Justiça – o aprendizado sobre o que dizer, a quem acionar, o que contestar e de
que maneira – parecia permitir a Carlos ter um controle maior do desenrolar do processo da
filha, que, conforme me contou e eu não busquei averiguar, como o fiz no caso de Pablo,
findou com a sua absolvição., A carta de sentença de absolvição nesse processo ocasionava
a esperança de alcançar sucesso na revisão criminal do outro e, mais ao largo, agia nas nossas
conversas como um documento que, ao atribuir legitimidade às declarações dele, produzia a
injustiça como prática de Estado. Como sabia que formalmente o processo da sobrinha e o
da filha caminhavam separadamente, suspeitava que a construção do vínculo entre eles
demandaria estratégias jurídicas e construções narrativas distintas daquelas manifestas por
Carlos. Foi quando me dei conta da minha própria ansiedade em avaliar a rentabilidade
jurídica do que estava sendo narrado que me permiti olhar para os dois processos como um
só tecido relacional, e não somente como procedimentos administrativos distintos.
No centro da injustiça da Justiça, Carlos posicionava o marido da irmã da sua esposa.
A principal causa do sofrimento dele não era Eduarda, mas sim a ganância do marido dela.
Pedro não se contentou com o emprego que Carlos arrumou para ele em sua distribuidora de
bebidas e nem mesmo com a sociedade que lhe foi posteriormente oferecida. O meu
interlocutor passou anos acreditando que estava ajudando a família da sua esposa e que estava
forjando uma relação de amizade com o seu cunhado. Não podia imaginar que trazendo Pedro
para perto de si estava possibilitando a transformação dele em um malfeitor. O marido de
Eduarda passou nutrir inveja da vida de Carlos, que no passado teve até uma concessionária
de carros. Tomado por sentimentos distintos daqueles que são característicos de “sujeito
homem”, que “corre atrás” e “faz dinheiro”, Pedro influenciou a sua esposa a narrar em sede
policial o falso estupro da sua filha e da sua sobrinha. Com a dupla acusação, Pedro esperava
não ter que pagar cerca de quinze mil dólares a Carlos pela parte da distribuidora de bebidas
que havia sido vendida a ele informalmente. Quando me contou o valor da transação, Carlos
disse que, mesmo não sendo grande a quantia, era difícil para o seu cunhado arcar com o
65

custo pois, quase um ano depois da sociedade ter sido desfeita, a distribuidora estava indo à
falência. O estupro armado era o jeito de Pedro gerir dívidas forjadas em acordos entre um
homem honesto e, pode-se dizer, um moleque. A relação entre Carlos e seu cunhado emerge
assim como uma relação conflituosa entre masculinidades: quando o primeiro revela-se como
“sujeito homem”, o segundo torna-se desprezível, covarde e incapaz de conquistar bens de
maneira moralmente legítima. Como Carlos não ignora aquele que o desonrou, é importante
perseguir o caminho da resposta que a ele foi possível forjar.
Carlos, novamente em contraposição a Pablo, parecia não me tratar com
desconfiança. Dizia que se eu, diferentemente “do juiz”, estava interessado no que ele tinha
a dizer, a pesquisa serviria ao menos “para que não acontecesse com outros o que aconteceu
com ele”. Ao mesmo tempo que posicionava a si como um benfeitor, ele sinalizava as suas
pretensões comigo. Tratava-me com uma seriedade que era fruto tanto do lugar de
proximidade com a defensora Fabiana que eu ocupava quanto da legitimidade acadêmica que
as palavras tese e doutorado conferiam. A minha relação com ele se intensificou quando, em
meados de 2017, depois de muitos meses sem vê-lo, recebi na madrugada de domingo para
segunda uma ligação. Carlos tinha assistido uma reportagem produzida por uma grande
emissora de televisão sobre falsas acusações de estupro. O que mais lhe interessava na
reportagem era o fato de um policial, que colhia depoimentos de crianças consideradas
vítimas de violência sexual e assinava os laudos psicológicos delas como psicólogo
voluntário da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítima (DECAV), ter tido
o seu registro profissional cassado pelo Conselho Regional de Psicologia (CRP), decisão
posteriormente referendada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP). Carlos queria me
contar que o mesmo policial/psicólogo voluntário tinha atuado nos seus dois processos e que,
se os laudos por ele produzidos foram deslegitimados pelos dois Conselhos, então a revisão
criminal do processo da sobrinha contava com mais um elemento a seu favor.
Antes de Carlos ir à Defensoria falar comigo sobre o mesmo assunto, procurei
matérias sobre esse psicólogo/policial e encontrei uma sequência de reportagens feita, anos
antes, por uma jornalista sobre toda a história narrada na televisão. Quando ele me encontrou,
perguntou se eu tinha como acessar os laudos psicológicos dos seus processos. Recusei-me
a tentar a fazer isso e o orientei a repetir o pedido para o advogado que atuava em sua revisão
criminal. Mas aceitei procurar a jornalista e, caso a encontrasse e ela permitisse ser envolvida,
avisá-lo. Eu estava nitidamente compartilhando a injustiça com Carlos como membro ativo
do seu tecido relacional, seja através de recusas, seja através de aceites. Tornei-me alguém
66

que faz o bem quando passei para ele não o contato da jornalista, mas o contato da esposa de
Altair, que era o homem prejudicado pelos falsos laudos revelados em reportagens de cunho
investigativo. “Deus vai te recompensar”, ouvi. A esposa de Altair, Helena, diferente da
jornalista, tinha interesse em conversar com Carlos para entender os meandros da história
dele e, sobretudo, o papel desempenhado pelo psicólogo/policial em seus dois processos. Eu
tentei permanecer mediando as relações, porém logo perdi o controle do que fulano dizia para
sicrano. Certo é que Carlos, ao me convidar a realizar algum trabalho investigativo, atribuiu
a mim uma posição a partir da qual era possível que eu tecesse em seu favor relações nas
quais a narrativa de injustiça poderia ser cultivada. O trabalho de investigação, enquanto
agenciamento de relações interpessoais por intermédio de relações já tecidas, multiplicava a
extensão do próprio tecido relacional em questão.
Carlos sabia, contudo, que a ampliação do tecido relacional em que alimentava a
injustiça não o livraria dos efeitos deletérios causados por processos de estupro de vulnerável.
A força moral da máscara monstruosa, ainda que atenuada pela confiança depositada nele
por várias pessoas, especialmente por alguns dos seus familiares, continuaria prejudicando-
o. Dada a potência destrutiva da acusação transformada em verdade jurídica, Carlos sabia
que investir na injustiça acusando a Pedro de ser a fonte do mal seria insuficiente. Era preciso
que a ganância do marido de Eduarda pudesse ser construída como “erro da Justiça” para que
a própria Justiça pudesse reconhecer, através da revisão criminal, a injustiça da qual ele era
vítima. Não me parece, portanto, banal o fato dele ter almejado que eu realizasse trabalho
investigativo semelhante ao efetuado pela jornalista já citada com relação a Altair. Se a
revisão criminal era a meta maior do meu interlocutor, o esforço para acessar laudos,
possivelmente ilegítimos, importava porque poderia corroborar a inocência declarada. A
limpeza moral, quando buscada via procedimentos administrativos, revela, por um lado, a
tentativa de existir como vítima legítima em relações; por outro, de maneira menos óbvia, a
tentativa de fazer valer no presente a memória dos dias de glória daquele que foi uma
“máquina de fazer dinheiro”. Ameaçado pela possibilidade constante de ser para forasteiros
uma figura apavorante, um monstro, Carlos solidificava, junto a sua esposa e seus filhos, o
que inclui a filha que ele teria “supostamente” estuprado, um tecido relacional em que a sua
face humana podia ser reconhecida. Era no interior desse tecido que ele melhor vivia como
“sujeito homem” que, vitimado, não sente “medo de recomeçar”.
Com “Deus no coração”, Carlos buscava “olhar para frente” e evitava cultivar em si
a raiva e o ódio que outrora sentira de Pedro. Foi na cadeia que ele aprendeu a administrar as
67

suas emoções de maneira positiva. O mal que sofreu não demandava atos contrários ao bem-
estar do seu cunhado. Era preciso que Carlos “liberasse perdão” para que professasse,
genuinamente, a fé em Deus. Ele nunca mencionou o Diabo, espírito do mal, mas falava sobre
um Deus bondoso que recompensaria a ele por todos prejuízos que viveu, bem como a mim
pelos atos de bondade. Era o coração operado por Jesus que fazia com que o mal causado por
Pedro não demandasse vingança, e sim a observação de si. A temperança nos gestos e nos
sentimentos revela-se assim como uma batalha, se moral e burocrática, igualmente espiritual.
Outros interlocutores teriam dito que o Diabo se manifestou em Pedro, de modo a justificar
o porquê do perdão. Seguindo esse sentido interpretativo, cultivar os sentimentos de raiva e
ódio poderia ser para Carlos o mesmo que deixar o Diabo nele agir. Ainda que o meu
interlocutor não tenha enunciado explicitamente a linha de argumentação que substancia o
mal no Diabo, ele indicava a presença dessa gramática de valores quando alocava, através
das frases “liberar perdão” e “olhar para frente”, o peito hoje limpo de sentimentos negativos
em uma oposição explícita ao mal que devastou a sua vida e a dos seus familiares.
Apresentando-se como evangélico, Carlos atribuía aos seis primeiros meses de
encarceramento a qualidade conturbada de um período de provação. Não poderia seguir
contaminando-se pelo mal que sofrera, nem desejando o mal a quem o perpetrou. O
autocontrole aparece em seu discurso, primeiramente, como fruto da exacerbação da atenção
voltada a si em um momento crítico da vida e, posteriormente, como disposição interiorizada.
Mahmood (2005), entendendo a agência como formação ética, poderia enxergar no esforço
de Carlos uma prática virtuosa: através da coordenação cotidiana entre estados internos e
performances externas, o perdão se fez no coração e pôde então ser liberado. Não se trata,
desse ângulo, da “metamorfose subjetiva”26 comum à narrativa de ex-bandidos (TEIXEIRA,
2011), e sim da busca pelo alinhamento entre os valores do “sujeito homem” que Carlos
sempre foi e os compromissos assumidos pelo evangélico que nele se alastrou após a
condenação. Estamos mais distantes de uma narrativa centrada na recuperação moral do
sujeito, tão comum aos testemunhos pentecostais, do que de uma narrativa centrada no
desabrochar do botão em flor. É preciso lembrar, no entanto, que o discurso sobre a retidão
da conduta nasce fragilizado pela condenação por estupro de vulnerável. Ainda que fosse

26
Teixeira (2011), ao debruçar-se sobre a categoria “ex-bandido”, recorrente entre pentecostais, argumenta que
para os seus interlocutores a conversão religiosa é um processo que diz a respeito a uma “metamorfose subjetiva”
que nunca se encerra. Desloca-se do mundo do crime em direção às igrejas, mas a memória da vida anterior
permanece presente nos corpos, nos movimentos, nas maneiras como se segura a bíblia, ainda que existam
esforços contundentes de “esquecimento” dessa memória incorporada. A batalha espiritual seria incessante.
68

capaz de perdoar, era difícil para Carlos provar-se honesto no mundo em que monstros
existem.
Uma vez que a figura do pedófilo é um fantasma que assombra ao meu interlocutor,
avento a possibilidade da intensificação da atenção voltada a si não ser apenas um efeito do
encarceramento, como sugere o próprio Carlos, mas também o resultado de uma sociologia
nativa: como se a identificação da possibilidade de viver como monstro estivesse vinculada
à compreensão da relevância da produção e exibição do coração tocado por Deus. Ao fazer
essa sugestão não quero desmascarar o meu interlocutor afirmando que aquilo que ele diz
sentir é estratégia retórica. Proponho pensar o rebentar da sociologia nativa como um
movimento ético no sentido da coordenação entre a performance externa (discurso sobre
perdão) e o sentimento interno (perdão como disposição cultivada). O que acontece, nesse
movimento de transformação de si, é que Carlos deixa de responder a Pedro de maneira
virulenta, mas não deixa de sentir-se profundamente atacado. Carlos vive o perdão como uma
resposta, moral e espiritual, a Pedro, na qual permanece incapaz de resolver plenamente os
efeitos da ofensa sofrida, isto é, a masculinidade cuja virtuosidade reside em um sentimento
temperante é uma masculinidade ofendida. Talvez seja acertado dizer que o discurso da
“máquina de fazer dinheiro” é por excelência saudosista, pois tenta fazer presente um “sujeito
homem” que, como tal, já não existe. Indo pouco além, a maneira como Carlos se relaciona
com Pedro, e assim com o fantasma que o assombra, dificulta a reiteração acurada do código
da honra. Estou considerando que, se a linguagem do perdão dista da lógica do desafio 27
(BOURDIEU, 1995) em um plano abstrato, a masculinidade atuada por Carlos as combina
empiricamente, pois a virtude do perdão parece inseparável da frustração de uma ideia de
pai, de trabalhador, de homem. Lembremos da faculdade dos filhos ameaçada pela perda dos
bens com gastos em processos e pela prisão como impossibilidade de fazer dinheiro. O
sentimento de fracasso qualifica a masculinidade que, uma vez honrada, se dispõe à
moderação em tom de lamento. Como veremos, a frustração diz também sobre outras

27
A manutenção da legitimidade pública do orgulho sentido por um homem implica no interior do jogo da
honra o desejo de ter a última palavra quando esse mesmo orgulho é desafiado, de tal modo que existe sempre
a possibilidade da resposta ao desafio ser suplantada pelo desejo de dominar, quiçá eliminar, o desafiante
reconhecido como capaz de causar dano real (BOURDIEU, 1995). Rohden (2006), refletindo sobre
rentabilidade do conceito de honra, chega à conclusão de que não é possível generalizá-lo, nem mesmo
desconsiderar “suas atualizações concretas na interação social” (ROHDEN, 2006, p. 115). Ainda que não tenha
realizado um balanço da produção sobre o tema, como faz a autora, replico através da minha etnografia a mesma
conclusão na medida em que atento às especificidades das masculinidades em configurações relacionais
precisas.
69

masculinidades afetadas pela condenação por estupro de vulnerável, sem, contudo, implicar
a ideia de honra.

1.4 De Helena para Altair: a forma burocrática do amor

Se você me dissesse que eu não poderia lutar contra os obstáculos que me


fizeram ficar longe de você, eu teria tentado do mesmo jeito… Na batalha
dura que vivemos, eu não parei de pensar em você um minuto sequer… A
vida não se trata dos obstáculos que pulamos, e sim daqueles que
tropeçamos, caímos, sentimos dor, aprendemos, levantamos e
simplesmente pegamos outro caminho. Fui seguindo o amor, atravessando
todos os obstáculos, e correndo todos os riscos pelo simples prazer de amar
você… Fazer amor é caminhar juntos, é crescer juntos… E amar é isso. É
auxiliar o outro a saltar obstáculo, mesmo quando suas próprias forças estão
extintas. Acredito que o amor anda junto à fé, pois ele vê no impossível, o
possível acontecer. Amo você @[Altair]! (Postagem feita por Helena no
Facebook no dia dos namorados – 12/06/2018).

Trafegando em relações, realizei um trabalho burocrático para Carlos incomparável à


veemência e à amplitude do trabalho burocrático realizado por Helena em nome de Altair. O
que ela fez pelo seu esposo também não é simétrico ao que a jornalista fez pelo mesmo
homem ao realizar o seu trabalho. Trafegar nas relações onde a narrativa de injustiça floresce
parece ser uma tarefa que implica gestos menos comprometidos que as práticas morais
atuadas por quem de fato habita nessas relações. O amor que Helena sentia por Altair está
marcado em uma série de atos continuados dela em prol dele. Depois da prisão de seu marido,
motivada por acusações de estupro de vulnerável promovidas por mães de crianças que
estudavam na creche que o casal possuía e geria, Helena investiu na injustiça especializando-
se, de forma ainda mais intensa do que Carlos, na lida com a burocracia. Porque acreditava
na inocência de seu marido, ela devotou anos de sua vida ao estudo do processo de
conhecimento, aos encontros com advogados e psicólogos especializados em crimes sexuais,
às visitas nas unidades penitenciárias, à venda da creche, à reconfiguração das finanças da
família, à mudança de apartamento, etc. Enquanto o tecido relacional afetado pelo processo
transformava-se, Helena (re)fazia a si como especialista em nome de Altair. A forma mais
material do engajamento amoroso dela é o dossiê que escreveu numa linguagem jurídica e
emotiva, produtora da defesa de seu marido e de uma crítica severa às práticas do
policial/psicólogo que assinou os “falsos laudos” noticiados pela jornalista e, posteriormente,
70

pelo programa de televisão que Carlos assistiu. Foi também Helena que encaminhou
denúncias aos Conselhos de Psicologia.
Escapa às minhas pretensões a análise minuciosa das mais de cem páginas do dossiê,
mas importa dizer que, antes de produzir esse material, Helena se matriculou em um curso
de investigação e contratou uma psicóloga/psicanalista para avaliar a qualidade técnica dos
laudos produzidos pelo policial. Estive em duas ocasiões com essa especialista: em um evento
realizado por uma associação de psicanalistas sobre violência sexual e em seu consultório. A
psicóloga/psicanalista demonstrou-se contrária à legitimação pelo judiciário de laudos
considerados por ela como imprecisos e falhos. “Aquilo não deveria nem ser considerado um
laudo”, disse. Helena angariou à sua volta, investindo quantidade bastante razoável de
dinheiro, tempo e afeto de um conjunto de pessoas e relações apto a expandir a força da
injustiça e a atrair outras pessoas – como aconteceu comigo, por exemplo. Não quero,
contudo, transmitir a impressão de que ela podia multiplicar a extensão das relações para
todos os lados. Tampouco pretendo transmitir a impressão de que os especialistas são pessoas
que guardam entre si semelhança maior do que aquela que de fato existe. Sei que o advogado
que atuava na revisão criminal de Carlos era alguém da igreja evangélica que ele frequentava,
mas sei menos sobre a advogada de Helena, que, sempre muito ocupada, desmarcou diversos
encontros comigo. O tecido relacional em que os homens sentenciados e outros(as)
habitavam parecia se ampliar em direções que não são óbvias, se consideramos que os dois
advogados em questão podem apontar para diferentes percursos relacionais. É importante
salientar também que Altair, diferente de Carlos e Pablo, não foi assistido pela defensora
Fabiana durante a fase de execução penal e já tinha terminado de cumprir a pena que lhe fora
imposta quando o conheci.
Nem mesmo toda a carga de verdade que Helena conseguiu reunir quando conquistou
a suspensão do título de psicólogo daquele que hoje é apenas policial bastou para que a
revisão criminal do seu marido fosse julgada procedente pelo time de desembargadores.
Quando cheguei à casa dela, poucas horas depois da decisão judicial negativa ter sido
comunicada, Helena e Altair estavam devastados. Ela dizia não saber se queria continuar
lutando. Ele parecia mais decidido em “mandar para Brasília”. A pergunta que rondava a
todos era a de que adiantava o esforço. Altair, que costumava ficar em silêncio enquanto sua
esposa assumia o controle narrativo da história dos dois, parecia chocar-se com tudo em
71

função da decisão: a corrupção; o “golpe”28; as coisas que as pessoas postavam no Facebook;


o desembargador “A”, que era uma pessoa perigosa ligada a “B”, que, por sua vez, era
responsável por “z” ações; a manutenção da presença do policial/psicólogo na mesma
unidade da DECAV; e assim por diante. Tudo lhe parecida absurdo. A decisão judicial fazia
Altair afundar-se em uma experiência de contato com um mal generalizado, isto é, disperso
em muitos lugares, pessoas e circunstâncias. Não lembro se ele chegou a formular em
palavras, mas agia como se o mundo não tivesse jeito. Helena buscava trazê-lo de volta
lembrando que a vida deles era confortável. Tinham como viver bem. “Uma viagem?”,
pensei. Mesmo a raiva de Altair parecia contida. Ele seguia falando tão moderadamente
quanto falou nas outras ocasiões em que estivemos juntos. Helena, enquanto fumava, acendeu
um incenso e agiu com o ar irônico dos que sabem que sabem mais: “eu te avisei que ia dar
nisso; não avisei, Everton?”.
Por trás da narrativa de injustiça de Altair e Helena, existiam também pessoas
responsáveis pelo mal: uma sócia gananciosa e mães que expunham seus filhos por dinheiro.
Helena e Altair quase não falaram sobre essas mulheres29. Elas surgiram tal qual flashes que
abruptamente nos alcançam e somem. A temporalidade curta da acusação dirigida às
empreendedoras morais e a preferência pela construção prolongada dos erros estatais nos
conta sobre o que Helena aprendeu ao longo da sua jornada. Ela sabia o que dizer e o que
mobilizar, visando alcançar resultados jurídicos. Helena, mais do que Carlos, acionava em
sua fala jargões técnicos e, quando notava que eu não os entendia, costumava explicá-los. Os
anos investidos – uma década, mais ou menos – na revisão criminal que falhou projetam em
direção ao futuro, em um movimento anexado e subordinado à projeção da verdade jurídica,
um dossiê inteiro. O mal substanciado prioritariamente na figura do policial que atuava como
psicólogo impulsionava, em contrapartida, o amor como emoção que habilitava o
posicionamento moral e, mais do que isso, cristalizava-se em documentos como forma de
devoção ao marido em sofrimento. O dossiê feito para a Justiça, mas pela Justiça invalidado,
segue em direção ao futuro enquanto ato ético. Mesmo o “contralaudo” assinado por uma
psicóloga motivada por um ímpeto profissional, na medida em que era também gesto de
oposição de Helena ao policial/psicólogo que tanto feriu Altair, deve ser visto como gesto
profundo de engajamento.

28
Refiro-me a uma forma de enquadramento dos acontecimentos que redundaram no impeachment da
presidenta Dilma Rousseff.
29
Os homens, pais dessas crianças, foram ainda menos mencionados.
72

Acredito que algumas ponderações de Lila Abu-Lughod (1986) sobre sentimentos


velados em uma comunidade beduína no deserto do Egito, ainda que não aplicáveis
diretamente ao meu material, podem ser elucidativas. A autora argumenta que a linguagem
da poesia é uma forma beduína de expressar a vivência de amores que não podiam ser
enunciados em conversas públicas e casuais. O amor versado em poemas seria um ato de
rebelião, uma forma de fazer valer a ideia da escolha do parceiro desejado em uma sociedade
onde o parceiro a ser amado é aquele que foi designado por intermédio de um complexo
sistema de transações matrimoniais. Lembrando o aspecto político da poesia beduína, o
dossiê, mas também os demais documentos carregados e/ou pagos por Helena, são uma
materialização bem-acabada da forma burocrática de exprimir o amor. O dossiê, os laudos
ou os demais documentos são atos amorosos de cunho burocrático, pois relevam um esforço
afetivo-político de contestação da legitimidade da Justiça em proferir sentenças
condenatórias que perpassam o aprendizado e a mobilização da linguagem jurídica em nome
daquele a quem se quer o bem. Esses documentos são políticos também porque instauram
narrativas que substancializam a maldade, seja quando atidas aos empreendedores morais
que forjaram a acusação de estupro, seja quando focadas em funcionários da administração
pública. A política materializada em papéis decorre de um sentimento capaz de articular uma
maneira de conduzir a si mesmo enquanto sujeito moral de uma dada ação; melhor, o amor
articula a tomada de posição moral passível de se racionalizar em conformidade às lógicas
administrativas. Refiro-me à busca pela legitimação pela Justiça não exatamente do laço
amoroso, e sim daqueles papéis que, sendo desde o princípio amor, buscavam produzir efeitos
de verdade juridicamente eficazes.
O amor como emoção que habilita a forma burocrática do engajamento continuado
com outro, alvo de maldade, comporta ainda uma carga religiosa, se considerarmos que esse
sentimento “anda junto à fé”. Desse ângulo, é possível sugerir uma aproximação relativa
entre Roberta e Helena, visto que ambas apontavam para a análise do amor como uma atitude,
espécie de prática virtuosa formadora de relações e informada pelo cristianismo. Helena,
ainda mais gravemente que Roberta, confluía a disposição à confiança ao ato de amor.
Evoquemos o texto sagrado: “o amor não se alegra com injustiça, mas se alegra com a
verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1 CORÍNTIOS 13:4-7). Mesmo
sem superestimar o rendimento do postulado bíblico, pode-se dizer que Helena e Roberta não
se alegravam com a injustiça, mas sim com a verdade que conheciam e nutriam nos tecidos
relacionais em que habitavam. Não estou sugerindo que elas eram pessoas que cultivavam os
73

mesmos vínculos com o “critério do religioso” (DUARTE, 2006), e sim que o cristianismo é
um fenômeno de larga abrangência capaz de habilitar certos atos amorosos. A leitura do amor
como ato ético proposta por Jabour (2006) em uma discussão sobre a vivência religiosa de
uma família de classe média é pertinente à discussão aqui proposta menos porque dedicada
a uma exegese das noções de ágape e cáritas, caras à tradição cristã, e mais porque sustenta
a relevância de nos indagarmos sobre o que o amor cristão faz, produz ou traz ao mundo.
O amor, quando se exprime burocraticamente, traz ao mundo um dossiê, busca forjar
carteirinhas de visitação se identificada a menor porta. A compreensão do amor como ato
requer, seguindo Das (2010), atenção voltada ao cotidiano como cerne dos engajamentos
interpessoais, pois seria no realizar do dia a dia que nos tornaríamos abertos ou não a
responder aos mais variados chamados do outro. O argumento da autora demarca que a
descrição das disposições para a ação em relação àqueles que nos cercam é pertinente, já que
tais disposições, ainda que orientadas por moralidades historicamente forjadas, podem variar
surpreendentemente no cotidiano30. Em outras palavras, não é porque a figura do pedófilo
está associada de maneira nevrálgica à do monstro que as disposições para a ação serão
necessariamente orientadas por essa associação; aqui, coloca-se em relevo a possibilidade de
homens sentenciados por crimes sexuais serem prioritariamente percebidos pelas pessoas que
os amam a partir da posição afetivamente marcada que eles ocupam nos laços de parentesco.
O marido acusado de estupro não deixa necessariamente de ser percebido partir da posição
relacional que ocupa, e esse laço social torna-se ainda mais crítico quando o amor que lhe
embala aparece cruzado ao fenômeno do cristianismo, mais precisamente ao valor atribuído
a uma maneira de amar.
Sugiro pensarmos que a proximidade afetiva torna-se chave analiticamente porque
através dela podemos perceber o trabalho de formação de uma pessoa em relação a outra e
também porque através dos minúsculos atos cotidianos podemos descrever a tradução de
afetos em linguagens que, a princípio, se querem hostis na nossa cosmologia. Em outro
momento, questionando o efeito da separação entre o político e o afetivo, reiterada pelas
grandes narrativas sobre o Ocidente (VIVEIROS DE CASTRO; BENZAQUEM DE
ARAÚJO, 1977), busquei demarcar que perdemos o cotidiano quando apenas seguimos
reafirmando tais narrativas (RANGEL, 2018). Partindo uma vez mais da confusão produtiva

30
“[…] a picture of the moral in which we might lose the profundity of moral statements through which moral
philosophy, theology, and religion […] stages the moral. What we gain is the simple capacity to inhabit the
everyday and to perform the labor of discovering what is to engage the life of other” (Das, 2010, p. 397).
74

entre os ditos domínios sociais, privado e público, e entre linguagens, afetivo-moral e


racional-legal (WEBER, 1963), parece possível ver mais facilmente o amor se realizar na
forma burocrática em nome de um marido. Descrevo gestos afetivos que não abdicavam de
se realizarem como documento, ainda que, a despeito de todos os esforços, nada impedisse o
questionamento da legitimidade do dossiê pela Justiça. A resposta de Helena, face a esse
ataque, vinha sendo a da ampliação da racionalização burocrática do gesto de amor em busca
de eficácia jurídica. O reconhecimento analítico da prerrogativa do cotidiano no que diz
respeito à articulação e desarticulação de “mundos” – por vezes hostis, por vezes conexos
(ZELIZER, 2011) – é relevante à fomentação da nossa capacidade de perceber como emoções
e moralidades movimentam a burocracia estatal. No caso de Helena e Altair, trazendo à vida
papéis que, mesmo após terem sido considerados insuficientes por desembargadores ao
sucesso da revisão criminal, seguiam disputando pela sua legitimidade ao menos no plano do
discurso dos que perderam.

1.5 Quebra temporal

Conhece-se, finalmente, as razões que me fizeram iniciar a este capítulo salientando


que os homens sentenciados dependiam dos recursos narrativos, das emoções e dos valores
sociais constitutivos dos tecidos relacionais em que habitavam para que pudessem existir em
alguma extensão do mundo como honestos, pais, religiosos e/ou trabalhadores. Tratava-se,
afinal, de um trabalho ético-moral de produção de humanidade acompanhado pela projeção
contínua da sentença condenatória em direção ao futuro, porque a sucessão dos
acontecimentos da vida vivida pelos meus interlocutores carregava o peso do mal articulado
em documentos, maneiras de conter a marcha da verdade jurídica emergiam. Através de
práticas específicas de manipulação do estigma (GOFFMAN, 2012), Pablo nublou a
monstruosidade posicionada sobre a sua face e pôde assim se vincular a Roberta. Falando em
máscaras, admito a existência de ações capazes de obliterar o passado marcado pelo crime
sexual em nome da produção de um cotidiano no interior do qual a ocultação do crime podia
imperar. Pode-se até supor que haja quem seja capaz de viver uma vida sujeita à fomentação
de estratégias de encobrimento, mas gostaria de acentuar que, quando falo em máscara, estou
pensando principalmente na narrativa de injustiça como esforço coletivo de desconstrução
da monstruosidade. Entendo que a afirmação da injustiça busca negar a semelhança entre as
pessoas produzidas pelos processos de conhecimento (tempo passado) e os homens que pude
75

conhecer durante execução penal (tempo presente). Em outras palavras, assim que os
meus(minhas) interlocutores(as) me ouviam dizer que estava realizando uma pesquisa
com/sobre homens sentenciados por crimes sexuais e pessoas a eles vinculadas, iniciava-se
quase instantaneamente o trabalho de afastamento do estigma, feito de acusações,
documentos e/ou desconfianças, capaz de encobrir faces humanas.
No que se refere a Pablo, Carlos e Altair notei que a destruição causada pela
condenação era vivida como “perda”, para além de material, simbólica. Ideias a eles
relevantes, como as de pai e trabalhador, tinham sido frustradas injustamente. Olhando para
as masculinidades, tal como performatizadas, pude entender que a frustração correspondia a
uma maneira comum de perceber a passagem do tempo após a condenação. Desse evento
crítico (DAS, 2007) emanou uma quebra temporal. Ao passo em que a sentença condenatória
inaugurou uma vida marcada pelo desejo de retirar de si a máscara do pedófilo, bem como
pela presença da figura do pedófilo como um fantasma, nasceu um passado em que a verdade
jurídica não existia, um momento no tempo em que as relações e as idealizações de si não
estavam afetadas pelo mal. O sentimento de frustração enunciava-se nas experiências
masculinas por intermédio do contraste entre a percepção de como a vida era e de como
passou a ser. Parecia haver algo incômodo no que dizia respeito ao presente que não era
brilhante como o passado em que Altair administrava uma creche, Pablo era um servidor
público e Carlos fazia dinheiro. O próprio brilho do passado derivava da abrupta capacidade
da condenação de criar em retrospecto o tempo em que os meus interlocutores levavam uma
vida que lhes parecia digna. Essa valorização do que foi em certo sentido perdido só existe
em um contraste com o presente que a todo instante faz lembrar que o futuro não será tal qual
uma vez imaginado. Talvez a melhor forma de caracterizar a frustração seja aproximando-a
conjuntamente à lembrança das promessas de um passado e à ideia de um futuro injustamente
roubado. A quebra temporal entre esse passado abrilhantado e esse futuro que não será cria
o intervalo de onde emanam discursos coloridos pela frustração.
A minha aposta, contudo, é a de que não devemos congelar a sensação comum de que
algo foi perdido em uma única relação entre o sujeito e a frustração, pois os ideais frustrados
de Carlos, Pablo e Altair, ainda que semelhantes, não culminam em modos de sentir e agir
idênticos. As respostas à frustração não são as mesmas, nem mesmo a frustração – como se
verá ao longo da tese – é a única resposta emocional possível à condenação. Espero ter
demonstrado que o silêncio importava a Altair, o perdão a Carlos e a mentira a Pablo, como
também que esses atos e sentimentos qualificavam condutas masculinas, que, sempre de
76

modo singular, manejavam a experiência da condenação como quebra temporal. Devo


demarcar também que os meus apontamentos sobre a relação entre certos homens e a
frustração são limitados a ponto de não ser possível afirmar qual é o impacto real desse
sentimento na vida das pessoas. Tenho a impressão de que, embora seja viável argumentar
que alguns dos meus interlocutores faziam-me perceber o sentimento de frustração nas bordas
do discurso de injustiça, não tenho como aferir o vigor desse sentimento e nem mesmo o seu
espraiar ou não pela vida cotidiana – especialmente, no âmbito da intimidade. Como já
sugerido, é mais acertado fazer ver que a frustração se insinuava nos atos de fala qualificando
uma relação com o tempo. Mais precisamente, a quebra temporal, quando associada ao
gênero, resultava em condutas que, frente a mim, retorciam a lógica da honra via apelos ao
perdão (Carlos), criavam provedores (Pablo) e faziam a importância de calar-se deixando a
injustiça ser contada no feminino (Altair).
Sabendo que os meus dados são também limitados quanto à relação entre as
experiências masculinas de frustração e os atos de amor, posso apenas entrever, a partir da
relação entre Helena e Altair, um modo de correlacionar masculinidade e feminilidade.
Helena era quem mais fazia com que a máscara do pedófilo fosse distanciada e quem mais
multiplicava a extensão e a densidade do tecido relacional em que Altair existia como homem
honesto. Quando ela se engajava na injustiça, através da produção de papéis contestatórios,
tornava-se evidente a qualidade imprescindível do trabalho ao qual se dedicava. Era inegável
sua capacidade de fazer do amor não somente um mergulho no passado, mas também uma
maneira de habitar o presente transformando a disposição em confiar no Altair há muito
conhecido em uma forma burocrática apta a disputar a sua própria legitimidade como
documento. Desse ângulo, talvez seja mais apropriado pensar a quebra temporal como um
passado profundo, fonte do conhecimento sensível e verdadeiro sobre o marido a ser amado
em atos, e um passado recente, marcado pelo germinar da narrativa de injustiça como efeito
da condenação. A injustiça dependia do passado profundo, propriamente da capacidade de
Helena manter o que aprendeu sobre Altair em momento anterior à condenação como uma
temporalidade quente no presente. À medida que ela foi se transformando em investigadora,
a confiança que a permitia reencontrar continuamente nele o homem amado foi nutrida, dia
após dia, através do próprio engajamento, pouco a pouco materializado em dossiê. Manter o
passado profundo quente no presente era o mesmo que seguir em direção ao futuro em um
estado de retorno afetivamente orientado.
77

Os atos de amor que fazem a injustiça relevam ainda um trabalho bastante próximo
das práticas de cuidado, considerando, por exemplo, que o cuidado muitas vezes designa
gestos a partir dos quais eventos críticos são absorvidos e sofrimentos aliviados. Se manter
quente a “fé” em Altair implicou que Helena convertesse parte expressiva do “tempo para si”
em “tempo dedicado ao outro” (FERNANDES, 2018), nota-se que o amor devoto realiza-se
através de um trabalho hercúleo, difícil de ser integralmente agradável a quem o efetua.
Perguntando-me sobre o que fazia Helena exibir tamanho engajamento e encontrando em
campo o amor que não se alegra com a injustiça como resposta, terminei concluindo o mesmo
que parte da literatura especializada: o cuidado é idealizado pelos sujeitos como prática ética
a tal ponto que aquele(a) que se esforça pelo outro reconhece nos seus atos de devoção o seu
próprio valor moral (CADUFF, 2019). Nesse sentido, cabe observar que a devoção habilita
um discurso de autoridade feminino sobre a vida a dois estremecida pela condenação por
estupro de vulnerável. O exercício de algum poder narrativo recompensa Helena, dá-lhe
algum prazer. Ainda segundo Carlo Caduff, menos usuais seriam as perguntas direcionadas
a quem recebe o cuidado porque os autores de etnografias compartilhariam com os(as)
cuidadores(as) sobre os quais escrevem a mesma ênfase no cuidado enquanto “socialidade
exemplar” (ambos agiriam como se cuidado precisasse ser cuidado) e também porque aquilo
que dizem aqueles que são cuidados poderia ser socialmente ácido ou simplesmente ameaçar
as idealizações morais manifestas por um autor ou outro.
Os dados que reuni sobre Helena e Altair apontam justamente para o sentido da
“inflação ética do cuidado” que Caduff questiona. É certo pensar que a minha interlocutora
fundia o trabalho que executava em nome do seu marido a uma imagem moral do bem fazer.
É nesse ponto, entretanto, que acredito ser necessário desacelerar. Executando um trabalho
usualmente pensado como feminino, Helena podia até querer fazer vivo o passado profundo,
trazendo para perto de si o marido que há muito conhecia, mas o Altair de quem ela cuidava
no presente era um Altair assombrado por fantasmas. A quebra temporal que o amor buscava
contornar, apelando à reconstrução da linearidade entre a vida anterior e posterior ao
processo, não podia ser de todo resolvida. Levanto a possibilidade das tentativas de
recuperação dos mais variados ideais de homem (pai, trabalhador, evangélico, etc.) serem
inseparáveis da ameaça de desumanização exercida pela figura do pedófilo, de tal forma que
mesmo a masculinidade feliz em calar-se para assim ser protegida pela feminilidade capaz
de ocupar magistralmente a posição de fala termina sujeita à impossibilidade de que o
trabalho de cuidar solucione tudo. Foi mais fácil perceber o amor devoto de Helena realizar-
78

se como discurso de autoridade sobre feitos, acontecimentos e relações do que perceber a


cicatrização de Altair em um contexto caracterizado pela força cortante e contínua do
estigma.

1.6 A importância do mal

Venho argumentando que a narrativa de injustiça requer, costumeiramente, que os


empreendedores morais responsáveis pela acusação de estupro sejam convertidos em pessoas
más, que, embora acionem a administração estatal alegando a proteção de crianças e
adolescentes, buscam a afirmação de alguma demanda espúria. A condenação por estupro de
vulnerável é para Pablo, mas não somente para ele, o efeito da multiplicação da força de um
ato de maldade que qualifica o “ser” do acusador. O mal que se torna visível no ato injusto
de acusar é produzido como uma qualidade substantiva, a essência de pessoas como a mãe
de Marlene, mas também vivido como excesso fabricado pela administração incorreta de
justiça. Seguindo essa linha de raciocínio, a Justiça em maiúsculo sobre a qual falam os meus
interlocutores pode ser descrita como uma engrenagem moral que, devido à sua capacidade
de instaurar cartas de sentença condenatórias, projeta sobre os tecidos relacionais prejuízos
que ultrapassam em muito a competência de um empreendedor moral em produzir uma
realidade: um estuprador, um pedófilo, um abusador. Estar sujeito à operação moral da
Justiça é perceber o Estado

[…] como entidade que tem concretude não apenas em suas formas
institucionais, em sua dimensão de administração e governamentalidade,
mas como entidade simbólica que atravessa e ordena o cotidiano das
pessoas: aquele que faz; que deve fazer; que pode realizar ou escolher não
realizar (VIANNA; FARIAS, 2011, p. 93).

A carnatura da Justiça como ente está correlacionada à fase de conhecimento:


produção de provas, oitivas, sentenças. Pode-se dizer que são as práticas persecutórias que
terminam ampliando o mal, do ponto de vista dos meus interlocutores. O corpo dessas
práticas se faz visível no policial/psicólogo, que, tal como a Justiça, ouve somente aquilo que
dizem os empreendedores morais ou as crianças classificadas como vítimas em documentos.
A defesa das crianças e a vontade de punição de juízes eram costumeiramente costuradas
visando descrever tanto a força desproporcional das práticas estatais engajadas na acusação
79

quanto a sensação, derivada dessa desproporcionalidade, de que ninguém queria escutar


aqueles que foram acusados de estuprar. Nesse sentido, o sofrimento que experimentam os
condenados foi causado por práticas de administração de justiça moralmente orientadas, isto
é, focadas em vítimas que foram tratadas como autoevidentes, e não como “supostas”. Não é
difícil entrever que, quando os meus(minhas) interlocutores(as) acusavam a Justiça de ser
uma engrenagem moral, eles(as) estavam dizendo que, se um agente policial podia ser uma
metonímia do Estado, esse último, tal qual o primeiro, manifestava intencionalidade capaz
de produzir lados: crianças e mulheres como figuras a serem protegidas versus homens como
suspeitos, quando não culpados. Altair resume essas considerações com a seguinte afirmação:
“contra uma criança, um negro e uma mulher, ninguém ganha”. Embora nessa frase
“ninguém” seja uma masculinidade ferida, não são somente as relações de gênero que nela
comparecem, mas também as minorias para as quais se perde em função da ação de um
Estado protetor contaminado pelo mal que ele mesmo multiplica.
Ainda que tenha enfatizado a figura do policial/psicólogo como o grande articulador
do infortúnio vivido por Altair e Helena, vale lembrar que, durante de trabalho de campo, o
mal era reiteradamente narrado em menção a mulheres que queriam dinheiro, que não
suportavam uma separação, que sentiam muito ciúme, que queriam os filhos para si, que
faziam macumba, etc. Mesmo quando os homens apareciam arquitetando maldades, havia
mulheres com eles confabulando. Sem sua esposa, Pedro, de acordo com a narrativa de
Carlos, talvez não pudesse realizar o seu grande ato de moleque. A influência negativa
exercida por Pedro sobre Eduarda sedimentou uma masculinidade honrada, “máquina de
fazer dinheiro”, em oposição a uma masculinidade rebaixada moralmente, pois incapaz de
conquistar bens por intermédio do trabalho. Chamo atenção a uma masculinidade vinculada
ao mal porque não é oportuno considerá-lo como qualidade feminina per se. São os próprios
repertórios de gênero normativos que fazem confluir com frequência maior o acionamento
da moralidade do mal em alusão ao feminino, deixando em segundo plano a substancialização
do mal em masculinidades. Passando da observação dos empreendedores morais
responsáveis pela acusação às mulheres dispostas a amar, pode-se dizer que a estabilização
do cuidado como prática feminina requeria a desvalorização da acusação de estupro. A
ansiedade em congelar o mal em alguém indica que a própria produção discursiva desse
recurso moral era gesto de cuidado. Desse ângulo, as feminilidades ora encarnavam o mal
(acusação), ora o cuidado (amor).
80

Acredito que, embora esteja claro que o mal somente pode produzir efeitos deletérios
quando atuado e administrado pelas pessoas, a sua substancialização não deve ser perdida de
vista por uma razão específica: o mal substantivo é uma explicação possível para o porquê
de alguém ser capaz de causar danos profundos em nome de interesses mesquinhos. À medida
que o sofrimento experimentado por homens condenados é vivido como excessivo, absurdo,
o mal emerge como essência de pessoas que, pouco preocupadas com a dor do outro,
engajam-se em campanhas acusatórias engrandecidas pela força desproporcional da Justiça.
Ora como o próprio Diabo, ora como essência de pessoas como a mãe de Marlene, a fé no
mal como substância entranhada estava espraiada e, por isso, podia atualizar-se em atos de
fala, em substancializações discursivo-morais. Evans-Pritchard (2005) propôs que a bruxaria
entre os Azande seria uma razão suficiente, um esquema de explicação dos infortúnios
completamente cabível. A narrativa de Pablo era a que mais se aproximava do mal como
princípio de causalidade totalizante. Helena e Altair, de maneira mais aguda que Carlos,
privilegiavam os “erros da Justiça”. Agiam como se a dimensão moral e emotiva dos seus
discursos devesse ser proferida em tom menor, isto é, devesse ser articulada com a
racionalidade burocrática. Diferente da bruxaria entre os Azande, o mal como regime de
explicação dos infortúnios em nossa sociedade está sujeito a uma circulação em que a sua
própria legitimidade explicativa é contestável.
Cabe tornar a Zelizer (2011) para lembrarmos que os mundos hostis são tão nossos
quanto os mundos conexos. Quando priorizavam e idealizavam a linguagem burocrática, os
meus(minhas) interlocutores(as) estavam produzindo esferas distintas (moral-
afetivo/racional-legal) e atribuindo à linguagem que priorizavam maior capacidade de
produção de verdade. Ninguém carrega documentos à toa e nem batiza atos de amor como
dossiê sem razão. Helena, aproximando o amor à fé cristã, revelava a fé com a qual se rendia
aos documentos. Se, por um lado, o amor que confia na injustiça está enlaçado a uma
confiança quase religiosa na burocracia, por outro lado, a separação entre esferas era
demandada cada vez que um purismo de cunho racional-legal – refiro-me à desqualificação
do dossiê como exclusivamente afeto, não sendo prova ou documento legítimo – se
apresentava e a narrativa injustiça era rechaçada como mero discurso moral. Nesse horizonte,
o mal substancializado não podia ser um “princípio” de explicação totalizante, ainda que
Pablos despontassem, aqui e ali, abdicando do privilégio da verdade jurídica. Percebe-se
assim que o mal era significativo à conformação do comportamento que os(as) meus(minhas)
interlocutores(as) viam como o apropriado e, por vezes, resultava em documentos aptos a
81

afirmar e a disputar a humanidade dos homens condenados por crimes sexuais. Se retirados
de cena o mal substancializado, sua razoabilidade explicativa e os papéis feitos com amor,
restariam apenas faces encobertas pelo estigma que não foi combatido pelos que sofreram a
injustiça e pelos que nela creram.
83

2 MENTIRAS FAZEM FAMÍLIAS

O momento presente é feito possível pela fantasia de você, carregado pelas


qualidades X que eu posso projetar em você (BERLANT, 2010, p. 95)31.

2.1 Ocultar, destruir e levar a crer

Os dedos das mãos de Célia estavam em carne-viva. Após dias de trabalho intenso na
cozinha, as bolhas que a incomodavam tinham, uma a uma, estourado. Os prejuízos causados
por uma alergia e multiplicados pela feitura de docinhos para fora foram fotografados e
enviados a mim tanto como prova material do investimento dela na moralidade do trabalho,
quanto como forma de expressão de gratidão pelo dinheiro que eu havia lhe dado para
comprar latas de leite condensado e um pouco de comida. Célia, na legenda de uma dessas
fotografias, disse que estava “muito chateada” com o seu noivo, Tonico, porque ela o
“ajudava muito” e ele parecia “nem se preocupar”. Mesmo insatisfeita, ela não deixou de
atravessar a cidade, da Baixada ao centro, várias vezes por semana, para vê-lo no final de
cada expediente – antes, portanto, que Tonico retornasse para dormir no presídio semiaberto
onde terminava de cumprir parte de uma pena de 25 anos. Os dedos fotografados, quando
pensados junto a deslocamentos que não cessavam, evidenciam um amor e as expectativas
que o acompanham. Célia queria que seu futuro marido fizesse mais por ela. Queria que ele
pagasse o aluguel e que evitasse, como acabou acontecendo, que a luz da casa quase sem
móveis onde ela vivia fosse cortada. As contas de luz foram entregues para Tonico, que, por
sua vez, disse que as entregou a uma pessoa que lhe devia dinheiro por um serviço. O aluguel
até estava em dia, mas Tonico não sabia disso. Eram os docinhos que resolviam o que ele
não resolvia. Célia deixou claro que geria a sua relação afetivo-sexual apelando a mentiras
que tinham como propósito cobrar do seu noivo uma tomada de atitude no sentido da
responsabilização pelas contas da casa. E juntos, eu e ela, não contávamos para Tonico sobre
a existência das nossas conversas. Omitindo, lidávamos com o incômodo que a nossa
aproximação produzia nele, podendo resultar inclusive nos “esculachos” dos quais a minha
interlocutora tanto reclamava.

31
No original: “The present moment is made possible by the fantasy of you, laden with the x qualities I can
project onto you”.
84

Já que Célia estava grávida, de Tonico, e tinha jantado apenas pão na noite anterior
ao nosso terceiro ou quarto encontro, paguei a ela um almoço que terminou gerando mais
complicações. Enquanto realizava-se através das palavras como agente moral íntegro, uma
mulher que se dispôs a amar um condenado porque sabe que o passado dele a ela não
compete, Célia contava que a ex-mulher do seu noivo havia mandado mensagens para ela no
Facebook dizendo que ele era “pedófilo”. Célia, no entanto, não acreditou; ou, melhor
dizendo, parecia preferir acreditar que o pai do filho que estava esperando já não se envolvia
com “negócio de drogas” e que não tinha estuprado o menino que foi seu enteado. Fiquei em
silêncio. Eu não tinha informações sobre tráfico de drogas e Tonico havia me dito que,
embora tivesse sido preso pelo crime de estupro de vulnerável, era alvo de uma falsa acusação
– injustiça cometida por sua ex-mulher. Se eu dissesse a Célia que conhecia a história do
enteado de Tonico, filho de criação dele, eu quebraria a lógica da confidencialidade que
imperava nas interações com o meu interlocutor e reacenderia desconfianças que eram
sombreadas pela vontade de Célia de crer em seu futuro marido e também pelas práticas de
ocultação direcionadas por ele a ela. Quando narrou a mim a injustiça que culminou na sua
condenação, Tonico pediu que a sua noiva aguardasse em outro lugar o término da
“entrevista”. Ela aceitou, de imediato. Esse pedido aceito incitou a necessidade de que eu não
respondesse as perguntas que minha interlocutora, vez ou outra, fazia sobre o que de fato
sabia sobre processos, versões de acontecimentos e crimes.
Como ninguém da família de Célia sabia que o seu noivo estava preso, ela raramente
podia ter uma conversa sobre a relação na qual estava mergulhada. A decisão dela de insistir
em afirmar histórias inventadas para justificar a ausência quase contínua de Tonico em sua
casa produzia a desconfiança alheia e a isolava das pessoas próximas que poderiam ouvi-la.
A primeira vez que a escutei foi na noite em que me ligou desesperada porque, ao realizar
uma consulta online – a pedido de Tonico – do andamento do processo de execução dele no
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), se deparou pela primeira vez com a sentença
de 25 anos. Justamente no dia de seu aniversário, Célia estava chorando copiosamente. Fosse
aquilo que ela entendeu o apropriado em termos jurídicos, o casamento que eles planejavam
para logo não aconteceria tão cedo. “Como assim o Tonico não vai sair da cadeia esse ano?”,
ela questionava. Tentei aliviar o peso moral que sentia sobre os meus ombros, em função do
desconhecimento da minha interlocutora sobre prazos e datas para a progressão de regime de
Tonico, sugerindo que ela, em vez de esperar na recepção do NUSPEN, como o de costume,
participasse com o consentimento dele do atendimento e assim obtivesse pelo canal formal
85

informações que não competiam a mim transmitir. Bastou que explicasse o modo de
funcionamento do aparato burocrático, sem mencionar o conteúdo dos documentos, para que
Célia dissesse que Deus iria me pagar por cada boa ação. A igreja evangélica que ela
frequentava junto à sua família parecia ser o seu principal círculo de sociabilidade, mas
mesmo lá se via obrigada a não falar sobre quem era Tonico e sobre o que estava acontecendo
na vida dele e, por conseguinte, na dela.
Se Tonico, ao dizer que a condenação por estupro de vulnerável era injusta, estava
falando a verdade para mim, estaria ele mentindo para sua noiva ao dizer que o crime que
cometeu foi o de tráfico de drogas? E, se tanto tráfico quanto estupro constituíssem o processo
ou os processos dele, estaríamos então falando sobre mentiras e omissões? Quais são as
fronteiras entre a mentira, a omissão e a confidencialidade? Essas fronteiras existem? Se sim,
como eram manejadas em uma relação triangular – dois amantes e um antropólogo circulando
entre eles?
Embora tenha me afastado de Tonico à medida que me aproximei de Célia, não deixei
de dar respostas evasivas a ela sobre o que o seu namorado tinha compartilhado comigo. O
incômodo gerado nela pela confidencialidade foi suavizado por intermédio de um exercício
sutil de preservação do laço que nos unia. Nunca me senti frontalmente questionado.
Perguntas surgiam junto à produção de um espaço para não resposta. Foi deixando a nossa
relação seguir, sem me categorizar como mentiroso e aceitando implicitamente o que via
como omissão, que Célia exibiu a mim a qualidade mais negativa da mentira se comparada
à ocultação. Sendo mais preciso, foi quando começou a dizer que Tonico era mentiroso, em
função da tensão entre a história sobre tráfico de drogas e a história sobre estupro, que ela
me fez perceber que era importante manter-me por perto ouvindo as suas reclamações. Fui
percebido positivamente mais pela escuta que oferecia do que pelo que dizia ou deixava de
dizer. Nesse sentido, é possível notar que o próprio laço de escuta que estabeleci com Célia,
se contraposto ao que ela estabeleceu com o seu noivo, sustentava-se através da distinção
entre o valor moral atribuído ao ato de mentir e ao ato de omitir, sendo o primeiro considerado
mais prejudicial do que o segundo. Estou assim sugerindo também que a capacidade da minha
interlocutora de tolerar omissões tinha a ver com expectativas mais fracas em relação a mim
do que em relação a Tonico.
O contraponto realizado por Célia entre a omissão e a mentira aparece nos escritos de
Hannah Arendt (2005) espelhado na diferenciação que a autora realiza entre a mentira
tradicional, relativa à ocultação, e a mentira moderna, relativa à destruição. Ao fazer essa
86

aproximação, não estou considerando todos os aspectos da formulação filosófica. Considero,


por exemplo, o fato da mentira moderna ser qualificada como um fenômeno de massa e a
mentira tradicional como a arte de ludibriar um inimigo apenas na medida em que indica a
existência de uma produção de valor negativo pensada em graus. A mentira moderna é pior
do que a tradicional porque caracteriza, para além da intenção de ocultar algo do inimigo, a
de rearranjar toda a ordem do factual, de substituir a realidade por uma imagem secundária,
de destruir tudo o que o mentiroso pretende negar. Arendt, mesmo sentindo-se sufocada pela
destruição do real causada pela mentira enquanto fenômeno de massa, não deixou de perceber
a raiz comum das formas (tradicional e moderna) que identificou e analisou. Ambas são
modalidades de ação. As mentiras são filhas da astúcia, pois requerem a capacidade de
analisar, combinar e/ou fantasiar, visando transformar uma dada realidade no mundo
imaginado. O mentiroso, incluindo aquele que oculta, conhece a distinção entre o verdadeiro
e o falso, porém imprime através dos seus atos uma realidade que não é idêntica àquela que
conhece. Ele transforma a história, dá forma ao fluxo dos acontecimentos ao agir
intencionalmente. Ele é “um homem de ação”, conforme a célebre frase da autora. As
mentiras que mais a espantaram, sabemos, foram justamente aquelas que a fizeram notar a
violência (moderna, se quisermos) impregnada à destruição do verdadeiro.
Seguindo essa linha de raciocínio, argumento que a mentira de Tonico direcionada a
Célia não é bem descrita se percebida apenas como intenção de ocultar a verdade jurídica.
Tratava-se, no limite, de um esforço para destruí-la. Tonico lançava mão das ferramentas de
que dispunha. A mim, cabia a injustiça. À sua namorada, o tráfico. O desejo de liquidar a
verdade jurídica insinuava-se nas múltiplas maneiras de manejar o estigma. Levarei o
argumento adiante, sugerindo que as pretensões de Tonico falharam no que se referiu à
capacidade dele de fazer sumir a verdade jurídica de uma vez por todas, mas foram bem-
sucedidas no que se referiu à criação e manutenção da relação com Célia. Minha
interlocutora, devido a razões ainda a serem desdobradas, queria/precisava crer na realidade
produzida pelo seu noivo. Mentir, nesse sentido, é também uma maneira de se aproveitar
deliberadamente da confiança ou da crença alheia. Derrida (1996) chegou a essa formulação
do ato de mentir como um “levar a crer” após concluir que a mentira per se não existe, mas
somente esse ou aquele ato de mentir, cuja eficácia – destrutiva ou não – depende da ordem
prática, do contexto, das pessoas em interação. O autor sustenta que o mentir, porque é
sempre intenção ou vontade de enganar consciente, depende de uma noção de crença para
que possa se sustentar, por mais obscura que tal noção possa permanecer em sua análise.
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Tais atos intencionais são destinados ao outro, a outro ou outros, a fim de


enganá-los, de levá-los a crer (a noção de crença é aqui irredutível, mesmo
que permaneça obscura) naquilo que é dito, numa situação em que o
mentiroso, seja por compromisso explícito, por juramente ou promessa
implícita, deu a entender que diz toda a verdade e somente a verdade”
(DERRIDA, 1996, p. 9, grifos meus).

Quem é o sujeito crível? E por quê? O peso negativo da figura do pedófilo tende a ser
menor do que o da figura da ex-mulher nas situações em que o amor por um namorado, noivo
ou marido está em questão. Repertórios de gênero normativos, ao veicularem a desconfiança
em torno dessa figura feminina, veiculam concomitantemente o esforço em confiar, mesmo
que desconfiando, nos homens em que se depositam expectativas sociais sólidas. Se Tonico
se tornasse responsável, ele se realizaria como o marido provedor que Célia buscava nele e
que, em contrapartida, ele dizia para mim desejar ser. Também a gravidez reforçava a
relevância da posição de pai, sombreando a figura do violador sexual e acentuando a
esperança de que, no futuro, as coisas pudessem ser diferentes. Célia, crendo no poder
transformativo do amor, mantinha-se esperando que seu noivo deixasse de ser irresponsável
e juntasse algum dinheiro para comprar a cama que a faria não mais dormir no chão. Ou seja,
o reconhecimento das mentiras de Tonico não ocasionava, diria Mauss (2003), a descrença
na capacidade transformativa atribuída ao laço afetivo. A crença é fundamental porque é ela
que protege a eficácia mágica do amor, atribuindo as falhas ao noivo mentiroso e deixando
de questionar o próprio poder do amor em transformar as pessoas. Como se verá também a
partir do próximo caso a ser descrito, existem mentiras e omissões que trabalham para o amor
na medida em que criam o espaço de tempo necessário à solidificação do envolvimento. Vale
ressaltar que o laço entre os dois amantes sobre os quais discuto agora fez-se em um contexto
de precariedade econômica e vulnerabilidade social que impulsionava a própria necessidade
e/ou desejo de crer nessa maneira pensar e viver o amor.
Há desespero quando Célia, vinda da Baixada com uma bolsa cheia de quentinhas,
não consegue vendê-las por dez reais e decide sair gritando pelo centro do Rio ofertando-as
por cinco. Imagine Tonico andando atrás de sua noiva dizendo que ela é maluca e,
posteriormente, afirmando que se arrependeu por ter brigado porque ela trouxe mais
quentinhas do que ele acreditava ser possível vender no presídio onde cumpre pena. Célia se
irrita, xinga, me liga. Aos poucos, fui deixando de somente dizer o que imaginava que ela
queria escutar – “tudo vai ficar bem” – para dar maior ênfase às frases que ela me dizia de
88

forma acalorada e que apontavam para o término. Repetia: “você é forte”; “ainda bem que já
disse para ele que não precisa de homem para nada”; “se o seu coração está te dizendo para
não ficar com ele, ouça”. Cada afirmação dela reiterada por mim seguia distanciando-me de
Tonico sem, no entanto, produzir o mesmo reflexo na relação do casal. O pedido de desculpas
era central porque Célia não somente queria, como também precisava que “tudo ficasse bem”.
Ela sabia perdoar. Mas quando voltou ao local de trabalho de Tonico, eles brigaram
novamente. O meu telefone tocou. As queixas se repetiam, se realizavam nos movimentos
circulares por intermédio dos quais “a pessoa que [era] objeto de algum infortúnio [construía]
discursivamente a sua posição enquanto vítima” (GREGORI, 1992, p. 85). Como resultado,
o outro culpado, Tonico, comparecia pedindo desculpas e, pouco depois, provocando
novamente em quem se colocou como vítima a sensação de que foi humilhada sem razão.
Era costumeiramente assim. Um ciclo alimentando ao outro, movimento que avançava
produzindo marcas dolorosas e a certeza de que a relação, apesar dos pesares, ainda existia.
Junto a essa certeza, a esperança de que o casamento poderia acontecer renascia. Outra
chamada. Depois de chorar, Célia contou que a acusação de pedofilia não “saía da sua
cabeça”.
A figura da ex-mulher, em acordo à percepção de Tonico, não tendia a se concretizar
por intermédio de um gesto de cuidado direcionado àquela que no presente ocupava a posição
de namorada e/ou noiva. Nas narrativas dos homens injustiçados, frequentemente, acusações
promovidas após o divórcio representavam um gesto de vingança direcionado a eles enquanto
ex-maridos. Desse ângulo, tudo se passa como se a ex-mulher de Tonico jamais tivesse
intencionado alertar Célia. Não há solidariedade na denúncia feita pelo Facebook; há
injustiça, vingança, maldade. Ainda que a noiva de Tonico desconfiasse da ex-mulher dele,
a separação os entre gestos de cuidado e os gestos de vingança foi se tornando menos rígida
ao passo que a acusação de estupro voltava a assombrar. A foto de uma travesti enviada por
Tonico ao sobrinho de Célia, jovem de cerca de dezessete anos, alimentou a preocupação que
ela vinha nutrindo em torno da insistência do seu futuro marido em praticar sexo a três. O
desejo dele por outro homem, um amigo do casal, incomodava porque maculava a
heterossexualidade, mas também porque direcionava a uma aproximação vulgar, ainda que
conhecida, entre homossexualidade e pedofilia (LANCASTER, 2011). A insistência de
Tonico em falar sobre ménages não pode ser separada da percepção que sua futura esposa
tinha da foto da travesti enquanto evidência material da sedução de um adolescente e de um
desejo desconfortante. A essas desconfianças, Célia somava o dia em que seu noivo, durante
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o cumprimento da visita periódica ao lar, passou algum tempo em um dos quartos da casa
dela junto a um vizinho, jovem que tinha uma “piroca enorme”. Tonico, anteriormente, tinha
visto o garoto mijando e o erotizou dizendo que a sua noiva ia gostar do que ele viu. Célia
estava “cismada de que teve alguma coisa” entre o rapaz e Tonico. Ela viu a hora em que seu
noivo saiu do quarto com a cueca “toda suja de esperma”, poucos minutos depois do rapaz
ter ido embora. Foi assim que a minha interlocutora passou a duvidar da clareza da figura
vingativa da ex-mulher, sem, no entanto, apostar definitivamente na acusação de estupro
como verdade.

E as coisas dele nunca é por causa de mulher. Nunca! Os messengers dele


são todos conversas com homens. São todos conversas estranhas. Não é
uma conversa normal, porque você pode ter um amigo preso lá no cafundó
do Judas, mas você vai perguntar: e aí, fulano, como é que tá, e tal? Como
é que tá a cadeia aí e tal? Mas não vai ficar de conversinha íntima. Pelo
amor de Deus! Muito esquisito! Muito, muito mesmo. E eu vou ser sincera:
o meu amor acabou, sabe? Respeito ele porque é ser humano. Eu não sei se
agora ele está arrependido, né? Pelas coisas que ele tem percebido e ele tem
tentado mudar, entendeu? Só que agora eu tenho até medo. Antes eu não
tinha. Eu sabia que o processo dele era por causa de que ele era envolvido
por causa de droga. Não tinha nada a ver com pedofilia. Não tinha nada a
ver com abuso sexual. Nada disso! Mas e agora? Agora que eu vivo essas
situações todas, eu falei para ele, eu falei, eu falei para o garoto: “eu não
quero você com o Tonico”. Porque quando eu preciso estar em casa com
ele, eu preciso estar em casa com ele sozinha… porque, como ele tá preso,
eu tenho coisas que eu preciso falar que o advogado me passa. São coisas
particulares! Mentira, entendeu? É para ver se o menino não aparece aqui
em casa, entendeu? Tanto que ele prometeu pra mim que quando ele
vier aqui em casa, o Tonico vier, o Tonico já me disse que não vai ligar
para ninguém, que ele quer uma vida nova comigo. Mas eu não sei. Eu
já perdi todo o meu, todo aquele meu, sabe? Meu interesse. Eu não sei
explicar para ti. Eu estou muito perdida. Muito. Eu percebi assim – depois
que eu comecei a trabalhar com os doces, com as coisas –, que mais uma
vez eu não preciso de ninguém para me levantar, entendeu? Tinha feito
planos com ele. A gente estava com planos de casar. Está quase tudo
pronto para casar (Áudio do WhatsApp, enviado em 09/07/2018, grifos
meus).

Sugeri a Célia que procurasse atendimento psicológico quando retornasse à Clínica


da Família para dar continuidade ao pré-natal e me propus a agendar um atendimento no
Núcleo Especial de Direito da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (NUDEM)
para que ela recebesse algum tipo de assistência jurídica, ainda que nada do que ela me contou
demarcasse a existência de crimes ou de práticas sexuais não consensuais. A acusação de
pedofilia e a “cisma” que não “saíam da cabeça” foram inicialmente lidas por mim como
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motivos para denúncia. Tratava-se, porém, da acentuação da queixa, novamente pensando


com Gregori (1992), enquanto movimento circulatório de normalização não somente das
humilhações, como também de acusações, incômodos e/ou suspeitas que constituíam a
sexualidade e os desejos de Tonico, sob o olhar de Célia. Cada vez que ela me dizia “não é
normal não”, desligava o telefone e posteriormente retornava a chamada repetindo a mesma
a frase, o que acontecia era uma encenação do “anormal” como normal em uma atmosfera de
incerteza e esperança. O ciclo da queixa alargava a capacidade da minha interlocutora de
lidar com o que, antes, lhe pareceria absurdo e, pouco a pouco, se “normalizava”. A
sobreposição contínua entre mentira, omissão, crença e queixa ergueu uma realidade
diferente daquela de onde Célia partiu. Sem saber exatamente o que fazer, imersa nessa nova
forma assumida pelo tecido relacional em que habitava, Célia encontrava na queixa alívio,
isto é, encontrava o amor capaz de transformar as pessoas. As humilhações, as mentiras, a
“cisma” e a figura da ex-mulher vingativa, que talvez fosse também uma figura do cuidado,
deixavam assim o centro da cena, descansavam nas bordas até a próxima ligação.
Na última vez que falei com Célia, ela me disse que tinha descoberto que Tonico
estuprou o filho da ex-mulher dele durante sete anos. As frases “estou muito chateada, porque
ele mentiu para mim” e “estou chocada” emergiram acompanhadas da decisão de não contar
para Tonico o que agora se sabia melhor do que antes. Não ficou claro para mim se foi ou
não o advogado particular recentemente contratado por Tonico que, após não ser pago,
atribuiu status de verdade à acusação e à condenação por estupro de vulnerável. Mas ficou
claro que Célia, assim que “perdeu o chão”, buscou manter-se próxima a Tonico, evitando os
custos imediatos da revelação do que passou a conhecer com mais certeza. Ela não queria
confrontar o seu noivo. Parecia temer pôr em risco a relação a duras penas erguida e
alimentada. Esse episódio ajudou-me a entender que o conhecimento da verdade jurídica não
necessariamente provocaria o desmanchar dos laços forjados dia após dia, nem mesmo a
descaracterização da expectativa de que tais laços se firmassem como casamento. Como
voltarei, logo após apresentar outro tecido relacional, a essa discussão sobre expectativas
sociais sólidas, basta sinalizar agora que a ocultação promovida por Célia abria-lhe espaço
para reflexão sobre o que fazer e, por isso, comportava em sua percepção valor positivo. Ela
também não via negativamente as mentiras que contava para Tonico, de modo a fazer com
que ele pagasse essa ou aquela conta. Sua intenção, longe de ser destrutiva, era a de fazer
nele um marido responsável para assim redirecionar a relação em que estava engajada a um
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lugar mais confortável no futuro. É verdade também que Célia ressentia-se com as mentiras
que contava para a sua família e para o rapaz por quem seu noivo se interessava sexualmente.
O ponto de vista de Célia é semelhante à formulação crítica de Derrida (1996) ao
kantismo, pois ambos se opõem à consideração da mentira como um mal a priori. Se as
mentiras devem ser pensadas em termos das intenções e consequências as quais se vinculam,
concordam Célia e Derrida, não há motivo para considerá-las como inerentemente
prejudiciais à humanidade. Era a sacralidade do querer dizer verdadeiro que era atacada pela
minha interlocutora quando ela pensava que algumas das mentiras que contava comportavam
valor positivo. Não estamos frente a um questionamento do valor da verdade, sim do dizer
verdadeiro enquanto imperativo categórico. Não se sustenta também a versão segundo a qual
a mentira em seu próprio princípio destrói os laços sociais, afinal, mentindo para Tonico,
Célia criava os meios para que a relação em que habitava se perpetuasse e a expectativa do
casamento se reproduzisse. As mentiras de Tonico, por sua vez, jamais foram vistas como
coisa menor. O que ele fazia, nos termos das intenções e consequências percebidas pela sua
noiva, era negativo: chateava, comportava acidez, demandava tolerância duramente vivida.
Mas, do ponto de vista de Tonico, não há por que tratar o seu desejo de destruir a verdade
jurídica como algo inerentemente maléfico, uma vez que essa verdade era ela mesma injusta.
Longe de buscar simetrizar as verdades e as mentiras, demonstrei como as pessoas, ora
reflexivamente, ora seguindo o fluxo dos acontecimentos, produzem e mobilizam hierarquias
entre as mentiras que destroem, as que ocultam e as que valem a pena. A posição a partir da
qual descrevi a relação afetivo-sexual entre os meus interlocutores não é de exterioridade,
portanto. Busquei fazer da minha circulação nesse tecido relacional uma chance de objetivar
o que parecia importar a cada um, especialmente a Célia, na “oportunidade pragmática do
momento” (DERRIDA, 1996, p. 20).
Existem ainda dois aspectos da argumentação de Derrida relevantes. O segundo, que
tem a ver com a discussão de Hannah Arendt (2005) sobre o autoengano, deixarei para as
linhas finais deste capítulo. Parto então da asseveração de que Kant e também Arendt foram
incapazes de levar em consideração o aspecto performativo implicado na sustentação e na
vacilação das mentiras. Se, por um lado, a problemática do enunciado da mentira não está
dissociada do conceito de ação – política – tão enfatizado por Arendt, por outro lado, não é
suficiente dizer que a mentira é um ato de fala produtor (ação) de uma realidade, pois é
preciso atentar para o modo como uma cadeia de enunciados falsos se estabiliza ou falha.
Arendt mesmo já dizia que a mentira revela a liberdade dos sujeitos, seja porque comporta o
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poder de mudar o mundo, seja porque está sujeita à incerteza que acompanha o porvir.
Acredito que, quando Derrida argumenta que o ato de mentir requer observação da reiteração
do falso, abre-se espaço para a incorporação do incerto ao modelo analítico e para o
questionamento do que depende a felicidade da mentira: expectativas, vulnerabilidades, etc.
Em alguma consonância à argumentação do autor, ressaltei a centralidade da crença no poder
transformativo do amor nesta conversa sobre um tecido relacional costurado por mentiras e
acentuei o aspecto crítico da queixa na normalização do “insuportável”. Devo ainda explicitar
que a palavra liberdade utilizada por Arendt comporta uma carga político-moral que não
qualifica bem o esforço de Célia em manter-se com o seu futuro marido, nem mesmo a
possibilidade dela de se separar dele. Prefiro entender que o esforço em confiar, implicado
em um ser levado a crer, foi construído em termos performativos, isto é, foi erguido
lentamente no âmbito ordinário e, finalmente, quando as mentiras de Tonico passaram a ser
tratadas como tais, a manutenção da relação importava bem mais do que o seu
questionamento. A felicidade da mentira, posso dizer agora, não deve ser analisada somente
a partir do sucesso da ocultação e/ou da destruição, pois reside também no efeito de
proximidade que a sua reiteração pode provocar no interior dos tecidos relacionais. Esse
efeito de proximidade – de familiarização, insistirei adiante – depende mais da duração da
mentira do que da sua eterna preservação. Pensar o tempo é indispensável para entendermos
o que podem mentiras e omissões, mas também como parentes diferentes entre si e de
diferentes famílias as experienciam.

2.2 Abrindo a caixa-preta do estupro: tempo, (des)confiança e raça

“Se a minha filha diz que é verdade, então eu assumo”; “um pai tem que proteger
os seus filhos acima de tudo, aí eu disse que fiz o que ela disse que eu tinha feito”; “eu fiz a
besteira de assumir porque estava protegendo a minha filha”; “disse para a juíza lá que tinha
beijado”. Nunca anotei as frases exatas que Marquinhos dizia, quando explicava o que tinha
afirmado em juízo, mas as conheço bem porque se repetiam – sempre levemente recompostas
nas falas das irmãs e da mãe dele. Elas o taxavam de “bobo”. Falavam como se ele fosse
tonto o bastante para não entender as consequências de um interrogatório. Frente a um(a)
juiz(a), a um(a) defensor(a) e um(a) promotor(a), Marquinhos narrou não o que aconteceu, e
sim o que acreditava ser o melhor para a sua filha. Ele agiu como se mentindo pudesse
cumprir o seu dever de pai. Disse ainda que costumava beijar a sua filha: dava-lhe selinhos,
93

mas nunca beijos de língua. Marquinhos distinguia a moralidade associada a cada modalidade
de beijo, um fraternal, outro malicioso; entretanto, de acordo com a narrativa familiar, não
foi capaz de atentar devidamente para a suspeição que acomete aqueles que sentam no banco
do réu. Tendo sido acusado de estuprar a própria filha, por que “ficar falando de selinho”? –
questionou, certa vez, uma das três irmãs dele. O raciocínio elaborado pelo filho de Dona
Luiza em juízo ainda hoje a irrita. Essa irritação, no entanto, extravasava o episódio do
julgamento porque, repetidas vezes, Marquinhos estabelecia conexões que pareciam
ingênuas. Dona Luiza exclamava: “ai, chega!”; “parece que é burro!”; “cala a boca!”. Ela
colocava as mãos na cabeça, respirava fundo, tentava aliviar o peito comprimido pela
irritação momentânea – sentimento que sabia que, amanhã ou depois, iria se repetir. Quando
aprendi a ver Marquinhos como bobo, aprendi também a me irritar. Menos com as frases que
versavam sobre proteção do que com o jeito generalizado dele de “não entender” o que de
fato, em uma situação ou outra, estava em questão.
Ao passo que fui me aproximando afetivamente dessa família, Dona Luiza confiou a
mim a tarefa de resolver o divórcio de Marquinhos porque, se dependesse dele, “a coisa não
ia andar”. Ela dizia, ironizando: “você sabe como ele é, não é?”. Eu ria e, quando precisava
explicar os procedimentos a serem seguidos, nunca dava informações somente a Marquinhos.
Era preciso que Dona Luiza ficasse em cima dele. As coisas andaram até o momento em que
não pude mais me envolver porque, sem compartilhar o parentesco, não podia presenciar
atendimentos jurídicos na Vara de Família. Eu ia com eles e esperava do lado de fora. Numa
dessas ocasiões, Dona Luiza revirou os olhos e nada falou, ao ver Marquinhos me explicar
procedimentos burocráticos de maneira ligeiramente inconsistente. Talvez essa situação
tenha funcionado como um estopim, pois a partir dali ela, que tanto queria que seu filho se
divorciasse de Jurema, parou de insistir no assunto. Muitos meses depois, Marquinhos me
disse que a sua ex-mulher estava agilizando o divórcio. Eles tinham se encontrado na escola
em que cursavam o ensino médio. Dona Luiza estava feliz porque o seu filho tinha voltado a
estudar, aos quarenta e tantos anos, mas se preocupava com a aproximação dele à ex-mulher,
pessoa responsável pela produção da falsa acusação de estupro. Dona Luiza detestava
Jurema, que não era apenas a sua ex-nora, como também um ente distante de sua própria
família. O parentesco raramente emergia nas discussões cotidianas e, quando surgia, servia
para dizer que Jurema era alguém que todos do núcleo familiar próximo conheciam bem e
sabiam que não era flor que se cheirasse. A maldade dela e a estupidez de Marquinhos se
uniram em um casal, que, em função da condenação por estupro de vulnerável, precisava
94

com urgência ser formalmente desfeito. As três irmãs de Marquinhos, a esposa de uma das
duas que eram gêmeas, a filha dessa mulher e outras pessoas igualmente próximas apoiavam
a ênfase de Dona Luiza no divórcio.
Dona Luiza e suas filhas nutrem, até hoje, mágoas de Marquinhos que nos permitem
vislumbrar o porquê da busca pela formalização da separação. Durante anos, Jurema fez
daquele que era o seu marido um capacho, a ponto de impedir que ele cumprimentasse a
própria mãe. “Ele deu as costas para gente”, dizem. Cumprindo os mandos de sua então
esposa, Marquinhos veio a saber que uma de suas irmãs estava com dificuldade para comprar
comida, mas não lhe ofereceu ajuda: enquanto ela fazia angu, tanto porque era barato quanto
porque não queria se humilhar recorrendo continuamente ao pouco que a sua mãe tinha, ele
passou pela porta da casa dela evitando que chegassem a cruzar o olhar. Em nome de uma
economia etnográfica, recorro à dramaticidade dessa cena para tornar visível ao leitor a
qualidade entranhada das mágoas que acompanhavam, senão a todos, ao menos as mulheres
da família com as quais desenvolvi vínculo. Mas é certo que as mágoas repercutiam também
em situações mais triviais. Num bar, depois de horas bebendo, outra irmã de Marquinhos,
uma das gêmeas, me disse em tom de voz irônico que misturava inconformidade e alívio –
uma felicidade que, por mais concreta que fosse no presente, não deixava de carregar os
incômodos do passado: “anos atrás, ele não ia estar aqui com a gente assim”. Se Jurema está
implicitamente contida nessa declaração como causa primeira do sofrimento familiar,
Marquinhos aparece explicitamente como “pau mandado”. Ele não era visto como uma reles
vítima da manipulação alheia. Era alguém que ativamente se engajou em sua submissão ao
outro. Logo percebi que a mágoa que Dona Luiza e suas filhas sentiam responsabilizava
Marquinhos pela forma como ele investiu a si em uma relação afetivo-sexual. Demorei mais
para entender que a figura do bobo, que chega a irritar, era fundamental para que as dores
que despontaram no curso da relação conjugal pudessem ser administradas em um ritmo
viável no cotidiano.
Segundo Marquinhos, Jurema o teria acusado de estuprar Luana, filha de ambos,
porque era muito ciumenta e queria ficar com o carro dele. Na época dos acontecimentos, as
brigas repetiam-se e a separação era uma possibilidade que, ainda que em aberto, não se
concretizava. Após a acusação de estupro ter sido feita em sede policial, Jurema tentou
impedir o andamento do processo, alegando em juízo que os fatos narrados na denúncia não
eram verdadeiros. Não obteve sucesso, contudo. Sem poder estancar a multiplicação estatal
do mal que causou, Jurema passou a visitar Marquinhos na prisão e a levar consigo os seus
95

filhos. Dentre eles, Luana – a despeito das implicações de ordem legal e no bojo da
porosidade dos muros das prisões. Que mãe levaria a sua filha até aquele que a violentou? A
existência dessa pergunta, que admite idealmente apenas a resposta de cunho notavelmente
moral “nenhuma”, desqualificava Jurema. Nem como mãe ela se relevaria digna. “É uma
pessoa que não é confiável”, sinalizava Dona Luiza apelando a eufemismos. A contraparte
da maternidade maculada é a crença na verdade de Marquinhos, aquele que disse que fez o
que não fez. Episódios como os citados somam-se a outros, fortalecendo no presente que
segue em direção ao futuro a equação maldade versus tolice. Anos atrás, a irmã de
Marquinhos mais próxima a mim ficou responsável por “desenrolar” com o “cabeça do
morro”, afilhado de Jurema, as visitas periódicas ao lar que ele faria durante o curso da
aplicação da pena que lhe fora imposta. Não sei dizer exatamente se Dona Luiza e suas filhas
achavam que o traficante em questão acreditava piamente na narrativa de injustiça que elas
cultivavam, mas posso dizer que elas supunham que aquilo que o traficante conhecia sobre
sua madrinha tinha agido em prol de Marquinhos. Pode-se concluir que a própria circulação
dessas pessoas pela favela dependia da equação moral que sustentava o tecido relacional em
que elas habitavam.
No dia em que conheci Dona Luiza, no balcão do NUSPEN, ela tirou de sua bolsa um
pequeno pedaço de papel, que, enquanto era cuidadosamente desdobrado, deixando ver o seu
conteúdo, revelava-se como uma cartinha escrita por uma filha a um pai. Luana sentia
saudade de Marquinhos – li. Enquanto eu ainda me afastava do impacto causado pela frase
“[…] quando você sair [da cadeia], espero que seja muito feliz”, Dona Luiza me deu a
entender que a carta tinha sido escrita por Jurema como forma de se vincular continuamente
ao seu então marido. O zelo dedicado àquele papel era semelhante ao dispensado às
evidências contidas em um processo penal. Do ponto de vista de Dona Luiza, estava ali a
prova material da maldade de Jurema. O conteúdo afetivo da carta, ainda que percebido como
falso, podia provocar, de acordo com a perspectiva de Dona Luiza, efeitos em Marquinhos:
como se ele, justamente por ser quem era, pudesse se engajar na mentira materializada na
forma de cartinha. A conversa terminou com a matriarca da família dizendo que, no presídio,
o seu filho era chamado por homens ligados a facções criminosas de “tio bucha” – um bobo,
no interior da economia moral familiar. Surpreendida pelo meu interesse na história que
perpassava o crime que a levou até à Defensoria, Dona Luiza não à toa costurou
narrativamente cartas forjadas à figura do “tio bucha”. Esse era um modo de apresentar e
estabilizar, através das palavras e dos papéis, um tecido relacional que, cruzando
96

temporalidades, sedimentava a realidade da injustiça. Nesse mesmo dia, a mãe de


Marquinhos me disse que eu entenderia o que ela estava dizendo quando conhecesse o seu
filho e a ex-mulher dele, ou seja, ela acreditava que, se naquele momento eu não era capaz
de ver o que ela via, precisamente de acreditar em sua narrativa, eu me habilitaria a enxergar
em comunhão ao seu ponto de vista quando trafegasse, no presente, pelo tecido relacional já
devidamente narrado por ela.
Um dos aspectos relevantes da estabilização das relações promovida discursivamente
por Dona Luiza é a consideração de Jurema como “cobra”. A escolha desse animal vinculado
à cosmologia cristã sobressaltava a qualidade ardilosa e fria associada à parente de quem os
mais próximos deveriam se afastar, inclusive em termos jurídicos. Tenho razões também para
pensar que a sobreposição entre a cobra do pecado original, aquela que seduziu com uma
maçã e através dela provocou a queda do homem, e a ex-mulher de Marquinhos, alguém tão
capaz de promover uma falsa acusação quanto de seduzir com cartinhas igualmente falsas,
ilustra um emparelhamento entre ordens de acontecimento distintas, porém aproximadas em
sua capacidade de falar sobre mundos postos de cabeça para baixo. O filho de Dona Luiza
disse a mim que Jurema o havia ameaçado dias antes de mentir em sede policial, dizendo que
“faria com ele o que nenhum homem supera”. Desse ângulo, as pretensões destrutivas da
mentira tornam-se flagrantes; entretanto, é importante considerar também a possibilidade da
falsa acusação ter escapado do controle de Jurema, provocando um mal muito maior do que
o de fato por ela intencionado. Marquinhos parecia tratar a mentira de Jurema como um
castigo injustificável. Estou provocando a associação entre o despontar do mal na cosmologia
cristã e o despontar do mal na família de Marquinhos menos para assinalar adesões a religiões
específicas do que para assinalar, ainda do ponto de vista familiar, a qualidade negativa das
mentiras que fogem do controle individual, destroem vidas e criam um tempo estimado que
não volta.
Como sugeri no capítulo anterior, proponho pensarmos que a sentença condenatória
produz na vida dos homens condenados por crimes sexuais, bem como na vida daqueles com
quem eles há anos partilham os dias, uma quebra temporal: não somente um antes e um
depois do processo, mas também, como efeito dessa descontinuidade, um fardo relacional
provocado pelo estigma que muito dificilmente chegará a se esgotar. Gostaria de chamar
atenção agora para outra característica da quebra temporal que cria um presente que, embora
atravessado pela sentença condenatória, vincula-se especialmente ao passado anterior à
existência da acusação de estupro. Seguirei adjetivando, para facilitar a compreensão do
97

argumento mais geral, o passado criado pela sentença de recente e o passado anterior a ela
de profundo. Há uma diferença valorativa entre as duas temporalidades. O passado recente,
no caso de Marquinhos, é uma memória negativamente marcada pelo casamento com Jurema,
pela falsa acusação, pela prisão e pela transformação de um filho e/ou irmão em um
estuprador. O passado profundo, por sua vez, tende a ser positivado, o que não quer dizer que
os homens que se tornaram estupradores são necessariamente concebidos pelos que os
circundam como pessoas integralmente boas. Dona Luiza nos ajuda nessa questão porque a
sua percepção de que Marquinhos era bobo implicava a demarcação dos erros de seu filho e
o reconhecimento da irritação que ela mesma sentia em função desses erros. O passado
profundo é positivo no que se refere ao seu impacto sobre o presente. Foi recorrendo à
memória de Marquinhos como bobo que a família dele pôde enfrentar a condenação se
dedicando ao trabalho hercúleo de recriar narrativamente, moralmente e emocionalmente o
homem amado que cada um deles conhecia mais do que “a Justiça”.
O caráter positivado do passado profundo e o negativo do passado recente são tanto
formas de sentir as temporalidades quanto modalidades de agência com o tempo observáveis
no fluxo do cotidiano. Nesse sentido, o que hoje as pessoas fazem e como o fazem não pode
ser distinguido da forma como os tecidos nos quais elas habitam se cristalizaram, afetando a
lida com acontecimentos tão graves quanto uma condenação por estupro de vulnerável.
Pensando na proposição segundo a qual o tempo trabalha de modo a permitir que a vida se
recrie em um ritmo viável após eventos críticos (DAS, 2007), é possível sugerir uma
indagação que, se não inverte a proposição de partida, ao menos a tensiona: como Dona
Luiza, Marquinhos e suas irmãs faziam o tempo operar moralmente? Posta nos termos de
Vianna, a pergunta seria: “qual o trabalho exercido no e sobre o tempo?” (VIANNA, 2015,
p. 411). Os meus interlocutores remexiam o(s) passado(s) à medida que avançavam de
maneira singular em direção ao futuro. Talvez seja mais apropriado dizer que os tecidos
relacionais manejam a quebra temporal esculpindo continuamente no presente a memória de
um passado profundo por sobre as máculas advindas da sentença condenatória. Trabalhar
com o tempo é agir contra a realidade criada pela Justiça, é qualificar negativamente a
verdade que brota do passado recente em nome da afirmação da humanidade dos homens
condenados por estupro. As palavras que faziam de Marquinhos um bobo avançavam num
movimento que reiteradamente colidia com a sentença condenatória. O passado profundo
vivido no cotidiano domestica apenas relativamente o evento crítico, pois não pode apagar
os danos já causados pela “Justiça”, tampouco conter todos aqueles danos que ainda estão
98

por vir como decorrência do peso da figura do pedófilo como monstro. Assim como Adriana
Vianna, enfatizo a agência sem, no entanto, deixar de atentar para o que “parece nunca caber
plenamente nessa ordenação” (VIANNA, 2015, p. 415) político-moral. Refiro-me ao impacto
da sentença condenatória, impossível de ser integralmente vencido, e a injustiça enquanto
realidade que nunca é plenamente reconhecida como tal, a despeito de todos os esforços.
Se está claro que o investimento de Marquinhos e sua família na narrativa de injustiça
dependia do passado profundo, passo a descrever, primeiro, o cruzamento entre omissão e
familiarização, e, posteriormente, o estremecer da crença na verdade afirmada por um bobo.
Para tanto, preciso introduzir novas personagens, Margarida e Odete, enredadas em um
drama que remete a Turner (1996). Importa aqui a ênfase do autor na dimensão processual
da vida social, e não exatamente a demarcação das fases32 potenciais do drama aliadas a uma
compreensão do conflito em termos análogos à vida orgânica33. Enquanto processo social, o
drama põe em relevo conflitos latentes, criando uma “área de transparência na superfície, de
outro modo opaca, do regular” (TURNER, 1996, p. 93) 34 . Odete somente soube que
Marquinhos, seu namorado, tinha sido acusado de estuprar Luana quando Margarida fez
denúncias no Facebook. Ela disse também que Marquinhos era soropositivo. Enganada,
Odete estaria correndo risco de saúde. Margarida, ex-mulher de Marquinhos e mãe de seu
primeiro filho, foi adiante. Afirmou que iria procurar uma das Coordenadorias Regionais de
Educação do Estado do Rio de Janeiro (CRE-RJ) para questionar como podia a diretora de
uma creche namorar um pedófilo. Marquinhos, durante o desenrolar das denúncias, me ligou
e enviou várias mensagens por escrito e por áudio no WhatsApp. Foi Dona Luiza quem me
mandou as cópias das postagens. Marquinhos dizia que Margarida queria “acabar com sua
vida”. “Como faço para processar ela?”, perguntou. Expliquei os caminhos formais, puro
exercício retórico de administração do conflito porque sabia que Marquinhos tanto esperava
que eu fizesse mais por ele quanto não procuraria sozinho alguma repartição pública.
Margarida exerceu o poder de revelar de maneira escandalosa porque, de acordo com
a narrativa de Marquinhos, estava insatisfeita com a decisão dele de não mais seguir traindo
Odete com ela. Margarida era mãe do filho de Marquinhos que foi criado por quase duas
décadas por Dona Luiza e, pouco tempo atrás, foi levado para viver junto aos parentes da
linhagem materna. O jovem passou a ser visto por sua avó e suas tias como um ingrato. Ele

32
Racha público; intensificação da clivagem; tentativas de resolução; e cisão ou reintegração.
33
Nascimento, crescimento e morte.
34
No original: “Area of transparency on otherwise opaque surface of regular”.
99

nunca teria valorizado o empenho de Dona Luiza e, na primeira oportunidade, se foi sem
voltar sequer para desejar feliz aniversário àquela que o abrigou na casa de um só cômodo
em que vivia com mais dois parentes. O reaparecimento de Margarida, depois de anos de
sumiço, causou danos inquestionáveis. Dona Luiza, irritada com as traições e magoada com
a perda do neto, não podia deixar de lembrar que a sua filha mais velha, quando criança, fora
sequestrada pela mãe adotiva de Margarida, permanecendo por cerca de dois anos “perdida”.
Camadas de relações e emoções pululavam cada vez que Marquinhos traía Odete, única
mulher que sei que Dona Luiza respeitava e valorizava dentre aquelas com as quais seu filho
se envolveu afetivo-sexualmente após ter saído da prisão. Odete era educada, bem empregada
e seus filhos estavam criados. Era dona do próprio nariz. “Marquinhos vai acabar perdendo
uma mulher de nível dessa”, lamentava a mãe dele fazendo referência à cultura, no sentido
de refinamento, e à condição de classe superior de Odete em comparação a uma família em
que diversos dos membros eram profissionais autônomos e/ou desempregados que com bicos
se viravam. Como se verá, o drama fortaleceu o namoro que Margarida, segundo
Marquinhos, “atacou”, isto é, terminou incidindo apenas momentaneamente sobre a
(re)atualização constante do passado profundo no presente.
Antes da revelação dramática ter sido realizada, a família de Marquinhos passou
meses cultivando um silêncio incômodo, precisamente ocultando de Odete a verdade jurídica.
Acreditava-se que o melhor era que ela soubesse o quanto antes sobre o processo, mas
esperava-se que pela boca de quem a namorava. Marquinhos era pressionado nesse sentido,
sem que a ele alguém do núcleo familiar próximo se antepusesse. Dona Luiza chegou a negar
conhecer a sua nora enquanto ela não tivesse acesso ao que estava sendo ocultado. Tal ímpeto
não durou, contudo. As irmãs dele também se incomodavam com a omissão, que, dado o
peso do passado profundo, sentiam-se impelidas a reiterar. Sem explicitar a ninguém, eu
mesmo evitei durante meses, até o dia do aniversário de Dona Luiza, estar no mesmo lugar
que Odete. Imaginávamos mais os possíveis efeitos negativos da omissão (brigas, perdas,
separações, etc.) do que apostávamos na possibilidade da demora em revelar o oculto
potencializar os laços pouco a pouco firmados por Odete. Marquinhos talvez contasse mais
com a possibilidade da omissão operar de modo a forjar a adesão da sua namorada ao tecido
relacional em que ele habitava. De um modo ou outro, a duração da omissão terminou de fato
abrindo espaço para o cultivo de um ângulo de observação afetivo-moral da condenação por
estupro de vulnerável. Acredito que, quando os tecidos relacionais transformam eficazmente
mulheres em namoradas/noivas/esposas, noras e cunhadas, as perspectivas das pessoas
100

afetivamente vinculadas aos homens condenados tendem a ser ressaltadas. Acredito também
que a reiteração do ato de omitir, no caso da família de Marquinhos, chegou a ser considerada
um erro, porém a gravidade desse erro foi atenuada pela vivência coletiva da injustiça como
verdade, o que significa dizer que a omissão era justificável.
Interessada na relação, Odete conteve a reação de um de seus primos, policial lotado
no Batalhão de Operações Especiais da Polícia (BOPE), que, pode-se dizer, estava
insatisfeito com costura entre a verdade jurídica e as omissões. De objeto, Odete passou a
agente engajada com a omissão quando optou esconder dos seus pais tudo o que tinha
recentemente descoberto e impediu que outros vinculados a ela ignorassem o seu desejo de
guardar o segredo do seu namorado. Desse ângulo, a realidade criada pela duração da omissão
parece ser tão espessa quanto podem ser os tecidos relacionais, isto é, a densidade do passado
profundo e a adesão forjada através de amores e ocultações fabricam a realidade, uma
realidade incontestavelmente relacional. Não sem razão, portanto, estou insistindo em
qualificar a gestão coletiva da produção, por vezes estratégica, por vezes irrefletida, da
proximidade afetiva, sexual e moral entre pessoas como Odete e Marquinhos. Trata-se nesse
caso, mas também no de Tonico e Célia, descrito na seção anterior, de um claro ímpeto
familiarizante. Melhor dizendo, os dois casos evidenciam a família como unidade valorativa
intensamente buscada e exibem dinâmicas relacionais em que os investimentos afetivos-
morais, realizados frequentemente por mulheres, atribuem aos homens condenados por
crimes sexuais a possibilidade de não viverem integralmente como monstros. Se o caso de
Célia e Tonico tem em comum com o de Odete, Marquinhos e sua família o reverberar de
olhares femininos otimistas no que diz respeito aos homens e aos crimes a eles imputados,
ressalto que esses olhares forjam-se em temporalidades distintas: enquanto no primeiro caso
a relação entre o presente e o futuro era acentuada pela ausência de um passado em comum
e pela forma como Célia vivenciava as expectativas de encontrar no seu noivo um bom
marido, no segundo, o passado profundo fornecia a base a partir da qual as irmãs e a mãe de
Marquinhos se moviam em direção ao futuro, mas não Odete. As mulheres recém
familiarizadas realizam um trabalho com o e no tempo que se aproxima mais do que aquele
efetuado por quem há muito convive. Para demonstrar como se criam diferenças e sintonias
em relação ao trabalho com o tempo, preciso fazer outro recuo e descrever episódios que
compartilhei com as irmãs e a mãe de Marquinhos. Espero seguir evidenciando que o tempo
é um aspecto fundamental na diferenciação entre o que sentem os parentes de sangue e os
parentes por afinidade.
101

Uma cena recente que bem ilustra a tolice atribuída a Marquinhos, versão inocente
compartilhada por sua família ao longo dos anos, foi aquela em que as gêmeas chamaram-
no, sem sucesso, para vibrar com as passadas certeiras de uma mulher “gostosa” que cruzara
a rua de um bar em que estávamos. Quando a moça já estava longe, as duas irmãs
concordaram que a sentença por estupro de vulnerável tinha afetado a vida sexual de
Marquinhos, como se ele agora tivesse medo até de apreciar quem elas sabiam que apreciaria.
Embora entendessem o seu irmão, aquele medo era tratado como tolo. Elas queriam vivenciar
com Marquinhos uma masculinidade disposta à sedução. Queriam que ele tivesse se juntado
a elas nas intenções, nos gestos e na fraternidade masculina compartilhada. De longe, o irmão
delas deu um sorriso envergonhado. Nesse mesmo dia, momento em que Odete ainda não
existia nesse tecido relacional, uma senhora trocou olhares com Marquinhos e,
posteriormente, entregou-lhe um bilhete do qual tomei conhecimento somente quando uma
das gêmeas fez questão de jogá-lo fora. Entendi que aquela senhora não era desejável e que
o bobo, justamente por sê-lo, não reconhecia que podia “pegar” mais do que “bagulho”.
Meses depois, a mesma irmã de Marquinhos inscreveu a ele no site de relacionamento por
intermédio do qual Odete surgiu. Junto ao estímulo provocado pelas gêmeas para que seu
irmão voltasse a investir em uma vida sexual e afetiva, formasse um casal, existia uma dúvida
em torno da espontaneidade da ingenuidade de Marquinhos. A figura do bobo, como dito,
irritava porque implicava certa inabilidade de compreensão, mas também porque dizia sobre
uma forma tão sorrateira quanto atabalhoada de praticar investidas afetivo-sexuais. Jurema,
Margarida, Odete, a senhora do bilhete e a “gostosa” eram figuras que auxiliavam a delimitar
a percepção de que o comportamento sexual de Marquinhos era dissimulado. Haveria malícia
até mesmo nas situações em que ele agiu como “pau mandado”. Dona Luiza associava, por
vezes, a esperteza de seu filho com as mulheres ao pai dele, que muitas vezes a traiu. Ela
encarava essa ver forma de enxergá-lo também como uma maneira de compreender
comportamentos masculinos que lhe pareciam habituais.
Catalán (2014), argumentando sobre a virtude intelectual exigida pela dissimulação,
conclui que alguém que tenha dimensão da sua própria ingenuidade não pode seguir sendo
sinceramente ingênuo. Se o faz, pratica arbitrariamente a arte de enganar os outros e, quando
cobra a si o valor da sua ingenuidade, perde-o em sentido estrito – para si mesmo. A minha
proximidade a Marquinhos não me confere meios para pensar se ele considerava a si mesmo
ingênuo; cabe, no entanto, considerar que para Dona Luiza e suas filhas era viável visualizar
naquele que amavam uma masculinidade dissimulada. Ao mesmo tempo que as gêmeas
102

acionavam o seu irmão para juntos compartilharem uma performance masculina centrada no
galanteio, elas permaneciam atentas aos jogos sexuais nos quais ele se engajava na surdina.
Essa atenção contínua sinalizava que havia limites para a masculinidade compartilhada entre
elas e ele, isto é, a partir de certo ponto era Marquinhos quem precisava ser vigiado,
controlado ou mesmo alertado sobre quais mulheres eram desejáveis ou não. Sendo mais
específico, penso que as irmãs de Marquinhos performatizavam com ele uma masculinidade
que provocava em parte descontração, em parte desconfiança. Essa desconfiança
materializou-se para mim quando o nome Luana foi mencionado pela gêmea que estava
comigo, novamente em um bar, pouco antes de corrermos para dentro dele devido a um
tiroteio. Ela disse que chegava a duvidar se seu irmão não tinha mesmo estuprado a sua
sobrinha – “feito alguma coisa com Luana”, se quisermos ser mais fiéis às palavras
imprecisas que tornavam visível o horror do estupro e a dificuldade de suportar que um
familiar possa ser um estuprador. Enquanto copos de cerveja eram virados e o risco era gerido
pelos que localizavam a distância dos tiros, o passado recente (condenação) encontrava o
passado profundo (bobo) e a ele se sobrepunha. Era o estupro de Luana que comparecia no
centro daquela cena informando uma desconfiança difícil de suportar.
A esperteza inscrita na ingenuidade de Marquinhos não era propriamente uma
surpresa para a família de Dona Luiza. Pode-se dizer que o drama, aquele iniciado com as
revelações de Margarida, apenas intensificou momentaneamente uma leitura menos
condescendente do bobo e, por conseguinte, mais voltada aos acontecimentos relativos ao
passado recente. Algo que já se sabia, que tinha sido obliterado em nome de tudo que emergia
do passado profundo, brotou na superfície do regular: um sentimento de desconfiança quanto
ao irmão, aparentemente derivado tanto do que a condenação contava sobre ele quanto de um
conhecimento sobre os homens. Esse sentimento de desconfiança aceso pelo processo
vinculava-se, mais ao largo, a uma concepção naturalizada do desejo: nos corpos dos homens
se inscreveria um apetite sexual desenfreado. Projetar essa percepção ameaçadora do desejo
em um irmão condenado era uma tarefa tão árdua que a enunciação da pergunta “seria ele
um estuprador?” precisava ser rapidamente abandonada. O que aconteceu no fechamento do
drama lembra o que Díaz-Benítez (2015) chamou de fissura: situações limite, de passagem.
Ao passo que a centralidade do passado profundo cedeu por instantes lugar ao passado
recente, a figura do bobo dissimulado capaz de abusar sexualmente se sobrepôs à figura do
bobo inocente com a qual a família de Marquinhos consentia primordialmente. Eclipse. Se
as fissuras irrompem e logo se acomodam, ficam os seus vestígios nos tecidos relacionais.
103

Refiro-me a olhares mudos que sobram como um incômodo inoportuno, um conhecimento


da verdade jurídica e do desejo masculino custosamente escamoteado e, ainda assim,
presente. Ultrapassado o drama, o namoro com Odete avançou. De maneira quase
redundante, a equação maldade (Jurema) versus ingenuidade (Marquinhos) reacendeu. Lá
estava a família de Dona Luiza agindo com o tempo e assim seguindo, como melhor podiam,
a vida que levavam com Odete. Foram os olhares mudos dela que permaneceram como sobra.
Em lugares ainda mais enterrados, foram colocadas as desconfianças criadas por processos e
uma concepção naturalizada do desejo.
O tempo nesse tecido relacional, longe de ser linear e arbitrário, é um retorno situado
e constante ao mais profundo, ao que foi internalizado por cada um e, concomitantemente,
compartilhado como experiência comum. O trabalho moral feito com o tempo é imanente às
relações, isto é, existe no interior dos tecidos relacionais como miríade de movimentos de
humanização de quem, fora desses tecidos, persiste como monstro e, no interior deles, tende
a ser uma pessoa amada passível de se revelar monstruosa na curta duração das situações de
fissura. A sobra dos dramas e das fissuras são pegadas, desconfianças que definem os
contornos dos trajetos relacionais percorridos e que seguem em direção ao futuro sendo
apagadas por aqueles que amam aquele que foi condenado. Parece menos adequado pensar o
trabalho no e sobre o tempo como uma atividade cíclica do que como um movimento
espiralado que faz de cada mergulho de retorno ao passado uma ação singular. Quando há
sobras, os mergulhos no passado profundo se realizam como gestos únicos que
continuamente se correspondem, um trabalho tão individual quanto coletivo de esquecimento
do que irrompeu na superfície. Refiro-me a um esforço conjunto de obliteração que não é
executado por todos da mesma maneira. Como Odete não compartilhava o passado profundo
com a família de Marquinhos, ela não podia olhar para o seu noivo da mesma maneira que a
mãe dele, ainda que seguisse confiando, amando e mentindo. A sobra que oferecia a Odete
um ângulo negativo de visualização da condenação se distinguia, nesse sentido, da sobra que
marcava as irmãs de Marquinhos. Enquanto a vida seguia para frente, num movimento
avassalador em direção ao futuro, o que ficava de negativo para cada um era menosprezado
pela força do trabalho coletivo de esquecimento. Nesse movimento de reativação da figura
do bobo, mais inocente do que dissimulado, as sobras – muitas vezes expressas como
sentimento de desconfiança, mas também como irritação – eram ofuscadas.
As referências que faço ao esquecimento, aos olhares mudos e outras práticas
correlatas visam demarcar a dimensão repressiva implicada ao trabalho realizado no e com o
104

tempo. Se, por um lado, a ideia de que existe algo como um passado profundo a ser revivido
no presente tem a ver com uma operação coletiva de enquadramento da memória (POLLAK,
1989), com o estabelecimento de um conjunto de referências afetivo-morais compartilhadas
e mais ou menos conscientes, por outro lado, o próprio reforçar das “interpretações do
passado que se quer salvaguardar” (POLLAK, 1989, p. 9) indica a repressão do passado
recente e o perigo que ele representa. Todo enquadramento da memória, diz o autor, atende
a exigências justificáveis a partir de um ponto de vista situado e mantenedor da coesão de um
dado grupo social. Acredito que a raça cumpria papel relevante na produção do
enquadramento da memória que ativava o passado profundo, reprimia o passado recente e
tornava suportável o peso do estigma. Em outras palavras, percepções racializadas da vida
no Rio de Janeiro, do racismo impregnado às práticas de justiça e mesmo da escravidão
forneciam uma base de sustentação para a disposição – sobretudo maternal – em crer ou
confiar em Marquinhos. Uma das minhas apostas analíticas é a de que para entender o
trabalho com e no tempo realizado por Dona Luíza e ensinado por ela a seus filhos temos que
controlar a pressuposição de que a história é um ordenamento linear dos acontecimentos e
dar espaço para a compreensão do enquadramento situado da memória.
A matriarca dessa família – todos são negros e assim se reconhecem, exceto o
namorado da filha da esposa de uma das irmãs gêmeas de Marquinhos – era quem mais
veiculava a experiência racial como realidade comum. Enquanto caminhava comigo pelas
ruas próximas ao Campo de Santana, Dona Luiza, refletindo sobre o porquê da condenação
de seu filho, chegou à conclusão de que, tal como ela, eu sabia como “os pretos” são tratados
“nessa cidade”. Não tenho dúvidas de que a mãe de Marquinhos diferenciava a mim e a seus
parentes segundo as marcas educacionais, de classe, de gênero, de sexualidade e de geração
que constituíam as especificidades que nesse ato de fala foram colocadas em segundo plano.
“Você sabe como é!”, sentenciou Dona Luiza pouco antes de discorrer sobre a “matança” da
juventude negra e as altas taxas de encarceramento de homens negros. A “Justiça” estava
contra a gente, contra os pretos pobres. Que tribunal confiaria nela, se vista em oposição a
uma criança, filha de gente que faz filhos demais e está sujeita aos que ocupam posições
estratégicas de poder e designam o que são e como devem ser vivenciadas as relações
intrafamiliares (FERNANDES, 2017)? A mãe de Marquinhos sabia que, frente a promotores
e juízes, ela era lida como uma mulher negra inseparável do território de excesso onde vivia.
“Lá”, onde estava a casa dela, aconteciam estupros. “Aqui”, onde as relações eram julgadas
sob o signo do crime sexual, ela se tornava mentirosa. O que aprendi foi a perceber que, do
105

ponto de vista de Dona Luiza, a condenação estava posta antes mesmo que um juiz pudesse
decretá-la.
A mãe de Marquinhos falava sobre navios negreiros, dívidas históricas e escravos
enquanto narrava a história dele. Podia começar respondendo a alguma pergunta minha sobre
Luana, passar por tribunais, lembrar da sequestradora da sua filha, dos ex-maridos, da
dificuldade para conseguir creches para a “comunidade” nos anos 1970 e, por fim, dos tais
navios. O conteúdo se repetia em ordem distinta, o que sugere tanto a permanência dos
elementos quanto a desconexão relativa entre eles. “Por que a senhora está falando da
escravidão?”, eu perguntava, ouvindo de volta: “são coisas que a gente sabe. Você sabe
melhor do que eu!”. Insistia: “como assim, Dona Luiza?”. “Coisas que a gente sabe”, ela
respondia. Menos do que tentar construir os nexos de causalidade que a mãe de Marquinhos
não construiu, interessa pensar sobre o que instaura a fragmentação em um discurso
racializado, que, a todo instante, aponta a experiência comum e, por vezes, sinaliza
discrepâncias em torno do conhecimento incorporado, ou, em outras palavras, sugere a
percepção de diferenças em torno de quem são os negros que “sabem”. As vivências que se
cruzam, enquanto se distinguem, pontuam a raça como ângulo de observação que faculta a
compreensão da injustiça da Justiça, mas não habilita a costura entre essa injustiça e os navios
que naufragavam ao serem enunciados. “Dona Luiza, o que os navios negreiros têm a ver
com a história do Marquinhos?”. “Nada!”, ela concluiu. A “caixa-preta do estupro” que a
matriarca dessa família afirmou que eu a ajudaria a abrir está aí, destrancada, fazendo ver a
condenação do filho dela e as sobras que resistem nos tecidos relacionais serem
compreendidas, geridas e/ou obliteradas em termos propriamente raciais. Refiro-me, por um
lado, ao conhecimento que gritava através da pele injustiças e violências que como negros(as)
conhecíamos, mas que, prioritariamente no tecido relacional em questão, tinha a capacidade
de acionar o passado profundo e assim a disposição em confiar no condenado que habitava
nessas mesmas relações; e, por outro lado, refiro-me aos nexos ausentes de um discurso
racializado que nascia e morria como fragmento: “pretos nessa cidade”; “Marquinhos”;
“navios”; “nada!”. “Coisas” a serem pensadas a partir da maneira como se apresentavam.
O que se vê dentro da caixa-preta do estupro, junto a irritações, omissões e
familiarizações, é, enfim, um discurso composto pelos fragmentos de um mundo colonial,
fragmentos que informam o trabalho moral realizado com o tempo desmantelado em passado
recente, colonial e profundo. Pode-se alegar que toda narrativa é por princípio fragmentada,
mas não é bem à qualidade per se da narrativa que faço alusão. Volto-me às “coisas” postas
106

em discurso. Ao conteúdo. Dirijo-me em direção aos escombros da colônia que insistem em


se revelar em uma fala que finda sem a construção de nexos causais entre múltiplas
temporalidades. Dona Luiza ultrapassava o passado profundo e adentrava em tempos que não
viveu, mas que conhecia através dos vestígios dispersos que enunciava. Cada navio negreiro
erguido pela mãe de Marquinhos era uma evocação ritual da história dos negros em diáspora
que tinha uma capacidade de descrever a experiência do corpo que enunciava apenas
frouxamente. Entre os navios e esse corpo estava o “nada”, que, ao ser verbalizado, dividia
as “coisas” em histórias que se correspondiam em sentido não linear. O “nada” contava algo.
Dizia sobre narrativas forjadas em experiências que permitiam conhecer via fragmentos.
Nesse sentido, Dona Luiza narrava uma história dos negros que “só pode ser feita em
fragmentos, convocados para relatar uma experiência em si mesma fragmentada, a de um
povo pontilhado, lutando para se definir não como um compósito absurdo, mas como uma
comunidade cujas manchas de sangue são visíveis” (MBEMBE, 2018, p. 59-60).
Reverberava dentro da caixa-preta do estupro um esforço em colocar fora dela o que se
conhecia, ou melhor, em verbalizar no vácuo deixado pelos nexos ausentes de uma história
sentida na pele as injustiças sofridas pelos negros. Vista dali de dentro, a vida de Marquinhos
fora composta por temporalidades que tropeçavam do mundo colonial para o presente,
vazavam como se pudessem pular o mais recente, se sobrepunham como eclipse na curta
duração de uma fissura, mas não formavam um encadeamento propriamente linear.
A seu modo, Dona Luiza tecia uma história dos negros em sua família quando, por
exemplo, brigava na frente de todos com a sua filha que queria ser policial. A mãe de
Marquinhos ficava irritada, esboçava tentativas de convencimento, mas logo saía dando de
ombros e acenando para trás as mãos: “ideia maluca!”. Ela tentava ensinar aos seus filhos a
lerem a si mesmos em um sentido racialmente determinado, aquele a partir do qual a ideia de
polícia está associada ao sangue dos negros, sobretudo, dos mais jovens. Tentava repassar as
informações que cultivava cada vez que ia a uma reunião dos muitos coletivos negros
espalhados pela cidade. Ela costumava me convidar. Fomos juntos, contudo, apenas uma vez,
oportunidade em que narramos, eu e ela, bem como outros(as) negras(os), as nossas
trajetórias de vida racialmente marcadas. Foi assim que soubemos mais um sobre o outro e
passamos a inventar juntos pontes que permitiam um rápido acesso às experiências que
sabíamos não serem idênticas. Dona Luiza sempre achou que eu sabia mais do que ela e,
orgulhosa, me colocava em posição de fala, como se coubesse a mim colar os fragmentos.
No dia em que estivemos juntos na reunião para qual ela me convidou, uma menina negra,
107

ainda por volta dos 14 ou 15 anos, narrou a si, passando da escravidão ao preconceito que
vivia no colégio. Os cabelos crespos permitiram que a jovem cruzasse continentes, fosse à
África buscando um sentido positivado para o seu black. Dona Luiza, sentada ao meu lado,
fez questão de virar-se e escancarar um sorriso. Estávamos ouvindo “coisas que a gente
sabia”, que brotavam em fragmentos que se encontravam, sem necessariamente revelarem
nexos sequenciais. Os encontros entre fragmentos são da ordem da experiência – do
conhecimento incorporado e compartilhado, poderíamos dizer.

2.3 Do otimismo cruel à irritação

Dona Luiza e Célia faziam tudo o que faziam porque eram mulheres que se
autoenganavam em relação àqueles que amavam? A palavra ilusão, se significando somente
erro de percepção, bem descreve o que elas viviam? Se eu assim classificasse o que
experienciavam uma noiva e uma mãe em tecidos relacionais específicos, não terminaria
propalando a posição pretensiosa do antropólogo que acredita conhecer o que os seus
interlocutores não podem conhecer e achatando os movimentos conscientes e inconscientes
de vinculação a palavras de sentido restrito? Dizer que Dona Luiza e Célia passaram a crer
no falso como sendo o verdadeiro (a injustiça) seria o mesmo que cometer o erro de assumir
a falsidade da narrativa tecida em torno de entes queridos? Seria relegar a um segundo plano
a pergunta sobre como as pessoas sustentam a capacidade de olhar com bons olhos aqueles
que não cabem perfeitamente nesse olhar? Há algo no sentimento de confiança, inseparável
de um ser levado a crer, que precisa ser mais frontalmente investigado se quisermos entender
como a própria crença (no poder transformativo do amor ou em um dado enquadramento da
memória) facultava o otimismo dessas mulheres quanto aos homens condenados com os
quais elas se relacionavam. Há também algo inconsciente na vivência desse otimismo, mas é
difícil precisar as suas fronteiras com o consciente. Essa tarefa em si mesma parece
fracassada, se considerarmos uma vez mais que no cotidiano o que é consciente se embaralha
e funde de múltiplas maneiras com o que é inconsciente. Transpondo o ser levado a crer
enunciado por Derrida aos meus dados de campo, denoto que a passividade da expressão “ser
levado” implica também uma vontade de crer, um esforço em deixar-se ser guiado que tanto
denota atividade quanto alguma inércia. Já que no centro da crença subsiste um otimismo
duramente atualizado por movimentos refletidos e irrefletidos, volto-me ao conceito de
108

“otimismo cruel” (BERLANT, 2010), e não tanto à palavra “autoengano”, visando oferecer
uma explicação, dentre outras possíveis, para o processo de familiarização e o ímpeto de
reunião entre familiares.
A definição filosófica clássica da mentira enquanto ação intencional e consciente
direcionada ao outro, segundo Derrida, impede o mentir a si mesmo. Diz o autor: “se pelo
menos a palavra si tem algum sentido, o si exclui o mentir a si mesmo” (DERRIDA, 1996,
p. 34). Essa crítica, endereçada à centralidade da autossugestão nas formulações de Arendt,
à ideia de que o processo de destruição da verdade culminaria no autoengano do mentiroso,
tem como ponto alto a asseveração de que o problema da interiorização da mentira requer
outro nome e procede de uma zona que não é a do si em si mesmo, e muito possivelmente é
a da intersubjetividade, da presença do outro em si. Derrida estranha, inclusive, a falta de
referência a Freud no texto de Arendt. A sua dúvida em torno do quão fortuita seria essa
ausência assinala uma defesa do enfrentamento analítico do inconsciente, ou do que chamou
de “ipseidade mais originária do que o ego (individual ou coletivo), uma ipseidade de
encraves, uma ipseidade divisível ou clivada” (DERRIDA, 1996, p. 34). É exatamente a essa
presença do outro em si que busco qualificar quando direciono-me ao otimismo cruel
enquanto processo de interiorização da acusação de estupro proclamada falsa. Parece
importante insistir que, a meu ver, a verdade jurídica, associada a processos sociais que fazem
monstros (LOWENKRON, 2015), cria uma de paisagem de sujeição, afetando de maneira
inescapável os tecidos relacionais e impondo aos meus interlocutores a necessidade de
modular essa afetação, o que acontecia comumente sob o signo de apelos à injustiça. Em
outras palavras, o otimismo cruel depende de um alinhamento entre a sujeição, as maneiras
como as dinâmicas interpessoais cristalizam-se em momento posterior à condenação e os
processos de interiorização da sentença que redundam no sentimento de confiança no outro
ou na crença em um amor ou em uma memória. O otimismo cruel alude ainda à positividade
que apregoa a vitória final da narrativa de injustiça sobre a falsa acusação, mesmo quando as
pessoas sabem que a vitória como tal não é possível, seja porque revisões criminais falham,
seja porque a injustiça como perspectiva compartilhada produz os seus custos. Trata-se,
enfim, de uma tentativa de explicação dos apegos que habilitam os sujeitos e, ao mesmo
tempo, os deterioram.
Berlant (2010) argumenta que a expressão otimismo cruel nos permite compreender
como se constrói o senso de perseverança, sem deixar de lado os aspectos incoerentes do
apego a objetos de desejo. Por que desejamos voltar a uma cena de contato com um objeto
109

de desejo mesmo quando esse contato não é exatamente gratificante? Por que Célia
permanecia com Tonico, embora percebesse que ele a prejudicava? Por que Dona Luiza
insistia em refazer o passado profundo, mesmo sentindo-se irritada? O senso de perseverança
não é uma irracionalidade do comportamento, pois a proximidade ao objeto de desejo
significa proximidade ao conjunto de coisas que o objeto promete: um bom marido,
escapatória a uma situação de privação econômica, um filho inocente, uma maternidade
segura do seu valor moral, etc. A rendição à volta a uma dada cena de contato, passível de
ser erguida tanto por idealizações do passado quanto por idealizações do futuro, revela o
próprio otimismo que embala desde a base a relação assumida com filhos e noivos/pais. Diz
a autora: o “otimismo cruel nomeia uma relação de apego a condições de possibilidade
danificadas cuja realização é descoberta como impossível, pura fantasia, ou muito possível e
tóxica” (BERLANT, 2010, p. 94) 35 . A crueldade do otimismo está, por exemplo, nos
empenhos doloridos de Dona Luiza e Célia para não perderem seus objetos de desejo,
respectivamente a idealização do passado profundo e da expectativa de casamento. Elas
voltavam às cenas de contato como se assim pudessem suportar o medo de perder aqueles
que amavam, isto é, de perder o olhar benevolente em relação a eles. A referência ao termo
“fantasia” demarca aqui a projeção de qualidades em pessoas, a inocência dos tolos
(Marquinhos) e a responsabilidade (Tonico), sem lastro imediato com o atual. O otimismo
cruel, porque derivado de condições precárias de existência, descreve uma busca pela
sedimentação de uma boa vida numa paisagem subjetiva, sendo o bom aquilo que a vida
oferece como o possível de assim ser imaginado. O sujeito dessa fantasia é uma pessoa
desgastada e, não obstante, engajada em fazer repercutir as promessas acopladas ao objeto
de desejo. Berlant demonstra também que nos casos mais extremados dessa forma de
crueldade pode-se preferir enlouquecer a perder a fantasia que faculta o trabalho de viver
uma vida difícil. Para ela, a atração magnética causada pelo otimismo cruel pode até mesmo
suprimir os riscos do apego.
Distanciei-me de Célia antes de poder reconhecer o que a reatualização constante do
apego provocava nela em termos intersubjetivos, mas permaneci tempo o bastante próximo
de Dona Luiza para perceber que a sua irritação pode ser entendida como um custo, uma
sobra ou um efeito da centralidade da vivência do otimismo cruel. Longe de ser algo sobre o

35
No original: “Cruel optimism names a relation of attachment to compromised conditions of possibility whose
realization is discovered either to be impossible, sheer fantasy, or too possible, and toxic”.
110

qual a minha interlocutora discorria, esse era um estado de humor passageiro e repetitivo,
que se apresentava com alguma frequência em referência a Marquinhos, à ex-mulher dele,
ao racismo, à aproximação da figura do ex-marido ao filho, etc. A causa desse afeto era
múltipla, mas algumas recorrências se apresentavam. Dito de outro modo, a irritação de Dona
Luiza tinha muitos porquês, mas quase todos os que pude reconhecer tinham alguma ligação
inexata com o otimismo cruel: como se cada mergulho dela no passado profundo, bem como
no passado colonial, provocasse na superfície do corpo a irritação. Tudo que era feito em
nome de um filho (enquadramentos e repressões) fazia emergir o que Ngai (2005) chamaria
de “sentimento feio” ou de afeto negativo de baixa intensidade. Embora seja importante para
a autora demarcar que a irritação é mais um humor do que uma emoção, já que os objetos
dos humores seriam mais difusos que o das emoções, interesso-me por outro argumento: as
emoções, pensemos por exemplo na raiva, estariam mais próximas da ação do que os
humores. A irritação, desse ângulo, estaria voltada principalmente ao estado de inação, não
que esteja associada à completa paralisia. Ngai chega a essas conclusões analisando um
romance, Quicksand, publicado em 1928 nos Estados Unidos, cuja protagonista é uma
mulher negra de classe média que se irrita com o cheiro de comida estragada, chegando a se
exaltar, a manifestar raiva, mas não necessariamente expressa na mesma intensidade
incômodo com episódios de racismo. Trata-se de um romance centrado na discussão sobre a
vivência de Helga Crane entre pessoas brancas, que parece interessar a Ngai na medida em
que constrói a personagem principal a partir de um sentido de pertencimento racial movediço
e moralmente questionável. Ngai demonstra que a irritação – de Helga – não carrega a
virtuosidade atribuída à raiva na luta por justiça social, pois trata-se de um humor brando. A
autora não questiona a aposta política e existencial de Lorde (2007) na raiva como resposta
ao racismo, e sim a possibilidade da raiva ser defendida como a única resposta apropriada. O
seu objetivo é questionar se a avaliação das respostas ao racismo em termos de virtuosidade
e adequação não seria um ato violento. A preocupação com a proporcionalidade e a
adequação das respostas afetivas incorreria no risco de colocar a irritação, porque julgada
fraca, e a raiva, quando julgada excessiva, no banco dos réus, e não os racistas.
Tudo isso para dizer somente que Dona Luiza, protagonista empenhada do otimismo
cruel, fazia o que podia: se, por um lado, ensinava aos seus filhos a lerem a si mesmos
racialmente, por outro lado, sentava-se para esperar passar a irritação provocada por
Marquinhos, pela condenação dele, pelos navios que afundavam ao serem mencionados, pela
filha que insistia em se tornar policial. Se Helga Crane tem em comum com Dona Luiza o
111

fato de manifestar um humor – apenas para seguirmos usando as palavras de Ngai – de baixa
intensidade como resposta ao racismo, ainda que não somente a ele, vale pensar sobre a
especificidade do contexto em que minha interlocutora forjava essa resposta afetiva. Ainda
me pergunto se a irritação não tinha a ver com o envelhecimento materno, mais
especificamente com o esgotamento provocado pelo protagonismo na reiteração do otimismo
cruel por anos e anos. Ao mesmo tempo que via Dona Luiza em posição ativa, exercendo
forte controle no que se referia à reprodução da narrativa de injustiça no seio da sua família,
via que a irritação dela nascia junto ao seu cansaço, emergia nos momentos em que as coisas
pareciam tão difíceis de serem conquistadas que o melhor a se fazer era exclamar qualquer
xingamento, dar de ombros e esperar passar a irritação, sentando-se e assim recompondo
alguma força para tornar a fazer aquilo que era julgado essencial, mas seguia exigindo
esforços e, por isso mesmo, exaurindo. A irritação parece ter a ver com o envelhecimento
materno na medida em que diz sobre um cansaço em repetir as mesmas lições sobre a vida,
em passar pelas mesmas situações com as mesmas pessoas e, sobretudo, em falhar em fazer
o outro ver o que se considerava que deveria ser enxergado, seja quando esse outro é um juiz,
seja quando é o próprio filho. Desse ângulo, existe até mesmo alguma nobreza em irritar-se
e, no dia seguinte, levantar-se para fazer e sentir as mesmas coisas de ontem.
113

3 CONCILIAÇÃO FRATURADA

Um horizonte fraturado emerge para tornar o caminho de alguém uma


agência espectral, alguém para quem uma recuperação total é impossível,
alguém para quem o irrecuperável se torna, paradoxalmente, a condição de
uma nova agência política.
Mas o que precisamente é irrecuperável, e que formas assume essa nova
agência política? (BUTLER, 2003, p. 467)36.

3.1 Tentar perdoar

Edson assumia que tinha “acariciado” duas de suas filhas e negava ter se envolvido
sexualmente com o seu filho mais novo. As confissões dele, mais do que a narrativa de
injustiça centrada em um estupro capaz de questionar o desejo heterossexual de um pai
violador, me intrigavam. Contudo, foi difícil conversar com ele, pois três aneurismas
cerebrais tornaram a sua fala lenta e embaralhada. Ele, por vezes, parecia se desconectar do
desenrolar dos assuntos, ficando parado observando, por exemplo, a servidora que lhe
explicava trâmites jurídicos sem obter retorno fluído. “Você está me entendendo, Sr.
Edson?”, ela perguntava com alguma frequência. Ver aquele senhor desfalecendo e, ainda
assim, tentando dar conta de interpelações fazia o mundo girar de tal forma que estar do lado
oposto ao dele no balcão da Defensoria produzia mal-estar. A servidora com quem eu trocava
olhares constrangidos costumava seguir os atendimentos até que obtivesse respostas
indispensáveis à defesa na fase de execução penal. Como as perguntas de cunho jurídico e
administrativo objetivavam finalidade positiva para Edson, era possível que a servidora
buscasse conforto precário na própria ideia de compromisso profissional com o assistido
gerido enquanto “sujeito de direitos” cujos direitos estavam sendo tolhidos. O juiz
competente havia indeferido o pedido de progressão para o regime aberto, devido a um
relatório psicológico considerado no mínimo problemático pela equipe da defensora Fabiana.
Segundo ela, não seria legítimo vetar a Edson a possibilidade do cumprimento de pena em
casa em função de uma recomendação de tratamento terapêutico por um ano fora do sistema
penal, condição a ser cumprida antes que o próprio pleito de progressão voltasse a ser
instaurado pela Defensoria. A psicóloga que realizou tal recomendação concluiu o seguinte:

36
No original: “A fractured horizon looms in which to make one’s way as a spectral agency, one for whom a
full ‘recovery’ is impossible, one for whom the irrecoverable becomes, paradoxically, the condition of a new
political agency. But what precisely is irrecoverable, and what form does this new political agency take?”.
114

“a força da lei do Estado vem sendo um instrumento de grande valia para que Sr. Edson
respeite as leis referentes à expressão da sexualidade na sociedade”.
O corpo que Edson sentia definhar era narrado via pedidos de ajuda que deixavam
pouco espaço para o passado. A urgência dos seus clamores jogava para as bordas as falas
sobre a saia curta da adolescente que, mesmo sendo a sua filha, o provocava sexualmente; a
árvore onde ela subia sem calcinha quando criança; a ex-mulher que teria mentido sobre o
processo “do menino”; o não reconhecimento do desejo sexual pelo filho; a altercação entre
falas suavizadas como “toquei nas meninas” e escorregadias como “a Justiça diz que estuprei
as minhas filhas”. A violência sexual somente não era minada pelo sofrimento sentido por
Edson porque eu continuava perguntando: “e aí?”; “o que aconteceu?”; “eu não entendi!”;
“onde ficava essa árvore?”; “em que momento isso aconteceu?”. Ao passo que a posição de
inquiridor revelava-se a mim, mais ele calava e mais espaço o corpo adoentado angariava.
Ao mesmo tempo que a violência era comunicada através de palavras eufemísticas, toques
apresentados como não excessivos, sobressaltava-se a proximidade da morte física do pai
violador. Para dar carnatura a essas colocações, listo duas frases ditas por ele:

Eu me perco no prédio onde trabalho. Eu caio em cima dos outros, ando


esbarrando, está difícil trabalhar.
Não faz sentido falar sobre algo que aconteceu 20 anos atrás. É como um
cachorro que volta ao vômito, é como tomar banho e depois tomar outro
(Edson, entrevista realizada em 2016).

No relatório psicológico, Edson é descrito como um homem incapaz de analisar


criticamente os estupros que cometeu. Não sente culpa. A astúcia dele é demarcada em frases
taxativas como “parece repetir um texto ensaiado” e “em diversos momentos da entrevista
mostrou ter conhecimento sobre o conteúdo do relatório anterior e buscou dar respostas
refletidas e cuidadosas”. É notável que o Edson materializado no documento produzido
poucos meses antes de eu o conhecer difere do assistido que, sentado frente a mim, tinha
dificuldade até para contar que demorou a chegar no NUSPEN porque, no meio do caminho,
esqueceu para onde ia. Os lapsos de memória que sensibilizavam a servidora e a mim foram
qualificados pela psicóloga em alusão à “falta de disposição” do “paciente” em procurar
assistência médica. A força da declaração da especialista “psi” questionava a autenticidade
do sofrimento, bem como responsabilizava ao meu interlocutor pela sua condição de saúde.
É verdade também que a força do relatório, conforme os dias passavam, ganhava concretude
115

especial. Em um presídio de regime semiaberto, Edson ficava cada vez mais doente e, por
conseguinte, mais dependente de terceiros. A presença de Lilian na Defensoria se fez nesse
contexto. Ela foi uma das poucas pessoas, dentre os parentes dele, que se dispôs a intervir
contrariamente ao relatório em questão.
Lilian estava entregando comprovantes de residência quando a vi. Estranhei a
presença dela na Defensoria, acoplada à ausência de Edson, porque ele era um dos muitos
assistidos que, semana após semana, ia checar a concessão de “benefícios” e, em geral,
frustrar-se com a lentidão dos procedimentos, com os indeferimentos de pedidos e a
pendência quase contínua de documentos. Demorei um pouco para descobrir que Lilian era
filha desse homem e mais ainda para supor que ela, quando criança, poderia ter sido a vítima
de um dos processos que culminaram na prisão dele. Considerando que ela tinha trinta e
poucos anos, poderia ser que, entre a acusação realizada em sede policial e o curso do
processo penal, mais ou menos duas décadas tivessem passado. Iniciei a conversa com Lilian,
numa cafeteria em rua próxima à sala de atendimento onde vítimas de estupro não
costumavam adentrar, explicando como conheci Edson. O constrangimento, alimentado pela
lógica da confidencialidade que regulava o que eu poderia dizer sobre o que o seu pai havia
me dito, me levou a usar o termo processo. “Sei que o seu pai respondeu a três processos”,
disse. Ela enumerou: “é, tem o meu; o da minha irmã; e o do meu irmão”. Evitávamos acionar
a palavra estupro. “O que ele fez comigo” era a expressão mais marcante da forma como
minha interlocutora instaurava na linguagem a violência sexual cometida pelo seu pai. O que
ele fez com ela é uma vastidão de acontecimentos espraiados no tempo e no espaço, porém
reunidos no corpo que ali estava e narrava o que viveu.
A tal árvore que Lilian onde nunca subiu quando criança; o dia da festa de quinze
anos em que ficou bêbada e custou a angariar força para mandar ele parar; os momentos em
que, até os dez anos, foi acordada e tocada; o período em que ele parou; o ano em que tinha
seis anos de idade, marco de onde tudo começou; a falta de credibilidade atribuída pelos tios
a ela; as ameaças do pai; a possibilidade de apanhar; os lugares em que apanhou; o medo de
não ser amada; as casas nas quais viveu e foi estuprada. Cada cena brotando de jeito manso
e sendo entrecruzada por menções aos filhos, à mãe, à madrasta e ao marido, que sabe de
tudo que aconteceu e a entende. Lilian dizia que não sabia exatamente o que o seu pai tinha
feito com a sua irmã, mas que sabia que algo tinha acontecido. Em relação ao seu irmão,
desconfiava. Achava que a sua madrasta poderia ter forjado a acusação. Dolores era mãe de
Beto e Duda, crianças nascidas no segundo casamento de Edson. Foi o processo de Duda que
116

fez o de Lilian, arrastado por muitos anos, andar. Já o de Beto, igualmente concluído com a
sentença condenatória, poderia ser fruto da maldade de Dolores. À medida que essas pessoas
iam aparecendo, a relação complicada com a madrasta ganhava densidade. Dolores tratava
Lilian como empregada, reclamava da comida por ela preparada e não gostava que a sua
enteada usasse roupas que chamassem a atenção dos homens, sobretudo do seu pai. A
madrasta ora cuidava de Lilian, evitando a exposição dela ao perigo ofertado por Edson, ora
desejava posicionar a si como objeto do desejo masculino.
Contando sobre o quanto era humilhada por não saber preparar um bom fígado, Lilian
demarcou que a sua mãe, pessoa que nunca a ensinou a cozinhar, preferiu o padrasto a ela.
Como resultado da preferência materna que a magoou, Lilian, ainda adolescente, foi morar
com Dolores e seu pai. Ela permaneceu na casa onde era maltratada, mesmo depois que Edson
foi pego por Dolores tocando a filha do casal. A figura da madrasta má, ancorada no trabalho
não reconhecido e em disputas sobre quem poderia ser bela, produzia-se também a partir de
bebedeiras, incorporações de santos, discussões virulentas e da desconfiança de que Edson,
mesmo depois das acusações de estupro, seguia sendo desejado sexualmente. Lilian me deu
a entender que não se surpreenderia se Dolores assumisse que, vez ou outra, transou com
Edson no curso dos três processos. A conjugalidade alegadamente desfeita em razão dos
estupros havia, em momento anterior, sobrevivido às pancadarias constantes. Era esse
conhecimento que fazia a filha de Edson suspeitar da sua madrasta, como se o desejo sexual
fosse uma força presente nos conflitos de outrora e resistisse como uma dúvida que
assombrava na medida em que revelava o factível, o possível, aquilo que não se sabia com
certeza, mas existia enquanto conhecimento incorporado. O desconforto gerado em Lilian
pelo desejo sexual de Dolores em relação a Edson era evidente.
Advirto, porém, que era sobretudo como mãe que minha interlocutora se colocava
narrativamente em oposição a sua madrasta e a sua genitora. Lilian cuidava. Não trocaria os
seus filhos por homem nenhum, nem desejaria o corpo proibido de um pai violador. Ela
cuidava dos seus filhos e também daqueles que não eram seus, e sim de uma prima que,
devido ao alcoolismo, perdeu a guarda das crianças. Cuidava ainda do seu padrasto, desde
que a mãe dela morrera e ele ficara sem ter quem lhe preparasse comida. Se, por um lado,
Lilian idealizava o cuidado como prática ética que lhe permitia ser uma boa mãe, por outro
lado, ela evidenciava como o cuidado e a violência não são termos antagônicos, e sim práticas
que se imiscuem nas relações que não encontram resolução fácil. Lilian dava de comer ao
seu padrasto e não abdicava do ressentimento que nutria em relação a ele e à sua mãe. Longe
117

de querer assim adotar o ponto de vista normativo segundo o qual o ressentimento é um


sentimento a ser abandonado, aponto, como sugere Caduff (2019), que o cuidado pode ser
menos generoso do que parece e pode implicar uma série de sentimentos contraditórios, de
tal modo que se pode até mesmo cuidar sem se importar de fato com a pessoa que demanda
cuidado. Ou seja, é porque a afeição não é condição sine qua non para o cuidado que o próprio
ato de cuidar exige cuidado.
A capacidade de Lilian de habitar um tecido relacional dedicando-se continuamente
às pessoas que a feriram, magoaram, não reconheceram o bem-fazer atuado e a violentaram
de várias maneiras adveio da conversão ao budismo. Desde os 14 anos, idade em que tentou
se suicidar pela primeira vez, ela frequenta os templos. Neles, aprendeu sobre o carma e pôde
reler a sua vida sob esse prisma. O que sofreu poderia ser fruto de outras encarnações. Talvez
Edson tivesse vindo como seu pai para que Lilian enfrentasse quem foi e o que fez em outras
vidas. “Eu acho que tenho carma com os homens”, disse ela pensando naqueles a quem amou
e de quem cuidou. Um namorado a abandonou quando soube dos estupros que sofreu. O pai
bateu em outro, que acabou terminando a relação. O primeiro marido bateu nela. O atual, que
é uma boa pessoa e a entende, também já teve as suas incursões pela violência. O padrasto
roubou o amor da mãe. E o pai fez o que fez. O carma, no plano ordinário, é uma linguagem
espiritual que explica o mal e descreve as relações de gênero como profundamente violentas.
Uma vez que pensava o carma através das relações em que habitava, Lilian convertia uma
categoria religiosa em uma linguagem generificada do mal causado pelos homens, mas
também pelas mulheres a eles vinculadas. As práticas de cuidado às quais Lilian se devotava
não devem, portanto, ser separadas da forma como ela entendia e vivia o budismo, pois,
praticando o cuidado, ela acreditava cultivar carma positivo: afastava-se do mal, realizava-se
como boa mãe e dedicava-se a si mesma. Em resumo, a crença no carma auxiliava os passos
da filha de Edson em direção à Defensoria, local onde ela fazia algo que considerava bom
para o seu pai; definia uma forma de culpabilizar a si mesma por opressões, desigualdades e
violências; e, sobretudo, sustentava a capacidade de seguir suportando o gosto azedo do
trabalho emocional ao qual ela se devotava.
Lilian me disse que levou muito tempo para conseguir encontrar um ponto a partir do
qual pudesse avaliar a sua vida com algum distanciamento e, principalmente, enxergar ao seu
pai. Ela sugeriu que eu pensasse em uma peça de teatro para que pudesse compreender a
existência da multiplicidade de pontos de vista. “Tem o olhar do diretor, tem o olhar da pessoa
que está atuando como atriz, tem o olhar do público”. Mas o que ela queria era que eu de fato
118

entendesse era a busca por uma perspectiva que pudesse oferecer acalanto ao seu sofrimento:
“é necessário a gente enxergar de fora porque senão a gente fica se vitimizando o tempo todo.
E dali você não sai. Uma situação-problema que você tenha. Está ali sofrendo. Você não
consegue se projetar fora dali. Está ali, ali, ali”. Lilian questionava a sua posição enquanto
vítima para que pudesse ejetar-se da temporalidade e da geografia do estupro, ainda que
seguisse lidando com feridas subjetivas não cicatrizadas. Agir em nome de Edson, colocar-
se como filha contrária ao relatório psicológico, requeria antes de mais nada que ela fosse
capaz de suportá-lo e, novamente de acordo com ela, de perdoá-lo: “eu achava que tinha
perdoado, mas eu não tinha perdoado, porque eu não conseguia conviver com ele. […] Eu
não queria ver a cara dele”. O perdão que Lilian tentava fomentar em relação a seu pai fora
enunciado a mim na iminência da morte dele, frente às debilidades motoras e mesmo
neurológicas que diziam que a punição estatal, ao contrário do que pensava a psicóloga,
precisava ser estancada. A meu ver, a cadeia regulava a expressão da sexualidade de Edson
menos transformando a maneira como ele enxergava a suas filhas e ao seu filho e mais
matando-o lentamente. E essa morte não era um carma que Lilian queria para si.
Deixarei de lado as exegeses de cunho histórico e a análise dos vínculos entre
tradições religiosas e seculares no que se refere ao perdão porque tais empreendimentos já
foram desdobrados por uma série de autores (DERRIDA, 2005; MARGALIT, 2004;
GRISWOLD, 2007). Minha intenção é a de considerar apenas as formulações que me
permitem, parcialmente, visualizar o que vivia Lilian. O primeiro apontamento digno de nota
é o de que a imagem do perdão que ela evocava dividia-se entre o conceito cristão de perdão
incondicional – aquele que excede toda troca, todo pedido de arrependimento como
retribuição, toda exigência de transformação do pecador, toda finalidade de cunho
psicológico, terapêutico e político –, e o conceito, igualmente cristão, de perdão condicional
(DERRIDA, 2005). Esse segundo tipo de perdão, ao abdicar de se realizar como amor sem
fim e sem cálculo – quanto mais amor, mais perdão, pois quem pouco perdoa pouco ama –,
demanda, segundo os autores já citados, uma resposta do ofensor ao ato benevolente. Como
no final deste capítulo voltarei à questão do perdão incondicional, a pergunta que deveríamos
nos fazer agora é a de que resposta é essa quando o perpetrador é um pai que, se reconhecia
a violação que causou, não deixava de culpabilizar a própria vítima.
Visto que muitas vezes o perdão é pensado como uma resposta a um dano que exige
daquele que o causou um retorno apropriado, a lógica da dádiva termina em certas análises
operando como um preceito ético. Margalit (2004) chega a propor que a obrigatoriedade de
119

retribuir o remorso sincero do ofensor com o perdão assemelha-se ao caráter compulsório da


troca de presentes. Nesse caso, estaria em jogo não tanto a produção de relações através da
troca, mas, sobretudo, a restauração das relações que já existiam em momento anterior ao
dano. Weitz (2005) bem sugere que análise de Margalit concentra-se demasiadamente na
parte injuriada. Foca nos sentimentos e atitudes que os ofendidos estariam impelidos a
superar, tal seja o desejo de vingança e o ressentimento, mas não aborda de modo convincente
o papel do remorso no processo de dar, receber e retribuir. Pensando no caso de Lilian e
Edson, por um lado, temos uma ofendida que se esforça em dar ao ofensor um perdão que
não lhe foi pedido e, por outro lado, um ofensor que não retribui às expectativas sociais de
demonstração de culpa, remorso, etc. Esse quadro revela a possibilidade do corpo em
processo de morte ser ele mesmo uma resposta ao trabalho emocional executado por Lilian.
Não estou dizendo que minha interlocutora queria ver o seu pai morto, bem ao contrário, pois
a proximidade da morte dele acentuava a busca pelo perdão, sentimento condicionado a um
cálculo que, por mais impreciso que fosse, sinalizava o excesso da pretensão punitiva estatal.
Dito de outro modo, a punição gerava uma demanda por perdão como alternativa ao fazer
morrer.
Se o perdão demanda reciprocidade nas relações interpessoais, a reciprocidade pode
ser forjada de maneiras inusitadas, sem eliminar as assimetrias da troca entre ofensor e
ofendido nem quitar o ressentimento de quem tanto sofreu e, ainda assim, seguia sentindo-se
impelida a tentar fazer viver. Deve estar claro que levar o ofensor à miséria pode não aliviar
as dores do ofendido e que é adequado pensar que o perdão que Lilian buscava tinha a ver
com a interrupção de um ciclo de vingança que a ultrapassava na medida em que perpassava
as práticas estatais. Se a vingança é o maior abuso do ressentimento (GRISWOLD, 2007), é
certo dizer que Lilian renunciava à vingança moderando o seu próprio ressentimento e
buscando controlar os malefícios causados pelo excesso punitivo. É sobretudo a esse
empenho custoso, dolorido e necessariamente repetitivo que estou chamando de trabalho
emocional. Diz Hochschild (2013):

Por “trabalho emocional” refiro-me ao ato de tentar mudar, em grau ou


qualidade, uma emoção ou sentimento. “Trabalhar” uma emoção ou
sentimento é, para os nossos propósitos, o mesmo que “gerenciar” uma
emoção ou realizar uma “atuação profunda”. É importante assinalar que
“trabalho emocional” se refere ao esforço – ao ato de tentar – e não ao
resultado, que pode ou não ser bem-sucedido. Atos fracassados de
gerenciamento também indicam quais formulações ideais orientaram o
120

esforço e, por isso, não são menos interessantes do que o gerenciamento


emocional que dá certo. A própria noção de tentativa sugere um
posicionamento ativo diante do sentimento (HOCHSCHILD, 2013, p. 185).

Assim, a autora chama atenção para a possibilidade do trabalho emocional tornar-se


uma atividade consciente nos casos em que os sentimentos de uma pessoa não combinam
com a avaliação que ela efetua de uma dada situação e dos sentimentos que seriam mais
apropriados de serem sentidos. Esse processo de acentuação reflexiva foi vivido por Lilian
conforme ela avaliou a situação em que seu pai se encontrava e identificou e idealizou o
perdão como resposta à produção estatal da morte. Para ser mais fiel ao vocabulário de
Hochschild, saliento que a minha interlocutora realizava um trabalho emocional de duplo
sentido: tanto “evocava” um sentimento desejado, o perdão, quanto se esforçava para
“suprimir” um sentimento indesejado, o ressentimento. Nesse sentido, entendo que a
evocação do perdão era uma tentativa de produção da conciliação entre pai e filha e que a
supressão do ressentimento mais parecia um movimento em direção a um objetivo não
alcançado, sempre um pouco mais além. A centralidade da ideia de tentativa me permite
chamar atenção à qualidade muitas vezes inconclusiva do trabalho emocional, do querer
sentir diferente, algo pelo qual Lilian batalhava, mas que também a prendia, agarrava, não
soltava – como se o próprio ato de tentar fosse pegajoso. Uma vez que ela estava tentando
sempre e de novo, proponho que a conciliação sobre a qual falo estava decididamente
fraturada, destinada a se romper, a ser refeita e a romper uma vez mais durante o processo de
restauração do tecido relacional em questão.

3.2 A memória como prática moral

Durante um tempo, eu fiquei assim… Lembrava e ficava com raiva do meu


pai e não queria falar ele. Mas, assim, o que mais me doeu foi a relação de
confiança… é… traída, né? Porque um pai, para a gente, é o quê? É um
herói. É a pessoa que está ali para te proteger, e não para fazer uso da
confiança que ele tem do filho para abusar do filho, entendeu? Então, isso
é o que me doeu mais. É o meu pai não ter tido esse senso. Isso que doeu
mais em mim (Lilian, entrevista realizada em 2017).

Costumava me perguntar se o trabalho emocional que Lilian executava e que a


envolvia impiedosamente era um movimento em direção ao luto, dada a atribuição de valor
negativo ao ressentimento, a evocação do perdão e a proximidade da morte do pai. Contudo,
121

menos do que determinar a direção precisa para onde seguiam os sentimentos da minha
interlocutora, algo que redundaria em um exercício de futurologia, importa aqui aventar a
possibilidade do querer sentir diferente, tal como ela tentava, ser ele mesmo uma forma de
enquadrar a memória, buscando fazer repercutir lembranças sobre o pai não marcadas pelo
estupro. Lilian nunca me disse coisas positivas sobre Edson, mas me falava sobre o herói que
ele nunca foi, como se quisesse que ele o tivesse sido. Certamente precisaria conhecer mais
para ir além da sugestão de que as lembranças que Lilian quereria encontrar, até mesmo para
sustentar a evocação contínua do perdão, pareciam não existir – ou não existiam ainda. O que
havia nas nossas conversas era uma ideia de paternidade heroica que operava como um
enquadramento e uma base para a tentativa de produzir alguma memória positiva sobre o pai
violador. Se, por um lado, os simbolismos podem ser cruéis ao provocarem engajamentos
que dilaceram os sujeitos, por outro, a memória não conhece caminhos fixos, pois está em
constante movimento e responde às urgências do presente. Quero assim dizer que não havia
como saber se o trabalho emocional ao qual Lilian se dedicava se expandiria para as direções
às quais apontava, afinal, os caminhos que ela estava trilhando para produzir alguma
lembrança positiva produziam dores que podiam terminar estancando o querer sentir
diferente.
Se o nosso relacionamento com o passado está sempre suscetível a mudanças, ainda
que muitas vezes nos apeguemos a certos enquadramentos do mesmo, a memória “nunca está
fora do tempo” e nem é “pragmaticamente neutra” (LAMBEK, 1996, p. 240). Lembrar, desse
ângulo, é estabelecer uma relação moral com aquilo ou a pessoa que está sob julgamento,
pois “o valor da articulação de versões específicas do passado está conectado às suas
finalidades morais e suas consequências para as relações no presente” (LAMBEK, 1996, p.
239). Dizer que a maneira como as pessoas vivem as suas memórias gera implicações para a
maneira como elas atualmente veem aqueles com os quais se relacionam é o mesmo que dizer
que as memórias são práticas morais, elaborações simbólicas do passado que os sujeitos
organizam discursivamente e incidem sobre o presente de maneiras diversas. Estou
chamando atenção às circunstâncias, aos compromissos subjetivos e às invenções do passado
porque a fratura na relação entre Lilian e seu pai derivava dos estupros que ela sofreu e se
atualizava constantemente através do próprio movimento de restauração do laço afetado pelas
violências. Podemos imaginar que, quanto maior o esforço dela para juntar tudo o que foi
corroído, mais e novos fragmentos relacionais se deterioravam e mais e novos esforços eram
exigidos. Nesse sentido, a fratura é parte inseparável do ato de tentar se conciliar com um pai
122

que fez o que fez, é parte da vida daquela para quem uma recuperação total talvez não fosse
possível. Já reconhecido o papel da memória na construção e sedimentação das relações,
gostaria agora de começar a pensar a fratura a partir das diferentes percepções que as pessoas
que habitam um mesmo tecido relacional podem ter sobre homens condenados por estupro.
Para tanto, buscarei apontar, brevemente, o que fazia com que Dona Teresinha não visse
Nelson tão negativamente quanto a sua filha Laura e tenha se aproximado de Marcela, a única
filha desse homem que o teria perdoado.
Dona Teresinha, costureira já na casa dos sessenta anos, se envolveu afetivamente
com Nelson, um empregado da empresa pública de abastecimento de água que estava em
cumprimento de pena em regime semiaberto e, portanto, tinha alguma chance de circulação
pela cidade. Primeiro, ela não abriu o portão quando ele foi até a sua casa contratar serviços
de costura. Depois, passou a recebê-lo na varanda. Os pedidos e as entregas das costuras
viraram longas conversas, as conversas viraram convites para o almoço, os almoços se
multiplicaram. Dona Teresinha não estava muito interessada nos crimes que Nelson cometeu.
“Parece que estuprou muitas mulheres”, me disse. O advérbio de intensidade sinalizava
dezenas, quantas exatamente – cinco, supunha ela – importava menos do que afirmar que
esse homem “tão mau” sempre foi com ela um cavalheiro. No dia em que a visitei em sua
casa em um bairro do subúrbio carioca, escutei histórias sobre um Nelson convertido a quem
Dona Teresinha conseguia atribuir crimes, mas não conseguia atribuir monstruosidade. A
transformação espiritual dele importava à minha interlocutora porque sustentava o olhar
voltado às qualidades morais de um homem que já não era como um dia foi. Ainda que
percebesse que Dona Teresinha justificava a si mesma a plausibilidade da sua relação
alocando no passado o mal provocado por Nelson, demorei a entender que tal perspectiva
dependia de um investimento afetivo intenso, explícito e não redutível à amizade. Por falta
de termo melhor, uso a ideia de affair para descrever uma relação de cunho romântico, ainda
que beijos e coito jamais tenham acontecido, isto é, permanecessem no horizonte como uma
possibilidade real e fossem uma fantasia já em curso. Eu notava o prazer que Nelson
provocava em Dona Teresinha na maneira como ela falava sobre ele; no movimento que o
seu corpo ensaiava junto às palavras; nos suspiros que, ao serem abafados, desaguavam em
sorrisos. O trecho a seguir, gravado meses depois do falecimento do amigo dessa senhora em
um hospital em Resende, local onde ele viveu com a sua família e praticou diversos crimes,
permite entrever algumas das colocações que sustento.
123

Porque, no final das contas, esse homem que foi uma pessoa tão má antes
de ser pego, ele se tornou uma pessoa, assim, muito… é… como é que eu
vou classificar? Uma pessoa que se você não conhecesse o passado dele,
você jamais poderia imaginar que aquela pessoa tinha se tornado assim uma
pessoa tão boa, tão educada, tão sensata. […] Ele se tornou uma pessoa boa.
Ele era cavalheiro, ele era aquela pessoa… que hoje em dia não existe isso.
Se eu vou sentar em um restaurante, estou acompanhada, eu não vejo
nenhum dos mais jovens se levantar, levantar não, puxar a cadeira, esperar
a pessoa se sentar e empurrar. Um táxi, um carro, seja lá o que for, um Uber
ou parecido, ele também saía, via e ia à porta pegar a pessoa e tal. Enfim…
[…] Até que eu, às vezes, falava para ele: “olha só, vamos parar com essa
sedução porque para mim não dá não”. Aí, ele ria. Ah, mas um dia vai dar.
Ele brincava falando. […] Ele chegou a me dizer, concluindo, quando ele
estava lá em Resende, que foi preciso nós nos separarmos para ele saber
que ele estava mesmo muito apaixonado por mim. Ele chegou a falar isso.
Aí eu falei, “pronto, foi para Resende e perdeu o juízo”. […] Eu não sei se
eu fiquei tocada por ele, por saber que ele estava de novo no hospital
internado, aí o que eu fiz: eu, digo, quer saber, eu vou vê-lo, de repente ele
tá querendo até se despedir. A minha cabeça funcionou assim. (Dona
Teresinha, em entrevista realizada em 2018).

Uma vez que o aspecto crítico dos estupros se confundia com um affair vivido em
idade avançada, Dona Teresinha fazia questão de evidenciar a sua lucidez e a razoabilidade
das decisões que tomou antes mesmo de Nelson descobrir o câncer de próstata que resultou
em sua morte. Ciente de que ele, além de estuprar mulheres, havia assassinado a um homem
e praticado furtos, Dona Teresinha se precaveu: deu tempo ao tempo, somente deixou Nelson
dormir na sua casa quando adquiriu a certeza de que ele a trataria bem, independentemente
do que diziam os demais. Conforme ele foi ficando, o incômodo da filha dessa senhora se
engrandeceu. Faço referência a Laura não porque ela tenha feito algo que impedisse em
definitivo a continuidade do affair, e sim porque o fato dela não suportar a relação de Nelson
com a sua mãe gerava consequências, isto é, o desconforto de Laura importava a Dona
Teresinha a ponto dessa última enunciá-lo a mim em diversas ocasiões. Como conheci apenas
através das palavras a não aceitação de um affair com um homem cujas marcas
estigmatizantes se acumulavam, descrevo-a menos como uma possível prática de cuidado
filial do que como um incômodo, ou até mesmo uma dor, sentido por Dona Teresinha em
função da sobreposição da figura do monstro à figura do cavalheiro. Se é notório que o meu
apelo à ideia de fratura provém nesse caso da cisão entre Nelson e Laura, talvez seja menos
evidente que essa cisão produzia fraturas subjetivas nas recordações de quem encontrou em
um cliente laço mais denso do que o julgado adequado pela sua própria família.
Nem mesmo Nelson cheguei a encontrar pessoalmente. Ele já estava internado, quase
falecendo, quando o vi em algumas fotos – magérrimo e literalmente acorrentado a um leito
124

de um hospital situado na cidade do Rio de Janeiro. Foi Dona Teresinha quem lutou, junto a
Marcela, única filha de Nelson que o visitava, pela transferência dele a um hospital em
Resende. Como não acompanhei a tramitação do caso, não conheço as argumentações
jurídicas que fundamentaram essa transferência. Sei somente que essa senhora, mesmo
esgotada pela peregrinação de uma instituição a outra, chegou em Resende ainda em tempo
de se despedir do seu amigo e abraçar a filha dele. A relação dela com Marcela estava
revestida por carinho e também por uma assimetria que não as fazia pertencerem a classes
sociais diferentes, porém sinalizava que uma era mais pobre que a outra. Dona Teresinha
percebia essa assimetria e a utilizava de modo a adotar uma postura compreensiva em relação
à filha de Nelson. Uma vez que essa última podia fazer pouco pelo seu pai, a primeira sentia-
se impelida a fazer tudo o que podia, pois não tinha filhos pequenos, tinha um pouco mais
dinheiro e um cartão de transporte gratuito, dada a idade avançada. Talvez seja possível
pensar que a compaixão fluía nesse tecido relacional em dois níveis assimétricos: o primeiro
é caracterizado pelo olhar de Dona Teresinha em relação a Marcela e o segundo pelo olhar
das duas em relação ao moribundo. Ainda que a compaixão seja um sentimento hierárquico
(Fassin, 2012), dependente de uma hierarquia para que possa nascer, as assimetrias em
questão assinalavam também um reconhecimento implícito das vulnerabilidades
compartilhadas. Essas vulnerabilidades, antes de serem lidas aqui em um sentido ontológico,
revelam marcas sociais vividas de uma maneira um tanto cristã. Elas contam sobre o dar aos
pobres e o fazer pelos inválidos como repertório moral e sentimental de fundo religioso, mas
atualizado na lida cotidiana sem referências explícitas a essa origem.
Quando Nelson morreu, Dona Teresinha foi até a Defensoria levar a certidão de óbito
dele, algo totalmente dispensável do ponto de vista formal dos procedimentos
administrativos, mas fundamental para quem estava interessada em fazer um último gesto em
nome de alguém benquisto. Ao mesmo tempo que entendi o quão importante era acabar com
a dívida de Nelson com a Justiça levando até uma de suas instâncias um papel que certificava
que a vida do condenado havia acabado, não havendo portanto corpo a ser punido, percebi
que a minha interlocutora parecia aliviada por não mais ter que justificar a terceiros os seus
sentimentos. Esse tormento tinha acabado. Ela me disse que fez tudo o que pôde e que, dali
em diante, era com Deus. Acredito que o já sempre árduo trabalho de luto implicava no caso
dessa senhora um contato acentuado com uma memória fraturada, isto é, dividida
inexatamente entre as boas lembranças de Nelson e o peso das demandas para que ele fosse
lembrado como um monstro. A ausência do corpo vivo desse homem abria espaço para que
125

a fala da filha de Dona Teresinha, Laura, se alastrasse em termos subjetivos. Em outras


palavras, assim que Nelson morreu, as memórias positivas que sua amiga havia cultivado
sobre e com ele colidiram mais intensamente com a figura do monstro. Estou menos
responsabilizando Laura pela fratura subjetiva do que demonstrando o teor e o vigor do
repertório social que, ao ser falado por ela, provocava alguma dor e algum incômodo em
Dona Teresinha. Era com essa fala que minha interlocutora tentava se conciliar para viver o
luto. E era voltando-se à filha de Nelson, cada vez mais distante em função da morte daquele
que as unia, que Dona Teresinha buscava suporte para o recém iniciado trabalho de luto.
Deve estar claro que a oposição entre Marcela e Laura é uma colisão entre repertórios sociais;
trata-se de pessoas que marcavam os lados opostos de uma fratura que, no plano ordinário,
afligia, mas nem por isso deixava de permitir à vida seguir em um ritmo viável.
Essa sequência de acontecimentos sugere que a figura do monstro nunca termina de
ser desenhada, de tal modo que é sempre possível colorir o seu interior com tintas diferentes
daquelas que pintam o horror, o medo e o pânico. Porém, gestos e palavras contrárias a essa
atribuição majoritária de valor negativo estão destinados a uma luta sem fim, a mais serem
vencidos do que vencerem nas situações múltiplas e infinitesimais da vida cotidiana. Talvez
não seja exagero dizer que a própria figura do monstro é ou faz as fraturas relacionais, quando
alguém por alguma razão e/ou imponderável se vê afetivamente envolvido a um homem
condenado por um ou mais crimes sexuais. Acredito ainda que a conciliação com esses
homens é um trabalho árduo, dentre outras razões, em função de um repertório social
centrado na reatualização das demandas pelas práticas de humilhação, a ser explorado no
capítulo 5. O desejo de punição parece estar vinculado a um desejo de rebaixamento do outro
que não cessa, a uma dívida que não termina de ser paga porque esse desejo de rebaixamento
repercute mesmo quando a punição acaba com a vida do condenado. Voltarei a esse assunto
adiante, agora quero apenas evidenciar que o fato de Dona Teresinha saber que a dívida de
Nelson não se esgotaria, seria com Deus quando deixasse de ser com a Justiça, fazia com que
ela mesma pagasse pelas maldades que não cometeu: indo de um lado ao outro lutar pela vida
de Nelson, mas também ao ter que fazer alguma coisa com as lembranças felizes dele, ou
melhor, com as lembranças que Marcela a permitia cultivar, mas não Laura não.
126

3.3 A recusa e a aceitação de um mandato

Quando Lambek (1996) argumenta que a memória é uma prática moral, ele está
pensando que as narrativas são veículos da memória. A relação entre Dona Teresinha e sua
filha bem expõe o papel que o discurso dessa última exerceu sobre a primeira de modo fazer
com que um repertório simbólico, precisamente o discurso sobre a monstruosidade do
pedófilo, ocupasse na memória de Dona Teresinha um espaço renovado após a morte de
Nelson. A força da repetição de um texto social por uma filha em um momento oportuno e
crítico, do ponto de vista subjetivo, faz ver que a memória, antes de ser individual, é
intersubjetiva. Faz ver que a discussão sobre família e memória implica a compreensão das
transmissões geracionais. Como destaquei o papel da fala de uma geração mais jovem sobre
aquela que lhe é imediatamente anterior, passo a destacar a transmissão das recordações, nem
sempre conscientes, dos mais velhos aos mais novos. Grace Cho (2008) é uma das autoras
que, a meu ver, melhor descreve a ideia de que o inconsciente dos outros nos assombra. Sua
análise é particularmente importante aqui porque difere da ênfase de Lambek na qualidade
pragmática do relembrar e centra-se nos conteúdos não elaborados da experiência, porém
presentes nas condutas dos sujeitos. Cho usa a imagem não palpável do vento para contar-
nos sobre a repercussão do trauma vivido por sua mãe na geração da autora, filha que viveu
os efeitos da diáspora coreana na casa em que cresceu. Se parto da ideia de trauma é porque
contornando-a espero reconhecer algumas das suas potencialidades e alguns dos seus limites
no que tange à compreensão das transmissões geracionais.
A diferença entre a família de Grace Cho e a de seus vizinhos norte-americanos
revelou-se cedo para ela, ainda que a sua mãe se recusasse a falar sobre o que constituía essa
diferença. Através da qualidade ativa do silêncio, fomentava-se a reprodução transgeracional
do trauma, isto é, a recusa em falar sobre a vida anterior ao casamento com um soldado
americano contava sobre o assombro que a figura da noiva de guerra, aquela constituída a
partir de estupros, mortes e assimetrias, produzia na intimidade das relações familiares. O
efeito do assombro é produzido não exatamente pelo trauma original, o da guerra, e sim pelo
silêncio em torno dele. Os silêncios transportam os ventos infelizes, veiculam o que não é
permitido que uma geração conte a outra através das palavras. Sem fazer justiça à enorme
capacidade de Cho em articular planos de análise distintos, o dos acontecimentos que marcam
as memórias das nações e o dos acontecimentos que marcam as pessoas e as famílias, destaco
uma pergunta: “que lugar melhor para enterrar um trauma social do que no espaço bem
127

guardado da família?” (CHO, 2008, p. 14)37. Acredito que essa pergunta na análise da autora
fomenta uma descrição dos custos da guerra para as famílias, o que é relevante, nevrálgico,
porém distante dos meus dados empíricos. O meu interesse nela tem mais a ver com a
oposição entre a representação da família enquanto espaço traumatizante e a representação
da mesma enquanto espaço harmônico – ambos os discursos, sabemos, são acionados com
frequência, por motivos éticos e políticos diferentes e por atores distintos em contextos
variados. Menos do que advogar em favor ou contrariamente a cada uma dessas
representações, o meu objetivo é o de eclipsá-las com ideia de conciliação fraturada, algo que
somente pode existir no ponto onde os tormentos da vida encontram algum abrandamento,
mesmo que muito custoso.
Enquanto Cho enfatiza o trauma enquanto conteúdo psicossocial móvel, Duarte
(2011) apela a uma categoria que, derivando também de um fundo psicanalítico, não parece
comprometida a priori com a ideia de efeito negativo transmitido de geração a geração.
Sendo “uma configuração imaginária projetiva que é transmitida aos descendentes (ou a
alguns deles) de um modo não completamente explícito ou consciente” (DUARTE, 2011, p.
16), o “mandato” caracteriza um conteúdo cujo sentido moral não está contido na própria
palavra que designa o processo de transmissão. Há algo arbitrário na ideia de mandato que
me interessa, pois, para além dessa ambivalência valorativa a que me reportei, o mesmo pode
ser radicalmente recusado pelos sujeitos, uma vez que podem existir condições materiais,
simbólicas e psicológicas que impossibilitam que uma demanda herdada seja atendida. Estou
buscando chamar atenção a dois problemas vinculados: (1) a questão do valor moral daquilo
que é passível de ser transmitido de uma geração a outra; (2) a possibilidade da reprodução
de um conteúdo psicossocial falhar em um registro da vida, mas bem fluir em outro registro.
Faço essas considerações lembrando que o termo “trauma” foi utilizado por Alice, filha da
senhora Lurdes, com o intuito de qualificar negativamente a forma como a sua mãe e outros
parentes lidavam com os estupros cometidos pelo seu tio Ivan contra a própria filha e uma
das irmãs dele, a única com “problemas psicológicos”. Faço referência a essa palavra porque
é preciso atentar ao que ela quer dizer ao ser moralmente utilizada, isto é, ao ser descrita
como “dificuldade de admitir o óbvio”. O trauma é nesse sentido uma impossibilidade de
verbalizar a violência sexual que, ao não ser reproduzida por Alice e suas primas, tornava-as
diferentes dos parentes da geração anterior que negavam e/ou silenciavam os estupros

37
No original: “what a better place to burry a social trauma than in the closely guarded space of the family?”.
128

cometidos por Ivan. Refiro-me a Lurdes, sobretudo. Selecionei dois trechos de uma entrevista
que realizei com Alice que me permitem desdobrar a questão da reprodução inexata do
mandato de silenciamento pela geração mais jovem e ir além do enquadramento da geração
mais velha como traumatizada.

É esse o ponto. Eu acho que tem gente da minha família que acredita muito
nele [Ivan] e tem gente que não quer enxergar a verdade, não quer assumir
que você tem uma pessoa com problemas psicológicos que levam a abusar
de crianças, um pedófilo na família. É uma parada que a minha família
nunca vai admitir, de jeito nenhum. Então, eu acho que a minha mãe é uma
delas, que… Ela acha que o tempo que ele ficou preso serviu para ele mudar
porque ele se converteu, aceitou Jesus e não sei o que e não sei o que lá. E
meio que zerou o passado dele. Eu no fundo acho que a minha mãe sabe
que é verdade. Só que nunca vai assumir. É o irmão dela, o irmão dela se
regenerou, então…

É o que te falei. Se você conversar com todos os meus tios, eu acho que se
você conseguir cavar ali, você tira deles que todo mundo acredita que sim,
só que ninguém nunca vai assumir, sabe? Meus primos, não. Tipo, eu e
minhas primas a gente fala abertamente que a gente acha que aconteceu, e
acabou. Mas, tipo, a gente já conversou uma vez entre a gente. Acho que
quando ele estava para ser solto e tudo mais. Nesse processo aí. E aí, a gente
conversou… Temos a mesma linha de raciocínio? Sim, temos. A gente vai
falar sobre isso com o resto da família? Não, porque nêgo vai bater na gente.
(Alice, em entrevista em 2018).

Os dois trechos sinalizam que Lurdes abafava as discussões sobre estupros no seio
familiar que passassem pela culpabilização de Ivan e, ao mesmo tempo, produzia o foco na
regeneração espiritual e moral dele. Desse ângulo, a incapacidade de admitir a violência
sexual está vinculada não a um trauma derivado do passado, e sim uma demanda do presente
em que a conversão religiosa preponderava. Era perceptível o incômodo que o discurso
religioso de Lurdes gerava em Alice, pois essa última não aceitava, por exemplo, que Ivan
fosse comparado a um personagem bíblico chamado Jonas, profeta que, tal como Ivan, teria
clamado pelo perdão divino após ter se arrependido pelos erros que cometeu. Questionar e
não aceitar são aqui formas não radicais de contraposição ao que era representado como
obscurantismo religioso. Alice contrapunha-se bufando. Talvez tenha ido além desse gesto
em outros momentos, o que não soube e nem presenciei. Ela bufou inclusive quando lhe
perguntei se assim como a sua mãe era evangélica e também se conhecia a história de Jonas.
Uma vez que Lurdes argumentava que seu irmão fora injustamente condenado, os pecados
aos quais ela se referia eram outros que não os estupros: bebedeiras, jogatina e mulheres.
129

Ivan seria Jonas porque, teimosos, ambos insistiram em não seguir a Palavra e, por isso,
terminaram disciplinados por Deus através de punições aptas a gerar abnegação e obediência,
estados de espírito que seriam indispensáveis à misericórdia como recompensa divina.
Calando-se, Alice facultava os almoços de família. Foi o marido dela quem a ensinou
a escutar e a abstrair as colocações religiosas, mas não somente essas. Em uma dessas
ocasiões de comensalidade, a única em que estive presente, o filho dela perguntou: “mamãe,
o que é pedofilia?”. Sentados à mesa, estávamos eu, ela, sua irmã, seu marido, seu tio e sua
mãe. A criança estava brincando sozinha próxima de todos, mas tenho a impressão de que
somente eu vi quando Alice, que estava perto dele, estendeu os braços e tapou-lhe a boca. O
rosto dela expressava um sorriso debochado, um tanto contido, feição que me lembrava o seu
jeito meio irônico de colocar-se frente à sua mãe e mesmo de narrar a história da sua família,
como se Alice estivesse sempre dizendo a Lurdes alguma coisa em tom menor e, por isso
mesmo, de maneira pouco audível; coisas ditas para não serem plenamente escutadas. Vista
desse ângulo, a comensalidade implicava um silenciamento tão imposto quanto ativamente
buscado, deixando apenas pequenas brechas para a circulação dos ruídos toleráveis. Ainda
que não saiba a frase exata dita por Alice, sei que sinalizou ao seu filho que depois falariam
sobre o assunto. O momento não era apropriado. Os olhares que trocamos nesse ínterim
rapidamente ficaram para trás. Voltamos a comer lasanha e a conversar sobre amenidades. O
silenciamento da criança tem menos a ver com o soprar de um vento infeliz do que com uma
atitude conciliatória, um esforço para evitar que versões opostas sobre estupros colidissem e
impossibilitassem a comensalidade. O que as feições de Alice mais guardavam do que
contavam era que Ivan talvez tivesse estuprado apenas uma das suas filhas porque a outra
parecia demais com ele; que ninguém da família o deixava sozinho com as crianças; que a
irmã de Lurdes que fora estuprada contou para todos o que viveu, mas foi silenciada pela sua
mãe; que Alice e suas primas, quando crianças, não gostavam de sentar no colo do tio, porque
de um modo ou outro imaginavam o que ele poderia fazer.
A atitude conciliatória de Alice soldava como podia uma fratura geracional. Esse
aspecto sociológico da fratura somente se tornou evidente para mim quando percebi que
minha interlocutora conversava comigo mobilizando diversos símbolos de juventude, tais
como festas, cerveja e mesmo o vanguardismo das atitudes “descoladas”. A identificação
etária produziu tanto a possibilidade de eu contar para Alice sobre os machismos do seu tio,
precisamente sobre as referências que ele fazia a mulheres como “pratos de comida” – ora
“quentes” e saborosos, ora “frios” e indesejáveis –, quanto dela me contar o que Lurdes
130

jamais me disse: que Ivan havia estuprado uma das suas irmãs. Creio que eu e Alice
pertencemos a uma geração que vem sendo ensinada que estupros podem ser combatidos
através da enunciação, a considerar pela disseminação de campanhas como “#metoo”38 e
pelas passeatas em que vítimas narram as violências sexuais que sofreram. Não tenho
dificuldades de imaginá-la dando suporte político a causas e a eventos vinculados às pautas
feministas, mas tenho dificuldade de vê-la enunciando em público os estupros praticados pelo
seu tio. Minha impressão é a de que, já que as estratégias de combate ao estupro por ela
acionadas derivavam da não aceitação totalizante do mandato de silenciamento, era
necessário encontrar os espaços onde a enunciação da violência sexual não colidisse com a
narrativa de injustiça de Lurdes e seu irmão. O aspecto arbitrário do mandato revela-se nesse
caso através de uma negação da reprodução do silêncio em toda e qualquer circunstância e
da aceitação do valor deste último nas situações de comensalidade. A fratura geracional não
é uma cisão absoluta, e sim um corte sociológico que carrega o peso de uma demanda
herdada, que, ao se reproduzir, perde algumas das suas texturas mais essenciais.
Alice mimetizava o silêncio de Lurdes sem manifestar qualquer interesse no
arrependimento de Ivan, isto é, ela performatizava em nome da sua mãe um silêncio que
facultava a criação de um espaço para a enunciação do enquadramento religioso que fazia do
seu tio um arrependido, ainda que nele não acreditasse. Se havia algo consciente no esforço
dela para culpabilizar o seu o tio, talvez houvesse também algo inconsciente no apego que a
fazia voltar-se à sua mãe apresentando-se conciliada com Ivan e a voltar-se a Ivan
performatizando a relação dele com Lurdes. Através dos silêncios e das construções desse
homem como um personagem bíblico, facultava-se ainda uma chance para o reconhecimento
dele como um arrimo de família, alguém que propiciou a vinda da família para o Rio de
Janeiro décadas atrás e, mais do que isso, retirou a própria mãe de um ciclo de violência
encabeçado pelo pai; não somente porque ela estava submetida à violência física, mas
também porque, suspeitava Alice, seu avô teria matado o primeiro marido da sua avó –
história que ela não conhecia bem. Há algo que se perde na comunicação, que não se
completa, mesmo quando desejamos genuinamente responder a uma demanda que nos

38
Movimento contra o assédio sexual e a violência sexual que, através das plataformas de interação online,
alcançou popularidade global. Estão vinculadas à “#metoo” as denúncias de assédio, estupro e agressões sexuais
de mais de oitenta mulheres da indústria cinematográfica norte-americana contra Harvey Weinstein. Na página
dele na Wikipédia (“HARVEY…”, 2020), classifica-se como “efeito Weinstein” denúncias similares a homens
poderosos em todo o mundo.
131

interpela. Se o compartilhamento intersubjetivo tem limites, se aquilo que uma geração


anterior demanda nunca se reduz exatamente à percepção que a geração posterior consegue
forjar a respeito do que foi demandado, a sensação de não reconhecimento é parte do
reconhecimento, parte do processo de transmissão dos mandatos. Diria que o reconhecimento
que Alice ofertava a Lurdes calando-se e Lurdes a Ivan, também calando-se, mas por outras
razões, era apenas o não reconhecimento que eles podiam suportar (BERLANT, 2010) 39.
Considerando que a noção de memória como prática moral enfatiza os
enquadramentos conscientes das lembranças e a noção de mandato está mais voltada às
transmissões inconscientes, argumento que os tipos de conciliação fraturada a que me refiro
derivavam da combinação de elaborações simbólicas, intersubjetivas e intrapsíquicas
dificilmente distinguíveis e impossíveis de serem totalmente comunicáveis no fluxo da vida
ordinária. Quando Das (2018) propôs observamos as “texturas da vida”, expressão que não à
toa remete àquela usada por Lambek (2015) e citada no primeiro capítulo desta tese,
“tonalidades da vida”, ela pensava que nenhum cotidiano se oferece ao conhecimento de
modo direto, já que as coisas de todos os dias comportam opacidade e anunciam a sua
presença mais ou menos como o tempo que, não sendo palpável, exibe a si mesmo a partir
do trabalho que efetua nos corpos e nas paisagens. Como o cotidiano precisa ser imaginado,
não existe como fato empírico dado, as modalidades de imaginação dele mesmo apontam
para os diferentes modos como a intimidade pode ser descrita. Cada um dos três casos
etnograficamente construídos aqui aponta para formas particulares de conciliação fraturada,
mas juntos fornecem elementos que caracterizam a ambivalência como marca principal das
fraturas relacionais que, se encontravam alguma resolução conciliatória, não deixavam de
afetar conforme a vida avançava com as suas durezas. Descrevendo conjuntamente fraturas
e conciliações, espero ter demonstrado como as minhas interlocutoras não permitiam que os
tormentos que vivenciavam se tornassem a totalidade das suas vidas.

3.4 Um ou dois comentários sobre violência

Pouco antes de irmos olhar liquidificadores numa loja do shopping onde estávamos,
Lurdes ligou para o seu irmão e requisitou que ele fosse ao nosso encontro. Ivan, mesmo sem

39
No original, “recognition is the misrecognition you can bear” (BERLANT, 2010, p. 96).
132

investir firmemente numa leitura de si enquanto Jonas, assentia às associações propostas por
ela. Ainda que o foco na conversão religiosa permitisse que esses irmãos cultivassem a
perspectiva segundo a qual o presente pode ser separado do passado, a narrativa de Ivan
dificultava a construção de uma masculinidade regenerada. Assim que sua irmã foi embora,
ele me deu a entender que era responsável pelo que havia vivido e estava vivendo. Sua fala
perpassava a violência dirigida contra a sua então esposa – a considerar pelo episódio em que
Tuane o xingou de “veado” em público, coisa que “homem não admite” e demanda retaliação.
No meio da briga, depois de apanhar, ela correu para uma delegacia. Ele foi atrás. Lá,
terminou preso. Não por causa do conflito, mas em função de uma denúncia de homicídio
que não foi para a frente. Ivan afirmou que era/foi policial e que Tuane, no mesmo dia em
que foi à delegacia para denunciá-lo, se “arrependeu” e levou comida para ele. Contou
também que permaneceu casado porque estava esperando que a sua filha fizesse dois anos.
A relação perdurou. Sua esposa, porém, foi ficando “largada”, e outras mulheres não paravam
de se oferecer a ele como “prato de comida quentinho”. Bater em Tuane e traí-la foi para Ivan
o mesmo que criar o “inimigo” dentro de casa. Dias antes de acusar o seu marido de ter
estuprado a própria filha, Tuane soube que ele estava saindo com outra mulher e que pediria
a separação. Ouvi o final dessa narrativa religiosa sobre a responsabilidade masculina pela
vingança feminina andando até a praça de alimentação onde paguei um hambúrguer para Ivan
– momento em que, já não acordo bem, a criança, hoje uma jovem, que ele teria estuprado
lhe telefonou ou ele telefonou para ela: “papai está com saudade, filha!”.
Ao passo que a transformação narrativa de mulheres em alimentos pode ser pensada
como um processo metafórico de sexualização (o ato comer sendo o ato de foder) e de
animalização (a comida sendo a presa), a comensalidade aparece integrada à violência
(TAUSSIG, 2002). Conversar com Ivan implicava ser movido para dentro da zona nublada
onde as fronteiras entre os símbolos da violência e as violências concretas eram porosas, mais
conectavam que distinguiam os tapas por ele admitidos, os estupros que negou e as palavras
machistas que declarou. Nos relatos dele, a masculinidade disposta ao coito era aquela que,
se não violava sexualmente, violentava com socos e agressões verbais. Ivan encontrava
respaldo para sua fala no meu silêncio, espaço suficiente para a reprodução do prazer que ele
sentia ao falar sobre as mulheres a serem comidas e ao comer alimentos reais. Nunca consegui
saber se ele dizia o que dizia porque via em mim semelhante disponibilidade ao sexo, ainda
que direcionada a homens e não a mulheres, ou se a enunciava a sua virilidade para me
erotizar como presa. Se, por um lado, é legítimo dizer que a minha sexualidade operava nesse
133

contexto facultando essas duas possibilidades interpretativas, não sendo necessário optar por
uma ou outra, por outro lado, é importante considerar que essa imagem bem-acabada do
predador provinha também do meu desconforto, de uma sensibilidade que Ivan parecia
perceber; creio que a ponto de saber que era crucial envelopar aquela situação de
comensalidade violenta com referências afetivas à sua filha e declarações de saudade. O
predador que ele reconhecia em si mesmo e que fazia questão de me apresentar sempre soube
diferenciar cria de presa e hoje, mais do que nunca, sabia diferenciar afeto de violência.
O fato de Ivan deixar tão visíveis as diferentes formas de violência que praticava,
algumas por ele mesmo reconhecíveis e outras profundamente naturalizadas, diz sobre uma
masculinidade que quer ser reconhecida como viril, mas não quer que estupros sejam
encarados como o resultado último do machismo. Essa dissociação entre machismo e
violência está vinculada à banalização da referência a mulheres como pratos de comida e à
veemente negação da disposição ao coito forçado, afinal, os estupradores são os outros.
Justamente porque o repertório de gênero evocado por Ivan é normativo, chamo atenção ao
risco de tornarmos a masculinidade atuada por ele como um modelo privilegiado para a
descrição da figura do estuprador e ainda ao risco de estabilizarmos etnograficamente uma
única masculinidade em homens de carne e osso, como se as performances de gênero não
variassem conforme os contextos e as pessoas em interação. Vale lembrar que Ivan também
é uma masculinidade provedora a quem alguns querem ofertar reconhecimento e que, se as
masculinidades viris estupram, também o fazem as masculinidades cavalheirescas,
injustiçadas e/ou moribundas. O ponto é que, frente a cada uma delas, se performatizadas por
homens conhecidos ou não, se doentes ou não, se vivos ou mortos, se causaram prejuízos que
julgamos toleráveis ou não, as nossas sensibilidades e disposições éticas, bem como as dos
nossos(as) interlocutores(as), variam e isso tem de ser levado em consideração para que a
análise das relações de gênero não incorra em tipologizações que perdem o lastro com a vida
ordinária, isto é, aposte mais na rigidez dos modelos do que nas relações tal como vividas.
O leitor, a essa altura, já deve ter percebido a centralidade da relacionalidade nesta
tese, o que culmina em descrições sobre o que acontece quando as violências, sobretudo
sexuais, baixam ao ordinário e a vida, a duras penas, segue para frente. Essa preocupação me
levou a não restringir a análise à relação entre masculinidades e violência e a jogar luzes
sobre as maneiras como as relações de gênero de modo mais amplo incorporam e
transformam os sentidos e os efeitos de estupros, socos e xingamentos. Se pude perceber algo
é que aos sentimentos “atuais” das(os) minhas(meus) interlocutores acoplavam-se as
134

violências passadas. Quando Lilian respondia ao chamado do seu pai evocando o perdão e
restringindo o ressentimento, ela estava em contato com a violência sexual à qual fora
submetida. Quando Dona Teresinha enfrentava a fala da sua filha para viver o luto pela perda
de um amigo que era mais que amigo, ela estava em contato com o repertório social que não
queria que Nelson fosse qualquer outra coisa senão um estuprador. Já o tecido relacional
habitado por Alice, Lurdes e Ivan evidencia que, por mais que se tente, as violências não
podem ser plenamente deixadas no passado, já que o passado nunca termina de passar. Estou
sugerindo pensarmos que as violências são plásticas: como não conhecem formas fixas,
deslizam-se nos interiores dos tecidos relacionais sempre em direção ao atual, precisamente
em direção aos sentimentos, demandas e urgências que nascem no presente. Evito a metáfora
do vento evocada por Cho (2008) porque, embora esteja falando sobre algo que sopra do
passado em direção ao futuro, busquei expandir as formas assumidas pela violência para além
do trauma. Enquadrá-la somente nessa categoria seria o mesmo que empalidecer a sua
plasticidade. Penso na maleabilidade necessária à capacidade das mais variadas violências se
infiltrarem e florescerem até mesmo nos afetos aos quais costumamos atribuir valor moral
positivo.
Considerando que o perdão é um desses sentimentos, algumas ressalvas devem ser
feitas. A mais geral é a de que descrever o perdão como uma resposta interpessoal possível
não é o mesmo que idealizá-lo como norma, nem inventá-lo como solução para as violências.
Ao contrário, venho defendendo que esse sentimento é inseparável das violências passadas,
pois ele as transporta para o presente ao mesmo tempo que fornece algum alívio àqueles que
algo sofreram. Essa ênfase na relação entre os sentimentos atuais e as violências de outrora
me parece fundamental à demonstração de que existem vivências que não necessariamente
transcendem o abuso e, mais ainda, à fomentação da crítica à ideia de que haveria um eu
inteiriço e anterior ao dano ao qual se poderia voltar ou que poderia ser integralmente
recuperado. Tenho Lilian em mente quando penso que a forma de afastamento que ela
procurava em relação ao dano, a evocação do perdão, era violenta e, ainda assim, potente o
bastante para não permitir que o dano causado por Edson se tornasse a totalidade da vida
dela. Uma vez que a violência é plástica, tão destrutiva quanto uma forma de vida, ela
desmantela as pessoas ao mesmo tempo que habilita modalidades de agência. Se não
podemos marcar como agência somente as práticas e os sentimentos que nos parecem
adequados, aqueles que “contribuem para o que analista vê como estruturalmente
135

[politicamente, diria] significativo” (LAIDLAW, 2002, p. 315) 40 , não podemos também


romantizar as formas de viração habilitas pelo dano. O perdão, a compaixão e o silêncio são
práticas e/ou sentimentos femininos, pesos e alívios que as minhas interlocutoras carregavam
e sentiam enquanto teciam relações com almoços difíceis de serem digeridos; lutavam contra
laudos psicológicos; e exibiam fotos que diziam “está morrendo, morreu”.
As sentenças condenatórias, como já enunciado, marcam ao longo desta tese o início
figurativo do envolvimento das mulheres em trabalhos hercúleos, generificados e desiguais.
São as feminilidades que cruzam as cadeias, e que através delas se deparam com a morte, as
que se perguntam quanto tempo há para reparar uma relação com um pai preso ou se ainda
há tempo para se despedir de um amigo acorrentado a uma maca. Essas perguntas comportam
outra, imediatamente anterior ao momento em que um curso de ação foi definido. O que fazer
diante da dor dos outros? (SONTAG, 2012). Não importa se as respostas das minhas
interlocutoras provieram da acentuação da reflexividade, como no caso de Lilian, ou da
disposição cultivada através da aproximação lenta, como no caso de Dona Teresinha; ambas
foram invadidas por um sentido de urgência. A morte é criadora de processos de socialização,
organiza os afetos (ELIAS, 2001). Não qualquer morte, mas a de um pai ou a de um amigo
em situação de extrema vulnerabilidade. O mal morrer gera efeitos sobre os sujeitos, sendo
um deles a compaixão que hierarquiza os saudáveis e os moribundos, mas que também os
iguala a partir do senso de finitude acentuado pelo visível definhar dos corpos. No limite, a
compaixão pode ser breve e quase descomprometida, como a que senti, ou ser de fato um
curso de ação como no caso de Dona Teresinha. Isso demonstra que para a pergunta de Sontag
não há resposta ética infalível, nem descolada dos contextos.

3.5 O impossível e o impagável

O perdão deve então tampar o buraco? Deve suturar uma ferida em um


processo de reconciliação? O bem dar lugar a outra paz, sem esquecimento,
sem anistia, fusão ou confusão? Por suposto, ninguém se atreveria
decentemente a objetar o imperativo da reconciliação. É melhor pôr fim aos
crimes e as discórdias. Mas, uma vez mais, creio que temos que distinguir
entre o perdão e o processo de reconciliação, esta reconstituição de uma
saúde ou de uma “normalidade”, por mais necessárias e desejáveis que

40
No original: “Only actions contributing towards what the analyst sees as structurally significant count as
instances of agency. Put most crudely, we only mark them down as agency when people’s choices seem to us
to be the right ones”.
136

possam parecer através de amnésias, do trabalho de luto, etc. Um perdão


“finalizado” não é um perdão, é somente uma estratégia política ou uma
economia psicoterapêutica (DERRIDA, 2003, p. 29)41.

Para clarificar o modo como penso a ideia de conciliação fraturada, volto ao tema do
perdão através de algumas colocações de Derrida (2003) que me parecem de extrema valia.
O argumento que mais me interessa é o de que o “perdão puro” apresenta-se como o
impossível, na medida em que se move sempre na direção do imperdoável. Quando uma
declaração de perdão acontece, já não estamos lidando com o impossível, mas somente com
aquilo que é passível de conciliação e, portanto, já encontrou alguma outra linguagem para a
sua realização: luto, alívio, anistia, esquecimento, qualquer que seja o termo utilizado para
definir negociações entre sujeitos em posições assimétricas. Isso não quer dizer que a ideia
de conciliação não seja objeto de valor social, ou que crimes e práticas de violência devam
ser legitimados, e sim que o perdão puro é louco. Trata-se de uma loucura do impossível. O
perdão puro, que também podemos chamar de incondicional, é estranho a qualquer justiça.
Não conhece critérios, desafia linguagens, ignora as matemáticas afetivo-morais, quando não
as ordens jurídicas, que insistem em contabilizar os danos sofridos e com base nessa
contabilização estabelecem ou não linguagens, parâmetros e estratégias de compensação. A
loucura à qual Derrida se refere tem a ver com a gratuidade de um perdão que, se replica o
amor infinito de Deus, tende a esbarrar com as demandas por performances de
arrependimento nos meandros da vida ordinária e as formas de regulação estatal do dano e
sua compensação.
O autor, apontando e questionando os limites das elaborações estatais do perdão,
sugere a existência de processos geopolíticos que abusam desse sentimento. Para descrever
esse abuso, ele utiliza inclusive de trechos do depoimento uma mulher na Comissão de
Verdade e Reconciliação da África do Sul. Disse ela: “uma comissão ou um governo não
pode perdoar. Somente eu, eventualmente, poderia fazê-lo. (And I am not ready to forgive).
E não estou disposta a perdoar – ou pronta para perdoar” (DERRIDA, 2003, p. 22-23)42.
Como não estou focalizando na discussão sobre os processos políticos e institucionais em

41
No original: “¿El perdón debe entonces tapar el agujero? ¿Debe suturar la herida en un proceso de
reconciliación? ¿O bien dar lugar a otra paz, sin olvido, sin amnistía, fusión o confusión? Por supuesto, nadie
se atrevería decentemente a objetar el imperativo de la reconciliación, esta reconstitución de una salud o de una
“normalidad”, por necesarias y deseables que puedan parecer a través de las amnesias, el ‘trabajo de duelo’, etc.
Un perdón ‘finalizado’ no es un perdón, es solo una estrategia política o una economía psicoterapéutica”.
42
No original: “Una comisión o un gobierno no puede perdonar. Sólo yo, eventualmente, podría hacerlo. (And
I am not ready to forgive.) Y no estoy dispuesta a perdonar – o lista para perdonar”.
137

contextos nacionais precisos, deixo de lado a diferença entre o perdão interpessoal e as


formas institucionais de pedido de anistia por torturas, estupros, desaparecimentos,
assassinatos ou crimes contra a humanidade. Sinalizo, porém, que o caso colombiano é
bastante interessante para entender isso que Derrida chama de abuso, pois naquele contexto
a “desculpa política” tornou-se uma figura jurídica e diversos autores buscaram entender
quais os sentidos de perdão foram acoplados nessa figura por juristas, legisladores e setores
da população civil (CASTRO; ROJAS; AGUDELO; LÓPEZ, 2017). Aos meus propósitos,
basta dizer que para Derrida o perdão implica uma relação única entre a vítima e aquele que
a vitimou e somente ela pode decidir ou não perdoar. A presença de um terceiro – o Estado
– interessado no perdão seria uma intrusão de critérios de justiça no interior de um conceito
que em seu estado puro conhece nenhum sentido de justiça. A incondicionalidade do perdão
escaparia ao Estado e à própria vida ordinária, pois, uma vez baixada do plano ideal em que
se realizaria como loucura, adentraria no plano do possível, do negociável, da busca por uma
linguagem de pacificação social ou controle de tensões. O paradoxo seria então o de que o
perdão puro somente encontra sentido não tendo sentido algum, não sendo inteligível, visto
que, quando alguém começa a perdoar, o perdão condicional toma a cena. Nota-se, assim,
que a figura do terceiro, o mediador, está associada à impureza da vida ordinária e suas
matemáticas afetivo-morais.
O perdão condicional e o perdão incondicional seriam tão irreconciliáveis quanto
indissociáveis. O primeiro, para existir como tal, dependeria de uma idealização do segundo,
isto é, uma certa imagem do imperdoável regularia o perdão possível e se infiltraria na
maquinaria estatal. E o perdão puro seria uma loucura da qual as linguagens jurídicas e
políticas não poderiam e nem conseguiriam se apropriar completamente, pois comportaria
um tipo de enigma indecifrável, mistério ou segredo incompreensível. Derrida (2003) chega
a enxergar a si mesmo como dividido entre essas duas dimensões do perdão, senso que não
é exclusividade sua. Diria que Lilian encontrava-se frente ao mesmo dilema quando tentava
perdoar o imperdoável e, nesse movimento, terminava tornando o imperdoável sempre um
pouco mais perdoável. A questão é que, enquanto o autor quer conservar distinções que lhe
parecem importantes de serem compreendidas como radicais, minha interlocutora
aproximava de maneira bastante dolorosa o impossível de ser perdoado do possível. Quero
privilegiar essa segunda forma de lidar com ordens irreconciliáveis, porém indissociáveis,
porque ela bem caracteriza isso que estou chamando de conciliação fraturada: um perdão
impossível que, ao ser tentado, criava alguma chance de aproximação entre pai e filha,
138

mesmo sem quitar o ressentimento causado por estupros que se repetiram no tempo. A
perduração deste sentimento talvez nos permita ver o estupro como uma dívida impagável,
um dano que não termina de cicatrizar, ainda que se aprenda a viver com ele. O meu principal
interesse nas formulações de Derrida reside na possibilidade de sugerir que a dívida
impagável por vezes demanda de maneira obscena o perdão impossível. Se Edson pagava
parcelas do impagável com a sua enfermidade, com a proximidade da sua morte, e não com
cenas bem-acabadas de arrependimento, era Lilian quem pagava outras parcelas da dívida
dele com ela através da sua própria tentativa, repetitiva e falha, mas também um pouco bem-
sucedida, de perdoar o imperdoável.
Termino este capítulo lembrando que, ainda que a história de Lilian condense os
sentidos de dívida impagável e perdão impossível que estou abordando, a história de Dona
Teresinha com Nelson, mais precisamente a morte dele acoplada ao encontro marcado com
o tribunal divino, evidencia também o apelo a uma noção de dívida, certamente extensa, mas
não necessariamente impagável. Nesse caso, temos um condenado pela Justiça dos homens
que, já tendo pagado o que lhes devia, passaria a responder em um plano espiritual pelos
danos que causou em vida. A dívida é tão vasta quantas são as instâncias de cobrança da
mesma. Contudo, não tive como saber se Dona Teresinha acreditava que o perdão
incondicional era a obra mais bela do amor de Deus. O fato é que o perdão que ela deu a
Nelson, se é que nesse caso tratava-se mesmo de um perdão, situava-se inteiramente no plano
do possível, isto é, estava condicionado pelo reconhecimento de uma performance
cavalheiresca. Já a irmã de Ivan, Lurdes, essa sim falava sempre sobre um Deus capaz de
perdoar ao seu irmão. Ainda assim, a cena que fui habilitado a enxergar por essa senhora
religiosa é também a do perdão condicional, já que vinculado ao aprendizado de uma lição
de fé pelo pecador e, por conseguinte, ao seu arrependimento pela vida mundana: não pelo
estupro que narravam os documentos estatais, e sim pela falta de resistência às tentações da
carne, do jogo e do álcool. O caso de Lilian e Edson é crítico à minha argumentação porque
situa-se no ponto onde o perdão impossível encontra a dívida impagável e, exatamente a
partir dele, promove uma saída conciliatória produtora de fraturas relacionais e subjetivas.
Parte 2
141

4 DEFENDENDO O (IN)DEFENSÁVEL

Foi uma colega antropóloga que, no início de 2015, me sugeriu tentar iniciar a
pesquisa através da Defensoria Pública e me forneceu um contato com o NUSPEN, núcleo
que, como disse, é responsável pela realização de atendimentos jurídicos presenciais às
pessoas encarceradas nos presídios do Estado que não podem ir até a Defensoria. O meu
acesso aos homens condenados por crimes sexuais foi viabilizado por conexões interpessoais
que colocavam em relação diferentes instituições (universidade, presídios e Defensoria) e
movimentavam documentos e ideias sobre livros, projetos de pesquisa e pessoas, ora tratadas
com distanciamento, ora mencionadas tão afetivamente quanto a defensora irmã da minha
colega antropóloga. Pode-se dizer que o meu primeiro contato com o NUSPEN foi erigido
através da pessoalização capaz de singularizar pesquisadores ao posicioná-los em relações
específicas, ainda que estratégias de despessoalização tenham também sido alçadas e seja
fundamental a elas devotar atenção. Quando conheci a defensora de quem mais me
aproximei, Fabiana, já estava circulando pela Defensoria havia alguns meses e já tinha
frequentado com outra defensora, Paula, um presídio de regime fechado localizado no
Complexo Penitenciário de Bangu. Creio que é fundamental discutir sobre essas experiências
para que seja possível compreender como as relações interpessoais participam da governança
dos casos de homens condenados por crimes sexuais, e não somente. Esse ímpeto descritivo
está vinculado a uma aposta em pensar o fazer do Estado43 a partir das relações interpessoais,
bem como a partir dos estilos de exercício de poder demandados pelos administrados e/ou
atuados pelos administradores. Buscarei demonstrar que as relações contam algo sobre as
pessoas, mas também sobre o funcionamento cotidiano das instituições. Embora reúna neste
capítulo dados sobre um presídio e um manicômio judiciário, estou particularmente
interessado na compreensão relacional da governança exercida através do NUSPEN.
Cinco anos atrás, não sabia que os homens que cometeram crimes sexuais eram
destinados a presídios específicos, por motivos a serem debatidos no capítulo 5, tampouco
que dependeria dos defensores responsáveis por essas unidades para estar com aqueles por
quem buscava. Nos idos de 2015, pouco dias depois de uma reunião de apresentação em que

43
Aqui, diferentemente do capítulo 1, penso o Estado mais em sua dimensão de administração e
governamentalidade – um complexo de práticas rotineiras, saberes e institucionalidades que não deve ser
delimitado a priori –, do que como uma ideia ou entidade simbólica à qual as pessoas recorrem (ABRAMS,
2006).
142

expliquei o que imaginava que seria a minha pesquisa, a então coordenadora do NUSPEN
me colocou em contato com a defensora Paula, uma dentre outros defensores que atuavam
no presídio de regime fechado que frequentei. Ela prontamente me recebeu e demandou que
formalizássemos com a Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP) a possibilidade de
eu acompanhá-la durante os atendimentos jurídicos na unidade carcerária em questão. O
acesso que estava sendo fabricado com agilidade através de conexões interpessoais
desacelerou quando esses mesmos laços foram atravessados por documentos. As relações de
onde parti terminaram ocultadas nos papéis porque se supunha que a minha autorização de
entrada numa cadeia dependia de certa despessoalização da atividade de investigação
respaldada pela Defensoria. Digo “certa despessoalização” para fazer ver que o apagamento
de um laço tão originário quanto incipiente nos documentos não implicava a produção da
desimportância da pessoa no acompanhamento do fluxo dos papéis entre instituições. Passei
meses visitando a SEAP, telefonando para funcionários de setores diversos da administração
pública e assim forjando, aos poucos, uma persona demandante a ser esquecida junto ao fim
das insistentes ligações que fazia. Tornei-me temporariamente aquele menino da Defensoria
que insistia em saber sobre o ofício X. É possível pensar, a partir dessa sequência de
acontecimentos, em variações e transformações relacionais que facultaram a minha pesquisa:
primeiro, o pesquisador foi pessoalizado ao ser tornado o “conhecido de fulana”; depois,
despessoalizaram-se as relações ocultando-as nos documentos; e, por fim, procedimentos
foram pessoalizados com pouca veemência para “fazer andar” um documento.
Ninguém me chamou de menino, mas era claro que a minha diferença de idade em
relação aos funcionários da SEAP e a minha aproximação à Defensoria (afinal, o ofício que
comunicava o pedido de autorização da pesquisa fora remetido por essa instituição, e não
pela universidade) me transformava em um estagiário. Freire (2015), em dissertação de
mestrado sobre procedimentos relativos ao Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e
Diversidade Sexual (NUDIVERSIS), também da DPE-RJ, utiliza a nomenclatura “etnografia
estagiária” para se referir a essa dimensão etária a que fiz alusão e para refletir sobre os custos
e ganhos de uma investigação localizada sobretudo na sala destinada aos estagiários, isto é,
mais aproximada de quem ocupa posição mais baixa na hierarquia judiciária. Como as
maneiras como estive em campo variam – espero demonstrar duas delas ao longo deste
capítulo –, apenas em parte posso definir o meu trabalho em aproximação à nomenclatura
proposta pelo autor. Por ora, importa ressaltar que, no presídio em que estive com a defensora
Paula, era percebido pelos homens que ali estavam em cumprimento de pena como estagiário.
143

Isso porque, de um lado da mesa na sala de atendimento da Defensoria, sentavam aqueles


que seriam atendidos e, do outro lado, sentavam as estagiárias, a defensora e eu. Iniciarei
utilizando e acentuando a imagem do balcão que aproxima fisicamente e separa
hierarquicamente administradores de administrados e, posteriormente, buscarei considerar o
modo como forjei relação com uma psicóloga que me via não exatamente como estagiário, e
sim como um pesquisador demasiadamente relacionado a uma defensora com quem ela nutria
divergências. Essa aproximação à Defensoria trouxe notáveis consequências para o
desenvolvimento da pesquisa, pois terminei tornando-me alvo de questionamentos que
ultrapassavam em muito os meus atos.
Por que insistir no valor analítico da observação das relações interpessoais no que
tange à execução penal? Manuela Cunha (2004) há mais de uma década alertou-nos quanto
ao risco de reduzir as prisões a unidades analíticas pré-delimitadas. Parte do seu esforço foi
justamente o de demonstrar que a observação das conexões entre o interior e o exterior dos
presídios dependia da não reificação das fronteiras visíveis destes últimos. O alerta segue
válido, ainda que hoje as formas de pensar as conexões entre pessoas e instituições sejam
objeto de intenso debate. Os trabalhos de Godoi saltam-me aos olhos porque, além de
proporem a ideia de “vasos comunicantes” (2015) como resposta a essa discussão,
demonstram a relevância da compreensão do modo como os órgãos de justiça atuam na
administração das penas e, por conseguinte, das vidas nos presídios (2017a; 2017b). Uma das
suas conclusões – citarei apenas a mais relevante aos meus propósitos – é a de que, porque
em São Paulo as interações entre defensores e presos são “nulas”, ali opera uma tecnologia
de governo dos apenados à distância. Numa ponta, nos gabinetes da Justiça, existem
defensores chutando “pilhas de papel” que se multiplicam em quantidade maior que o
trabalho passível de ser realizado e, na outra ponta, na cadeia, existem pessoas que se
desesperam quando seus processos de execução se encontram sem movimentação. A
ausência do encontro entre os administrados e os administradores descreve uma modalidade
de conexão, um governo à distância cuja consequência é a responsabilização dos presos pela
incitação contínua da movimentação dos papéis; algo que não se reproduz nos mesmos
termos nas cadeias do Rio de Janeiro em que estive, já que nelas a Defensoria Pública realiza
atendimentos presenciais.
Levar a sério as relações pessoais e suas modulações é uma aposta descritiva centrada
nos estilos que o exercício de poder assume quando as pessoas que governam e são
governadas se conhecem ou não, gostam umas das outras ou não, já acumulam motivos para
144

se afastarem ou ainda permanecem em proximidade durante reuniões habituais. Utilizarei a


imagem do balcão, mas, por uma questão de economia etnográfica, não demonstrarei aqui de
que maneiras as assimetrias entre administrados e administradores podem ser atenuadas e/ou
mesmo tensionadas por relações de variadas naturezas entre quem está de um lado e quem
está do outro. Faço esse alerta para que o leitor tenha em mente que pensar o balcão através
de relações hierárquicas não é a única via de construção de sentido possível, mas uma à qual
me parece fundamental atentar para que se denote a relevância das práticas de auto-
humilhação que ali têm lugar. Faço também o movimento de analisar o governo que os
administradores fazem juntos, observando como os conflitos entre eles costuram formas
relacionais e essas formas modulam o destino dos administrados. Sendo mais preciso, dedico-
me à história afetivo-moral de uma dada relação no contexto administrativo: a tensão entre
uma defensora e uma psicóloga me forneceu os meios de visualizar como as relações
interpessoais e os estilos de exercício de poder que elas se vinculam marcam o governo casos
de homens condenados por crimes sexuais.
O estatuto analítico que atribuo aos laços interpessoais, parte inextrincável do
processo de fazer Estado, é inegavelmente inspirado na etnografia de Eilbaum (2008). A
autora preocupou-se em descrever as ações, tão coordenadas quanto conflituosas,
despendidas pela Polícia e pela justiça de Buenos Aires. Ela analisou como os estilos de
trabalho dos juízes, se mais voltados à punição ou à garantia de direitos, forjavam reputações
morais que os policiais não somente conheciam, como também nelas se baseavam ao
acionarem estratégias para que o caso X terminasse com o juiz Y, e não com o juiz Z. A
sugestão da Eilbaum é a de que uma trama foi forjada não exatamente pelo intercâmbio
formal entre instituições, e sim pelo intercâmbio entre pessoas. Há uma série de
consequências políticas associadas a esse argumento porque, no limite, o que se sugere é que
através do conhecimento dos vínculos interpessoais pode-se conhecer o tipo de relação que
os operadores do direito adotam em relação aos policiais e os policiais em relação aos
operadores do direito: ora relações de confiança e respaldo de ilegalidades, ora o inverso.
Pode-se dizer, em resumo, que o governo que se faz junto assume contornos político-morais
distintos segundo o conhecimento e uso que os policiais fazem do estilo de trabalho dos
juízes. É a categoria estilo, denotando um modo de proceder e uma orientação relacional em
torno desse modo, que gostaria de reter e contorcer a partir dos meus dados etnográficos. Se
o poder não é algo que alguém possui, mas um exercício (FOUCAULT, 1997), as relações
interpessoais podem ser pensadas como formas de estilização desse exercício.
145

4.1 Em busca de uma feminilidade benevolente

Portão de acesso ao Complexo de Bangu. Portão de acesso ao presídio. Portão de


acesso à área administrativa. Imagine uma antessala com três portas, cada uma destinada a
um saber: direito, psicologia e serviço social. Ali, um preso que faz parte da categoria dos
faxinas44 organiza os homens em fila – uns sentados, outros de pé – e avisa quando o próximo
pode passar à sala de atendimento da Defensoria. Em geral, não há muitas informações novas
a serem transmitidas. Trânsito processual lento, atendimento ligeiro. Despessoalizado.
Imagine, porém, um homem que acabou de ser preso alegando que, sim, fez sexo com a sua
esposa, mas não a estuprou. Ele fala baixo. Está sentado quase em frente a mim, mais
direcionado a uma das duas estagiárias que estão atendendo junto à defensora Paula. Sua
feição, aos poucos, passa do estado de choro contido ao estado de evidente desespero. A
defensora o escuta e segue falando com um dos outros dois homens que também estão
naquela sala estreita cheirando a mofo. A estagiária sabe que precisa cortar a narrativa de
injustiça. Espera por uma brecha. Quando ele recupera o fôlego, a separação entre fases
processuais é explicada: “o que aconteceu o senhor já discutiu com o juiz”. A injustiça segue
sendo narrada como se nada houvera sido dito. Eu me interesso pelo que escuto, ele percebe.
A estagiária pega um documento chamado de VEP, em alusão à Vara de Execução Penal,
que contém os trânsitos processuais. O papel é estendido com timidez. O meu interlocutor
fala comigo e, simultaneamente, procura o olhar da defensora. Ela o olha e responde algumas
perguntas. Ele insiste. Choro alto. Soluços. As mesmas explicações se repetem. Frustração.
Documento entregue.
Imagine também um homem preso há muitos anos. A defensora não está na sala de
atendimento porque… talvez a tenham chamado numa das salas da administração local, não
na da direção, e sim naquela onde ficam os funcionários que lidam com os papéis gerados no
dia a dia da cadeia. Sala da Classificação. Sigo na sala da Defensoria com uma estagiária e
uma servidora. Esta última já passou todas as informações jurídicas ao assistido que se diz
injustamente preso pelo estupro de uma prostituta. Mas ele se recusa a voltar à cela enquanto
a defensora não chegar. Quer que ela olhe nos seus olhos. Veja que ele mudou. Quando ela
chega, a religiosidade assume o centro da cena. Nos olhos dele, Paula deveria encontrar um

44
Refiro-me aos presos que trabalhavam junto à administração penitenciária.
146

homem renovado. Ela o felicita pela conversão, mais ou menos como felicitamos um
desconhecido que, por alguma razão, nos conta sobre uma conquista que não nos interessa
muito, mas vemos que a ele é de suma importância. O homem suplica, se rebaixa. A
defensora, de pé, o interrompe. Diz que a servidora fulana de tal é alguém de sua inteira
confiança e que ele pode, portanto, também confiar nela. O subtexto é o de que não havia por
que ficar ali esperando para contar uma história pessoal. Da exibição da masculinidade
convertida, passa-se à exibição da figura da esposa que o perdoou, que sabe que ele errou ao
trair e que estupro nenhum aconteceu. A defensora está impaciente e buscando novamente
como cortar o discurso. Ele fala mais. Ela se sobrepõe, não como se dissesse “daqui você não
passa”, mas utilizando-se do discurso da conversão. Eles chegam a um combinado. Ao
administrado, cabe o cuidado de si como forma de não voltar à cadeia; à administradora, o
olhar voltado ao fim da punição.
Posso dizer, em relação aos homens condenados por crimes sexuais, que era flagrante
o esforço de muitos deles para se apresentarem como convertidos e/ou injustiçados. Assim
que os primeiros fragmentos dessas narrativas eram enunciados, suas falas eram cortadas,
sob a justificativa de que o processo de conhecimento deveria ser discutido com o juiz ou
com o defensor criminal, mas não com o defensor da execução penal. Ou seja, durante os
atendimentos regulava-se o pertinente e o impertinente, as falas dignas de escuta e as falas
julgadas incompatíveis com aquela rotina burocrática. Com Paula, a conversa era
majoritariamente sobre o que podia ser feito para se saísse mais rápido da cadeia, raramente
sobre o delito que teria acontecido, segundo os documentos, ou não acontecido, segundo os
meus interlocutores. A justificativa para não escutar dada pela defensora aos administrados
apelava a um formalismo jurídico: refiro-me à separação entre fases processuais, que muitos
deles não pareciam dispostos a reconhecer. Seguiam apelando. Choravam, se desesperavam,
suplicavam – especialmente aqueles que haviam sido presos há pouco tempo. Contavam as
suas histórias forçando brechas na administração do tempo. Buscavam por fendas a partir das
quais a pessoalização dos procedimentos pudesse se efetivar, como se a melhor defesa na
fase de execução dependesse do compartilhamento da narrativa de injustiça e/ou de
conversão e sua escuta, como se as histórias ali contadas fossem capazes de personalizar a
prática jurídica. Os que mais se esforçavam conquistavam poucos minutos. Nas situações em
que os meus interlocutores se rebaixaram e se humilharam suplicando por tempo para
fazerem a si mesmos como honestos, pessoas dignas de atenção, homens injustiçados que
não deveriam ser confundidos com monstros, lembrei da oração Salve Rainha.
147

Salve, Rainha, Mãe de misericórdia, vida, doçura e esperança nossa, salve!


A vós bradamos, os degredados filhos de Eva; a vós suspiramos, gemendo
e chorando neste vale de lágrimas. Eia, pois, advogada nossa, esses vossos
olhos misericordiosos a nós volvei; e depois deste desterro nos mostrai
Jesus, bendito fruto do vosso ventre, ó clemente, ó piedosa, ó doce sempre
Virgem Maria (“SALVE…”, 2020).

Qualquer leitor estaria certo ao objetar que a humilhação atuada nos atendimentos não
necessariamente carregava um conteúdo religioso e que poderia ser entendida inclusive como
recurso estratégico em um contexto em que uma mesma defensora é responsável pela defesa
de centenas de homens. Nesse sentido, a busca pela pessoalização é uma estratégia
compreensível, ainda que nem sempre eficaz, seja porque existe o formalismo das fases
processuais, seja porque os(as) defensores(as) são sujeitos morais passíveis de se
contaminarem pelo horror que os monstros despertam. Trouxe a oração, contudo, também
para denotar que o apelo estratégico à humilhação faz gênero (DÍAZ-BENÍTEZ, 2019), na
medida em que feminiza os que estão do outro lado do balcão na posição de administradores,
não importando se homens ou mulheres. Espera-se deles uma escuta maternal, ou melhor,
cobra-se deles uma escuta compreensiva, crente e benevolente. O meu interesse aqui é o de
sugerir, através da escandalização da assimetria do balcão provocada pela oração, que os
atendimentos jurídicos são situações morais, momentos de moralização do gênero. Naquele
contexto, performatizava-se uma masculinidade humilhada recorrendo a uma feminilidade
poderosa que, do ponto de vista dos próprios humilhados, deveria resguardá-los, algo mais
que defendê-los juridicamente. Explicito assim que enquanto os administrados buscavam
pessoalizar a situação de atendimento, a defensora e sua equipe faziam o movimento inverso
– a tal ponto que logo entendi que, fixando o meu olhar em um homem que contava a sua
história, interrompia o fluxo ágil dos atendimentos e cedia mais espaço do que o pretendido
pelos administradores à auto-humilhação.
Espero que esteja claro que, se a humilhação pode mesmo ser acionada
estrategicamente, ela é também uma tentativa de afirmação de humanidade, um esforço para
se afastar da figura do monstro que nem sempre encontra espaço para se produzir como
realidade. Trata-se de gestos, choros e falas cuja força ilocucionária (AUSTIN, 1962) está
mais sujeita a falhar do que a se estabilizar como verdade no mundo que adere a pânicos
sexuais. Não estou dizendo assim que Paula e sua equipe não reconheciam a humanidade dos
administrados, mesmo porque uma declaração deste tipo dependeria de uma análise mais
148

minuciosa das rotinas burocráticas. Estou apenas demonstrando que colado ao apelo de
escuta que generificava aos administradores forjava-se uma demanda de reconhecimento de
humanidade cujo sucesso não era garantido. Posso dizer então que, nos atendimentos
jurídicos, os meus interlocutores intentavam manejar versões de si (bons maridos,
injustiçados, trabalhadores, etc.) através da hierarquia a partir da qual se relacionavam com
os administradores e, por conseguinte, comigo. Aponto nesse sentido que, se os meus
interlocutores eram tanto aqueles que estavam mais ao topo (defensora e estagiárias) quanto
mais abaixo (homens e familiares), eu realizava dois movimentos. O primeiro é passível de
ser definido pelo que Nader (1969) chamou de “studying up”, categoria que defende estudos
voltados às elites, burocráticas ou não, e também a consideração dos efeitos da verticalização
em prejuízo aos antropólogos na produção do conhecimento; mais do que isso, porque Nader
estava interessada ainda em analisar como as instituições poderosas e seus agentes estavam
conectados, tanto em nível mais abaixo (down) quanto mais ao lado (sideways). Estou
levando em consideração esse aporte triplo (alto, baixo e lateral), fazendo um segundo
movimento: o de explicitar como fabrico contextos (STRATHERN, 2013) a partir dos quais
penso o clamor estratégico à humilhação.
Nesse sentido, ressalto que a humilhação, geralmente pensada como sentimento e
prática de rebaixamento do outro, estava vinculada à busca por um estilo de exercício de
poder maternal e benevolente, mas cuja aparência concreta mais se aproximava da imagem
da governanta à qual Vianna (2005) atribuiu a bondade opressiva. Trata-se de uma figura que
diz respeito a uma oscilação constante entre o gestar – faceta maternal, protetiva e pedagógica
– e o gerir – faceta paternal, ordenadora e persecutória – (SOUZA LIMA, 2002). Se a prática
da auto-humilhação, buscando desenhar a figura da mãe, conquistava a da governanta
disposta a ouvir por não mais que cinco minutos, o resultado do apelo realizado pelos
administrados era costumeiramente menos feliz do que o almejado. Em outras palavras, o
rebaixamento inicialmente estratégico culminava muitas vezes em sentimento de humilhação
real, dada a própria estrutura do atendimento jurídico. Thompson (2020), antropólogo que se
dedicou a uma análise mais pormenorizada dos atendimentos realizados por defensores em
presídios do Rio de Janeiro, relata que havia uma tensão inerente a eles e que os
administradores buscavam controlá-la através do tom de fala, do tempo de escuta e dos
documentos. Papéis relativos ao andamento dos processos de execução (VEP, como disse)
podiam ser entregues como forma de manejar as tensões, como se na ausência de respostas
morais e jurídicas positivas os papéis silenciassem / aliviassem o desespero dos condenados
149

e transmitissem a eles a sensação de que os administradores estavam fazendo o que era


preciso.

4.2 Dos casos ordinários aos casos paradigma

Meu trabalho de campo no presídio anteriormente mencionado foi impossibilitado


quando os homens que ali cumpriam pena, por uma decisão da SEAP-RJ cujos contornos não
conheço bem, foram transferidos para outro presídio do Estado, fora do Complexo de Bangu.
Ou seja, um procedimento administrativo afetou a atividade de pesquisa, de tal modo que só
existiam duas opções: tentar ir atrás dos homens que já havia conhecido ou encontrar um(a)
novo(a) defensor(a) responsável por alguma outra unidade onde existissem outros homens
acusados e/ou condenados por crimes sexuais. Ir atrás desses primeiros interlocutores seria
algo um tanto mais complicado porque teria que voltar a comunicar-me com a então
coordenadora do NUSPEN, pedindo por um favor e especificando em que termos esse favor
deveria se realizar. Não o fiz porque os vínculos que com ela sustentava eram frágeis, isto é,
o fato dela me associar à defensora irmã de uma colega minha não justificaria o pedido,
passível de ser interpretado como excessivo. Entre o pedido de entrada em campo e o pedido
de manutenção do campo, aprendi a importância de, por vezes, performatizar a
despessoalização das relações, reconhecendo que não era alguém conectado o bastante para
pedir novamente acesso e especificar os termos a partir dos quais este deveria se dar. Aprendi
também que o conjunto de conexões a partir do qual alguém é percebido por outros varia de
importância, segundo os contextos e a natureza dos pedidos em jogo.
Quando enviei um email para a então coordenadora, descobri que ela já não ocupava
essa posição administrativa e que havia uma defensora a quem a minha pesquisa interessaria.
Fabiana era responsável por dois manicômios judiciários, por duas unidades de saúde do
“sistema” (Unidade de Pronto Atendimento e Sanatório Penal) e por uma unidade de
semiaberto fora do Complexo de Bangu. Em todas elas existiam homens condenados por
crimes sexuais, mas em número menor do que no presídio de regime fechado onde estive
com Paula. Já que Fabiana solicitou, como troca pelo favorecimento da atividade de pesquisa,
que dedicasse alguma atenção à intersecção entre loucura e crime sexual, passei a frequentar
os atendimentos jurídicos e as reuniões do movimento antimanicomial em um dos dois
manicômios judiciários em que ela atuava. Lá, voltei atenção às modalidades diferenciais da
gestão de casos de estupro e corpos de condenados, atribuindo destaque especial ao modo
150

como um conflito entre a defensora e uma psicóloga produzia essas modalidades diferenciais.
Esforcei-me por entender como através desse conflito era erguida a hierarquia entre direito e
saúde. Preocupei-me em levar a sério as acusações interpessoais, buscando não as tratar como
um fenômeno de segunda ordem, mera manifestação de algo mais real que as pessoas que
disputavam entre si. Enfatizo que a estabilização desse conflito sedimentou relações cuja
história afetivo-moral descrevo a seguir não para julgar se a pessoalização das práticas
adminisitrativas era algo bom ou ruim, somente para descrever de que maneiras operações
pessoalizantes faziam o Estado, faziam o governo dos casos.
Fabiana lidava majoritariamente com dois conjuntos de casos. Monique Torres
(2017), antropóloga que realizou trabalho de campo comigo no gabinete dessa defensora,
batizou-os de “casos ordinários” e “casos paradigma”. O primeiro conjunto lembra em muito
o trabalho executado pela defensora Paula, pois carrega a marca da celeridade dos
atendimentos, da morosidade da justiça e da repetição das mesmas estratégias jurídicas de
sempre em casos múltiplos. Como a autora foca na análise das práticas administrativas que
têm lugar nos manicômios judiciários e giram em torno de um documento chamado projeto
terapêutico singular, ela não apela à generalização da categoria “casos ordinários” que estou
propondo. “Chutar pilhar de papel”, expressão acima referida e usada por um defensor em
São Paulo, porém cabível também à realidade carioca, é o mesmo que gerir casos ordinários:
numerosos, semelhantes entre si e até mesmo desmotivadores, seja porque não representam
novidade do ponto de vista procedimental, seja porque transmitem a sensação de que nada
do que é feito realmente resolve os problemas estruturais: filas que não param de crescer,
mais pessoas presas, as mesmas pessoas presas de novo, uma infinidade de papéis. Eterno
enxugar gelo. No gabinete de Fabiana, os casos ordinários correspondiam mais
frequentemente aos processos de execução dos homens do presídio de regime semiaberto do
que aos processos dos presos e presas dos hospitais penitenciários e dos manicômios
judiciários. Isso não quer dizer que todo caso gerido a partir do projeto terapêutico, feito por
psicólogos e profissionais do serviço social para circular pelo judiciário delimitando e
comunicando os caminhos para a realização da desinternação dos pacientes em cumprimento
de medida de segurança, seja paradigmático.
O caso paradigma descrito por Torres é o de um homem internado em um manicômio
judiciário por ter agredido o seu irmão. Preso em flagrante, José, por razões que não cabem
explorar aqui, teve a sua defesa criminal prejudicada. Bastar dizer que Fabiana, além de
entender os atos de violência cometidos por seu assistido como autodefesa, defendia que José
151

era vítima da homofobia do seu próprio irmão, parente que costumava acorrentá-lo do lado
de fora da casa onde viviam e/ou espancá-lo. Esses fatores culminaram na solicitação de
reuniões com a defensora do Núcleo da Diversidade Sexual da Defensoria (NUDIVERSIS),
visando a que ela ficasse responsável pela defesa criminal de José na fase de conhecimento.
Como resultado, a defensora que, segundo o procedimento padrão, seria a responsável pela
defesa criminal por estar lotada na comarca onde os crimes aconteceram foi substituída.
Apelando à homofobia, Fabiana sensibilizou a defensora que reconhecia como a mais apta à
gestão criminal de um caso que era paradigmático também porque o tempo de internação
determinado a José, considerando que a agressão que este desferira contra o irmão era leve,
estava acima do usual. O trabalho de Fabiana, defensora que não podia formalmente atuar na
fase de conhecimento, implicou a fomentação de um modo de costurar um conceito
(homofobia) 45 à interferência na etapa de instrução e julgamento. O objetivo dela era
conseguir “fechar uma estratégia” de atuação conjunta entre diferentes setores, núcleos e
representantes da Defensoria que pudesse posteriormente servir “em casos semelhantes”
(TORRES, 2017, p. 56). Desse ângulo,

Não cabe analisar os casos paradigma como algo que existe “fora” de uma
estrutura social ou uma suposta regularidade sobre os procedimentos e
normas de administração de conflitos judiciais. Trata-se, na prática, de uma
forma diferente de manejar as normas existentes e da criação de novas
formas de operar a burocracia estatal, […] que não constituem uma exceção
ou desvio do sistema e sim parte sua regularidade (TORRES, 2017, p. 84-
85).

Torres defende que as práticas “diferentes” empregadas nos casos paradigma não
derivam diretamente de normas e procedimentos jurídicos, mas do “fundo dos valores morais
e representações dos atores judiciais” (TORRES, 2017, p. 84) que podem levar a usos
particulares desses procedimentos e normas. O caso José lembra, a meu ver, o empenho de
Boltanski (1993) em pensar sobre as condições de possibilidade de queixas particulares se
transformarem ou não em causas públicas. São vários os pesquisadores (LACERDA, 2013;
LOWENKRON, 2015; SILVA, 2013; VIANNA, 2013) que, baseados nos postulados da
“tópica da denúncia”, atentaram à necessidade de combinar a indignação emocionada à
produção meticulosa de provas como forma de afetar pessoas, relações e coletividades. A

45
Naquele momento, a homofobia não era crime.
152

condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos pelos maus-tratos e


morte de Damião Ximenes, pessoa portadora de transtorno mental, é particularmente
persuasiva no que se refere ao processo de transformação de uma denúncia em uma causa tão
política quanto jurídica (SILVA, 2013). Faço referência ao caso que ascendeu à Corte porque,
embora o objetivo de Fabiana não fosse exatamente o da internacionalização do caso José,
ambos perpassam técnicas que passaram a existir como modelos aos quais se pode recorrer
e aplicar. Ainda que exista algo de caso Damião em todo caso José, algo como uma vontade
de ser latente, gostaria de contornar o sentido de caso paradigma observando uma situação
em que o espetáculo humanitário como estratégia administrativa foi julgado prática
pertinente por Fabiana e outra em que não.

4.3 O espetáculo humanitário

Conheci Leandro em uma das minhas primeiras visitas a um dos manicômios


judiciários da cidade do Rio de Janeiro. Segundo semestre de 2015. Ele estava usando camisa
branca, calça e sapato social quando adentrou, a convite da direção, no auditório da unidade
prisional/hospitalar em que estava preso/internado. Roupas limpas encobriam os rastros da
enfermidade de pele que havia acometido o corpo dele algum tempo antes. A doença foi
rapidamente entendida como um efeito possível da institucionalização além do devido prazo
legal. Melhor dizendo, o depoimento público do rapaz destinado aos agentes de Estado que
ali estavam – Defensoria Pública (DP), Secretaria Municipal de Saúde (SMS), Rede de
Assistência Psicossocial (RAPS), Ministério Público (MP), Secretaria de Administração
Penitenciária (SEAP) e diferentes universidades (UFRJ, UFF e UERJ) – foi considerado
imprescindível porque o pedido da desinternação dele, elaborado por Fabiana em 2014 e
concedido pelo juiz competente, não havia ainda sido efetivado. Esse foi apenas um dentre
os vários episódios políticos aglutinadores de esforços administrativos em prol do caso
Leandro. Como veremos, a edificação dessa coalizão entre pessoas e instituições era função
direta de um conflito travado entre diferentes setores da escala alta da administração da
cidade, os profissionais do manicômio e a defensora pública Fabiana.
Leandro comunicou o seu desejo de liberdade. Todos que estavam no auditório
tiveram a chance de perceber a angústia dele e de temer que a manutenção da internação
viesse a “desorganizar” o quadro clínico estável naquele momento. Os especialistas ouviram
também o jovem negro de 28 anos dizer que tinha beijado uma moradora de rua. O estupro
153

permaneceu como um ruído. A atenção recaiu sobre a trajetória de errância do corpo que não
foi assistido pela rede de saúde, cresceu em orfanatos e vivia nas ruas quando praticou o
crime sexual em questão. A imposição da medida de segurança a Leandro foi lida,
majoritariamente, como resultado último de exclusões promovidas ao menos em parte pelo
Estado que, ausente sob a forma de administração da saúde, fez-se presente na vida dele como
aparelho punitivo. O ente Estado, ora ausente, ora presente, participava da composição do
corpo negro e pobre como um espetáculo político-moral arquitetado em nome da crença na
relevância de sua fala, mas também em nome da própria espetacularização enquanto tática
humanitária que, intencionando a execução de direitos, montava realidades corporais e
provocava afetos nos especialistas dispostos a desempenhar, ao mesmo tempo, o papel de
atores e de plateia.
Não era difícil ver Fabiana encarando crimes cometidos por pessoas portadoras de
transtorno mental como “pedidos de ajuda”: vocalizações que, oriundas de “situações de
vulnerabilidade”, demandavam contextualização por parte dos defensores. Ela enfatizava a
vulnerabilidade como um estado transitório, ou seja, se não era uma condição inelutável do
sujeito, poderia ser transformada através da “atuação contra-hegemônica” da Defensoria
Pública. Isso significa que Fabiana entendia que parte expressiva do seu trabalho consistia
em converter vocalizações em demandas jurídicas. Desse ângulo, deslocar Leandro das alas
internas do manicômio ao auditório é um modo de “ampliar a voz” do sujeito, fazendo a
Defensoria se metamorfosear em “megafone”. Conforme a aplicação do conceito de
vulnerabilidade transformou Leandro em vítima, a voz dele passou a ser a do sofrimento que
clama por reconhecimento, empenho político e soluções administrativas (JIMENO, 2010). A
percepção da vulnerabilidade como temporalidade parecia permitir a fabricação no presente
da ideação de um futuro no qual a defensora e todos aqueles que escutaram e lutaram por
Leandro poderiam ter atenuado o sofrimento dele.
Se a correlação entre pobreza, sofrimento, raça e solidariedade foi a base a partir da
qual erigiu-se o espetáculo humanitário em questão, o mesmo não é mais que uma
modalidade de governo das vidas precárias que depende fundamentalmente dos sentimentos,
sejam aqueles sentidos pelos administrados, sejam aqueles sentidos pelos administradores.
Para Fassin (2012), a compaixão é um sentimento moral, pois capaz de direcionar a nossa
atenção ao sofrimento do outro e de nos fazer querer remediá-lo. Dessa união entre
sensibilidade e altruísmo, entre afeto e valor, nasce o lugar político ocupado pela compaixão
no mundo contemporâneo. Trata-se de um sentimento que alimenta a “moralidade ocidental”,
154

fomentando uma maneira hierárquica de visualizar o outro e forjando um pilar de sustentação


para o governo humanitário. O autor sugere também que a política da compaixão é uma
política da desigualdade, da regulação e/ou da dominação bem-intencionada dos
desafortunados. O espetáculo humanitário é tanto um problema sociológico, pois fundado em
assimetrias entre quem dá e quem recebe benesses, quanto um problema ético, se admitirmos
que a dor do outro, além provocar empatia, pode alimentar o nosso prazer ou o nosso apego
ao sentimento de pena. Amamos sentir pena, diz Fassin. Considerando que o caso Leandro
remeta a essas formulações, volto atenção às controvérsias que o mesmo provocou e, mais
adiante, descrevo condições que tornam impossível o espetáculo humanitário.
Balizada pelas determinações do projeto terapêutico singular elaborado pela equipe
técnica responsável por Leandro, Fabiana enviou ao juiz competente um ofício em que
argumentava que, devido à inefetividade da decisão de desinternação, era necessário
investigar a configuração de crime de tortura e fixar o prazo de dias, sob a pena de prisão do
Secretário de Desenvolvimento Social, para que Leandro fosse recebido em uma unidade da
Central de Recebimento de Adultos e Famílias (CRAF) do município do Rio de Janeiro. Essa
medida foi acionada porque o projeto terapêutico singular previa a volta dele a um dos
abrigos para a população de rua onde teria vivido antes do crime. O que costuma ser discutido
nos projetos terapêuticos, quando o retorno familiar não é uma possibilidade para as pessoas
manicomializadas, é a relação do sujeito com o seu território de origem. Não se trata somente
da designação de um ponto no mapa ou de um equipamento público específico, mas também
da busca por vínculos sociais ou relações de sentido entre um sujeito e um lugar. A origem
pode ser inclusive contornada pelas relações de sentido. Alguém que viveu em “x” pode
passar a residir em “y”, se “y” for julgado terapeuticamente relevante. No de caso de Leandro,
a perambulação do jovem pelas ruas foi o que levou a equipe técnica a sugerir o acionamento
jurídico da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, que, por sua vez, respondeu
afirmando que, dada a condição clínica do sujeito, quem responderia por ele era a Secretaria
Municipal de Saúde. O melhor para Leandro não seria um abrigo como forma de liberdade,
e sim as residências terapêuticas, voltadas às pessoas portadoras de transtorno mental.
A expressão “situação análoga à tortura”, assim que foi enunciada pela defensora nos
atendimentos a Leandro, incomodou a equipe técnica responsável pelo caso dele. O crime
em questão poderia recair sobre os ombros dos psicólogos, dos profissionais do serviço social
e mesmo de Fabiana. Contudo, os membros dessa equipe se viam como a ponta fraca do elo
entre direito e saúde, isto é, acreditavam que mais facilmente seriam responsabilizados pela
155

situação de Leandro. As rusgas criadas nas relações pelo discurso jurídico-moral da tortura
foram desanuviadas justamente quando os especialistas, sob a forma de projeto terapêutico,
direcionaram a responsabilidade pela “situação” do paciente ao Secretário de Serviço Social
do Município do Rio de Janeiro, e Fabiana, baseando-se no projeto, transformou esse
primeiro estender de dedos em documento. Quando finalmente “a saúde” foi
responsabilizada, Leandro foi deslocado para uma residência terapêutica distante do seu local
de referência. A desinternação dele foi comemorada, mas provocou também novos
desconfortos em relação à defensora e, de maneira mais geral, em relação ao “sistema de
justiça”. As técnicas jurídicas se superporiam com frequência às práticas clínicas, de tal modo
que os projetos terapêuticos singulares estavam sujeitos a serem “atropelados” e as pessoas
portadoras de transtorno mental sujeitas a terminarem em lugares onde não cultivavam
vínculos.
O fechamento das portas do manicômio judiciário mais antigo do Rio de Janeiro,
ocorrido na época do caso Leandro, tonificou as críticas aos “atravessamentos da Justiça”.
Nessa instituição, cerca de trinta e sete pessoas, cada uma delas cumprindo uma medida de
segurança já extinta, viviam em “situação de abrigo irregular” porque os equipamentos da
rede pública de saúde não tinham vagas e o retorno familiar não era uma possibilidade para
elas. Quando as vagas surgiram, em razão de procedimentos jurídicos, era uma questão saber
se os projetos terapêuticos seriam seguidos. A indignação que a psicóloga Marta acumulava
com os “atravessamentos” centralizou-se em Fabiana no momento em que, durante uma
conversa, associei a punição do Secretário de Saúde, o fechamento do manicômio citado e os
esforços da defensora para levar o caso de Leandro, junto a três outros, até a Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Diferente do que pensava, o constrangimento jurídico
da Secretaria de Saúde que resultou na liberdade de Leandro teria sido fruto da ação de um
grupo vinculado à luta antimanicomial e há muito indignado com o que estavam vivendo
aquelas trinta e sete pessoas injustamente manicomializadas. Esse grupo teria ido até a Vara
de Execução Penal do Rio de Janeiro, local onde realizaram uma denúncia que sensibilizou
o então juiz titular. A internação irregular de Leandro, vista desse ângulo, foi suspensa através
da atuação daqueles que, clamando por pessoas indevidamente institucionalizadas em um
manicômio judiciário, conquistaram resultados inesperados em outro.
Considerando que o meu objetivo não é o de investigar a verdade sobre o caso em
questão, e sim o que o torna paradigmático, basta dizer que essa disputa de autoria em torno
do bem-fazer estava inscrita em relações interpessoais (in)formadas pela distribuição
156

desigual da possibilidade de exercício de poder. Como entre a “justiça” e a “saúde” a primeira


costuma estar no ponto mais alto, projeta-se no interior das relações uma assimetria que
tensiona o engajamento burocrático nos manicômios. Nesse contexto, a minha relação com
Marta, devido à proximidade que cultivava à Fabiana, forjou-se através da suspeição. Quando
tentava discutir com ela práticas jurídicas era tratado como ingênuo, o que sinalizava tanto a
amplitude do conflito no qual estava imerso quanto a impossibilidade de transitar livremente,
já que “lados” existiam. Supunha-se, nas entrelinhas, que o meu comprometimento com a
causa antimanicomial poderia não ser verdadeiro, já que o de Fabiana estava minado por
características pessoais e exercício de poder excessivo. A forma conflituosa da relação entre
Marta e Fabiana não é modelo único para a compreensão da relação entre os profissionais
que compunham as equipes técnicas dos manicômios e a equipe da Defensoria. Faço uso
analítico dessa configuração para demonstrar a relevância do vivido na gestão dos casos e
para entender os meandros e os efeitos do exercício de poder que passava pelas mãos da
defensora. Em outras palavras, estou interessado em compreender os estilos de exercício de
poder e seus impactados no cotidiano da administração pública.

4.4 A vitrine do horror como caso de repercussão

Enquanto na CPI da pedofilia fotos de adultos abusando sexualmente de crianças


foram apresentadas com o intuito de conterem o mal que exibiam (LOWENKRON, 2015),
contornos específicos da face do monstro que estuprou, matou e bebeu o sangue de algumas
de suas vítimas foram estampados em uma revista de ampla circulação. Os olhos de Juliano
ocupam parte expressiva de uma capa chamativa. Foram posicionados como se pudessem
lascivamente penetrar quem os fita, como se indicassem a presença de desejos a serem
realizados. Tinha-se ali uma porta de entrada para o que o comitê editorial da revista chamou
de “psique do assassino de crianças”. Os olhos foram vendidos enquanto uma experiência de
contato com o mal desejada pelos consumidores. Esse fetichismo da maldade redutor do
corpo de Juliano a um rosto e do rosto a um olhar se repetia no cotidiano. Marta, ao nomear
o olhar desse paciente como psicótico, prontamente se corrigiu dizendo que declarar isso
seria o mesmo que produzir um sintoma para quem não tem um diagnóstico fechado –
preconceito, portanto; Fabiana, por vezes, considerou a fixação do olhar de Juliano em um
objeto como ato próximo ao toque; quando o vi sorrindo em minha direção no exato momento
157

em que a porta da sala onde eu estava se abriu junto à porta da sala onde ele estava, dramatizei
o que era trivial.
Um dos poderes do horror é justamente o de incitar os atos falhos suscetíveis de serem
contornados por ressignificações tão velozes quanto a manifesta por Marta. Essas
ressignificações, na mesma medida em que buscavam recompor o sentido da presença
engajada do sujeito na luta pelas desinternações, expunham a presença internalizada da
“vitrine do horror” (LOWENKRON, 2015) em cada sensibilidade individual. Quando a
psicóloga asseverou que o jornalismo sensacionalista provocou um efeito desastroso em
Juliano, a espetacularização midiática evidenciou-se como uma tragédia de muitas camadas.
O paciente estaria preso no enredo dos crimes, teria se afeiçoado à atenção dirigida aos
monstros hábeis em provocar fascínio e rejeição. Marta temia também que novas entrevistas
realizadas com Juliano, mesmo as de cunho acadêmico, resultassem na reafirmação do apego
dele ao enredo trágico. Embora tenha compreendido as razões dela, seria insuficiente
responder a tal demanda simplesmente anulando o horror no texto etnográfico. Volto-me à
“vitrine do horror” buscando perceber onde Marta e Fabiana se situavam quando com ela
lidavam, isto é, buscando perceber o que o conflito entre essas administradoras dizia sobre
os modos diferenciais de gerir a repercussão do caso de Juliano. A repercussão era um fator
que tanto influenciava a rotina administrativa, de fora para dentro, quanto era recriado no
cotidiano (EILBAUM; MEDEIROS, 2017) do manicômio judiciário. Entendê-la implica
saber

quando e por que certos recursos são acionados e uma atenção e dedicação
específicas são outorgadas a certos casos, e não a outros, supõe dar atenção
não só à natureza do conflito, mas também ao status social e moral das
pessoas envolvidas, às moralidades do agentes, às racionalidades e éticas
operantes no acionamento (...) [de] recursos públicos (KANT DE LIMA;
EILBAUM; MEDEIROS, 2017, p.12).

A produção do espetáculo humanitário não era uma estratégia rentável para a


defensora no que se referia ao caso Juliano. Notório desperdício da técnica porque a figura
da vítima, arregimentada por intermédio da violação de direitos, não encontraria lastro em
função da publicidade em torno dos crimes cometidos. Mais do que isso, a espetacularização
humanitária seria incapaz de alterar o curso dos acontecimentos no sentido do cumprimento
da normatividade legal naquele momento ameaçada pela decisão judicial que, embora
considerada ilegal por Fabiana, impedia a construção de um projeto terapêutico para Juliano.
158

Ela entendia que a suspensão judicial do projeto equiparava a execução da medida de


segurança à execução de pena46; isto é, sem um projeto terapêutico, Juliano era administrado
no manicômio como se estivesse em um presídio comum, como se os procedimentos
administrativos a serem acionados fossem aqueles que cabem a quem não foi considerado
“louco” por um perito. O fato é que peritos atribuíram diagnósticos a Juliano que terminaram
fazendo-o cumprir medida de segurança, e não pena. A própria argumentação da defensora
era uma tentativa de dar sentido jurídico (equiparação da medida à pena) ao que tornava o
caso de Juliano um tanto único em um hospital que não deixava de ser uma cadeia.
A relação ambivalente entre inúmeros pares de oposição espelhados (tratamento –
segurança; manicômio – presídio; juiz – perito; medida de segurança – pena; etc.) foi
entendida por Carrara (1998) como “marca distintiva” dos manicômios judiciários. Dito de
outro modo, a ambiguidade médico-jurídica em que se encontram aqueles que foram
considerados loucos e criminosos é fruto do “defeito constitucional” dessas instituições. O
autor faz menção também a uma tensão entre “doidinhos” e “pepezões” que se replica no
meu material através do contraste entre o caso Leandro e o caso Juliano. Para ele, os internos
se dividiriam em dois grupos:

O primeiro seria composto por indivíduos percebidos enquanto “doentes”,


ou “mais doentes” (os doidinhos), e o segundo, por indivíduos percebidos
como “mais delinquentes”. Membros deste último grupo, os pepezões,
apesar de “anormais psíquicos”, deveriam ir preferencialmente para a
prisão, sendo qualificados através de avaliações eminentemente morais:
“calculistas, frios, traiçoeiras, malvados, mentirosos, perigosos”.
(CARRARA, 1998, p. 43, grifo meu).

Essas formulações são pertinentes porque ajudam a compreender os problemas


analíticos aos quais me dedico, mas também porque foram diretamente citadas por Fabiana
em conversas e emails trocados nos últimos anos. Ainda mais relevante é a citação dos
argumentos de Carrara sobre “ambivalência” e “ambiguidade” no parecer do Ministério
Público Federal (MPF) de 2011 sobre manicômios judiciários que a defensora mobilizava
para questionar se não seria produtivo para a situação de Juliano, fosse ele considerado

46
Vale mencionar que, no ordenamento jurídico vigente no Brasil, a “pena” e a “medida de segurança” são
formas distintas de sanção penal. A primeira está vinculada à consciência do indivíduo em torno da infração
penal (capacidade de autodeterminação); a segunda a um grau de consciência reduzido, temporariamente
prejudicado ou indiscernível.
159

“pepezão” ou “psicopata”47, buscar converter cada medida de segurança que lhe foi imposta
em pena. Eis o trecho no qual Fabiana se baseava:

No que se refere a pacientes com esses transtornos, é difícil o consenso


entre as áreas do saber envolvidas e normalmente há conflitos quanto ao
diagnóstico e quanto ao tratamento. O que a experiência mostra é que
quando os transtornos não são acompanhados de alterações psicóticas e,
portanto, há consciência do que se pratica, esses indivíduos não deveriam
receber Medida de Segurança, pois podem ser considerados imputáveis. A
questão do tratamento também é complexa, uma vez que não há medicação
específica (os problemas são de caráter) e geralmente essas pessoas não
aderem ou não conseguem fazer uso de processos psicoterapêuticos
(MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2011, p. 39, grifo meu).

O que se especulava era que, se Juliano viesse a ser considerado “consciente” no


momento dos crimes e, por isso, responsável penalmente pelos seus atos (imputável) 48 ,
existiria a chance dele, tal qual sugerido aos “pepezões”, passar a cumprir pena e, por
conseguinte, ir para a cadeia. Movimentando-se no interior dessas brechas jurídicas e
clínicas, Fabiana intencionava conter qualquer possibilidade de que alguma leitura fria da lei
que estabelece a medida de segurança pudesse vir a facultar que o teto do tempo de
encarceramento, 30 anos no Brasil, fosse ultrapassado no caso Juliano. O que a defensora
estava fazendo, em um plano especulativo-conceitual, era definir caminhos para se antecipar
ao momento em que a força da repercussão da “vitrine do horror”, passível de vir a ser
percebida por membros do judiciário como evidência da necessidade de defender
juridicamente “a sociedade”, poderia prender Juliano indeterminadamente. Em resumo, se
Juliano cumprisse pena, o limite máximo de 30 anos de encarceramento seria mais facilmente
respeitado. Se tivesse sido documentado, esse esforço especulativo perpassaria

47
Faço uso dessa categoria porque era a mais utilizada no cotidiano e porque o meu objetivo não é o de adentrar
nas discussões da psicologia, psicanálise e psiquiatria sobre psicopatia, sociopatia e transtornos da
personalidade antissocial. Segundo o parecer, “[…] no território jurídico, a grande discussão se trava, ainda, em
torno de outras dimensões do fenômeno psíquico, pois a finalidade é imputar ou não a culpa, imputar pena
retributiva ou medida de segurança, concluir, enfim, se o criminoso é doente ou apresenta um transtorno e se à
sua doença pode ser atribuído o ato criminoso” (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2011, p. 38-39).
48
Dito de maneira vulgar, existem três categorias jurídicas relativas à responsabilidade penal: (1) imputáveis
são aqueles a quem se impõe pena; (2) inimputáveis são aqueles que recebem medida de segurança; (3) e semi-
imputáveis são aqueles que recebem pena que pode ser substituída por medida de segurança. Seria necessário
fazer um estudo aprofundado dos vários processos de conhecimento de Juliano para entender como e quais
categorias penais a ele foram aplicadas com base em diferentes laudos periciais. É bastante provável que a
situação dele varie entre a inimputabilidade e a semi-imputabilidade (convertida em medida), variando assim a
percepção clínica de sua possibilidade de autodeterminação.
160

necessariamente por colisões e coalizões variadas entre os saberes sobre quem Juliano era, é
e, mais ao largo, poderia ou não vir a ser.
Juliano, há mais de duas décadas manicomializado, opusera-se à construção da tese
jurídica em torno da “psicopatia” porque acreditava que seria morto na cadeia. Durante os
atendimentos da Defensoria, ele repetidas vezes disse que a mídia não poderia tomar
conhecimento da sua desinternação quando provida, pois correria risco de morte. E, para não
apanhar, ele pedia com frequência para não mais ter que entrar no carro do Serviço de
Operações Especiais (SOE) da Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP). As cartas
que Juliano entregava à defensora frequentemente continham referências a esses temores,
vinculadas sempre a uma série de transcrições de passagens bíblicas e menções à infância, à
família, aos crimes, aos desejos e a algumas partes corporais – pênis, nádegas e coxas,
sobretudo. Se, por um lado, as palavras grafadas nessas cartas transportam quem as lê para
um mundo de experiências, violências e delírios, tanto capaz de se realizar como “vitrine do
horror”, quanto de ser lido como enredo trágico por profissionais comprometidos com a
desinternação, por outro lado, veiculam a contiguidade da morte à vida, dão cores à certeza
alucinada, e nem por isso menos nítida, da proximidade de uma ameaça letal. Juliano
antecipava por quais caminhos a morte viria encontrá-lo e assim matinha o seu corpo vivo.
Bastou que ouvisse a palavra cadeia para que dissesse “não” ao que imaginava a defensora.
Ainda que as percepções negativas de Marta em relação a Fabiana pudessem ter a ver
com o conteúdo controverso das especulações jurídicas brevemente apresentas, suspeito que
o próprio movimento especulativo incomodava, pois percebido como pouco efetivo. A
indignação da psicóloga se dirigia, mais amplamente, contra o que ela enxergava como
atuação burocrática não comprometida com a luta antimanicomial. A defensora teria “sentado
no processo”, grosso modo, porque a atividade política envolvendo o caso poderia ser
comprometedora, dada a repercussão e gravidade dos crimes. Acusava-se Fabiana de não
apelar às instâncias superiores da justiça aptas a desfazer a decisão judicial que vetava a
construção do projeto terapêutico de Juliano. Tudo se passava como se a defensora estivesse,
a partir dos procedimentos “não efetuados”, dos conceitos mobilizados e, sobretudo, da
lentidão na conquista de resultados, definindo que Juliano não pertencia ao conjunto dos
casos paradigma, quando deveria pertencer. Relegá-lo à condição de caso de repercussão, no
sentido das técnicas que se afastam da tópica denúncia, seria o mesmo que uma condenação
implícita à repetição do enredo trágico. A defensora, ainda do ângulo de observação sugerido
pela psicóloga, realiza-se através da figura da burocrata que produz assimetrias, detém as
161

chaves do acesso a direitos e controla o estabelecimento das linhas de pertencimento e


exclusão social (HERZFELD, 1993). Essas percepções se intensificaram e impossibilitaram
a ação conjunta. Ao passo que Marta conseguiu reativar ligeiramente o laço entre Juliano e o
irmão dele, Fabiana foi destituída do processo de execução pela família do paciente e um
advogado particular o assumiu. Se aproximar Juliano de sua família no ponto relacional em
que Marta e Fabiana se encontravam era para a primeira um caminho para distanciar o
processo de execução da segunda, torna-se notável a centralidade do fazer e desfazer das
relações interpessoais nos meandros da gestão dos casos.
Contrastando a espetacularização humanitária à espetacularização da “vitrine do
horror”, tragédia do ponto de vista humanitário, percebe-se que efeitos inversos são
alcançados: enquanto Leandro pôde ser movido para além dos muros do manicômio, Juliano
parece bem mais fixado em seu interior, tanto subjetivamente quanto objetivamente.
Conforme esses resultados inversos nos informam sobre a natureza dos crimes por eles
cometidos, pode-se dizer que sentenças atribuídas a cada um deles alcançam possibilidades
igualmente distintas de se projetarem do passado em direção ao futuro, como se perseguissem
mais a alguns do que a outros. O estupro cometido por Leandro pôde ser convertido em ruído,
sem afetar explicitamente a produção do corpo da causa. Juliano, ao contrário, não pôde ser
separado dos estupros e dos homicídios que cometeu, para desespero de Marta. O
congelamento de Juliano no interior da “vitrine do horror” é uma decorrência das formas
contemporâneas de sacralização da infância e, por conseguinte, de transformação da
violência sexual contra crianças em um poderoso modelo de atrocidade (LOWENKRON,
2015). Esse modelo de atrocidade torna-se exponencial à medida que é associado às formas
cruéis de produção da morte, de tal modo que Marta e Fabiana, cada uma à sua maneira, bem
como em contraposição, não podiam imaginar futuros para Juliano fora da vitrine que a todos,
ainda que diferencialmente, acometia.

4.5 O clitóris de Sísifo

Fabiana costumava descrever o exercício de poder que a posição de defensora lhe


facultava no feminino. Se um conflito emergia a ponto de ela considerar que as práticas
jurídicas relativas à melhor defesa dos sujeitos manicomializados estavam ameaçadas por
algum profissional ou entendimento visto como ineficaz, Fabiana colocava o “clitóris na
mesa”. Essa era uma maneira de regular até onde, por exemplo, Marta poderia ir no que se
162

referia aos casos que, quando sob o comando jurídico da defensora, ascenderiam ou não à
condição de “paradigma”. O “clitóris na mesa” podia ser ainda o ofício que solicitava a
investigação do crime de tortura; o “atravessamento da justiça” em relação à prática clínica;
o espetáculo do corpo preto, pobre e vilipendiado; o documento que provocava aquela vaga
no abrigo ou na residência terapêutica que não existia, mas deveria; etc. Trava-se de um
discurso sobre si, um modo de se posicionar no interior da administração pública e de um
estilo de exercício de poder pensado como feminino, apto a produzir tanto benesses quanto
o incômodo, as críticas e as reações de Marta.
Se, por um lado, na hierarquia entre os especialistas situados no manicômio Fabiana
tem poderes especiais, por outro lado, ela mesma está submetida, ainda que em graus
distintos, à chefia institucional, às instâncias jurídicas e às formas procedimentais. Acredito
que o “clitóris na mesa” é uma expressão que designa um modo imponente de se relacionar
nos dois sentidos da hierarquia, ainda que exista uma diferença significativa entre eles:
quando voltado para “baixo”, é passível de ser percebido como excessivo; quando voltado
para “cima”, torna-se mais facilmente assinalável como disputa necessária (engajamento). Se
o “clitóris na mesa” designa, enfim, um modo imponente de retirar o “pau” da posição que
ocupa na expressão de uso corrente (“pau na mesa”), é pertinente questionar o que diz esse
ato de força. Em alusão à leitura de Butler sobre Antígona (2014), sugiro que o “clitóris na
mesa” é uma autoridade feminina que, ao voltar-se contra o “pau”, assume a posição
masculina por ele ocupada. Refiro-me a uma relação de disputa, desejo de vitória e
idealização do poder masculino. Era o “judiciário punitivista” contra o qual Fabiana lutava
que emergia de maneira mais acabada enquanto idealização de um poder masculino a ser
vencido. Como Antígona, Fabiana

[…] acaba agindo de formas que são consideradas masculinas não apenas
porque ela desafia a lei, mas também porque ela assume a voz da lei ao
cometer seu ato contra esta. […] Ela [Antígona] assume a masculinidade
ao vencer a masculinidade, porém somente vence ao idealizá-la (BUTLER,
2014 p. 30-31).

Em termos analíticos, vale sinalizar que Fabinana nos conta, a partir da construção
dessa relação de tensão entre feminino e masculino e do desejo de vitória do primeiro “polo”
em relação ao segundo, que as relações de gênero fazem o Estado e o Estado faz as relações
de gênero. Ao chamarem atenção a esse “duplo fazer”, Vianna e Lowenkron (2017)
163

demarcam a relevância da não essencialização analítica do Estado como masculino por


excelência, por um motivo bastante objetivo: é preciso atentar aos diferentes modos de
articulação dessa duplicidade fundamental, pois, do contrário, sujeita-se ao risco de alocar
representações correntes como um dever ser do Estado, espécie de a priori capaz de nublar
as especificidades dos contextos, das relações e dos atos. O “duplo fazer do gênero e do
Estado” não deve também ser reduzido a um discurso de si para si, pois o clitóris, nos termos
em que fora acionado, operou como um estilo de exercício de poder capaz de dispor pessoas
em estado de divergência. Se a burocracia na prática é uma questão de relações sociais
(HERZFELD, 1993), estamos frente a uma metáfora central à compreensão da história de
uma relação entre burocratas e central à demarcação da forma conflituosa assumida por essa
mesma relação. Na medida em que o “clitóris na mesa” não é somente uma representação do
poder, mas um estilo pragmático de exercício de poder, pode-se dizer que o mesmo afeta e
modulas as relações interpessoais e o modo como essas relações se inscrevem no governo
dos casos.
Ainda que se abatesse sobre a psicóloga e outros especialistas como excesso, força
vista como desmedida, a autoridade jurídica generificada se realizava, do ponto de vista da
defensora, enquanto engajamento: um meio de combater a escassez de recursos ou provocar
a redistribuição de “bens”. Está implicada nesse engajamento uma evidente produção de
critérios como aqueles que classificam casos e delimitam a atenção a eles destinada, de tal
modo que há sempre o mal inevitável: produção de assimetrias, esgotamentos e/ou novas
pessoas em sofrimento batendo na porta do gabinete. “Enxugar gelo” era a expressão de uso
comum que melhor designava a sensação de trabalho inesgotável, imperfeito e cansativo.
Manter-se de pé nesse contexto parecia requerer que Fabiana imaginasse a si a partir da
metáfora de alívio à qual diversas vezes recorreu. Tal como Sísifo, na mitologia grega, foi
condenado a rolar uma pedra de mármore morro acima, do cume vê-la despencar e então
descer para subi-la novamente, a defensora se via condenada a lutar por direitos
“infinitamente”. Ela comparava a devoção de Sísifo a uma tarefa eterna ao seu próprio
engajamento burocrático frente ao que chamava de “absurdo dos direitos humanos”
(GRANDUQUE, 2011).

Toda alegria silenciosa de Sísifo consiste nisso. Seu destino lhe pertence.
A rocha é sua casa. Da mesma forma, o homem absurdo manda todos os
ídolos se calarem quando contempla o seu tormento. […] O homem absurdo
diz que sim e seu esforço não terá interrupção. […] De resto, sabe que é
164

dono de seus dias. […] Cada grão dessa pedra, cada fragmento mineral
dessa montanha cheia de noite forma por si só um mundo. A própria luta
para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso
imaginar Sísifo feliz (CAMUS, 2010, p. 124).

Se Camus (2010) quer que imaginemos Sísifo feliz com a sua pedra, Fabiana quer
que imaginemos a sua luta como autorrealização. Posicionar-se no lado humanitário da força
judiciária, entendida e vivida como relação de gênero conflituosa, era uma maneira de
confluir prazer, dor e poder. Dito de outro modo, se há sofrimento no engajamento
burocrático, há também felicidade e ela pode estar localizada precisamente na fruição do
exercício de poder que envolve algumas das premissas já expostas do governo humanitário.
Onde as tarefas se multiplicam, metáforas de poder (clitóris) e alívio (Sísifo) tornam-se
cruciais, pois viabilizam que se siga em frente fomentando gozos, utopias e relações. Buscar
não se tornar a burocrata indiferente, mais ou menos como aquela desenhada por Marta em
suas acusações, parecia ser o que Fabiana intencionava em seu apelo mitológico. A questão
analítica relevante, espero ter demonstrado, não é definir se há alguém certo ou errado, nem
mesmo delimitar quem é per se Marta ou Fabiana, e sim perceber o que cada ângulo de
visualização ilumina a respeito do cotidiano burocrático. Se conforme varia o ângulo de
observação varia também o que pode ser dito sobre pessoas, procedimentos e casos, torna-se
ainda mais compreensível a aposta em descrever como querelas morais, afetivas e políticas
– em suma, relacionais – davam vida ao governo dos casos ordinários, paradigma e de
repercussão.

4.6 Governar junto

Tanto a feminilidade imponente quanto a feminilidade benevolente pareciam


depender de hierarquias para existirem da maneira como existiam, fosse a hierarquia entre
administrados e administradores, fosse a hierarquia entre diferentes administradores. Se de
fato for assim, resta dizer que a minha presença em campo estava balizada por essas
feminilidades. Frente aos administrados, no presídio em que estive com Paula, fui feminizado
no bojo das auto-humilhações, processo que encontrava ainda mais ressonância porque, sem
dúvida, era fácil para os meus interlocutores reconhecer nos meus gestos, falas e corpo um
homem gay, alguém visto como feminino neste sentido. O balcão, as práticas de auto-
humilhação e a homossexualidade imiscuíam-se e assim faziam o feminino que eu
165

compartilhava com Paula e suas estagiárias durante os atendimentos jurídicos no presídio de


regime fechado. No manicômio judiciário, frente a Marta, e aqui não posso generalizar
através da categoria administradores, me tornei alguém que legitimava a feminilidade
imponente e, por isso, tornava-se alvo de desconfiança. Marta sabia que eu não era um
estagiário, preocupava-se com o que eu diria sobre ela na minha tese e, vez ou outra,
comentando sobre o processo de escrita da sua tese, alertava-me sobre a necessidade de
manter-me ético. Deste caso, importa reter que, do ponto de vista da psicóloga, alguém mais
ao meu “lado” que “acima” de mim, eu podia exercer a feminilidade imponente, ainda que a
ela também estivesse submetido.
Diferente de Marta, não estabilizei minha posição afetivo-moral frente à defensora
através da disputa. No curso de três anos, minha relação com Fabiana tanto expandiu-se para
direções não premeditadas quanto intensificou-se. Gostaria de tentar pensar esse vínculo
menos em sua totalidade e mais considerando o que a presença de Marta pode contar sobre
ele. A conclusão a que cheguei foi a de que assumi uma posição relacional com a feminilidade
imponente passível de ser pensada através dos sentimentos morais de respeito e temor. Ou
seja, ao mesmo tempo que entendia e legitimava as razões da demonstração de força,
sobretudo frente à urgência das demandas jurídicas e a escassez dos bens estatais, cuidava
para não me tornar um obstáculo no caminho de um exercício de poder que se
autorreconhecia como necessário. Esse tipo de cumplicidade, Marta estava certa, terminava
replicando metáforas de gênero e poder, fabricando uma carnatura particular para a hierarquia
entre direito e saúde. A reprodução dessas relações não acontecia, porém, sem críticas. Era
possível que eu enunciasse a visão crítica da psicóloga a Fabiana durante os nossos encontros
de leitura bibliográfica e debate sobre os procedimentos49. Minha expectativa romântica era
a de que, através desses debates, poderíamos enfrentar a forma conflituosa assumida pela
relação triangular em que habitávamos e buscar transformar a maneira como nos
percebíamos, o que nunca foi realizado com sucesso e nem deixou de, em algum nível, se
insinuar no interior das formas de gestão .

49
Enquanto fazia campo, Fabiana criou o grupo de estudo e pesquisa Caixa de Ferramentas para Liberdade
(CAFELI) e oficializou a sua existência junto à Associação dos Defensores Públicos do Rio de Janeiro
(ADEPERJ). As reuniões eram frequentadas por defensores, antropólogos, psicólogos e administradores
(servidores, estagiários, etc.) situados em diversos equipamentos públicos – da saúde, do serviço social e da
justiça, sobretudo.
166

Tive mais dificuldade de me aproximar de Marta quando ela e Fabiana de fato


romperam e passaram a agir como se a relação apropriada fosse aquela que facilmente
chamariam de “profissional”. A meu ver, o emprego da palavra “profissional” mascara a
história afetivo-moral que sedimentou a forma da relação entre essas administradoras,
podendo levar-nos ao erro de considerar a alcunha “profissional” como signo per se da
despessoalização, isto é, como se o distanciamento entre elas fosse um fato dado, e não
função de uma intensidade relacional que culminou em rompimento. O que a categoria
“relação profissional” nos faz ver é um esforço no sentido de controlar sentimentos reativos
como aqueles que impediam que Marta visse Fabiana apenas como uma defensora, e o
inverso. Estou tentando demonstrar que, ainda que as minhas interlocutoras intentassem
despessoalizar as relações através de atos e palavras de distanciamento, alguma memória
permanecia como efeito do que foi vivido junto. Nesse sentido, vale mais pensar que a gestão
dos casos é feita tanto de operações pessoalizantes cuja história é importante conhecer,
quanto de operações despessoalizantes cuja eficácia é relativa. A despessoalização que
Fabiana e Marta intentavam era sempre parcial porque o passado estava no tom de voz, na
impaciência velada e nas palavras que corriam pelos cantos. Foi porque vivi a história que
fez a forma precisa da relação entre Fabiana e Marta que pude ver nas escolhas dos lugares
onde cada uma se sentava, mais distantes que o inicial, a caracterização de um efeito de um
estilo de exercício de poder feminino e imponente. Estilo esse que se diferenciava daquele
que clamado, desejado ou procurado, através da auto-humilhação como estratégia de
pessoalização dos procedimentos, como exercício de poder feminino e benevolente.
167

5 POLÍTICA DA HUMILHAÇÃO

Arrisco dizer que o estupro como ritual de vingança ocupa um lugar ímpar nas
representações em torno do que acontece ou pode acontecer no espaço prisional, sendo um
dos objetos recorrentes dessa forma de violência aqueles que foram condenados por crimes
sexuais. A ênfase coletiva é tal que, ao longo da pesquisa, inúmeras vezes fui perguntado em
tom de curiosidade: mas eles – os criminosos sexuais – são estuprados pelos outros presos?
Não foi o que os meus interlocutores me disseram, respondia tentando reconhecer a
pertinência e os limites da pergunta que merece atenção não somente porque me intrigava,
mas também porque criava e ainda cria uma espécie de história mítica sobre o lugar do
estupro e dos estupradores no âmbito prisional. Acredito que a descrição do que estou
chamando de política de humilhação, baseando-me nas análises de diversos autores, é central
à compreensão da ambivalência da figura do estuprador e das práticas de regulação do estupro
nas cadeias do Rio de Janeiro. Em um primeiro momento, pergunto-me sobre qual é a relação
entre masculinidades, violência e humilhação no que tange à maneira como as facções
criminosas lidam com os ditos estupradores, isto é, questiono a ideia de que os “bandidos”
sejam inimigos radicais dos criminosos sexuais. Depois, pergunto-me tanto sobre a
segregação dos meus interlocutores em presídios, pavilhões e celas chamadas de “seguro”
quanto sobre as narrativas que fazem do “seguro” um território do Povo de Israel, dos
“excluídos dos excluídos”, de todos aqueles que foram humilhados e rejeitados pelas facções
criminosas e seus códigos morais. Menos que contar a história do surgimento desse Povo no
interior das cadeias cariocas, ou refletir em detalhes sobre os códigos do mundo do crime,
interesso-me em demonstrar como os meus interlocutores se percebiam em relação a essa
comunidade moral construída através da humilhação e do sofrimento. Seguindo a estratégia
de descrever o lugar dos criminosos sexuais no universo prisional, busco refletir também
sobre o que fazia com que alguns deles avançassem, não avançassem ou avançassem quase
mortos, em visível estado de definhamento, nos regimes de cumprimento de pena: fechado,
semiaberto, aberto, condicional.
Pode-se dizer então que buscarei descrever a política da humilhação a partir de dois
planos de análise, um centrado nas relações interpessoais – mais especificamente nas relações
entre masculinidades em prejuízo aos homens condenados por crimes sexuais –, outro
centrado nas tecnologias de governo dessa população. Desse ângulo, tal como no capítulo
anterior, invisto numa análise combinada das relações e das práticas estatais. Preocupo-me
168

aqui em entender de que maneira a figura do estuprador é construída e regulada no âmbito


prisional, sobretudo. Essa mudança de ênfase é importante porque, se essa figura afeta aos
tecidos relacionais de maneira tão grave quanto demonstrei ao longo desta tese, é preciso
atentar com um pouco mais de cuidado à sua complexidade. Meus dados sugerem que, assim
que um homem é condenado por qualquer crime sexual – uns de fato percebidos como mais
graves que outros, especialmente aqueles que envolvem crianças –, a força do estigma produz
um corte no interior das famílias que “cria” os tecidos relacionais em que habitam não todos
os familiares, mas especialmente aqueles que se dispõem a fomentar processos de
humanização. Trata-se de processos que estão sempre em rota de colisão com os processos
de desumanização e criação de monstruosidade. Como a análise de Lowenkron (2015)
demonstra diferentes âmbitos em que opera a produção do pedófilo como o grande monstro
contemporâneo, o monstro dos monstros, nas páginas que seguem espero observar a produção
da desumanização a partir de dinâmicas sociais que, como são diferentes daquelas analisados
pela autora50, são úteis para evidenciar que a política da humilhação reserva aos criminosos
sexuais algum resquício de humanidade. É preciso preservar um pouco da vítima para que
ela se sinta degradada, conclui Miller (1993) ao analisar a tortura enquanto prática de
humilhação com H maiúsculo. Diz o autor:

Eles [os torturadores] sabem que as pessoas que torturam são seres humanos
(não há ambiguidade) e é por isso que os torturam, na esperança de que
possam revelá-los como não sendo o que sabem que são. Não há emoção
em fazer um rato agir como um rato. A emoção está em tornar um humano
um rato. E um humano que age como um rato justifica sua tortura por duas
razões contraditórias: porque ele desonra sua humanidade agindo como um
rato e porque, como rato, ele está fingindo humanidade, a mais vergonhosa
e arrogante presunção para um rato (MILLER, 1993, pp. 166)51.

Embora concorde com Miller que algo humano é preservado nos estupradores para
que os mesmos possam ser humilhados, sintam-se como ratos, devo sinalizar que não recuso

50
Laura Lowenkron (2015) constrói a sua análise a partir de três planos: o primeiro resulta de um esforço
genealógico em torno das categorias infância, sexualidade e violência; o segundo foca na CPI da Pedofilia como
causa política e vitrine do horror; o terceiro destina-se à descrição das práticas policiais de combate à
pornografia infantil. Para uma análise mais detalhada desse trabalho, ver Rangel (2015).
51
No original: “They know that the people they torture are humans (there is no ambiguity) and that is why they
torture them, in the hope that they can reveal them as not being what they know they are. There is no thrill in
making a rat act like a rat. The thrill is in making a human a rat. And a human who acts like a rat justifies his
torture for two contradictory reasons: because he disgraces his humanity by acting like a rat and because as rat
he is pretending to humanity, a most disgraceful and arrogant presumption for a rat”.
169

a noção de ambiguidade, porque a própria preservação de alguma humanidade nos limites


mais baixos das hierarquias sociais sinaliza a existência de processos de desumanização já
em curso, ainda que nem sempre se completem, atinjam o grau necessário para a completa
desfiguração do humano. A figura do estuprador é ambígua porque transita na fronteira entre
o humano e o monstruoso, circula nos limites – tensos, agitados e manipuláveis – em que o
monstruoso é um pouco humano e o humano é um pouco monstruoso. Se quero demonstrar
algo é que a política da humilhação quer fazer ratos, mas nunca termina de fazê-los, porque
está sempre resguardando um resto de humanidade ainda a ser destruído. É mais caminho do
que chegada, ainda que muitos não resistam ao percurso. Minha impressão é a de que somente
pude descrever os tecidos relacionais que descrevi nos capítulos anteriores porque a política
da humilhação prefere ser processo de desumanização do que desumanização consumada, e
isso é o que faz com que tenha que ser repetida tantas vezes, de tantas maneiras e em tantos
lugares. Digo isso porque poderia descrever a mesma política, ainda que com outros
contornos, a partir de contextos que não o prisional. Refiro-me, portanto, a algo que vaza
desse universo e brota nas perguntas que declaram o repertório social do estupro vingativo,
mas não sem envelopá-lo no tom de inocência e ingenuidade que marca a curiosidade.

5.1 Ritual de vingança

Terminado o interrogatório, a policial saiu da sala e eu permaneci para


conversar com o rapaz. Depois de algumas perguntas para introduzir a
conversa inquiri:
— Machucaram você na cadeia, eles te estupraram?
— Rasparam a minha perna, o meu peito, a minha cabeça… me colocaram
debaixo do chuveiro… bateram nas minhas costas.
— E aqui no São Bernardo, bateram em você?
— Quando eu cheguei aqui fizeram barbaridade comigo. Me colocaram
para chupar um cara e outro para me comer…
— Foi aqui no São Bernardo?
— Foi. Eles me colocavam para lavar banheiro, chamavam eu de
estuprador.
— Falaram que você tá preso separado…
— É. Agora tá eu e outro cara…
(VARGAS, 1997, p. 184)

Justamente porque não vivenciei diálogos como o citado, é importante atentar às


formulações de Joana Vargas (1997) e correlacioná-las às de Selma Lopes (2005) sobre o
170

estupro como prática punitiva52. Enquanto para a primeira o estupro descortina-se em um


relato em primeira pessoa, para a segunda trata-se de algo sobre o qual os seus interlocutores
(homens presos por crimes distintos dos que afrontam a dignidade sexual) ouviram falar. Se
o uso da expressão “ritual de vingança” em Vargas denota um esforço no sentido de entender
o lugar do suplício nas práticas punitivas contemporâneas, a existência desse mesmo ritual é
relativizada por Lopes através do apelo à percepção de que os efeitos negativos do estigma
no interior das penitenciárias podem ser outros que não o estupro – o rebaixamento moral via
xingamento e pancadas, por exemplo. A minha aposta de leitura é a de enfatizar a relação
entre vingança, punição e violência sexual a partir de uma autora e a partir da outra centrar-
me na estigmatização como dinâmica necessariamente vinculada às relações de gênero, ora
demandante da violência (podendo socos e pontapés despendidos por um homem contra outro
serem assim entendidos), ora fundada em ridicularizações hierarquizantes. Acredito que o
mergulho nesses trabalhos, aliado às considerações de outros autores, me permite traçar
conexões e desconexões entre violência e humilhação, bem como melhor localizar o discurso
dos meus interlocutores sobre o tempo em que estupros nos presídios eram comuns.
Frente à denúncia de estupro, Vargas chega à conclusão de que o suplício direcionado
ao corpo e espetacularizado em praça pública (FOUCAULT, 1997) séculos atrás passou a
acontecer na esfera mais privada das carceragens, dos camburões e das celas. A sugestão é a
de que as práticas disciplinares produtoras de corpos dóceis e eficientes, ainda que
acompanhadas pela civilização dos castigos e das penas, redundaram também em uma
realocação do lugar de execução do flagelo do corpo. Mais do que isso, a vingança comum
ao poder soberano teria sido transferida para as mãos dos presos. Defende-se que, no caso
dos homens condenados por crimes sexuais, o desejo de vingança se alastrou por diversos
segmentos sociais, na polícia e no Judiciário, mas a sua atuação foi relegada aos presos para
evitar a poluição causada pela prática da violência. Há uma sinuosidade bastante interessante
nessa formulação sobre o ritual de vingança, pois, ao mesmo tempo que se admite a violação
sexual do corpo masculino em reclusão imposta, contata-se a necessidade de resguardar a
humanidade daqueles que ocupam as posições estratégicas de poder. Ao passo que as
sensibilidades se transformaram, menos suprimindo o desejo de vingança do que

52
Isso significa que estou observando o trabalho das autoras com um interesse particular. Enquanto Vargas está
preocupada em analisar o fluxo do sistema de justiça criminal, toda a cadeia do processamento estatal de
acusações de crimes sexuais em Campinas, Lopes está interessada em entender o lugar do estuprador no sistema
carcerário carioca a partir do que dizem aqueles que os rejeitam.
171

transformando a sua execução, delegou-se aos presos o “trabalho sujo” que, caso efetuado
sem esses intermediários, contaminaria aos cidadãos de bem.
O argumento da “transferência da violência” responsabiliza o Estado pelos estupros
praticados por presos, ainda que indiretamente. Operação conceitual semelhante é realizada
por Avishai Margalit (1996) quando, refletindo sobre a economia de punição moderna, diz
que a humilhação infligida por detentos, uns contra outros, conta como humilhação
institucional. Faço essas considerações porque objetivo substituir a palavra transferência, que
parece implicar uma ideia de Estado fundada no monopólio legítimo do uso da força
(WEBER, 1996) e capaz de responsabilizar o próprio Estado pela transferência desse
monopólio, por qualquer outra que carregue um sentido mais alargado das práticas estatais.
Isso que foi chamado de transferência mais me parece uma modalidade de governo, uma
forma de gestão dos corpos condenados capilarizada, compartilhada e efetuada através do
emprego da violência e/ou da humilhação. A palavra “partilha”, utilizada por Feltran (2014)
por outras razões, bem ilustra esse sentido de governança estendida, isto é, realizada em
conjunto por forças (mundo do crime e Estado) que ora se opõem, ora se coadunam em um
mesmo movimento de abominação – relativa, veremos – aos estupradores. Adiante, após
apresentar alguns aspectos da atuação das facções criminosas no Rio de Janeiro, voltarei a
debater esse sentido de governo.
Por hora, importa dizer que Vargas me parece mais sutil que Margalit ao diferenciar
a economia da punição moderna daquela do suplício. Para este último, tanto a crueldade
dirigida contra o corpo seria mais aguda do que a humilhação do espírito, quanto haveria uma
precedência da primeira em relação à segunda, já que seriam, respectivamente, a
característica por excelência da antiga economia de punição (regime da soberania) e da
moderna (regime da disciplina). Se a crueldade do poder soberano está vinculada à execução
do suplício em praça pública, Vargas está correta ao dizer que esse regime de poder, antes de
ser substituído mecanicamente pelo regime da disciplina, se transformou e se fez presente na
atualidade nos cantos escuros das carceragens. Ainda que em alguns momentos seja
indispensável atentar para o que diferencia a crueldade da humilhação, reservando espaço
para compreensão dos processos históricos, em outros pode ser pertinente entender como a
violência, especialmente a de cunho sexual, requer a humilhação. Em outras palavras, cabe a
pergunta: existe alguma possibilidade do ritual de vingança centrado no corpo não ser ele
mesmo prática de aviltamento do espírito? A minha suspeita é simples e não contém
novidade: o estupro vingativo é o rebaixamento de um homem por outro homem e, por isso
172

mesmo, como sugere a definição corrente de humilhação, é um exercício de hierarquização


(MARGALIT 1996; NUSSBAUN, 2006; MILLER, 1993; KATZ, 2013) – generificado,
acrescento. No núcleo dessa forma de violência contra o corpo está a degradação moral. Não
quero reduzir a polissemia da violência, seja ela sexual ou não, a um conceito específico de
humilhação, somente entender como e quando os dois fenômenos em questão existem em
relação de dependência e demandam formas de pensar o gênero.

5.2 Além da honra masculina

O debate sobre a produção da assimetria entre homens através do estupro sinaliza a


centralidade da ideia de honra masculina na compreensão do modo como a humilhação pode
ser vivida ou sentida. Vargas (1997) aposta na potencialidade transformativa do ritual de
passagem (GENNEP, 2011)53, reformulado enquanto ritual de vingança, quando assevera
que o estupro sofrido pelo seu interlocutor visava fazer dele uma mulher, mas não qualquer
mulher, diante dos demais homens encarcerados. São duas as feminilidades abordadas pela
autora: a primeira, valorizada e a ser defendida, confunde-se com a pureza idealizada de
mães, tias, esposas, avós e filhas; a segunda, desvalorizada e sexualmente desejada, é aquela
que está mais próxima da rua e se constitui através das maneiras de se vestir, se comportar e
se exibir: lascivamente, nua e sem pelos. O que o ritual de vingança faria, nesse sentido, seria
produzir nos homens estuprados a figura da mulher objeto de desejo, e não a da vítima. Ao
passo que consigo visualizar os caminhos etnográficos percorridos pela autora que resultaram
no destaque analítico conferido à defesa das vítimas de estupro como defesa da própria honra
masculina, não visualizo a centralidade da “mulher fatal” no estupro vingativo. Para sustentar
o argumento, falta – inclusive a mim – conhecimento dos roteiros eróticos, sobretudo da
erotização da violência, dos homens que não foram condenados por crimes sexuais, mas
estupram.
Como Selma Lopes se dispôs a inventariar as representações do estuprador no espaço
prisional, o material que reuniu lhe permite dizer que a maneira como os criminosos sexuais
são tratados no sistema penal contém forte marca de vingança, ainda que estupros sejam

53
Um ponto interessante de ser destacado é o de que, se todo ritual é um momento de revelação do ordenamento
social, o ritual de vingança não carrega o valor positivo atribuído à produção de homens a partir de neófitos em
rituais de passagem - bem ao contrário.
173

pouco frequentes. Pensando a vingança a partir das teorias da honra masculina e da vergonha
feminina (PITT-RIVERS, 1971; BOURDIEU, 1965), Lopes, tal como Vargas, entende que
o estupro de mulheres afeta aos homens em seu ponto de honra e, por isso, demanda repressão
rápida e, por vezes, violenta. “Ter honra é calar aqueles que possam pôr ela em causa” (PITT-
RIVERS, 1971 apud LOPES, S., 2005, p. 91), diz a epígrafe do capítulo 5 da dissertação da
autora. Já a do capítulo 4 sugere que “os homens estupram o que os outros homens possuem”
(STIMPSIN, 1980 apud LOPES, S., 2005, p. 76). Desse ângulo, a defesa da honra se dá
distante dos procedimentos formais, em nome das figuras femininas afetivamente próximas
e através da provocação, nos estupradores, daquilo que sentiram as mulheres “esculachadas”.
Lopes avança na discussão defendendo uma segunda maneira de perceber os criminosos
sexuais e com eles lidar. Para alguns dos seus interlocutores, os estupradores são fracassados,
homens incapazes de conquistar através da sedução, isto é, incapazes de converter um não
inicial em um sim. Não valeria a pena se igualar aos “incompetentes” no jogo da sedução
praticando o estupro vingativo. Bastaria a humilhação, ora executada via espancamentos, ora
via xingamentos. Desse ângulo, é possível visualizar que os estupros contra mulheres são
atos comunicativos entre homens, simbolicamente relevantes para homens e produtores de
masculinidades hierarquizadas. Ao mesmo tempo que não vejo razão para deixarmos de levar
a sério esse conjunto de proposições, acredito que é relevante expandir, para além da
linguagem da honra, os repertórios de gênero a partir dos quais avalizamos as masculinidades
e as suas pretensões vingativas e/ou protetivas.
Talvez devêssemos apostar em uma leitura da humilhação entre homens menos como
defesa de certas figuras femininas e mais como produção de distância subjetiva: “eu” não sou
um estuprador, na medida em que “ele” somente existe abaixo de “mim”. Trata-se de uma
vontade de não o ser, de um desejo quase desesperado de não ser confundido com um deles.
O estuprador é sempre o outro. Dessa perspectiva, a ideia segundo a qual aquele que não tem
honra não existe (BOURDIEU, 1965) soa pouco cabível porque, sim, os estupradores existem
e ameaçam continuamente as masculinidades que querem marcá-los através do rebaixamento
moral. Com Lopes concordo, portanto, que o estupro produz algo no interior das relações
intragênero, mas acredito que é importante determo-nos mais frontalmente na humilhação
como produção de distância subjetiva, pois, no limite, trata-se da tentativa de não
reconhecimento da humanidade de uns associada à afirmação da humanidade de outros.
Ressalto aqui a ideia de tentativa para marcar o trabalho político que a humilhação do
estuprador parece objetivar: criar monstros e masculinidades não violadoras. Através dela
174

produz-se uma hierarquia entre masculinidades, mas essa produção é somente a primeira
etapa, por assim dizer, de um trabalho político cujo objetivo último é o de nos impedir de
enxergar a face humana dos estupradores. Em outras palavras, a humilhação é fundamental
tanto à produção e manutenção da figura do monstro quanto ao combate do risco dos homens
a ela se assemelharem.
O meu receio é o de que, para além de incitar a ênfase na vingança como proteção, o
repertório de gênero alinhado à honra termine fazendo-nos ver as relações entre bandidos e
homens condenados por estupro a partir de um espectro analítico rígido. É relevante
atenuarmos a abominação da figura do estuprador, pois não se trata de um ímpeto
incontestável. Vargas já sinalizava a existência de uma seletividade em torno dos
estupradores que serão objeto das formas de violentar que implicam a humilhação, pois
existem códigos, hierarquias e práticas entre presos que podem prevalecer em relação ao
discurso da abominação do estupro: a ocultação desse crime pode imperar; o apelo emotivo
causado por figuras carismáticas pode se sobrepor ao estigma; a reputação como bandido
pode ser considerada mais relevante do que uma condenação por crimes sexuais; os
estupradores de crianças são mais perseguidos que outros; etc. Quanto aos meus
interlocutores, vale dizer que a mãe de Marquinhos me contou que seu filho foi tratado como
“bucha” em vários presídios; Tonico me disse que numa cela de delegacia acabou topando
com um traficante do seu bairro, pessoa com quem tinha moral 54 e que acabou impedindo
que ele fosse agredido quando os demais presos descobriram que ele era “do artigo” 55; Altair
me contou que o trabalho como “faxina” possibilitou que fosse reconhecido como o cara das
boas notícias, aquele que contava sobre as concessões de benefícios jurídicos; e Ivan me disse
que não sofria as ridicularizações e as agressões provocadas por agentes penitenciários contra
homens condenados por estupro de vulnerável porque era um ex-policial.
Em uma entrevista, posterior a um estupro coletivo que obteve ampla repercussão,
que decorreu em 2016 em uma favela carioca e foi praticado, segundo o noticiário, por
traficantes contra uma jovem desacordada, Camila Dias (2016) sugere que existe uma
romantização da ideia de que os bandidos são inimigos dos estupradores. Se é verdade que
no Rio os estupros de vingança já não acontecem nos presídios e são proibidos pelos estatutos

54
Refere-se a um senso de respeito.
55
Refere-se a homens condenados por crimes sexuais.
175

das facções/comandos, como sugerem os meus interlocutores, não é menos verdadeira a


tolerância em relação a crimes sexuais praticados em outros contextos e contra outras vítimas.

O chamado crime organizado, que a gente pode traduzir como os comandos


que controlam as prisões e as localidades pobres, não admitem os estupros
dentro das cadeias de um homem por outro (isso não se aceita mais, pelo
menos aqui em São Paulo) e o estupro de mulheres visto num sentido mais,
digamos, “clássico”: aquela ideia do desconhecido que aborda uma mulher
na rua e, mediante ameaça, comete um ato sexual forçado. Agora, acho que
é importante considerar que o tipo de estupro ocorrido nessa comunidade
do Rio de Janeiro, envolvendo pessoas que se conhecem, em momentos de
festa, com o consumo de bebidas e drogas, não é reconhecido assim. Esse
tipo de ato, que a gente também classifica como estupro, porque se trata do
abuso de uma pessoa que está numa situação de vulnerabilidade, ocorre
com muito mais frequência, não só nas comunidades pobres, mas também
em festas universitárias e de classe média. É o compartilhamento de uma
cultura machista amplamente disseminada na nossa sociedade e que, no
caso das comunidades pobres, se revela de forma mais contundente (DIAS
apud SALVADORI, 2016).

Dias é conclusiva: os traficantes são machistas. Talvez seja possível dizer que Lopes
também caracteriza os bandidos com os quais conversou como machistas, mas o faz através
das teorias da honra e, talvez por isso, termine reconhecendo menos sinuosidades nas relações
de gênero. Se já mencionei os ganhos proporcionados por essa abordagem, passo a salientar
o porquê de, nos capítulos anteriores, ter insistido em descrever atos que classificaria como
machistas sem apelar sistematicamente à honra. Por um lado, penso que os repertórios
normativos de gênero são mais variados que a linguagem da honra e, por outro lado, acredito
que esse conceito tende fixar as relações de gênero em modelos analíticos excessivamente
estruturais, mais rígidos que os meandros da vida social (LOPES, S., 2005). Venho
argumentando que a abordagem pós-estrutural do gênero, mais especificamente a ideia de
performatividade (BUTLER, 1990), nos permite intensificar a atenção voltada aos sentidos
e aos efeitos dos atos conforme se dão no plano ordinário. Reitero essa perspectiva para
sinalizar que, ao longo dos quatro primeiros capítulos, busquei descrever não tanto o que se
diz sobre os homens condenados por crimes sexuais ou sobre o modo como com eles é
possível se relacionar, e sim a maneira como de fato as relações entre eles e diversas mulheres
se constroem, sustentam e/ou desfazem. O meu argumento é convencional a algumas
antropologias: para entender etnograficamente o machismo, é preciso situar os nossos
interlocutores nos tecidos relacionais ou nos contextos sociais em que eles habitam, pois
assim podemos compreender os sentidos e os efeitos do que eles fazem não somente a partir
176

da maneira como classicamente analisamos os seus atos, mas também do modo como outras
pessoas os enxergam e respondem a eles.
Essa compreensão das relações de gênero em termos ordinários é, segundo Díaz-
Benítez (2019), significativa também para a compreensão da relação entre humilhação e
violência, uma vez que, em certas circunstâncias, as pessoas podem se sentir humilhadas,
mas não necessariamente violentadas. Em sua análise, a autora fala sobre mulheres que tanto
suportam o rebaixamento moral provocado por namorados e maridos quanto o consentem
por mais restritivo que possa ser o consentimento em situações de vulnerabilidade, risco e
assimetria. O argumento deriva da identificação dos sentimentos e valores que fazem as
mulheres aceitarem permanecer sendo humilhadas (amor, culpa, ideais de família, etc.), mas
também extrapola essa identificação na medida em que redunda na observação dos momentos
em que atos antes classificados por elas como humilhantes passam a ser entendidos como
violência. Esses são os momentos em que ocorrem fissuras (DIAZ-BENÍTEZ, 2015),
situações-limite que nos permitem ver que a violência e a humilhação ora se distinguem, ora
se confundem. Nascem como polos que, antes de se afastarem de modo definitivo, são
intercambiáveis. Quando se passa de um ao outro, pode ocorrer uma fissura cuja duração é
extremadamente curta, o que faz com que o ponto de encontro entre a violência e a
humilhação logo se apague no contexto das relações analisadas pela autora. Essa tensão entre
polos depende de um repertório feminino centrado na capacidade de suportar e, por isso
mesmo, distinto do repertório masculino que combina a todo instante a violência contra o
corpo e a humilhação do espírito como prática de distanciamento subjetivo entre homens.

5.3 Os vivos e os mortos

Eu era chefe de turma no Hélio Gomes. Eu cheguei de manhã cedo na


cadeia para assumir o plantão. […] Aí eu chamei o colega e fui rodar a
cadeia. Nisso que eu fui rodar, eu senti, né? Porque você se acostuma, até
com a maneira do preso falar contigo, quando você passa. “Ô fulano, como
está a família?” Então, quando eu entrei na galeria, os presos tavam tudo
mudo. Ninguém falava nada. Eu disse: “Ih, [nome do colega], aconteceu
alguma coisa”. Fui na galeria e voltei. Entrei em uma cela que estava
desativada. Achei o quê? Cinco corpos empilhados, um em cima do outro.
Depois, eles fizeram aquela matança. Morreu pra mais de 40 presos em 87.
Não sei se você lembra. Morreu na Ilha Grande, morreu aqui (Complexo
Frei Caneca], morreu ênes presos, né? A mando do Comando Vermelho.
Então, eu achei aquilo uma grande covardia. Teve muitos presos que
morreram ali de graça. Eles marcaram a matança, eles queriam sensibilizar
o governo e tirar os presos que foram para Bangu 1 […], aquelas lideranças
177

todas. Então para sensibilizar o governo, querendo que aqueles presos


saíssem de lá, começaram a matar outros. Cismavam, assim, fim-de-
semana, “não, aquele ali é estuprador” e mandavam matar (BARBOSA,
2007, p. 144).

Selecionei esse trecho de um artigo de Antônio Rafael Barbosa sobre práticas de


violência física dentro das cadeias do Rio de Janeiro porque nele é exibida como se davam,
décadas atrás, a seletividade implicada à produção da morte de presos e a negociação com a
administração penitenciária fomentada pela própria execução como ação estratégica. Barbosa
(2007) sustenta que, ao mesmo tempo que o surgimento dos Comandos (Comando Vermelho
– CV, Amigos dos Amigos – ADA e Terceiro Comando Puro – TCP) limitou a violência nos
presídios – a considerar pela necessidade de comunicar ao “frente da cadeia” qualquer ação
violenta –, os mesmos passaram a exercitá-la em momentos agudos. As ações do Comando
Vermelho, para ficar com o exemplo do autor, seriam ambíguas, já que, por um lado, estupros
de vingança e outras práticas violentas foram proibidos e, por outro lado, assassinatos
passaram a ser regulados e acionados a depender do estado da correlação de força entre essa
facção e a administração penitenciária. Nesse mesmo artigo, o autor chama atenção para a
rebelião que aconteceu na Casa de Custódia de Benfica no ano de 2004 e resultou na execução
liderada pelo Comando Vermelho de dezenas de presos de uma facção oposta. Sua intenção
é demonstrar o “fracasso” da administração penitenciária ao juntar em um mesmo presídio,
ainda que em celas e galerias diferentes, facções distintas. Atualmente, é sabido que a
distribuição dos detentos pelos presídios é realizada a partir das identificações de
pertencimento aos Comandos e aos territórios onde eles atuam e que, aos ditos estupradores,
pedófilos e afins, cabe o que convencionou-se chamar de “seguro” – celas, galerias e, mais
frequentemente, presídios específicos. Na próxima seção, voltarei a falar sobre o ano de 2004,
visando chamar atenção a uma rebelião crucial à compreensão dos sentidos atribuídos por
presos às unidades penitenciárias de seguro no Rio de Janeiro e mesmo ao processo de criação
dessas unidades (CALDEIRA, 2007).
Selma Lopes realizou a sua pesquisa justamente entre os anos de 2003 e 2004. Foi a
credencial dela como psicóloga que a permitiu entrar nas cadeias em uma fase especialmente
crítica do sistema penitenciário carioca. Ela queria entrevistar homens condenados por crimes
sexuais, porém terminou – em função de motins, greves de fome e mortes – redirecionando
a pesquisa e conversando sobre os estupradores com homens que cometeram outros crimes.
Uma das suas hipóteses é a de que o Comando Vermelho seria mais rígido na resistência aos
178

criminosos sexuais do que o Terceiro Comando, devido à sua capacidade de organizar e


hierarquizar as malhas do poder. Até mesmo a realização de entrevistas com os presos
precisava nas unidades dessa facção passar pela autorização do “presidente”. Era um
“ligação” que fazia a conexão entre a autora e a “comissão” composta pelo “frente da cadeia”,
pelo vice-presidente e por presos em outras posições estratégicas. Os homens indicados pelo
“presidente”/“frente” para entrevista foram categóricos na reafirmação negativa da alcunha
de estuprador. Disseram que outras unidades seriam mais adequadas aos propósitos da
pesquisa e deixaram-na falar apenas com dois integrantes do Comando Vermelho. Esses
impeditivos fizeram a autora concentrar as suas atividades de campo no manicômio judiciário
situado no Complexo de Gericinó onde já havia trabalhado. Ali, acabou conversando com os
“faxinas”, que são os presos que têm postos de trabalho no presídio, alguma proximidade aos
administradores (psicólogos, defensores, médicos, etc.) e acesso a regalias, e, muitas vezes,
são percebidos pelos demais presos como alcaguetes.
Não posso avaliar com segurança a hipótese da autora sobre a severidade acrescida
da rejeição do Comando Vermelho aos estupradores porque não realizei pesquisa junto às
pessoas vinculadas às facções. É inegável, contudo, a importância crucial do surgimento
desse Comando e dos demais à instauração das práticas administrativas que classificam os
detentos e os distribuem em celas, galerias e presídios de seguro. Ou seja, a governança da
população carcerária não é realizada através da determinação de fronteiras estáveis entre, de
um lado, o mundo do crime e, de outro lado, a administração penitenciária, pois ambos
influem no destino dado a essa população. Essa ideia de governança que toma em conjunto
as formas de organização dos presos e as formas de organização do Estado está, a meu ver,
presente nas formulações que fazem alusão ao equilíbrio instável entre as forças em questão
e chamam atenção para a relação entre os valores disseminados pelos governos no poder, se
mais alinhados aos direitos humanos ou não; as práticas adotadas por agentes penitenciários,
se mais violentas ou não; e a eclosão de rebeliões, como resposta dos detentos a essas
variações e ainda estratégia de negociação (BARBOSA, 2007). A governança é, nesse
sentido, um processo político e administrativo cuja feição moral não é estática, pois varia
conforme os governos no poder e suas relações com o mundo do crime. A tecnologia do
seguro, por sua vez, é uma estratégia de governança que, para além de fazer viver populações,
as segrega em espaços que, como veremos, não são em sua inteireza espaços de vida, e sim
formas interiorizadas de estratificação, hierarquização e regulação das vidas que contam ou
não como vidas (MALLART, 2019). A prisão absorve o que já foi descartado, mas “não
179

captura e destroça todos os detentos da mesma forma. Ela não distribui a sua força, à imagem
e semelhança de uma prensa hidráulica, em todas as direções e de maneira proporcional”
(MALLART, 2019, p. 220).
Nos seguros são alocados os criminosos sexuais, a população LGBT, os bandidos que
“vacilaram” no convívio, as pessoas que cometeram crimes de repercussão pública, todos
aqueles que por algum outro motivo “pularam” de cadeia, os ex-policiais e outros. “Um
grande balaio de gatos”, de acordo com um delegado (“O BICHO…”, 2016, s. p.). Mesmo
sem a pretensão de analisar em detalhes as práticas de regulação que atravessam tantos
indivíduos e grupos, acredito que a observação de um argumento de Canheo (2017) sobre o
processo de produção da população LGBT em privação de liberdade como sujeito de direitos
pode ser pertinente para denotarmos o lugar ambivalente dos estupradores no âmbito
carcerário. A autora sugere que o “nó entre vulnerabilidade e risco” é a marca principal da
governança dos seus interlocutores. Enquanto o conceito de vulnerabilidade aponta a
necessidade de proteger as minorias reconhecidas em normativas administrativas, criando
territórios de segurança e apelando à narrativa chave dos direitos humanos, o de risco parece
ressaltar a existência de perpetradores, dentre eles os estupradores, que ameaçam
continuamente a integridade física do sujeito de direito vulnerável, a população LGBT.
Embora vulneráveis à repressão causada pelos membros das facções e das milícias, os
criminosos sexuais representam, diante de outros grupos, uma ameaça, o que não configura
uma generalização incontestável, se considerarmos que as relações entre a população LGBT
e os criminosos sexuais podem ser múltiplas. Digo isso lembrando que, no presídio
semiaberto que frequentei em Bangu, conheci Natasha, uma travesti que gostava de transar
com os estupradores porque o sexo proibido e perigoso lhe despertava prazer. Não percebi
medo na fala dela, e sim vontade de se apresentar como alguém em posição de controle 56,
seja em relação aos homens, seja em relação ao prazer.
A observação anterior deve ser analisada com cuidado, contextualizada, posta em
relação aos argumentos de Sander (2019), uma vez que a autora demonstra que a produção
das mulheres trans e travestis no espaço prisional como corpos hiperbólicos, de certo ponto
de vista administrativo, faz com que figurem como objeto de desejo e objeto de risco, já que

56
A posição de controle a partir da qual Natasha falava estava vinculada ao fato de, na cadeia, ela trabalhar na
enfermaria e, por isso, ter acesso a medicamentos, consultas e mesmo à organização das filas de atendimento
médico. Em um lugar onde as pessoas estão sempre morrendo, há vantagens e riscos associados à posição
assumida pela minha interlocutora.
180

não somente atiçam aos detentos – representados por sua vez como incapazes de controlar as
suas disposições sexuais –, como também se envolvem em práticas sexuais na calada da noite
que culminariam em doenças sexualmente transmissíveis. Referindo-se ao pavilhão do
seguro em Minas, à Ala LGBT, um agente penitenciário conclui: “esse pavilhão aí de noite
é um surubão, pura doença” (SANDER, 2019, p. 67). A autora demonstra ainda que o
surgimento dessa Ala se vincula à produção, também hiperbólica, das mulheres trans e
travestis como vítimas da violência sexual pelos movimentos políticos vinculados a uma
agenda humanitária em relação aos presídios. Trata-se de uma análise que demarca que os
mesmos corpos representados como promíscuos são representados, em outros planos, como
abusáveis e, por vezes, incapazes de perceber o abuso que sofrem. A esses discursos, a autora
costura as observações das suas interlocutoras sobre amores vividos entre as grades e a
ocorrência de estupros no interior das relações afetivas, bem como descreve o estupro de uma
travesti por agentes penitenciários que com ela não se relacionavam bem, melhor dizendo,
descreve o estupro como vingança praticada por administradores.
Para entender o seguro em termos experienciais, seria preciso compreender e
correlacionar pertencimentos coletivos heterogêneos e trajetórias individuais variadas 57. Esse
não é o meu objetivo. Minha intenção, antes de ser também a de destituir ou reafirmar a ideia
de risco forjada em um processo político-administrativo que escapa à minha análise, é a de
seguir demonstrando que a abominação dos criminosos sexuais é relativa e o seu lugar no
sistema penal, variável, a tal ponto que alguns dentre essa coletividade podem ser eleitos
como bons governados pelos administradores. Os interlocutores que conheci enquanto
cumpriam pena no presídio de regime semiaberto sob responsabilidade da defensora Fabiana
fazem parte do contingente populacional que se ajustou aos modos de operação das prisões,
isto é, não acumulou faltas disciplinares e teve o seu comportamento bem avalizado pelos
administradores vinculados à prisão e ao judiciário. Trata-se de homens selecionados à
progressão de regime e ao trabalho extramuros. Detentos que venceram os exames aplicados
por especialistas da psicologia, do serviço social e da psiquiatria, que convenceram aos
membros do Ministério Público e que ultrapassaram o livre convencimento dos juízes.
Levaram anos, de prisão em prisão, de regime em regime, até poderem se movimentar pela

57
Seria fundamental atentar também para as diferenças entre o seguro que se dá em uma cela ou em uma galeria
e aquele que se dá em uma cadeia de regime fechado ou de regime semiaberto. Ainda mais urgente seria
entender como se constrói a organização e a composição de cada seguro-cadeia: uns amplamente reconhecidos
por abrigarem número maior de travestis e homossexuais, outros por abrigarem variedade enorme de pessoas,
incluindo ex-policiais e milicianos, o que cria uma série de divisões internas de cadeia a cadeia.
181

cidade em direção ao balcão do NUSPEN. Uns demoraram mais que outros, mas, se
chegaram até ali, são todos relativamente disciplinados – aqueles que têm muito a perder
quando cometem faltas (a exemplo da história de Pablo e Roberta, contada no capítulo 1) e
ainda alguma estrada até a conquista da liberdade. São também esses os homens que
comumente têm uma mãe, uma tia, uma conhecida ou um affair disposto a caminhar de um
lado ao outro atrás dos papéis e dos carimbos que possibilitam as lentas movimentações
processuais.
Ser um bom governado é para esses homens o mesmo que ser moído pela cadeia
enquanto se aprende a nela viver. “É muita humilhação que a gente passa”, costumava me
dizer Carlos, referindo-se a uma infinidade de coisas: à comida ruim, à superlotação, à perda
de dinheiro, à marca produzida pelo crime sexual, aos filhos já crescidos. Marquinhos
reclamava mais de apanhar dos agentes penitenciários quando era transferido de prisão. Em
função do estigma, ressaltava. “Esse é do artigo”, ele ouvia antes dos golpes e esculachos
inevitáveis. Em realidade, muitos foram os que me disseram que, para alguém marcado como
“Jack”, “duzentão”, “pedófilo” ou “estuprador”, a captura (comumente televisionada), a
entrada no sistema penitenciário e as transferências entre presídios eram situações
humilhantes e potencialmente mais violentas do que a vida estabilizada em uma cadeia de
seguro. Nelas, as regras são claras. Da porta para dentro, “zera tudo”58: “não importa o artigo
que o amigo cometeu”, pois “não se pode desfazer de qualquer artigo”; “é um respeitando o
outro”. É claro que as regras, tal como vividas, são mais ambivalentes. O próprio respeito,
segundo Carlos, não era algo dado de antemão, e sim uma conquista. Ele, tal como Altair,
me disse que “soube impor respeito”, conhecimento incorporado que notoriamente sinaliza
uma relação hierárquica entre masculinidades, uma lutando por algo que a outra pode ou não
conceder. Já Marquinhos, “tio bucha”, “bobo” demais para impor qualquer coisa a outro
homem, recorreu no seguro às celas ou galerias dos evangélicos, “cheias de não pode isso,
não pode aquilo”, mas boas para “tirar a cadeia”. Outros foram para lá por uma questão de
fé.
Carlos, Altair e Marquinhos sobreviveram. Sorte semelhante não teve aquele que seria
o meu primeiro interlocutor. Se o tivesse conhecido, entraria com Fabiana e sua equipe na
Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Complexo de Bangu e encontraria um corpo sem

58
As citações referenciadas são trechos do Estatuto do Povo de Israel. Agradeço ao antropólogo David
Thompson por ter me cedido o material e também pelas inúmeras conversas sobre os presídios de seguro e as
práticas da Defensoria Pública.
182

fala, sendo consumido por uma bactéria cerebral enquanto unhas e cabelos ainda cresciam.
Foi a irmã desse homem, mais morto do que vivo, que me contou que ele contraiu HIV no
sistema. Mas foi o marido dela que me ligou, dias depois de eu visitar ao casal em um bairro
da baixada fluminense, pedindo ajuda para conseguir retirar o corpo morto da UPA e enterrá-
lo. Diógenes cheguei a conhecer. Conversei com ele no Sanatório Penal, unidade onde casos
graves de tuberculose são tratados e também outras doenças de base. De máscara médica,
ouvi ele me contar toda a história que a sua filha já havia me dito quando almoçamos juntos
no centro da cidade. Ele sabia que não tinha muito tempo. Chorava. Tossia. Morreu antes de
sua esposa descobrir que ele e seus filhos estavam mentindo para ela ao dizer que a
condenação pelo estupro de uma criança ainda não havia sido decretada. Tal como Diógenes,
Nelson (affair de Dona Teresinha) e Edson (pai que Lilian tentava perdoar) adoeceram no
sistema. Chegaram, porém, vivos ao regime semiaberto. Um já morreu, o outro ainda espera
pela morte. As condições dessa espera são várias. Pense em um manicômio com cheiro de
cadeia e aspecto de cadeia. Nos andares superiores estão os loucos criminosos que vivem no
convívio. No térreo, próximo à enfermaria, há um corredor segregado com várias celas
individuais. Numa delas, vivia Juliano (vitrine do horror, mencionada no capítulo anterior).
Em outra, Marlon. Envelhecido. Na casa dos sessenta anos, menos, talvez. Com duas fugas
e dezenas de estupros em sua ficha criminal, o futuro dele também não era mais que espera
pela morte, ainda que, à diferença de Juliano, há muito tenha sido esquecido pelo noticiário
sensacionalista.
É preciso que o corpo/espírito aguente, suporte ou engula a política da humilhação,
bem como escape repetidas vezes do definhamento, para que alguém se torne um bom
governado e, finalmente, chegue até o regime semiaberto. Refiro-me não a qualquer
semiaberto, e sim àquele localizado no centro da cidade e que, diferente do de Bangu, permite
aos condenados escolhidos pelo “sistema” a circulação pela rua. Se está claro que os
caminhos até essa unidade são para poucos, deve estar claro também que as chances de uns
são escandalosamente mais vastas que as de outros. Sem dinheiro para as necessidades
fundamentais, os itens mais supérfluos e as transações econômicas prisionais, Marquinhos
foi se virando junto aos evangélicos. Altair, ao contrário, sempre pôde contar com o amor e
o dinheiro de Helena. Educado, branco e de classe média, ele não à toa se tornou benquisto
pelos agentes penitenciários. O homem das boas notícias. Um faxina. Para Ivan, a vida
prisional sempre foi junto a outros ex-policiais no seguro do seguro. Perguntei a ele, mais de
uma vez, se os seus companheiros de profissão não o retaliavam por ter sido condenado pelo
183

estupro da sua filha. “Não tem essa”, disse antes de me explicar que a regra do seguro (não
esculachar em função do artigo) valia nele todo, ainda que os policiais não estivessem
submetidos ao “primeira-voz” do semiaberto de Bangu – de uma parte dele59. O que mais me
importa aqui é demarcar que, enquanto uns vão trilhando possibilidades de mais vida a partir
das condições de classe, dos laços que nutrem e do pertencimento a uma categoria
profissional crítica no sistema, outros vão se movendo com o pouco que têm e com o pouco
que trazem os seus familiares, quando eles existem. Muitos estão em posição ainda pior. São
inassimiláveis à lógica da disciplina os que encarnam o horror, os que cometem falta atrás de
falta, os que vivem no isolamento como castigo, os que apodrecem, os que surtam, os que
são esquecidos (MALLART, 2019).
As práticas administrativas que fazem os vivos e os mortos, que criam zonas onde
mesmo os vivos estão meio mortos, que os segregam aqui ou ali, me fazem lembrar
imediatamente da imagem acionada por Mallart (2019) para caracterizar o sistema prisional:
um arquipélago concêntrico, onde cada ilha é uma prisão e cada buraco de uma prisão, cada
ponto crítico da “política do definhamento”, é uma base de sustentação do próprio
arquipélago. Remetendo-se ao debate sobre a porosidade dos muros das unidades
penitenciárias (CUNHA, M., 2004; GODÓI, 2015; PADOVANI, 2018A; LAGO, 2019), o
autor argumenta que os muros que separam o dentro e o fora, bem como regulam os fluxos
de pessoas, substâncias, coisas e relações, criam também fracionamentos internos: “de prisão
em prisão, observa-se a existência de espaços físicos que parecem operar com dinâmicas
próprias, endurecendo a experiência do encarceramento” (MALLART, 2019, p. 222). As
cadeias que compõem o arquipélago, longe de serem espaços homogêneos, são desiguais em
perspectiva comparada e internamente recortadas, repletas de cantos, passagens, salas, celas,
buracos e pontos; espaços “subterrâneos” encarregados de “amassar e triturar, entre outros,
os sujeitos inassimiláveis, que não convivem com o grosso da massa carcerária e que, por
vezes, não se adaptam aos que se adaptaram aos pavilhões” (MALLART, 2019, p. 232).
Neles estão ou estiveram Juliano, Diógenes e o interlocutor que não conheci. Não são,
portanto, todos os criminosos sexuais que vivem em, passam por ou simplesmente não

59
O presídio de seguro (semiaberto de Bangu) que frequentei era internamente dividido. “A” comandava o
miolo – a parte mais central da cadeia – e “B” uma parte mais lateral e menor. Em outra fatia, estavam os ex-
policiais. Na galeria F, os faxinas e todos aqueles que foram rejeitados por A e B por razões que não conheço.
“Vacilaram” no convívio. Embora tenha ouvido falar sobre essas divisões em várias ocasiões, a minha
proximidade à Defensoria me impedia de materializá-las espacialmente, afinal, não costumava ver muito além
da área administrativa da cadeia.
184

ultrapassam os “fundos múltiplos”, as “masmorras”, os “espaços intersticiais”, os “intervalos


que possibilitam a operação do todo”, os “subterrâneos” que fazem uns apodrecerem
enquanto outros avançam pelos caminhos cinzentos que levam até o presídio de regime
semiaberto onde se tornavam assistidos da defensora Fabiana, casos mais frequentemente
ordinários que paradigma.
A “política do definhamento” (MALLART, 2019) tanto requer a acentuação disso
que estou chamando de política da humilhação (maneiras múltiplas de rebaixar) quanto
depende de localizações específicas para produção dessa acentuação. Enquanto a primeira é
um “fazer babar”, “uma produção lenta e progressiva do estado de decomposição”, uma
prática de governança que utiliza os buracos para fazer “com que os próprios vivos se
convertam numa zona de sombra” (MALLART, 2019, p. 252), a segunda se levanta na luz
do dia, frequenta os espaços mais visíveis dos presídios, cruza as relações entre os homens
vinculados às facções e os que foram segregados no seguro, reside nos “passeios” com os
agentes de segurança, está nos olhos roxos e nos insultos sofridos por aqueles a quem o
respeito não foi concedido, nas cabeças baixas, nos silenciamentos provocados pelos
operadores do direito (ver capítulo 4), no estigma de estuprador, etc. Nesse sentido, a política
da humilhação desloca-se entre dois planos: o das relações interpessoais vividas como
profundamente assimétricas (dentre elas, as relações entre masculinidades em prejuízo aos
estupradores) e o das tecnologias de governo que se dirigem a essa população, mas a excedem
e excedem também as relações interpessoais na medida em que o cheiro, a superlotação, a
comida ruim, o calor excessivo e a umidade rebaixam uma maioria – negra, sabemos – como
menos humanos. A mesma umidade que humilha e governa intensificando a sensação de
calor em celas abarrotadas pode fazer alguém definhar, a depender do estado do corpo e do
local onde esse corpo está: ferida inflamada e aberta?; sem banho?; sem medicamento?; no
escuro do castigo?; dopado?; na presença de insetos?; consciente?; junto a tuberculosos não
tratados?; etc. A relação entre definhamento e humilhação é da ordem do contínuo. Ondas de
calor progressivas, mas que não emanam de todos os lados e não se dissipam por todos os
lados, nem sobre todos os corpos, da mesma maneira e com a mesma intensidade.

5.4 Povo de Israel

Chegamos à discussão central desse estudo: um grupo crescente de internos


passou a tentar dominar a unidade prisional, inicialmente pela intimidação
185

e violência. Ou seja, tentou fazer com que o presídio “neutro” se tornasse o


espaço carcerário de uma nova facção criminosa. O incidente mais notável
foi um violento motim ocorrido no dia 11 de julho de 2004. Após 14 horas,
o motim terminou no presídio Hélio Gomes com a morte de um preso e 19
pessoas feridas – os cinco agentes que foram mantidos reféns, além de 14
detentos. Os presos que lideraram este motim foram transferidos para outras
unidades mas, desde então, procuraram voltar para o "seguro" no presídio
Hélio Gomes, com o intuito de lá formar a base territorial da facção
encarcerada (CALDEIRA, 2007, p. 14).

O referido presídio tornou-se “de seguro” em meados de 2004. Conta-se que essa foi
a primeira experiência desse tipo no Rio de Janeiro. Caldeira (2006; 2007) argumenta que
em função de conflitos entre grupos rivais, rebeliões, greves de fome, ameaças de fuga,
assassinatos, bem como da expansão do sistema – novas galerias, celas e unidades –, a
transferência de líderes, grupos ou enorme contingente populacional tornou-se prática de
regulação comum. Isso aconteceu, por exemplo, após o motim em 2004, quando líderes do
movimento no seguro foram parar no presídio Ari Franco em Água Santa e, em 2005, quando
cerca de 200 criminosos sexuais foram transferidos do presídio Hélio Gomes para outro
conhecido como Galpão, local onde estavam reunidos majoritariamente presos do Terceiro
Comando. Indignados, estes últimos ameaçaram matar a população que rejeitavam. Por
retaliação, a administração penitenciária transferiu os líderes – dessa vez do Terceiro
Comando – para a unidade em Água Santa. Aqueles que ficaram iniciaram uma greve de
fome. Os deslocamentos forçados descritos por Caldeira ocorreram até o ponto em que a
rivalidade entre a galeria A (seguro) e a galeria D (TCP) acentuou-se no Ari Franco, o Hélio
Gomes tornou-se de facção e o Galpão converteu-se em uma base territorial (seguro) para o
que se convencionou chamar de Povo de Israel, em alusão ao deslocamento do povo hebreu
em direção à Terra Prometida60. Dado o meu interesse em discutir as implicações disso que
estou chamando de política da humilhação, não irei me alongar em uma discussão do livro
da bíblia, Êxodo, que fala sobre a escravização dos hebreus no Egito, a libertação dos mesmos
por Moisés e a saga até Canaã, e sim no modo como os meus interlocutores se referiam a esse
povo.
Devo dizer também que, embora saiba que fatores como a prática do “disque-
extorsão”61 e a organização hierárquica do Povo de Israel – à semelhança da organização dos

60
Era menos comum a referência ao seguro como Portal 001, uma alusão ao código utilizado pela administração
penitenciária para referir-se aos presos que pedem seguro.
61
Falsos sequestros simulados por telefone da cadeia .
186

Comandos em presídios – fizeram Caldeira categorizar essa coletividade como uma facção,
optarei por utilizar tal classificação apenas quando relevante aos meus interlocutores. Penso
especificamente em Tonico, pai do filho que Célia estava esperando. Ele foi o único que me
disse que, sim, o Povo de Israel era uma facção porque controlava territórios fora dos
presídios. Nunca encontrei referências que afiançassem o argumento. Percebia, porém, o
entusiasmo dele em construir uma narrativa em que os filhos de Israel não fossem percebidos
somente como “povo humilhado” e “povo sofredor” – duas categorias que escutei milhares
de vezes nos últimos cinco anos. É difícil construir textualmente o entusiasmo de Tonico
porque não se tratava de algo que se revelava através das palavras. Estava no rosto, no ritmo
da fala, na vontade de me fazer enxergar nele uma masculinidade não rebaixada, menos
rebaixada. O episódio que o meu interlocutor chamava de “revolta dos pacatos”, motim que
teria acontecido no Hélio Gomes e sido organizado por criminosos sexuais cansados de serem
“esculachados”, é uma das várias narrativas sobre o surgimento do Povo de Israel no contexto
prisional62, mas é também um modo de colocar-se em relação à humilhação. De recusá-la,
melhor dizendo. Miller (1993) defende que narrar-se como rebaixado é algo mais ofensivo
aos homens que às mulheres. Enquanto eles perderiam a face, o senso de dignidade e se
tornariam femininos ao descreverem publicamente a si mesmos como humilhados, elas mais
facilmente fariam a si mesmas através do sentimento de humilhação. Tonico, nesse sentido,
mesmo não tendo participado do motim, seria um pacato disposto à revolta em razão da
humilhação. Suspeito que devemos observar as categorias “pacato”, “humilhado” e
“sofredor” de dois ângulos, um mais coletivo e outro mais individual.
De um ponto de vista mais coletivo, estamos lidando com o status de um povo que
seria passivo, um tanto dócil, não fosse a veemência da subalternização da qual era alvo, e,
do ponto de vista mais individual, com sentimentos que os homens não vivem igualmente e
nem de maneira fixa ao longo das suas trajetórias. Se é verdade que mesmo a ideia de status
social refere-se, nesse caso, aos sentimentos de humilhação e sofrimento, mais precisamente
a uma comunidade moral internamente retalhada e conformada através desses sentimentos, é
verdade também que as percepções individuais em torno do status social são múltiplas e
podem provocar reações diversas nos sujeitos. Cabe, portanto, pensar sobre o modo como os

62
O antropólogo David Thompson, em conversa pessoal, me contou que um dos seus interlocutores lhe disse
que uma travesti teria criado o Povo de Israel; Caldeira (2007) conta que o termo refere-se ao episódio em que
um preso teria jogado uma bíblia para o alto depois de um motim e encontrado a expressão; eu mesmo escutei
diversas variações em termos de personagens principais, locais e datas em que teria acontecido a “revolta dos
pacatos” - termo que também não era de uso corrente.
187

meus interlocutores reagiam à comunidade moral à qual “pertenciam” por força de uma
estratégia de governança (seguro). Quando percebi que a própria intensidade do sentimento
de humilhação variava conforme as trajetórias, me dei conta de uma regularidade: os
pronomes possessivos de primeira pessoa, “meu” e “nosso”, nunca eram mencionados junto
à palavra povo: meu povo, nosso povo. O Povo de Israel era costumeiramente tratado pelos
meus interlocutores como um assunto de cadeia comandada por estuprador, assassino ou
bandido que pediu pra “pular”63. Papo deles. Lidava, portanto, com homens que habitavam
um ponto de tensão entre a posição de interioridade e a de exterioridade em relação a tal
comunidade moral. Poucos conheciam em detalhes a história dessa gente sofredora e tinham
interesse em falar sobre as suas formas de organização. Importava mais desfazerem-se do
estigma através da narrativa de injustiça. Era comum que as falas sobre o Povo de Israel
desaguassem em uma tentativa de aproximação entre os pacatos e os bandidos, como no caso
de Tonico; provocassem comicidade e risos debochados, como no caso de Carlos, Altair e
Marquinhos; ou redundassem em contestações indignadas, como no caso de Ivan. Esses três
casos designam formas de produção de pessoas a partir de reações masculinas ao Povo de
Israel. Trata-se de formas ordinárias de fazer a si em relação a uma narrativa mestre, formas
de se colocar meio dentro e meio fora desse coletivo majoritariamente representado como
humilhado e sofredor.
Antes de voltar a falar sobre os meus principais interlocutores, conto uma situação
que bem exemplifica o tipo de questão micropolítica à qual quero dirigir um pouco mais
atenção agora. Lembro do dia em que saí do prédio do NUSPEN com um engenheiro que
havia trabalhado para uma empresa estatal, poucos minutos depois dele insistir em falar com
o defensor que estava cobrindo as férias de Fabiana. Mesmo não tendo aparecido o defensor
em questão, Ronaldo tentou ler uma carta em que explicava como surgiu a falsa acusação de
estupro da qual fora alvo. Interrompido mais de uma vez, ele seguiu falando, mas um tanto
sem graça. Humilhava-se, ao estilo da descrição proposta no capítulo 4. Já não lia, apenas
explicava o valor dos papéis que seriam deixados ao defensor. Era flagrante o embaraço
sentido por ele, por mim e pelo servidor que administrava a situação. Se não tivesse
participado de cenas como essa repetidas vezes, talvez os efeitos sensíveis dos encontros
breves me escapassem. Já nas vielas do centro, propus que sentássemos em um café próximo.
Ronaldo, contudo, tinha perdido todo o seu dinheiro com o processo. Terminamos no chão

63
O mesmo que “pedir seguro”.
188

de uma praça onde homens que trabalhavam para a empresa pública de água jogavam bola.
Ali, insisti em saber sobre o Povo de Israel, o que resultou em embaraço ainda mais gritante:
como se eu estivesse humilhando o meu interlocutor através da simples pressuposição de que
ele saberia algo sobre o assunto, já que tinha passado anos da sua vida nos presídios de seguro.
Ronaldo negou ser alguém adequado para aquela conversa. Depois desse momento, parecia
não haver como seguir papeando com ele sem prolongar a duração da sensação de
rebaixamento, isto é, sem fazer com que o ato de humilhar (mera evocação da narrativa
mestre do Povo Israel como humilhado e sofredor) se replicasse provocando o
constrangimento em ambas as partes – um mais acima, outro mais abaixo. O estrago estava
feito. Não havia o que consertar. Voltei à Defensoria pensando que para outras sensibilidades
nada do que aconteceu seria ofensivo. Fosse ele Tonico, certamente o episódio teria levado a
outra resultante.
Venho sugerindo que Tonico, ao dizer que os pacatos se revoltaram e se firmaram
como uma facção, mostrava-me não somente a possibilidade da conquista de um território
via derramamento de sangue, mas também a sua própria masculinidade. Ele compartilharia
algo com o mundo do crime, afinal, como me disse, “tinha contexto” com “os caras” – a citar
pelos bandidos que o livraram de uma surra numa cela de delegacia. Por mais pacato que
fosse, “ter contexto” fazia dele partícipe de um universo masculino ao qual relevância fora
atribuída. Pode-se dizer, então, que respeito era algo que Tonico obtinha “dos caras”
simplesmente por ser como era, e não algo a ser imposto conforme o sugerido por Carlos. O
ponto é que a esse último importava mais distanciar-se do mundo do crime do que idealizar
uma masculinidade guerreira nos bandidos. Todos os que riam quando falavam sobre o Povo
de Israel seguiam o movimento de Carlos. O riso reafirmava a narrativa de injustiça
ridicularizando a narrativa mestre da comunidade moral, isto é, os meus interlocutores
questionavam o seu próprio pertencimento a esse povo ironizando o status coletivo de
sofredor e humilhado. Esse tipo de jocosidade sugere o rebaixamento da comunidade em
relação aos seus não tão membros e, mais gravemente, uma tentativa de produção de distância
subjetiva a tudo que se vincula à figura do estuprador e à cadeia: crimes, certos papos, formas
de organização coletiva. Atrás do riso, escondia-se a vergonha. O risco de ser confundido
com um bandido. Ivan, por sua vez, provocava o distanciamento subjetivo através de outro
sentimento. Ele mais parecia irar-se ao escutar as minhas perguntas sobre aqueles a quem
chamava de “vermes”: estupradores, traficantes, assassinos. Nesse caso, era o pertencimento
189

a uma categoria profissional, o distintivo de policial, que o fazia menosprezar com um tom
de fúria tudo o que tinha a ver com a cadeia. No limite, o Povo de Israel deveria ser eliminado.

5.5 “H” maiúsculo x “h” minúsculo

Devo essas reflexões às argumentações de um conjunto de autores que vem


sinalizando que as emoções não devem ser pensadas isoladamente, e sim através das
dinâmicas micropolíticas nas quais emergem e suscitam não uma, mas várias reações
emotivas encadeadas, os chamados complexos emocionais (REZENDE; COELHO, 2010),
assim como pontuam que a humilhação deve ser pensada como ato, sentimento e/ou status
(MILLER, 1993; DÍAZ-BENÍTEZ, 2019). Se foi Katz (2012) quem melhor compreendeu a
relação entre ira e humilhação, os momentos em que a sensação de humilhação é tão profunda
que se torna capaz de desencadear ira incontrolável, porém passageira e provocadora de
efeitos desastrosos; foi Miller (1993) quem melhor inventariou as situações ordinárias em
que a humilhação se relaciona com os sentimentos de vergonha e constrangimento e quem
me levou a pensar que a proximidade do sofrimento à humilhação no discurso dos meus
interlocutores é um modo masculino – vários, para ser mais exato – de falar sobre as dores
do rebaixamento que sequer pode ser reconhecido. Miller argumentou também sobre a
relevância de dirigirmos atenção aos pequenos gestos de humilhação, esses que uns podem
afirmar que, sim, trata-se de práticas inegáveis de rebaixamento e outros podem insistir em
dizer que não, trata-se apenas de atos e sentimentos sem gravidade. O autor descreve até
mesmo as humilhações pelas quais passamos sem que ninguém, além de nós mesmos, as
perceba e as sinta. Essas foram as humilhações que ele classificou com um “h” minúsculo, já
que suscitam controvérsias, comicidade e menosprezo analítico. As que representou com um
“H” maiúsculo foram aquelas cuja intensidade é tratada como inegável, que provocam algum
fascínio e amplo escrutínio político-intelectual: torturas, formas de fazer definhar, violências
espetaculares, etc.
Considerando que aquilo que classificamos como humilhação com h minúsculo e com
H maiúsculo varia conforme sensibilidades, percepções, contextos e processos sociais, pode-
se dizer que a governança que tem como arma a humilhação não conhece feição moral única.
Lago (2019) recentemente demonstrou que as revistas a que eram, e por vezes ainda são,
submetidos os familiares das pessoas encarceradas suscitam controvérsias no que diz respeito
à própria humilhação envolvida em tirar a roupa, agachar e tossir de cócoras diante de
190

administradores que regulam quem entra e com o que entra nas cadeias (BIONDI, 2010;
PADOVANI, 2018b). A autora demonstra que são os corpos das mulheres que
majoritariamente passam pela revista vexatória – íntima, segundo argumentos
administrativos –, uma vez que são elas as que lotam as filas de visitação. Demonstra também
que entre os movimentos de familiares contrários ao encarceramento em massa e às práticas
estatais de revista, estavam aquelas mulheres que reclamavam da ênfase pública no discurso
da humilhação, visto que a elas seriam preferíveis as revistas vexatórias, pois realizadas sem
o uso de scanners. O problema, desse ângulo, reside no fato da tecnologia dificultar que o
controle estatal seja ludibriado e que objetos e substâncias proibidos atravessem os muros
das prisões. Estou chamando atenção à etnografia de Lago porque através dela podemos ver
que a governança que se utiliza da humilhação como estratégia articula o H maiúsculo e o h
minúsculo, alimenta-se das controvérsias classificatórias e dos níveis de
humilhação/sofrimento/violência e sua ambivalência para produzir, justificar e/ou mascarar
excessos. Mobilizei argumento semelhante quando sugeri pensarmos que a “política do
definhamento” (MALLART, 2019) é uma acentuação da política da humilhação, um
momento em que o H maiúsculo torna-se tão exponencial que é fundamental, de um ponto
de vista político e sensível, acionar outras palavras, sendo definhamento uma delas, para
descrever o que se passa dentro de uma cadeia. Acredito que, mesmo existindo no
definhamento algo humilhante e, portanto, inseparável das práticas administrativas que
fazem as pessoas apodrecerem em cantos e buracos, precisamos de palavras mais específicas
e densas do que “humilhação” para definir os momentos em que a violência é tão extrema
que torna os vivos meio mortos, os faz viver como meio mortos antes de matá-los.
As disputas pelos critérios de significação do mundo passam pelas palavras. Depois
de aprender essa lição com Bourdieu (1989), tornei a aprendê-la com Fabiana. Em umas das
vezes em que fui participar dos atendimentos jurídicos realizados nos leitos dos enfermos,
documentos de autorização de uso de imagem, previamente preparados, foram assinados por
aqueles que concordaram que a defensora divulgasse as suas imagens nos processos de
execução. Foi assim que as fotos de um homem baleado por um tiro de fuzil foram parar nas
mesas de promotores e juízes. A linguagem imagética era uma tática em relação à aridez da
linguagem jurídica, um meio de fazer ver a urgência diante da dor outro. A mesma tática
encontrei em um relatório da Defensoria, de 2005, a respeito de uma visita a um presídio de
seguro infestado de percevejos. Em condições insalubres de reclusão imposta, insetos furam
os vivos, abrem crateras que pulsam até fecharem ou esgotarem os corpos. Já na resolução
191

da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 2018, que obrigava ao Brasil a acionar


algumas medidas provisórias quanto a um dos presídios de seguro em Bangu onde fiz campo,
encontrei a morte em números. Foram 56 entre 2016 e o primeiro trimestre de 2018. Eis um
trecho do documento: “os representantes salientaram que houve uma redução de mortes em
2017 (20 óbitos), em relação a 2016 (32). No entanto afirmaram que o [referido presídio]
continua liderando o ranking das unidades penitenciárias com mais presos mortos” (CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2018, p. 8). Dentre as várias conclusões
jurídicas a que chegaram os membros da Corte, está a determinação da computação de cada
dia de pena cumprida no presídio em questão valendo por 2. Aqueles que cometeram crimes
contra a vida e de natureza sexual estariam, porém, sujeitos ao crivo de especialistas nacionais
que julgariam a pertinência do cumprimento integral, parcial ou nulo da determinação. O
cálculo de 1 por 2 baseava-se na seguinte premissa: como a superlotação em 200% acarretava
“sofrimento antijurídico”, excedente em relação ao propósito da pena, precisava-se reduzir o
sofrimento ao nível legal – este compatível com a lotação máxima da cadeia e outros
parâmetros, como água, luz, ventilação e médicos. Governa-se, sabemos, contabilizando o
incontável, legalizando-se o ilegal através das medidas provisórias e elegendo alguns para
mais humilhação e mais tempo de contato com os pontos onde o corpo perde para tudo que
faz sofrer quando não mata.

5.6 Racismo, Justiça e Dona Luiza

No relatório da Defensoria citado acima, as fotografias de homens cujos corpos


estavam sendo consumidos por insetos materializam manchas, relevos, furos e pus, isto é,
são o resultado de táticas administrativas que espetacularizam a violência, o sofrimento, a
humilhação e o definhamento visando alcançar resultados considerados positivos para os
administrados. Se a negritude nelas aparece como efeito secundário do objetivo premeditado
de exibir corpos feridos, pode-se dizer que os corpos negros insistem em povoar essas fotos
apenas na medida em que majoritariamente povoam as cadeias. Tendem a ser na pele negra
as feridas estetizadas pela razão humanitária (FASSIN, 2012) em função das taxas de
encarceramento: 63,6% da população carcerária no Brasil é composta de pardos e pretos
(INFOPEN, 2019). Esses números são fundamentais também às análises que sugerem a
importância da compreensão do racismo de estado (FOUCAULT, 2010) no que se refere
tanto aos corpos que são o objeto privilegiado do encarceramento (MALLART, 2019) quanto
192

aos modos de gestão dos territórios onde esses corpos circulam e habitam (FARIAS, 2014).
Os esforços para pensar em conjunto territórios, corpos, raça e presídios sinalizam os modos
desiguais da presença estatal ao longo da cidade (DAS; POOLE, 2008), mas também
evidenciam os processos de racialização das populações periféricas e os efeitos de tais
processos no âmbito carcerário. É frequente e oportuno o empenho no sentido de articular a
discussão da biopolítica (FOUCAULT, 2008), enquanto governo da vida e dos vivos, e a da
necropolítica (MBEMBE, 2018), enquanto política de matabilidade e economia de morte,
buscando entender as especificidades do racismo como corte entre a vida e a morte no
contexto nacional. São muitos os autores que ora se aproximam, ora se distanciam, no modo
como articulam as ideias de Foucault (2008), Agamben (1998) e Mbembe (2018) a outros
conjuntos de formulações – refiro-me ao debate sobre decolonialidade (LIMA, F., 2018),
administração pública (FREIRE, 2019), ativismos (VIANNA, 2018), escravidão (BENTO,
2018), áreas de consumo de crack (ARAÚJO, 2017) e figuras femininas nas periferias
urbanas (FERNANDES, 2017). Cada qual abre um enorme leque de dados empíricos e
enfoques analíticos que ultrapassam em muito o meu ângulo de visualização.
Ciente do caráter prematuro de qualquer tentativa de sistematização de uma discussão
que está em pleno andamento, finalizo este capítulo pensando, mesmo que de maneira
bastante preliminar, sobre a racialização da figura do estuprador e a experiência de Dona
Luisa, mãe de Marquinhos, na lida com a Justiça. Para tanto, mobilizarei os argumentos de
Davis (2016) e Vargas (1997), já que se tratam de referências relevantes no debate sobre
estupro e raça. Acredito que seguindo esse caminho vinculo-me ao espectro largo das
discussões sinalizadas no parágrafo anterior, porém através da especificidade do tema sobre
o qual me debruço, tal seja, a política da humilhação. Enquanto as reflexões de Davis provêm
de material histórico sobre as relações raciais nos Estados Unidos, o material com o qual
Vargas trabalhou foi em sua maioria documental, isto é, artefatos fabricados pelo “sistema
de justiça criminal” de Campinas (polícia, Ministério Público, Defensoria, Varas Criminais
e outras instituições). Essas observações são dignas de nota pois me parece importante
sinalizar que me afasto da tentativa de aproximar ou contrastar contextos sócio-históricos
distintos. Dirijo-me a essas fontes buscando, principalmente, inspiração para entender os
processos sociais no interior dos quais Dona Luiza se movia quando me disse que juntos
abriríamos a caixa-preta do estupro. No capítulo 2, quando descrevi a história dessa senhora,
mobilizei uma linha de argumentação mais fenomenológica que sociológica ao voltar atenção
193

à relação entre estupro e raça. Aqui, faço nada mais que incorporar dados históricos e
sociológicos que me permitem rever a experiência da minha interlocutora de outro ângulo.
Davis (2016) argumenta que o mito do estuprador negro nos Estados Unidos foi
inflamado no momento histórico em que estereótipos relativos aos corpos dos homens
negros, hiperbólicos e viris, foram utilizados de modo a construir a necessidade dos homens
brancos protegerem as mulheres brancas desse perpetrador incontrolável. Ataques brutais e
coletivos se normalizaram. Não surpreende o fato dos linchamentos terem se tornado uma
das principais ferramentas do racismo somente quando os negros deixaram de ser
propriedades que podiam ser açoitadas e debilitadas, mas não podiam ser levadas à morte
sem causar danos materiais aos senhores de escravos. Enquanto durante a escravidão os
linchamentos foram reservados aos abolicionistas brancos, nos períodos subsequentes,
marcados pela negação do estatuto de cidadão aos negros livres, o mito do estuprador negro
foi gestado, disseminado e utilizado como justificativa para fazer valer um desejo de vingança
associado às transformações sociais. O mito e os linchamentos tornaram-se práticas de
inferiorização racial, isto é, práticas que combinavam humilhação, violência, dor e morte.
Tentativas de manutenção do status quo. Foi nesse horizonte que as mulheres negras se
associaram e combateram o mito do estuprador negro, tratando-o como um ataque à
comunidade negra, às famílias negras, e não somente aos homens negros. Os argumentos de
Davis seguem na direção da análise das diferenças entre os feminismos negros e brancos,
bem como da crítica ao capitalismo. Contudo, da argumentação da autora, importa aos meus
propósitos reter a ideia de que a figura racializada do estuprador é um mito, um modo público
de inventar quem são os perpetradores da violência sexual; a ênfase na observação dos efeitos
concretos provocados pelas invenções de cunho racista (vingança, linchamento,
inferiorização); e a relevância da atuação das mulheres negras no combate ao mito.
Em outro contexto histórico e sem utilizar a expressão “mito do estuprador negro”,
Vargas (1997) chega à conclusão de que a cor é um elemento significativo para policiais e
vítimas, pois confere gravidade e sentido aos mais variados relatos de violência sexual, pouco
a pouco transformados em crimes. Nos casos de estupro entre desconhecidos, essa tendência
torna-se ainda mais material, afinal, os pretos e os pardos são costumeiramente identificados
como suspeitos. Diz a autora: “as cores preta e parda são classificações imediatamente
convincentes porque preenchem a identidade virtual socialmente imputada aos estupradores”
(VARGAS, 1997, p. 198). O argumento de fundo é o de que tanto a parte queixosa quanto os
policiais produzem crimes sexuais através do racismo, ocasionando a fabricação de
194

documentos frágeis do ponto de vista jurídico. Esse seria um dentre os muitos fatores que
fazem o Ministério Público arquivar quantidade expressiva de inquéritos. A imagem do funil
bem representa o número mais elevado de inquéritos policiais do que de denúncia oferecidas.
Quando o acusado é negro, réu primário – o que significa que não conhece o modo de
funcionamento do aparato jurídico-policial – e assistido da Defensoria Pública durante o
curso do processo de conhecimento, a disposição para condenar negros se configura. A
análise de Vargas fotografa atos administrativos e assim exibe a relevância da categoria raça
cada vez que um documento é produzido e posto para circular no interior do sistema de justiça
criminal. É verdade também que a análise se complexifica, conforme o filme avança e novas
variáveis sociológicas vão sendo adicionadas: pobre ou não, assistido da Defensoria ou não,
defesa qualificada ou não, réu primário ou não, etc. Na conclusão da sua dissertação, a autora
sugere que os pretos e os pardos são condenados com mais frequência, se considerado o
número diminuto dessa população em uma cidade como Campinas.
Os dados do INFOPEN relativos ao ano de 2017 (INFOPEN, 2019) demonstram que
o total da população carcerária preta e parda (63,6%) é superior ao total da população
brasileira – preta e parda – em liberdade (55,4%), mas não correlacionam os tipos penais às
cores dos homens condenados, o que impossibilita dizermos que as conclusões de Vargas se
estendem a todo território nacional. Mesmo sem termos como averiguar se os homens negros
figuram dentre os mais condenados por crimes sexuais no país, podemos dizer que as
ponderações de Vargas sugerem uma versão nacional do mito do estuprador negro erigida
em termos propriamente administrativos. Sugestão semelhante propõe Vieira (2007) a partir
da descrição dos documentos que compõem um processo criminal, ou melhor, a partir da
análise do que os operadores do direito chamariam de “dinâmica dos fatos”. Para a autora, a
categoria raça e a categoria cor importam às práticas de suspeição e inferiorização de
criminosos sexuais em dois planos sobrepostos, o administrativo e o interpessoal. A
institucionalização de um inferior racial operaria através da imposição de condenações de
estupro não isentas em relação a frases explícitas como “tu é um resto de negro” e implícitas
como a “etiqueta racial” que, mesmo quando torna “deselegante” o assunto cor/raça, não
deixa de apelar à racialização e ao rebaixamento como estratégias de regulação. A
possibilidade da construção de uma genealogia da relação entre raça, cor, suspeição e
inferiorização no âmbito administrativo remete a trabalhos como o de Olívia Cunha (1998),
interessado nos modos de construção da categoria “vadiagem” nos anos 30 no Brasil. A figura
do “vadio”, personagem administrativo cuja cor o torna suspeito e degrada, antecede a do
195

estuprador negro e a informa, isto é, existe uma memória estatal da racialização. Fosse o meu
objetivo, analisaria em conjunto os trabalhos citados e a eles somaria a dissertação de
Brandão (2019) sobre o caso Rafael Braga, pois ali também repercute um esforço no sentido
de analisar o “arquivo racial” do Estado brasileiro.
Se olharmos para o que diz Dona Luiza desse ângulo, veremos que ela, baseando-se
em sua própria experiência, reafirma as conclusões brevemente citadas quando argumenta,
por exemplo, que os pretos e os pobres, os pretos pobres, são tratados no Rio de Janeiro com
suspeição, isto é, estão sujeitos à incriminação em função de marcas raciais que, no caso de
Marquinhos, se vinculam às de classe. O enfoque mais fenomenológico da minha pesquisa
não me permite fazer generalizações, já que, mesmo que todos os meus interlocutores fossem
negros, a amostra não seria representativa. De todo modo, vale dizer que Ivan, ex-policial, se
reconhecia como negro e o engenheiro que perdeu todo o seu dinheiro com custos processuais
também. Enquanto os sentidos dos processos de racialização para Ivan costumavam me
escapar, nutri a impressão de que para o engenheiro a situação de privação econômica em
que se encontrava lhe causava uma sensação de rebaixamento de conteúdo racial, uma vez
que baixar na hierarquia social é perder privilégios que modulam a experiência do racismo e
modulam, nem sempre de maneira suficientemente positiva, o contato com a Justiça.
Voltei a comentar sobre Dona Luiza e Marquinhos neste capítulo também porque
durante o campo tive acesso à gravação do depoimento de cada um deles em juízo. Ambos
pareciam acuados enquanto respondiam perguntas. Performatizavam humildade não somente
em função da maneira como se comportavam, mas também em razão da sobreposição entre
marcas de classe e raça diante da hierarquia agigantada pelo tom inquisitorial das falas dos
administradores ocultados no vídeo. Longe de se auto-humilharem, eles mais pareciam ser
humilhados pela arquitetura daquela situação. Depois de conviver com Dona Luiza por anos,
vê-la tornada humilde é para mim um fato desconfortável. Para ela, alguém que costumava
buscar controlar até mesmo as narrativas dos membros da sua família sobre o estupro da sua
neta e o sobre o seu filho, algo mais grave acontecia. Havia nada sob o controle da minha
interlocutora durante o depoimento. Quanto mais ela falava sobre o quão inconfiável era a
ex-mulher do seu filho, mais suspeita tornavam-se as suas afirmações e mais o seu corpo,
sem identificar saída, se curvava. Ao passo que a cada fala dela menor se tornava o seu poder
de declarar a verdade, algo que desde o ponto de partida já estava radicalmente limitado,
Dona Luiza não encontrava outra opção a não ser assentir a uma posição de fala cada vez
mais humilde. Segundo Miller, “ambas as palavras – humilhação e humildade – vêm da
196

mesma raiz latina, humilis, que significa baixo, humilde, que por sua vez é derivada de
húmus, que significa solo” (MILLER, 1993, p. 147, tradução minha)64. Ao mesmo tempo
que reconheço que não são somente os corpos negros que em situações como essa são
tornados humildes, admito a possibilidade desse tipo de experiência resultar para os meus
interlocutores negros em uma experiência de forte conteúdo racial, isto é, resultar em
vivências para as quais a política da humilhação é também ato e sentimento de inferiorização
racial. Dona Luiza, rebaixada a uma posição bastante distinta daquela a partir da qual
denunciava à sua maneira o mito do estuprador negro, dava-me a ver os seus sentimentos e
mostrava-me que há sempre uma camada a mais a explorar no que tange à política da
humilhação e os seus efeitos experienciais.

64
No original: “Both words – humiliation and humility – come from the same Latin root, humilis, meaning low,
lowly, which in turn is derived from humus, meaning ground”.
197

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca,


todas as citações de que é feita uma escritura; a unidade de um texto repousa
não em sua origem, mas em seu destino (BARTHES, 1988, p. 70).

Em 2016, depois do estupro coletivo de uma jovem no Rio de Janeiro, o termo


“cultura do estupro” foi sistematicamente acionado nas plataformas de interação online e em
protestos que ganharam as ruas da cidade. Estava em jogo a aproximação dos assédios
sofridos por mulheres aos atos de violência sexual, na medida em que ambos relevariam o
poder patriarcal, a dominação masculina ou um padrão de conduta masculino apoiado na
desigualdade entre os gêneros. A expressão “cultura do estupro”, dada a sua finalidade
política, essencializa estrategicamente a ideia de cultura como uma totalidade ou um sistema
estável, visando enfatizar a necessidade da luta contra essa totalidade e contra a sua
reprodução contínua nos comportamentos – não somente masculinos, ainda que
principalmente. A história desse termo remete aos anos 1970 e aos feminismos norte-
americanos, mas, tal como acionado contemporaneamente no Brasil, parece sugerir a
repercussão de algo como uma “cultura antiestupro” (CAMPOS; MACHADO; NUNES,
SILVA, 2017): um enfrentamento do universo de valores que legitimaria o estupro enquanto
ato de poder e, concomitantemente, de extrema violência. As autoras mencionadas
compreendem a violência sexual e as formas de gestão dos crimes sexuais através da
linguagem da honra, modelo analítico utilizado para caracterizar o modelo empírico da
cultura do estupro. Desse ângulo, a luta política da cultura antiestupro (dos vários feminismos
no Brasil, notadamente os mais jovens) se daria através da afirmação de valores liberais (tais
como liberdade, autonomia e consentimento) e em contraposição à compreensão do estupro
como violência que afeta aos homens em seu ponto de honra, e não às mulheres entendidas
enquanto sujeito de direitos. Seria contra a permanência do código da honra, em todas as
esferas da vida social, das casas ao judiciário, que os feminismos teriam revitalizado um
termo em desuso, “cultura do estupro”, atribuindo-lhe sentido antiestupro.
Em uma das ocasiões de protesto em que estive presente, novelos de lã foram
desenrolados e passados de mão em mão, todas repousadas nos fios que, pouco a pouco,
conectavam as mulheres presentes em uma das maiores manifestações de repúdio à violência
sexual decorrida no centro do Rio. Através desse emaranhado, circularam narrativas sobre
estupros em primeira pessoa, mas não exclusivamente. Se os fios dos novelos de lã
198

oportunizaram as inúmeras descrições da violência sexual, fizeram-no criando um senso de


solidariedade que tornava a área daquele emaranhado de fios e corpos um lugar seguro e
catártico, espaço de produção da quebra do silêncio e da fissura da cultura do estupro.
Revisitei a minha memória desse dia muitas vezes, especialmente depois que conheci Alice,
filha de Lurdes e sobrinha de Ivan. As críticas da minha interlocutora ao machismo me
levaram a supor que ela poderia considerar o silêncio que repetia em almoços de família
como um elemento da cultura do estupro, uma forma de lidar com Ivan que o beneficiava
conforme não impunha a ele a necessidade de reconhecer a violência sexual praticada e os
seus efeitos nefastos. Desse ângulo, a repetição de um padrão de conduta masculino
normativo, centrado na repetição do machismo e da violência – primeiro dirigida por ele
contra a sua irmã e depois contra a própria filha –, não poderia ser separada plenamente do
silêncio enquanto perpetuação de um mundo patriarcal. A reatualização da normatividade de
gênero estaria contida nos esforços de Lurdes para fazer Alice enxergar Ivan como um arrimo
de família e um injustiçado. A negação do estupro precisaria ser vencida e o silêncio
ultrapassado para que relações de gênero mais igualitárias viessem a se tornar viáveis em um
futuro longínquo, porém já imaginado, já existente no presente como uma meta, ou melhor,
como uma norma a ser alcançada e, paulatinamente, habitada.
Se Alice podia ter participado da manifestação citada, podia ter empregado o termo
“cultura do estupro” nos momentos em que usou a palavra “machismo” e a categoria
“pedofilia” para referir-se ao seu tio e podia até mesmo ver nos seus atos e nos atos da sua
mãe a reprodução dos valores que criticava, por que as situações de comensalidade assumiam
a forma que assumiam? De início, cabe dizer que a pergunta em si parece velar uma
expectativa normativa em torno do comportamento adequado, como se a minha interlocutora
devesse quebrar as formas de silêncio que imperavam no tecido relacional em que habitava
e como se as pessoas e os seus atos fossem sempre coerentes em relação aos valores que
professam. Foram inúmeras as vezes que as minhas interlocutoras me disseram que era “tudo
muito complicado” no plano das relações de proximidade. Nesse sentido, a triangulação da
relação entre mãe, filha e tio/irmão comporta um tipo de “complicação” que não se reduz ao
que no plano das disputas políticas vem sendo chamado de cultura do estupro. O afeto da
filha pela mãe, o senso de respeito da primeira em relação à segunda e as qualidades mais
inconscientes desse vínculo permanecem subdimensionados se considerados apenas como
sentimentos que resguardam Ivan. Até mesmo porque esse resguardo é um resultado que,
embora real, não deixa de ser desconfortável, seja para Alice, seja para Lurdes. As formas de
199

conciliação fraturada que descrevi são azedas, se sustentam como nós que não descem das
gargantas e dependem da projeção sobre os ombros das mulheres do peso dos trabalhos
hercúleos, quase insuportáveis; mas que, por vezes, como nos conta o affair de Dona
Teresinha com Nelson, não deixam de conter uma camada de prazer, isto é, um senso de
autoconclamação em torno do dever cumprido e do bem feito ao outro – cavalheiro,
ameaçador e moribundo.
Já na introdução desta tese, chamei atenção ao bem como uma imagem idealizada que
transparece através das ações, mas que não é estável a ponto de dizermos: o bem é isto e não
aquilo. O meu objetivo foi o de, ao invés de ofertar definições conceituais que muito
possivelmente vacilariam quando aplicadas em outros contextos sociais e a outros dados
etnográficos, mostrar que os critérios que as pessoas utilizam para julgar se um estuprador
ou um injustiçado é merecedor ou não de uma ação idealizada como boa são relacionais, isto
é, não são abstrações exteriores ao ordinário, nem regras que se impõem de cima para baixo
e de fora para dentro. Os critérios forjados na lida com o outro podem nos parecer coerentes
em um dado momento e em outro não, podem ser produto de intensa atividade reflexiva,
podem se revelarem (in)justos somente depois que um ato já alcançou os seus efeitos e podem
sequer serem criteriosos. O que estou buscando dizer, por um lado, é que o julgamento e a
idealização são processos interiores à ação e, por outro lado, que tais processos, porque
respondem às situações sempre específicas, não assumem a forma do texto da lei. Minha
impressão é a de que as ações comportam opacidade em relação às normas sociais e também
alguma descontinuidade em relação às mesmas. A conduta idealizada como bela e julgada
adequada em dado contexto é um processo em aberto, pois desvios e urgências se apresentam
mesmo aos sujeitos mais comprometidos em fazerem de si mesmos pessoas melhores. As
dores da idealização dos sentidos de bom e de certo, assim como da atuação desses sentidos,
foram sem dúvida objeto constante da minha atenção. Talvez seja possível dizer que nesta
tese não existe imagem do bem-fazer que não implique algum sofrimento e não seja forjada
através da vivência cotidiana da condenação de homens conhecidos e/ou próximos.
“Cultura do estupro” e “patriarcado” são palavras-atos, modos de dizer que as
relações de gênero assumem formas normativas e violentas, isto é, podem culminar em
estupros praticados não somente por desconhecidos, mas também por pais, tios, maridos, etc.
São, portanto, modos de visualização do mundo, em suas paisagens pretéritas, atuais e
vindouras, lentes que podem guiar a leitura desta tese – a depender do(a) leitor(a) e dos
valores e sensibilidades por ele(a) cultivados. De fato, a normatividade das relações de gênero
200

circula em todo o meu material etnográfico, tendo sido o meu esforço o de explicitar de que
maneira as experiências e os tecidos relacionais se constituíam no interior das normas.
Busquei controlar o aspecto conservador da abordagem das normas a partir das virtudes
(MAHMOOD, 2005) demonstrando os custos da vida em proximidade, especificamente do
engajamento afetivo e moral com homens condenados por crimes sexuais. Preocupei-me em
descrever as tonalidades e as texturas de cotidianos que, se dizem sobre a chamada cultura
do estupro, ou sobre os mundos da honra, não deixam de ser mais sinuosos, escorregadios e
incertos que os conceitos em questão. Ao mesmo tempo que identifico a possibilidade desses
modos de visualização dos meus dados obliterarem a ambivalência dos processos descritos
em nome de uma caracterização rígida das relações, da violência e seus efeitos, reconheço a
importância da construção disso que estou chamando de ambivalência – o vínculo do
sofrimento à felicidade, do amor à dor, do perdão ao impossível, da violência aos afetos –
como um problema político: algo a ser combatido e superado, já que prenhe de assimetrias,
sofrimentos e desigualdades. Nesse sentido, ainda que esta etnografia auxilie na compreensão
das modalidades de participação dos sujeitos nas promessas desse mundo, na compreensão
dos cotidianos existentes aqui e ali, não serve como imagem de futuro, como uma idealização
do mundo a alcançar. Serve, porém, como evidência de que o estupro é uma violência que
nunca termina de acontecer, pois se transforma em outras e se acopla aos amores, ao perdão
e às (des)confianças.

Ainda que, no plano das lutas políticas, seja estratégica a caracterização da violência
sexual como o resultado mais crítico de uma cultura continuamente reproduzida, dada a
lentidão das transformações comportamentais e suas consequências brutais para as mulheres
e as crianças, a transposição não mediada da compreensão estrutural das relações de gênero
ao plano ordinário tende a esmagar as experiências e as relações tais como vividas. O meu
objetivo nunca foi o de desqualificar as desigualdades macrossocias, nem as formas da
violência, e sim o de explicitar de que maneira as desigualdades, as violências e os amores
costuravam tecidos relacionais. No capítulo 3, sugeri que a violência é plástica, pois, ao
mesmo tempo que habilita certas formas de viração, desmantela os sujeitos. Lilian tentava
perdoar ao pai que a estuprou, feria a si mesma através dessa tentativa e, como ela nunca se
completava, estava sempre se sentindo impelida a reiniciá-la. O que a fazia considerar o
perdão como um sentimento tão relevante? A cultura do estupro? O excesso da pretensão
punitiva estatal? A proximidade da morte do pai? O valor atribuído a uma ideia de
paternidade heroica nunca concretizada por Edson? Insisto que as respostas para essas
201

perguntas, se existem, são “complicadas”, isto é, englobam fatores múltiplos. Justamente por
essa razão, ao longo desta tese, demonstrei a rentabilidade da análise da violência sexual a
partir das condutas que as pessoas forjam e sustentam quando a negam, a reconhecem e, a
duras penas, levam as suas vidas adiante. Essa é uma proposta analítica devedora da leitura
dos eventos críticos a partir dos tentáculos que lançam em direção à vida ordinária, bem como
da compreensão das formas de rotinização da violência (DAS, 2007). Observando o que
acontece depois do estupro, e não as cenas da violência sexual e as motivações em torno dela,
argumentei etnograficamente que as minhas interlocutoras, sobretudo elas, combatiam menos
a figura do estuprador do que a sua projeção em homens a quem algum bem era desejado.
Nesse quesito, vale ressaltar que os trabalhos femininos que amortizam o impacto da
figura do estuprador na vida das famílias não necessariamente normalizam o horror do
estupro. A tarefa à qual as minhas interlocutoras se dedicavam parecia ser a de encontrar
brechas que viabilizassem o repúdio à violência sexual e à figura do estuprador e, ao mesmo
tempo, as práticas de humanização daqueles que fora dos tecidos relacionais existem como
monstros. Essas brechas requerem o trabalho moral com o tempo, o mergulho no passado
profundo e a obliteração das desconfianças que, quando brotam na superfície do regular,
podem provocar dramas sociais. Mesmo as mentiras contadas pelos meus interlocutores às
minhas interlocutoras parecem trabalhar a favor da familiarização e da humanização, ainda
que de maneira moralmente questionável em inúmeras situações. Fundamental à manutenção
da percepção do estupro como violência horrenda é a caracterização do estuprador como
sendo o outro, não o filho e/ou o marido. Por linhas tortas, o afastamento da máscara do
estuprador assegura a perpetuação do tecido relacional e, concomitantemente, a não
normalização da violência sexual 65 . Os amores maternais, conjugais e fraternais não são
ingênuos ou cegos diante do estupro; ao contrário, muitas vezes trabalham, de maneira mais
ou menos consciente, para manter as desconfianças em níveis suportáveis. Como acredito

65
Vale enfatizar que estou falando sobre pessoas que liam o estupro a partir da figura do estuprador, isto é,
sobre mulheres que não podiam, não queriam ou não conseguiam enxergar em homens próximos um monstro.
Isso está diretamente relacionado, a meu ver, à construção da viabilidade da vida a partir da narrativa de
injustiça. Seria interessante comparar os meus dados com os de Fernandes (2018), uma vez que a autora
descreve situações em que o estupro é tratado como “corriqueiro”. A análise da autora volta-se aos modos de
regulação de quem são as vítimas legitimas e ilegítimas do estupro, isto é, ela demonstra formas de construção
da percepção de tensões entre as figuras femininas “calmas” (a serem resguardadas por códigos locais) e as
figuras “embrasadas” (aquelas tornadas alvo pelas masculinidades). O aspecto normalizado do estupro, nesse
caso, diz respeito a uma ideia de estupro como estratégia de punição considerada legítima em relação aos maus
comportamentos femininos, bem como releva o prazer (violento) que pode existir em transformar meninas
“embrasadas” em “meninas calmas”.
202

que a desconfiança nem sempre é vencida, ainda que em diversas situações seja mantida em
estado de mudez, penso que mesmo as mães e as esposas que conseguem se manter otimistas
em relação aos seus filhos e maridos podem não estar livres de um incômodo inconfessável,
aquele provocado por uma dúvida (im)possível de ser enunciada.
Estou pensando em Dona Luiza. É difícil encontrar palavras para comunicar o que
jamais foi dito, mas se fazia presente no olhar atento voltado a Marquinhos e na vigilância
em posição de proximidade do comportamento dele. Dona Luiza somente deixava de repetir
que o seu filho era um bobo quando o comparava ao pai dele. A desconfiança que ela sentia
encontrou esse caminho para se revelar? Se sim, persistia a questão: Marquinhos era machista
e “galinha” como o seu pai e/ou era um estuprador? A resposta era a de que ele “perdia o
juízo” frente às mulheres, mas era um bom pai. Não era afeito à violência. Não tinha
estuprado Luana, nem era uma “cobra” como Jurema. A busca por esse tipo de certeza e a
sua afirmação enfática anunciam uma dúvida escamoteada ao fundo? Parecem existir
situações em que o amor maternal é chacoalhado pela alcunha de estuprador, pois esta, uma
vez imposta a um filho, faz com que a sua mãe, essa mãe, mesmo em silêncio, tenha que
justificar para si mesma, de novo e de novo, a sua confiança. Como dito, o passado profundo
e o conhecimento do outro que ele promete, bem como a própria ideia de maternidade
sacrificial, são elementos importantes quando a vida vai sendo tocada para frente da maneira
como é possível tocar. Estou retomando essas colocações porque, do ângulo de Dona Luiza,
a aproximação que a cultura do estupro promove entre o assédio e a violência sexual –
gradações impostas pelo patriarcado – é dura de suportar. Será? Estou certa? Estou! Se
aprendi algo durante o trabalho de campo, foi a importância de reconhecer que esse tipo de
ambivalência, esse tipo de barulho mudo, marca o cotidiano de inúmeras mulheres e é
inseparável dos esforços delas para abrir a “caixa-preta do estupro”. Reconhecer a
ambivalência da vida tal como vivida não é, contudo, o mesmo que advogar em nome da
tolerância, isto é, não estou normalizando a ambivalência como aspecto inevitável e nem
dizendo que às mulheres cabe o trabalho do silêncio como um dever. Refiro-me a vidas que,
de um ponto de vista idealista, não deveriam ser duras como o são.
A minha aposta é a de que as ambivalências dos fenômenos, se bem descritas, podem
nos auxiliar a imaginar projetos de vida coletiva capazes de levar em consideração as
experiências daqueles que não necessariamente almejam a subversão das normas e a não
encapsular a sinuosidade da vida ordinária em modelos analíticos que têm validade – como
o da honra –, mas nem por isso deixam de ser sistêmicos e assim previsíveis demais no que
203

se refere à análise do comportamento, do hábito ou dos atos. Aposto, sobretudo, na


possibilidade das ambivalências das experiências nos fazerem enxergar a normatividade dos
nossos projetos emancipatórios, mais precisamente das nossas formas de imaginar vidas
melhores para nós mesmos e para aqueles com os quais vivemos ou lidamos. Deparei-me
com esse tipo de dificuldade quando Célia engravidou de Tonico, descobriu que ele mentia
para ela sobre o crime ou os crimes que tinha cometido e começou a me contar sobre o quão
humilhada se sentia – expressão utilizada em referência aos xingamentos sofridos e ao desejo
do seu futuro marido por outros homens. Ao imaginar que o melhor para minha interlocutora
seria a vida distante de Tonico, passei a reforçar uma imagem negativa dele e a desejar que
Célia descobrisse o quanto antes a verdade jurídica que eu estava impedido de lhe revelar,
dada a lógica da confidencialidade à qual e pela qual me sentia atado e sufocado. A
normatividade do futuro que imaginava para minha interlocutora transparecia a cada vez que
ela me ligava para queixar-se e eu buscava minar ou driblar com palavras sempre
insuficientes as expectativas, os vínculos e as condições socioeconômicas que a faziam
permanecer naquela relação. Nesse contexto, a ambivalência assume a forma de um otimismo
cruel (BERLANT, 2010). Deve estar claro, a essa altura, que as condições de possibilidade
dos nossos apegos mais profundos não são as mesmas, já que variam conforme as
experiências e as marcas de ordem sociológica: raça, classe, gênero, geração e etc. Os objetos
de desejo aos quais nos sentimos anexados – ora promessas de casamento, ora expectativas
de separação –, antes de serem límpidos, indiscutivelmente bons ou ruins, são controversos
e turvos. Diante deles, nós titubeamos e trilhamos caminhos limitados pelas nossas
possibilidades de existência, mas nem sempre conhecidos a priori.
Suspeito que a palavra “ambivalência” possa ser identificada como relativa ao
contexto das críticas pós-modernas ao empreendimento etnográfico. Ela se assemelharia, a
partir dessa perspectiva, a termos como “pastiche”, “ironia”, “hibridismo”, “polifonia”, etc.;
quase todos utilizados para denunciar o realismo etnográfico e a autoridade etnográfica.
Como Strathern (2013), proponho pensarmos que as ferramentas pós-modernas inicialmente
utilizadas para a desconstrução textual são relevantes se submetidas a propósitos não
redutíveis ao questionamento da lógica interna do texto: “aquilo que escrevemos abre a
questão de para quem escrevemos” (STRATHERN, 2013, p. 84). Nesse sentido, seria preciso
questionar não apenas como os antropólogos constroem os outros e os contextos no quais os
situam, mas fundamentalmente em nome de quê e com quais interesses as etnografias são
construídas. Essas são perguntas que a autora localiza como desdobramentos do impacto dos
204

feminismos sobre antropologia. São perguntas que fundamentam o meu esforço no sentido
de explicitar o que entendo por ambivalência a partir do contexto político em que me insiro
e do qual esta pesquisa deriva. Optei por mobilizar a ideia de cultura de estupro não somente
porque o seu apogeu se deu quando realizava trabalho de campo, mas também porque ela
remete a diversos postulados fundamentais ao enfrentamento político levado a cabo pelos
feminismos. Mais recentemente, o coletivo chileno Latesis realizou uma performance que
alcançou repercussão global66 , cujo título é “Um estuprador no meu caminho” e que foi
inspirada na obra de Segato (2003). A ressonância da obra dessa autora reflete a sua eficácia
política e sinaliza que não há mundo acadêmico separado da esfera pública, um dentro e um
fora. Não raro, os próprios antropólogos se tornam atores políticos fundamentais no debate
público.
No que diz respeito à etnografia de Segato, saliento que a sua abordagem da violência
sexual difere da minha; por um lado, porque ela voltou-se diretamente à compreensão do que
dizem os criminosos sexuais e eu voltei-me ao impacto do crime sexual nas dinâmicas
familiares, e, por outro, porque, a meu ver, a descrição da vida ordinária demanda uma
abordagem “processual” das formas de violência, de modo que seja possível reconhecer
como os sujeitos as pensam e as experienciam em situações particulares e em relação a
pessoas específicas. Em outras palavras, enquanto o termo “cultura do estupro”, a obra de
Segato e a performance do coletivo Latesis jogam luzes sobre o caráter estrutural da
violência, busquei nesta tese, em muito inspirada na pesquisa de Gregori (1992), sublinhar a
dimensão mais fenomenológica das relações afetivas, das assimetrias de gênero e das
violências. Do meu ponto de vista, trata-se menos de abordagens incomensuráveis do que de
modalidades de visualização das relações de gênero e da violência sexual, modalidades
produtoras de efeitos políticos diferentes e passíveis de serem combinadas. A calibragem

66
América Latina, América do Norte e Europa, principalmente. Para a performance no Rio de Janeiro, a música
original foi adaptada e traduzia com o estimulo das suas autoras: “O patriarcado é um juiz que nos julga por
nascer, e o nosso castigo é a violência que [não] se vê. O patriarcado é um juiz que nos julga por nascer, e o
nosso castigo é a violência que [não] se vê. Feminicídio. Impunidade. É agressão. É estupro. E a culpa não era
minha, nem onde estava, nem como me vestia. E a culpa não era minha, nem onde estava, nem como me vestia.
E a culpa não era minha, nem onde estava, nem como me vestia. E a culpa não era minha, nem onde estava,
nem como me vestia. O estuprador é você. O estuprador é você. É a PM. É o juiz. É o Estado. O Presidente. O
Estado opressor é um macho estuprador. O Estado opressor é um macho estuprador. O Estado opressor é um
macho estuprador. O estuprador é você. O estuprador é você. O estuprador é você. O estuprador é você. O
estuprador é você. O estuprador é você. A polícia é racista, estupradora e feminicida. A polícia é racista,
estupradora e feminicida. A polícia é racista, estupradora e feminicida. O estuprador é você. O estuprador é
você. O estuprador é você. O estuprador é você”. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=VPcOMItlGiU. Acesso em: 13 jan. 2020.
205

entre as duas estratégias de visualização não é uma tarefa fácil, seja porque os excessos
estruturais com muita facilidade soterram as ambivalências, seja porque o foco na
sinuosidade das dinâmicas micro dificulta as generalizações e a construção de essencialismos
estratégicos relevantes à luta política. Tanto as experiências narradas em primeira pessoa
quanto as generalizações, muitas vezes quantitativas, conformam a cena pública em que os
protestos contra a cultura do estupro acontecem. Não fossem esses protestos e os eventos
para os quais Lurdes me convidou, eu não teria entendido da maneira como entendi as
“complicações” sobre as quais Alice me falava. O melhor caminho que encontrei para narrá-
las foi o de inscrevê-las, nesta conclusão, na dobra entre o plano do ativismo e o plano da
vida familiar, conhecidas as dificuldades de trânsito entre ambos. O leitor estaria certo,
portanto, em afirmar que apenas nas linhas finais situo a minha etnografia no contexto
político mais amplo do enfrentamento às formas de machismo e à violência sexual.
A demora em torno dessa contextualização é o próprio espaço de tempo necessário à
descrição dos meandros da vida ordinária. Na caracterização que efetuei, os homens se
tornaram um tanto coadjuvantes em relação à atenção que dediquei às mulheres 67. Melhor
dizendo, a condenação deles se tornou o centro em torno do qual gravita a minha tese, mas,
em vez de manter-me olhando para esse acontecimento, me dirigi ao que o circundava:
emoções, classe, relações, gênero, etc. Tomei essa decisão descritiva assim que me dei conta
que as minhas conversas com os meus interlocutores tinham como tema majoritário a
injustiça, que as suas narrativas pouco se diferenciavam e que a temática à qual me
direcionavam era objeto frequente das pesquisas antropológicas. Busquei dar às narrativas
sobre as arbitrariedades estatais um contorno mais íntimo e relacional do que público e
ativista, o que está diretamente relacionado com o fato de ter lidado com injustiças mais
capazes de produzir curiosidade do que sensibilização. Assim como acontece com os
antropólogos que pesquisam causas e coletivos políticos, os meus interlocutores esperavam
que eu executasse, junto a eles, um trabalho de denúncia, ou seja, esperavam que eu confiasse
em suas narrativas e combatesse a injustiça da Justiça. Como demarco no capítulo 1,
desconfiei, investiguei e, quando percebi os efeitos desses atos, optei por não consultar
documentos que me fizessem desacreditar plenamente do narrado, isto é, optei por controlar

67
Cheguei a me se perguntar se o subtítulo, “homens condenados e seus tecidos relacionais”, fazia justiça à
centralidade que as mulheres assumiram. Decidi mantê-lo justamente porque o evento crítico que “inaugura”
os trabalhos femininos que descrevo é a condenação dos homens relevantes às minhas interlocutoras.
206

a aparição na narrativa etnográfica das minhas (des)confianças e por descrever as


(des)confianças das minhas interlocutoras. Essa decisão vincula-se não somente a uma
preocupação quanto ao risco de construir uma etnografia egocentrada, que mais falasse sobre
os meus atos do que sobre os atos das pessoas com as quais convivi, como também com a
maneira como os meus atos fariam as masculinidades aparecerem nesta tese.
Na medida em que o efeito do contraste da verdade jurídica à narrativa de um
interlocutor pode ser o da transformação deste último em um mentiroso, aquilo que fulano
diz sobre a sua própria masculinidade deixa de ser a única realidade existente. Não que as
masculinidades devam ser narradas de um único ângulo – bem ao contrário, pois sempre há
o risco da história única (ADICHIE, 2019). A questão é que o fetiche em torno da verdade
jurídica melhor cabe como objeto de análise do que como propósito antropológico. Desta
feita, busquei compreender as masculinidades no interior dos tecidos relacionais e no
contexto prisional. O sentimento de frustração em torno de ideias como a de pai, bom marido
e provedor, bem como os rebaixamentos causados pela política da humilhação – aspectos
trabalhados respectivamente no capítulo 1 e 5 –, me fizeram perceber que a punição acentuou
o senso de injustiça cultivado pelos meus interlocutores, provocou conversões, realçou
percepções em torno da necessidade de saber “se impor” diante dos “bandidos”, resultou em
mortes, culminou em adoecimentos que geraram demandas emocionais e financeiras para os
que estavam do lado de fora dos muros das prisões, mas não necessariamente alterou os
comportamentos masculinos no sentido das relações igualitárias. Por essa razão, vale
mencionar que Campos, Machado, Nunes e Silva (2017) argumentam que os contraefeitos
da cultura do estupro podem ser o da acentuação do punitivismo e o da redução da maioridade
penal, o que sugere que a luta antiestupro pode ser utilizada na arena política para finalidades
outras que não a transformação dos valores e dos comportamentos que redundam em abusos
e violências. Teria sido interessante analisar a relação entre os feminismos e o abolicionismo
penal levando em consideração os casos descritos. Parece importante também o adensamento
da reflexão mais sociológica sobre o mito do estuprador negro (DAVIS, 2016) e as taxas de
punição de homens pardos e negros no Brasil. Ao mesmo tempo que não encontrei dados
quantitativos que permitissem generalizar os argumentos de Vargas (1997) sobre Campinas
para todo o território nacional, encontrei formulações de cunho etnográfico que caracterizam
os efeitos do racismo no que tange à punição e, mais especificamente, à punição vinculada
aos crimes sexuais.
207

Considerando que as estratégias de visualização dos fenômenos são sempre parciais


e posicionadas (HARAWAY, 2009) e que as questões deixadas em aberto por todo e qualquer
trabalho são temas de pesquisa, torno a salientar que não ofereci explicações para as
motivações em torno do crime sexual cometido contra crianças. Essa é uma lacuna que
repercute na bibliografia especializada a que tive acesso, porque em geral voltada aos
procedimentos administrativos e, quando não, às falas de homens condenados pelo estupro
de mulheres. A cultura do estupro, a prevalência do código da honra no Brasil e/ou as
estruturas psíquicas são construídas, ora no âmbito acadêmico, ora no âmbito público, como
eixos explicativos do estupro contra mulheres, mas não exatamente contra crianças. Quanto
mais me esforçava para discutir sobre as cenas da violência sexual, mais os meus
interlocutores me levavam na direção da injustiça e mais substancializavam o mal em
pessoas, processos narrativos de estabilização de histórias relacionais que culminaram em
acusações de estupro e, posteriormente, em condenações. Mesmo Edson, pai de Lilian, não
me permitia acessar a relação entre desejo sexual e violência que se insinuava nas suas
conversas comigo. Ele me bloqueava ainda nas primeiras perguntas. Nos manicômios
judiciários, ao contrário, as cenas da violência sexual eram narradas. Dada a minha limitação
no que tange à análise da loucura, não me dediquei nesta tese aos relatos delirantes da
violência sexual. A relação entre realismo e alucinação no interior desses discursos segue
chamando a minha atenção. Embora tenha optado por observar Juliano, vitrine do horror, por
intermédio do conflito entre Fabiana e Marta, em momento futuro dedicarei atenção às cartas
que ele escrevia e em que contava sobre a sua vida, os seus desejos e as violências sofridas e
praticadas. Ainda me intriga o fato de ele ter entregado esse material para a defensora, e não
para a psicóloga que era a pessoa que mais se dispunha em seu favor. Sigo me perguntando
sobre como analisar a narrativa de Juliano. Suponho por enquanto que, ainda que as cartas
revelem algo sobre a subjetividade individual, não deixam também de revelar algo sobre o
seu contexto de produção e sobre as relações no interior das quais circularam: de Juliano para
Fabiana, de Fabiana para o arquivo-morto do seu gabinete, de lá para a minha casa, mas não
para as mãos daquela que certamente por elas se interessaria.
Juliano representa um caso limite porque o nível de crueldade envolvido nos estupros
e nas mortes que provocou impedia que a ele se firmassem, para o desgosto de Marta, as
práticas de humanização descritas ao longo desta tese. Ao que parece, trata-se de uma pessoa
a quem a vida viável será sempre uma vida ruim, aquela que existe em uma linha de morte
que menos objetiva a eliminação do vivente do que a sua decomposição lenta (MALLART,
208

2019). Acredito que investigação da ética ordinária, se deslocada na direção das figuras que
ameaçam de maneira radical a possibilidade da vida conjunta, pode algo acrescentar à
compreensão do conceito antropológico de relação, tema central da disciplina e objeto de
inúmeras formulações. Sendo mais específico, pergunto-me se o modo como Juliano fazia
relações, através da entrega de cartas incendiárias a uma defensora que sentia nojo daquela
materialidade amarelada e possivelmente suja de esperma ressecado, não destruía a própria
possibilidade da relação. É claro que está em jogo não somente a materialidade e o narrado,
mas também os modos de visualização da pessoa Juliano e da vida que lhe cabe. A despeito
de tudo que impossibilita a relação, Marta seria capaz de refazer o vínculo entre o paciente e
sua família? Acredito que, por se tratar de um caso limite, é mais provável que a psicóloga
não consiga atenuar a força segregacionista dos muros das prisões do que seja capaz de
ultrapassá-los costurando afetos entre, por exemplo, mãe e filho. Em outras palavras, os
crimes de Juliano me interessam na medida em que estão ligados à possibilidade de uma
recusa à relação, à sedimentação de maldades intoleráveis em paisagens contemporâneas e à
expectativa coletiva de uma vida vivível apenas em estado de decomposição. Estou
interessado na (in)viabilidade da vida com quem nos ameaça e ameaça também os conceitos
em nada autoevidentes de vida, de vida comum e de vida boa. Tudo se passa como se a
epígrafe da introdução desta tese estivesse me assombrando: “pode-se levar uma vida boa em
uma vida ruim?” (BUTLER, 2018).
Esse assombro não é particularidade, na medida em que há quem defenda uma
antropologia do bem ou do bom em detrimento de uma suposta ênfase no sofrimento, objeto
que teria deslocado inclusive a relevância da figura do selvagem nos primórdios da
antropologia (ROBBINS, 2013). Há também quem questione os regimes de poder por trás da
identificação da necessidade de mais essa virada e se pergunte sobre a própria possibilidade
de um empreendimento em torno da conceituação do bom (DAS, 2013), quiçá do mal. É
verdade, contudo, que a discussão entre esses autores, e tantos outros, talvez seja bem menos
antitética do que os famosos “Debates Chave na Antropologia” fazem parecer. Isso é
particularmente claro no caso da discussão sobre a proposição de que tal coisa como o bom
não existe (DAS, 2015; AL-MOHAMMAD, 2015) e sobre a contraposição a essa tese
(ROBBINS, 2015; STAFFORD, Charles, 2015). As falas antropológicas sobre as temáticas
da vida, do bom e do ruim estão permeadas de referências filosóficas, fato que sinaliza menos
o caráter metafísico desses conceitos do que o quão “complicados” são quando discutidos em
termos ordinários. Pretendo, em projeto de pesquisa futuro, voltar atenção às figuras que
209

ameaçam sistematicamente a vida – sicários, assassinos de aluguel e/ou milicianos, qualquer


um que leve a cabo com as próprias mãos um projeto de aniquilação –, na esperança de assim
me somar ao que se perguntam o que demanda a convivência imposta pelo Estado através
dos projetos de ordem, dos acordos de paz e das Comissões da Verdade, apenas para citar
exemplos. O meu caminho até essas figuras foi um tanto longo. Primeiro, dei-me conta que,
para alguns dos meus interlocutores, era preferível ser identificado como um assassino do
que como um estuprador. Depois, passei a indagar se o fato desses homens acreditarem que
viveriam melhor como assassinos diria algo não somente sobre o horror do estupro e o valor
da vida do outro, mas também sobre as (im)possibilidades da relação. Passei, enfim, a me
perguntar sobre as condições que tornam a interdependência (in)suportável quando estamos
diante de quem nos ameaça radicalmente.
210
211

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APÊNDICE A – Mapa Relacional68


Introdução Capítulo 1

Dona Luiza (mãe de M.) Jurema (acusadora) Roberta (namorada de P) Marlene (vítima)
Marquinhos (filho de D.R) Luana (vítima) Pablo (namorado de R.) Mãe (acusadora)
Irmãs gemas de M. Junior (filho de. R) Bebê (vítima)
---------------------------------------------------- Jovem (vítima)
Fabiana (defensora) ----------------------------------------------------
Carlos (pai / tio) Sobrinha de C. (vítima)
Esposa de C. Cunhado (acusador)
Filha de C. (vítima) Eduarda (acusadora)
----------------------------------------------------
Altair (marido) Mães (acusadoras)
Helena (esposa) Policial / Psicólogo

Capítulo 2 Capítulo 3

Célia (noiva de T.) Ex-mulher (acusadora) Lilian (vítima) Edson (pai de L.)
Tonico (noivo de C.) Filho (vítima) Marido de L. Madrasta (acusadora)
Sobrinho Menino Filhos de L. Mãe de L.
---------------------------------------------------- Padrasto de L.
Dona Luiza (mãe de M.) Jurema (acusadora) ----------------------------------------------------
Marquinhos (filho de D.R) Luana (vítima) Dona Teresinha Laura (filha de D.T.)
Irmãs gemas de M. Nelson (affair)
Ivete (namorada) Marcela (Filha de Nelson)
----------------------------------------------------
Lurdes Alice (filha de L.)
Ivan (irmão) Tuane (acusadora)
Geração 1 Geração 2
Filha (vítima)
Irmã /tia (vítima)

68
Embora a dualidade desse mapa não traduza as relações tais como vividas, ela ajuda ao leitor a se localizar
em relação a pessoas e cortes e/ou fraturas nos tecidos relacionais.
228

Capítulo 4 Capítulo 5

Paula (defensora) Carlos, Altair, Edson, Pablo, Ivan, Tonico,


Fabiana (defensora) Marta (psicóloga) Marquinhos, Nelson, engenheiro (bons
Everton (antropólogo) governados)
----------------------------------------------------
Juliano e Leandro (administrados) Edson (enfermo)
Nelson (enfermo / morto)
Primeiro interlocutor (morto)
Diógenes (enfermo / morto)
Leandro (subterrâneo)
Marlon (subterrâneo)

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