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O que é Ideologia?

M.O'H: O que você quer dizer com ideologia? Penso particularmente no que disseste sobre
Freud: fizeste distinção entre a ideologia freudiana e a abertura do trabalho de Freud.
Eric Voegelin: Bem, eu não defini ideologia. Apenas escolhi a formulação de um elemento: o
extravio do fundamento 1 dentro de uma hierarquia imanente do ser. Agora não posso, é claro,
dar uma palestra sobre ideologia; mas posso enumerar alguns elementos que fazem parte dela.
Em primeiro lugar, todas as ideologias partem de um background clássico e cristão2 (a partir
do iluminismo) – então um dos elementos é sempre o sobreviver ao apocalipse, à idéia de que
esse mundo presentemente imperfeito será substituído por um estado de maior perfeição. Um
segundo elemento é o gnóstico, isto é, o conhecimento da “receita” que criará o reino da
perfeição (isso é notoriamente gnóstico: a receita).3 Terceiro, a imanentização 4, inversamente
aos apocalipses mais antigos. No antigo apocalipse, o novo reino – a quinta monarquia [Dan.
2:44] – é suscitado pela intervenção divina, ou por um mensageiro de Deus, um anjo. Nas
ideologias imanentistas, é sempre suscitada pela ação humana. Isso se inicia ainda mais cedo;
pode-se dizer que o exército de Oliver Cromwell toma o lugar, nas especulações apocalípticas,
do mensageiro do Senhor em Apocalipse 20. Em seguida, ocorre um certo “extravio” intelectual,
devido à imanentização da questão do Fundamento. A tentação de entender “positivamente”
uma nova ciência ou física imanente do mundo5 como modelo para outras áreas em que o
modelo não se aplica – o elemento do cientificismo – está sempre presente, desde Marx
enquanto socialista científico 6 a Mary Baker Eddy e A Igreja do Cristo Cientista. Estes são
alguns dos componentes sempre presentes. E já que perguntaste especialmente sobre Freud: ele
tem uma relação próxima com a dialética de Hegel. Devo dizer que o núcleo do pensamento de
Freud é a famosa frase: "Todo id deveria se tornar ego". Tudo o que está na compactação do
inconsciente deve ser desdobrado em clareza racional – o que é feito por Hegel7 através do
processo dialético e por Freud através da análise. Nesse sentido, Freud também é um ideólogo
gnóstico. Isso oferece algumas possibilidades de classificação.
Eric Voegelin - The Collected Works of Eric Voegelin - Vol. 11 - Published Essays, 1953-
1965 (2000) p.244

1 “Fundamento” para Voegelin é termo técnico e refere-se sempre ao fundamento última da realidade no contexto

do Argumento Etiológico em sua filosofia da consciência. Comumente será visto como Fundamento Divino
enquanto Causa Eficiente e Causa Final. Um bom artigo sobre isso é o A Consciência do Fundamento disponível
no seguinte endereço: http://www.lusosofia.net/textos/voegelin_eric_consciencia_do_fundamento.pdf
2 O background Cristão pode ser entendido como o Ocidente erigido sobre a síntese entre a filosofia grega e a

religião cristão iniciada pela Patrística. Para Voegelin, as ideologias tender a ser deformações de categorias do
cristianismo; isso não quer dizer que, em um contexto alternativo, elas não possam crescer, à maneira de tumores,
de outras religiões. Ver Michael P. Federici – Eric Voegelin: A Restauração da Ordem.
3 O tema da gnose e do gnosticismo pode ser visto se forma sucinta no livro Science, Politics and Gnosticism. O

“extravio intelectual” é tratado no mesmo livro.


4 Para o entendimento do presente texto, imanentização pode ser entendida como mundanização ou dessacralização

daquilo que é essencialmente transcendente ou sacro.


5 A Crítica de Voegelin ao cientificismo está sobretudo no livro História das Idéias Políticas Vol. VII: Revolução

e Nova Ciência.
6 A crítica a Marx pode ser vista no livro História das Idéias Políticas Vol. VIII: A Crise e o Apocalipse do Homem.
7 A – talvez virulenta – crítica de Voegelin a Hegel se encontra no livro Ensaios Publicados 1966-1985 sob o
título de De Hegel: Um Estudo de Feitiçaria. Outra crítica pode ser vista em Ordem e História Vol. IV: A Era
Ecumênica.

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