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BURKE, 2002.
12
BURKE, op. cit.
13
BAILLET, 1685.
14
D’ALEMBERT, 1753.
destacado pelo autor do prólogo dos Alivios tristes, aproximando-os na defesa da
diligência com que executaram a indexação das obras. Quando referem a essa
diligência, ambos aludem a duas etapas implicadas na elaboração de um índice: a
conceitual, realizada no ato da leitura do texto, em que se coletam e ordenam os loci
communes e as sententiae que irão compô-lo; e a tipográfica, efetuada no ato de
impressão, que envolve a dispositio na página. No caso da impressão, o “cuidado” e o
“zelo” são tais que se recomenda, em artes de la imprenta do período, o máximo de
atenção, pois um índice crivado de erros tipográficos poderia levar um leitor impaciente
a descartar a obra consultada, julgada inferior 15, prejudicando tanto a atividade
comercial do impressor responsável pela obra quanto a fama de seu autor. Daí a
preocupação tanto dos impressores e livreiros quanto dos autores com a feitura
tipográfica e conceitual dos índices a serem impressos.
Embora a imprensa não tenha inventado tábuas de conteúdo ou índices,
seguramente ela contribuiu para a maior disseminação dessas ferramentas de leitura.
Uma das principais razões é comercial. A fabricação dum livro impresso, ainda que
mais barata do que dum livro manuscrito, era um investimento com riscos, uma vez que
sua produção não garantia necessariamente um mercado consumidor imediato. Desse
modo, editores buscavam livros que permitissem um retorno financeiro sustentável,
motivo pelo qual livros de referências, isto é, livros de consulta pontual, que não
exigiam uma leitura integral, como dicionários e florilégios, eram bastante populares no
período, uma vez que potencialmente atendiam a um amplo espectro de leitores, como
pregadores, professores, estudantes abastados, nobres e homens de armas (BLAIR,
2011). Em Portugal, a produção desse tipo de obra foi bastante restrita até pelo menos o
século XIX (VERDELHO, ?), mas isso não significa que os índices não ocupassem um
lugar importante nas estratégias comerciais dos editores. Pelo contrário, mesmo em
obras de gêneros diversos, encontram-se vestígios de que o instrumento em si tornava o
livro potencialmente mais atrativo para um nicho de leitores.
Ao notarem a demanda letrada por índices, impressores e livreiros passaram a
adotar estratégias comerciais que ressaltassem sua presença nas obras impressas. Dentre
essas estratégicas, o destaque na folha de rosto, sobretudo quando se tratava de
reedições ou de livros de venda difícil 16, é particularmente relevante, como no caso de
Alivios tristes, de Mateus Ribeiro, em que se salienta o acréscimo à terceira impressão
de dois novos índices “muito copiosos” que as impressões anteriores “nunca tiveram”.
Outro gênero de livro propenso a indicações similares são aqueles de utilidade para
pregadores. Indicação similar encontra-se, para apresentar mais alguns exemplos, na
folha de rosto das Centurias Predicaveis dos Evangelhos das Domingas, Segundas,
Terças, Quartas, Quintas, Sextas, & Sabados da Quaresma (1698), do Frei Jorge da
Natividade, em que se anuncia a presença de “quatro indices copiosos. O primeyro dos
Sermoens, o segundo dos Lugares, o terceyro dos Reparos, & o quarto dos Conceitos”
ou nas Obras de Horacio, “ornadas de hum index copioso das historias, & Fabulas
conteudas nelas”. Mais pertinente do que a presença em si, porém, são as razões para a
ênfase na copiosidade dos índices adicionados.
Muitos manuais de bibliologia dos séculos XX e XXI descrevem a
multiplicidade indicial como vício editorial. Ruela Pombo, comentando métodos
indiciais de escritores franceses, espanhóis e brasileiros, indica que prefere o
agrupamento em um único índice alfabético de toda a matéria indexada, sem que se
15
PAREDES, 1680.
16
Lembro do caso de um livreiro alemão que pede a um impressor que acrescente um índice a uma obra
de difícil venda, uma vez que a presença de um índice facilitaria sua venda. Cf. ZEDELMAIER, 2007.
sobreponha uma divisão temática (onomástica, geográfica, ideológica etc.) 17. A
sobriedade indicial também foi sugerida por Antonio Houaiss ao afirmar que “a
multiplicidade de índices, em princípio, é um mal, porque supõe vários tipos de
consulta”18. No Antigo Regime Tipográfico, tal multiplicidade não só não era incomum,
como era bem-vinda, demanda evidenciada pelas estratégias comerciais que o
colocavam em relevo. Autores protestantes há que indicam que bons livros deveriam
possuir, pelo menos, quatro tipos de índices: Rerum, Verborum, Capitum e Auctorum 19.
Em Portugal, o autor de Ruth peregrina, João Cardoso, nas “Advertencias”, comenta ter
elaborado para sua obra “o que não pode deixar de ser” 20, referindo-se ao “Index da
Scriptura, das cousas notaueis, & dos parágrafos, & capitolos”. É verdade que, por trás
dessa demanda, a copiosidade dos índices esconde uma estratégia comercial. Por outro
lado, devemos lembrar que muitos e longos índices também significavam um custo mais
elevado na produção do livro – custos com o papel – de autores como Vieira. O índice
do primeiro tomo de Vieira, por exemplo, possuía 72 páginas. Além disso, se eles não
cumprissem uma função importante no universo livresco, os autores do livro não se
preocupariam em fazê-lo com “zelo” e “cuidado”. Do ponto de vista do autor, quanto
mais lemmata fossem incorporados ao seu índice, menos provável seria que as
sententiae caíssem em categorias impertinentes. Igualmente, os leitores eram
beneficiados, uma vez que índices alfabéticos não acusavam uma hierarquia do material
indexado pelo editor e liberavam-nos a um uso mais personalizado do texto 21. Por outro
lado, no caso de índices produzidos pelos próprios autores dos textos indexados, como
os Sermões, de Vieira, a copiosidade dos índices pode acusar justamente a afirmação de
uma interpretação específica dos textos sugerida pelo autor. Essa mesma hierarquização
da matéria é evidenciada no próprio nome de uma das espécies de índices mais
prodigiosas do Antigo Regime Tipográfico: o índice das coisas mais notáveis. Desse
modo, pode-se pensar em índices não como mero sinalizador mecânico de passagens de
um texto tal, mas como partícipe ativo e efetivo na constituição retórica da obra. Em
outros termos, evidencia-se a existência de uma hierarquização da matéria indexada
instaurada pela noção de notabilidade: no momento em que um índice é elaborado com
base na notabilidade de suas entradas e abonações, estabelece-se aí uma dicotomia entre
o que é notável e o que não é ou, pelo menos, indica que certas passagens, personagens,
objetos, lugares ou conceitos são mais notáveis do que outros no interior da matéria
tratada – daí sua função epilogal amplificadora (por presença) ou minimizadora (por
ausência).
A materialidade indicial
Nas últimas décadas do século XX, Gérard Genette propôs reunir sob o termo
“paratexto” uma série de elementos que, embora não compreendam o texto
propriamente dito dos livros, complementam e ampliam seu sentido 22. Quer dizer, “o
paratexto é aquilo por meio do qual um texto se torna livro e se propõe como tal a seus
leitores, e, de maneira mais geral, ao público”23. Assim, uma longa lista de elementos
seriam considerados paratextuais, como nome de autor, títulos, dedicatórias, epígrafes,
prefácios, intertítulos, notas etc. Por meio desses elementos, o paratexto seria
17
RUELA POMBO, 1952.
18
HOUAISS, op. cit., p. 149.
19
BARTHOLIN, 1676.
20
CARDOSO, 1628.
21
PARKES, 1995.
22
GENETTE, 2018.
23
Ibid., p. 9.
responsável pela recepção dos textos que acompanham, sejam materialmente ligados a
eles (peritexto), como índices, sumários e prefácios, ou não (epitexto), como entrevistas
ou correspondências24. A abordagem sincrônica do estudo inaugural de Genette, porém,
volta-se para edições modernas francesas, desconsiderando as especificidades históricas
que condicionam a função dos paratextos. Um exemplo é o tratamento dispensado aos
índices, reservando a eles não mais que uma nota de rodapé ao discutir sumários e
títulos correntes (parte dos intertítulos). Apesar de não ser sua preocupação empreender
uma “história do paratexto”, Genette declara a conveniência de “definir os objetos antes
de estudar-lhes a evolução”25.
Em vez de isolar os chamados “paratextos” a partir de taxonomias e definições
trans históricas, um modo de lê-los é historicamente, atentando antes para
contextualizações dinâmicas do que para tabelas classificatórias e relacionando-os entre
si26. Essa relação pode se dar em diferentes níveis: a partir das preliminares de diferentes
partes da mesma obra, de diferentes obras do mesmo autor ou de obras de diferentes
autores. Assim, a compreensão dos índices de Vieira passa pela relação que estabelecem
entre si nos diferentes tomos e com espécies diversas de índices encontrados nos mais
diferentes gêneros retóricos e poéticos praticados na instituição retórica. Deve-se
considerar a historicidade própria em que se inscreve a prática indicial no Antigo
Regime Tipográfico, cuja relações entre os elementos paratextuais depende de relações
diferenciais entre eles e técnicas de reprodução, suporte e reprodução de textos
específicas. Trata-se, enfim, de substituir a “linguagem das instâncias textuais pelo
léxico do objeto”27, definindo índices a partir de sua materialidade tipográfica.
Nesse sentido, para avaliar a relação estabelecida entre índices e os livros que
compõem no Antigo Regime Tipográfico, seria interessante pensar em uma analogia
entre livro e discurso, de modo que se estenda ao “livro o modelo de composição do
discurso retoricamente instruído”28. Assim, discursos que antecedem a matéria tratada,
entendidos retoricamente como exórdio, favorecem a constituição de verossimilhança
da obra, colaborando com a composição de sua autoridade, configurando um decoro
específico do gênero que principia e ocupando um lugar na disposição do livro 29. A
analogia não se restringe aos discursos prefaciais, estendendo-se para os demais
elementos que acompanham o texto, ainda que a complexidade no emprego das técnicas
retóricas seja variada: “Tábuas de conteúdos, índices [...] têm aproveitamento muito
específico, mas ainda assim são reveladoras da disposição retórica que as prevê no
universo livresco”30. A partir dessa disposição retórica, é possível propor tábuas de
conteúdo como exordiais, na medida em que, como os discursos preliminares como um
todo, apresentam a obra e índices – que, retomando Bluteau, “de ordinário se poem no
fim dos livros” – como epilogais dos livros, entendendo suas funções aristotelicamente:
“tornar o ouvinte favorável para a causa do orador e desfavorável para a do adversário;
amplificar ou minimizar; dispor o ouvinte para um comportamento emocional;
recapitular”31. Sem dúvidas, no caso dos índices, a função recapitulativa é a mais
evidente, mas não necessariamente a única. No próprio ato indicial e no título do índice
das coisas mais notáveis, é possível admitir uma amplificação ou minimização da
24
Ibid.
25
Ibid., p. 19.
26
CHARTIER, 2014.
27
Ibid., p. 257.
28
CARVALHO, 2009, p. 6.
29
Ibid.
30
Ibid., p. 14.
31
ARISTÓTELES, Ret., 1419b.
matéria tratada. Os componentes patéticos, por sua vez, evidenciam-se em ditos agudos
encontrados em certos índices, como os de Vieira.
Importa pensar as “práticas de leitura” por meio da reconstituição de um corpus
de “atitudes antigas” diante da leitura, “[repondo] as referências históricas de uma
pragmática já dissolvida no presente”32. Para fazê-lo, os próprios textos forneceriam
vestígios, “protocolos de leitura”, que permitiriam tal análise. Esses protocolos seriam
de dois tipos: um que tomam como referência o próprio autor, que no próprio texto
deixa pistas de sua correta interpretação. No caso dos índices de Vieira, isso se dá no
próprio processo de coleta dos loci communes e na ordenação das sententiae. O segundo
diz respeito à própria matéria tipográfica, de modo a favorecer certa extensão da leitura
e a caracterizar o seu “leitor ideal”, que não necessariamente coincide com aquele
ideado pelo autor. Nesse sentido, seria pensar no sistema remissivo dos índices e nos
elementos que o compõem. Trata-se tanto de constituir um corpus de “atitudes antigas”
de leitura para compreender de que modo os “protocolos de leitura”. No caso, a
presença múltipla de índices – nos gêneros em geral e nos livros dos gêneros em
particular – evidencia uma “atitude antiga” de leitura que permite ou parte da leitura
metonímia indicial. Mas, também, há um segundo sentido para o protocolo de leitura,
que tem que ver mais com sua materialidade, “nos dispositivos de sua impressão”. No
caso de índices, significa atentar para o sistema remissivo implicado e todos os
elementos que o compõe, como Nesse sentido, um estudo dos índices que busque
pensá-los deve considerar o corpus restrito de textos sobre índices – geralmente,
extraídos de discursos preliminares, que, per se, estabelecem um modo de ler, que inclui
a consulta indicial – e também sua materialidade.
32
PÉCORA, 2011, p. 9.
Quando considera a comodidade do leitor, o autor do índice atenta para o ato de
sua consulta. Tal ato constitui uma ordem consultiva suposta, sempre iniciada a partir da
busca do elemento mais geral em direção ao mais particular. É essa sequência ideada
que determina a ordenação tipográfica dos elementos remissivos constantes do índice,
dispondo, em sua mise en page, os elementos gerais centralizados, uma vez que são os
primeiros buscados, e, logo após, à esquerda, passando à direita conforme a
particularização da entrada. Em suma: a ordem consultiva suposta obedece a ordem de
leitura suposta de um texto qualquer nas línguas ocidentais (isto é, de cima para baixo,
da esquerda para a direita). Embora esse processo seja generalizado, quais e como os
elementos remissivos eram dispostos dependia das variações desse sistema, que, no
Antigo Regime Tipográfico, como se disse, são múltiplas e dependem
fundamentalmente do gênero da obra indexada. Não por acaso seu caráter multiforme
levou-o a ser chamado de monstrum33 e já foi dito que uma história dos índices ainda
por ser escrita deveria, antes de mais, examinar que material foi indexado e como34. Para
que as diferenças e similaridades fiquem evidentes, seria imprescindível uma análise
material de diferentes livros com diferentes índices. Análise material que, no âmbito dos
estudos literários brasileiros, “é ignorada como o unicórnio, esse animal que não
existe”35. E mesmo os estudos sobre letras coloniais “que ainda não morreram abatidos
no pasto romântico pouco ou nada a consideram” 36. A hermenêutica continua a campear
à caça do Sentido nos estudos literários brasileiros talvez porque estes persistem que as
palavras no papel não passam de “artefato sem suportes”. Fronteiras comodamente
delimitadas, a bibliografia entretém-se com “pedaços de papel ou pergaminho”
enquanto os “certos signos escritos e impressos” que cobrem tais pedaços ficariam a
cargo da crítica literária. Não há, porém, fronteira entre bibliografia e crítica do texto, de
um lado, e, de outro, entre crítica literária e história literária: “[n]a busca de significados
históricos, nos movemos do mais diminuto aspecto da forma material do livro às
questões sobre contexto autoral, literária e social” 37. Assim, é possível propor um lugar
histórico verossímil ocupado pelos índices no Antigo Regime Tipográfico e,
simultaneamente, na instituição retórica a partir da análise das variações dos mais
diminutos aspectos da forma material que constituem as diferentes espécies de índices
acrescentados a livros de diferentes gêneros retóricos e poéticos. Faço aqui,
evidentemente, um recorte sugestivo, analisando os tomos dos Sermões de Vieira, e
verificando as variações comportadas por esse sistema remissivo. Além de contribuir
para o entendimento do índice na sua constituição material, tal análise sugere diferentes
práticas de leitura de acordo com o gênero lido, uma vez que suas diferentes ordenações
almejam a comodidade do leitor, projetada a partir duma prática de leitura suposta de
cada gênero.
Sabe-se que, no século XVII, todo discurso inscrevia-se na instituição retórica 38,
um regime discursivo. Isso significa, entre muitas outras coisas, que, ao elaborar um
texto, um orador passava por cinco partes: inuentio, dispositio, elocutio, actio. Para
33
GREGORY, 1995.
34
ZEDELMAIER, 2007.
35
HANSEN, 2011, p. 14.
36
Ibid.,
37
MCKENZIE, 2018, p. 38.
38
Para uma abordagem sintética, mas consistente, da instituição retórica, cf. HANSEN, 2013.
estudiosos do período, não há novidade nisso e, pelo contrário, a questão já foi
exaustivamente abordada. Menos comentados, por outro lado, são os instrumentos de
predicação utilizados por oradores para a inuentio de seus discursos. Embora a memória
fosse, ao contrário de hoje, sempre exercitada, ainda assim havia a necessidade, já desde
o século XIII, quando, séculos antes da invenção da imprensa, ocorre uma explosão na
produção de livros, devido ao surgimento das universidades... (HAMESSE, ?) sua
insuficiência. Nesse sentido, índice foram escritos a fim de suprir a natural insuficiência
da memória.
***
Índices com esse nível de sofisticação remissiva não eram raros em livros de
sermões. Para traçar um paralelo com outra obra do gênero, no prólogo da segunda parte
dos Sermoens de Diogo de Paiva de Andrade, o autor da recopilação, Marcel da
Conceição, sobrinho do autor, explica que dispôs as pregações pela ordem dos meses, a
começar por dezembro, princípio do ano eclesiástico. Menciona, ainda, que basta
acessar o índice para encontrar o dia do mês em que a festa é celebrada 39. O resultado é
um índice muito similar ao do décimo quarto tomo dos Sermões de Vieira. Nesses
índices, a dispositio indicial reproduz a dispositio livresca. Uma vez que se trata de
compilações de sermões, a comodidade do leitor não reside no gênero como elemento
geral, que é sempre o mesmo, mas no calendário litúrgico. A comodidade do leitor é,
também, a comodidade do pregador. Como o calendário litúrgico é componente básico
para a inuentio de um sermão, a facilitas inveniendi reside na especificação dos dados
que o compõe (mês, festa, dia). Afigura-se então, uma remissão quádrupla (mês,
sermão, dia, página) ou, no caso do décimo quarto tomo dos Sermões de Vieira, sétupla,
distinta da remissão, também quádrupla (gênero, letra inicial do incipt, incipit, fólio),
dos livros de poesia. Repare-se ainda, que, embora a remissão seja realizada por meio
de elementos distintos dos livros de poesia, o sistema remissivo é o mesmo: parte-se dos
elementos mais gerais, centralizados e em destaque (espécie de índice, mês, festa, dia),
passando imediatamente à esquerda (sermão) e particularizando a entrada à direita até o
elemento remissivo mínimo (página).
Os números apontam
Para guiar o leitor na consulta aos índices, abaixo do título dos índices da
maioria dos Lugares das Sagradas Escrituras e das Coisas Mais Notáveis dos Sermões,
encontram-se brevíssimas instruções nas quais se esclarece o elemento remissivo a que
se refere o número que acompanha as sententiae dos índices. Já foi dito que sua
presença sugeriria a novidade do índice na cultura impressa, ferramenta de leitura com a
qual os leitores estariam pouco familiarizados40. Penso, entretanto, que é outra a razão
para a existência dessas instruções. Como tenho argumentado, impressores compunham
seus índices conforme o gênero da obra indexada. Isso uma vez determinado,
40
MUELLER, 2015.
escolhiam-se os elementos remissivos que favoreceriam a comodidade do leitor em sua
consulta. No caso dos numerais, o autor do índice poderia remeter a sententia à página,
fólio, coluna, parágrafo etc. Como, muitas vezes, simultaneamente o número da página,
da coluna e do parágrafo compunham a mise-en-page, o leitor ficaria naturalmente
confuso em relação ao elemento a que o índice refere. Os impressores desenvolveram
alguns modos para contornar esse empecilho. Em alguns tomos dos Sermões, optou-se
por um simples n. ao lado do número marginal e um p. ao lado da página. No tomo X, a
indicação da col. é feita na primeira sententia e não é mais retomada. Mas, talvez para
poupar o esforço de colocar a mesma letra centenas de vezes em cada sententia, alguns
impressores preferiam fornecer apenas o número ao lado da sententia e instruir, no
início do índice, o que o número “significa” ou “aponta”.
Em uma consulta ao índice das coisas mais notáveis do segundo tomo dos
Sermões, de Vieira, o consulente que buscasse o lugar-comum “exéquias”, acharia
apenas uma sententia: “as exéquias dos mortos são ordinariamente obséquios aos
vivos”. Ao lado direito dela, encontraria dois números, 456 e 457. Na mise-en-page
desse livro, os números podem se referir tanto à página quanto ao parágrafo. Como
saber a qual elemento o índice remete? Justamente pela instrução, reproduzida abaixo,
apresentada no início do índice, em que se lê: “Os numeros, naõ significaõ folha, nem
pagina, nem columna, senão o numero marginal”41.
À guisa de conclusão, ressalto, uma vez mais, que outras espécies de índices
relacionam-se a gêneros retórico-poéticos diversos [incluir exemplos]. Pelo vulto de
Vieira para as letras luso-brasileiras do século XVII, por seus significativos testemunhos
de empenho na confecção de seus índices e pela relevância das oficinas tipográficas
responsáveis por sua impressão, os quinze tomos de seus Sermões são, seguramente,
exemplares paradigmáticos de índices de livros de sermões produzidos em Portugal no
século XVII para pensar muitos aspectos relacionados à prática indicial: na disputa
pelos sentidos do texto entre autor e editor; na multiplicidade, variedade e extensão
indicial; no complexo sistema remissivo do período; nas indicações de seu uso; na
produção de sermões a partir dos conceitos coletados nos índices; em práticas de leitura
verossímeis de sermões. Sua análise, porém, não esgota a prática indicial. No universo
do Antigo Regime Tipográfico português, interessa revelar, como já se disse, as
multifacetas do monstrum. Essa reconstituição parte do reconhecimento tanto dos
“paradigmas de leitura válidas para uma comunidade de leitores, num momento e num
lugar determinados”42quanto dos gestos específicos comportados pelas diferentes
maneiras de ler. Quer dizer, a variedade indicial torna-se particularmente produtiva, do
ponto de vista de seu estudo, se for buscada sua relação com diferentes gêneros de
livros, sugerindo maneiras específicas de lê-los por meio de índices. Nesse sentido,
lembro que o estudo do gênero índice não se encerra em si e é sua onipresença em livros
portugueses do século XVII que torna seu estudo benéfico para estudos dos gêneros
retórico-poéticos a que se associa como preâmbulo ou epílogo – seja por conterem um
léxico historicamente próprio, que permite o cotejo de diferentes sententiae encontradas
em diversos índices a respeito dos mesmos loci communes ou, pelo contrário, no
rastreio da especificidade elocutiva dum determinado conceito num determinado autor,
seja por constituírem importantes vestígios para pensar atitudes antigas de leitura, seja,
ainda, simplesmente por ajudarem o consulente de hoje, como o do século XVII, a
encontrar a coisa buscada no livro lido.
À primeira vista, não é clara a classificação conceitual dos excerpta dos índices.
Apesar de já haver uma tentativa nesse sentido, ainda merece alguma consideração a
partir do cotejo dos índices de Vieira com o encontrado nas compilações de outros
pregadores. Por exemplo, as Centúrias de Natividade, como se apontou, possuem quatro
índices. O terceiro é denominado “índice dos reparos”. Nele, a maioria dos extratos são
iniciados pela conjunção “se” e apontam uma questão a ser desenvolvida no sermão.
Assim, “Se Deos mandou, que lhe sacrificassem as aves; porque mandou Deos, que lhe
naõ sacrifisscassem os peyxes?”.
Noto o termo que denomina o índice: “dos reparos”. No gênero sermão, reparo
possui uma significação particular, como lembra Bluteau 43: “Reparo do Pregador. A
dúvida, que move sobre a inteligência de algum lugar da sagrada Escritura, ou a
reflexão, que faz sobre alguma circunstância do dia, tempo, lugar etc. do Sermão.
Animadversio, ou observatio”. Isto é, trata-se de uma figura em que o pregador avança
por uma “ponderação misteriosa” a fim de propor uma significação. Nesse sentido, é
possível supor, mesmo sem a possibilidade de consultar os índices manuscritos de
42
CHARTIER, ?
43
BLUTEAU, ?, p. 254.
Vieira, que esse é uma categoria de excerto pertinente a índices de sermões e que os de
Vieira não se diferenciam quanto a outros contemporâneos. Se insistirmos na hipótese
de que o destinatário privilegiado dos índices, esse tipo de excerto, embora Vieira não
os separe num índice particular, como Natividade, torna-se espécie de exempla
argumentativa: são questões que o orador em formação precisa de desenvolver, notando
as nuanças do orador frente a “ponderações misteriosas”.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Diogo de Payva d’. Sermões – Segunda Parte. Lisboa: Pedro Crasbeeck,
1604.
BLAIR.
BLUTEAU, Rafael. Vocabulario Portuguez & Latino. Lisboa: Collegio das Artes da
Companhia de Jesus, 1712-1728. 8 v.
BOUZA
CAMÕES
CARAMUEL, Juan.
CHARTIER
__________.
ESTRADA, Juan de. Arte de predicar la palabra de Dios, para su mayor honra, y
provecho de las almas. Madrid: Malchor Sanchez, 1667.
HAMESSE
LEITÃO
NATIVIDADE
ONG
PAREDES, Alonso Victor de. Institucion, y origen del arte de la imprenta. [s.l.: s.n.],
1680.
_______________.
RIBEIRO
ROUSE, Mary A.; ROUSE, Richard H.. La naissance des index. In: CHARTIER,
Roger; MARTIN, Henri-Jean (Ed.). Histoire de l'édition française: le livre conquérant.
2. ed. Paris: Fayard, 1989. p. 95-108.
SHERMAN
VERDELHO
VIEIRA, Antônio. Sermoens. Lisboa: vários impressores, 1679-1748. 15 v.
WEIJERS
WELLISCH, Hans