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A emendar borrões e fazer tabuadas: os índices dos Sermões,

de Padre Antônio Vieira

Ao relatar seu trabalho no último tomo de seus Sermões em carta enviada ao


Cônego Francisco Barreto, datada de 16 de julho de 1692, o Padre Antônio Vieira
refere-se a um Index acrescido ao final de cada um dos tomos de seus Sermões. Na
carta, Vieira ressalta a exatidão, a clareza e a brevidade buscadas nos índices das coisas
mais notáveis, “substância de tudo” o que se lê em seus discursos, e lembra da viva
acolhida nos colégios jesuítas, manifestada pelo Padre Mendo do Colégio de Santo
Antão, desse instrumento que “dá a luz e abre novos pensamentos e caminhos” 1.
Sumariamente, seus índices podem ser descritos como o conjunto de excertos (excerpta)
dos sermões escolhidos por Vieira e ordenados alfabeticamente pelos lemas (lemmata) a
que se subordinam acrescidos a cada tomo de seus Sermões. Em termos numéricos, isso
significa 8364 excertos distribuídas em 1178 lemas, sendo que, dos excertos, 6288 não
se repetem. Os lemas remetem diferencialmente aos sermões. Funcionalmente, indiciam
determinados pontos ao longo de sua argumentação ou então sofrem alguma variação
elocutiva e assumem a forma de sententiae agudas, como “Piores são os ouvintes pedras
que os ouvintes espinhos, isto é, piores os duros que os agudos”, alocado no lema
“Dureza”, ou “A fidalguia é de todos os dez predicamentos, e de todos os quatro
humores”, referente à “Fidalguia”2. Entre letrados do século XVII, a prática indicial
buscava evitar as defectuosas tablas3 adicionadas às suas obras por oficinas tipográficas
descuidadas, exemplificando, por um lado, sua desconfiança em relação à imprensa no
Antigo Regime Tipográfico e, por outro, evidenciando a tensa colaboração ou disputa
pelos sentidos do texto protagonizada por autores e editores no período 4. Apesar da
referência de Vieira aos seus índices, e, mais, ao empenho conferido à sua elaboração,
eles permanecem um capítulo marginal na extensa bibliografia do autor5. Desinteresse
que não se restringe a Vieira e avança, até com certo desprezo, pela prática indicial
como um todo: índice seria, na definição ferina e lapidar de Jonathan Swift, não mais
que a “porta dos fundos” dos livros, instrumento do vulgar apressado e indecoroso
incapaz de entrar pela porta da frente do Palace of Learning6. Tal juízo conjugado com
1
D’AZEVEDO, 1928, p. 651.
2
Alcir Pécora propõe uma tipologia para os excerpta, chamados de abonações, e para os lemmata,
chamados de entradas. Para uma discussão dessa tipologia, com indicação de diferentes gêneros de
índices de acordo com preceptivas do período, cf. o capítulo II desta dissertação.
3
ESTRADA GIJÓN, 1667, p. 34.
4
BOUZA, 1997; CHARTIER?. Para uma análise da relação dessas questões com a prática indicial, cf. o
capítulo III desta dissertação.
5
Entre os principais trabalhos sobre Vieira, a primeira referência mais sistemática aos índices aparece em
Oratória Barroca de Vieira, de Margarida Vieira Mendes. A autora, entretanto, atém-se a uma análise
descritiva dos índices. Em 1997, Telmo Verdelho proferiu uma comunicação não publicada a respeito, a
quem agradeço pela generosidade de seu envio. Em 2010, Alcir Pécora acrescenta uma “Introdução” à
sua edição dos índices, que ainda seria publicada em forma de artigo. Finalmente, uma dissertação foi
recentemente defendida a respeito da sentença em Vieira (NAGEL, 2018).
6
The whole course of things being thus entirely changed between us and the ancients, and the moderns
wisely sensible of it, we of this age have discovered a shorter and more prudent method to become
scholars and wits, without the fatigue of reading or of thinking. The most accomplished way of using
books at present is twofold: either first to serve them as some men do lords, learn their titles exactly, and
then brag of their acquaintance; or, secondly, which is indeed the choicer, the profounder, and politer
method, to get a thorough insight into the index by which the whole book is governed and turned, like
fishes by the tail. For to enter the palace of learning at the great gate requires an expense of time and
forms, therefore men of much haste and little ceremony are content to get in by the back-door (SWIFT,
o não acionamento de “elevado conjunto de artifícios retóricos” 7 que caracteriza o
gênero índice talvez explique a ausência de estudos a seu respeito no âmbito das
práticas letradas luso-brasileiros dos séculos XVI, XVII e XVIII.
A referência ao comentário elogioso do Padre Mendo junto à especificação da
utilitas dos índices indica os destinatários privilegiados por Vieira: alunos dos colégios
jesuítas. Assim, por outro viés, explica-se o apagamento dos índices de Vieira nas
sucessivas edições de seus sermões. Enquanto instrumento material da inuentio e parte
integrante da dispositio dos livros que compõe, os índices, com o fim da instituição
retórica, perdem sua função auxiliar inventiva – e, no caso do sermão sacro, como
instrumento da rhetorica ancilla theologiae –, assumindo, mesmo em seletas escolares,
um estatuto de “dicionário” ou “glossário” que visa tão somente ao esclarecimento (ou
anacrônico obscurecimento) de determinados termos tido como arcaicos ou distantes do
vocabulário escolar. Restituir a primeira legibilidade dos índices de Vieira significa, em
última análise, reconstituir práticas de leitura e de invenção, não dispensando, antes
exigindo, o estudo de práticas correlatas desenvolvidas nos colégios das quais depende a
prática indicial. Em seu conjunto, essas práticas compõem uma ars excerpendi, arte do
extrato, empregada, não de maneira exclusiva embora, na cultura escolar jesuítica, isto
é, uma arte de leitura, extração e indexação de sententiae. Prática referida de passagem
desde a Antiguidade, por exemplo, por Plínio, o Jovem, Cívero e Quintiliano, foi
codificada entre os séculos XVI e XVII por professores jesuítas em opúsculos
destinados a estudantes de retórica. Enquanto ars que, em sua prática, exige virtudes,
como prudência e constância, e resultam na lapidação do engenho, a ars excerpendi é
proposta como prática do letrado8 em formação. Em outras palavras: o estudo dos
índices de Vieira permite uma aproximação de práticas de leitura, de anotação e de
indexação dos colégios jesuítas que articulada e simultaneamente se propõem enquanto
índice de discrição e prática de invenção. Prática de invenção, convém salientar, não
fundamentada somente na busca da res nos palácios da memória das antigas artes
mnemônicas, mas, também, na materialidade de índices impressos e manuscritos, cuja
elaboração era ensinada por professores jesuítas e praticada por seus alunos de retórica
– e futuros letrados, como Vieira.
Nesse sentido, os índices impressos funcionam como cadernos públicos de
excerpta
Com o advento da imprensa, índices, como todo o material “paratextual” no
Antigo Regime Tipográfico, passaram a ser elaborados não apenas por estudiosos, como
o era desde o século XIII, mas também por impressores e editores. Assim, durante os
primeiros séculos da imprensa, desenvolveu-se uma série de protocolos editoriais. Por
exemplo, muitas vezes, índices e demais “paratextos” frequentemente eram impressos
somente após a impressão do corpo do livro (CHARTIER, 2014). Nos tomos dos
Sermões, de Vieira, pode-se ver essa oscilação em relação à numeração dos índices, ora
1704, p. 139.
7
CARVALHO, 2009, p. 14.
8
Entendo letrado tal como Hansen (2002, pp. 43-44) define o termo a respeito do próprio Vieira: “Vieira
é um letrado, no sentido de fazer parte da ‘gente de letras’ de seu tempo, podendo-se dizer que o termo
letrado então é entendido mais como um caráter, ou um éthos, que propriamente como uma individuação
autoral no sentido contemporâneo da função-autor definida pela livre-concorrência burguesa. Em outras
palavras, pelo termo letrado significa-se então um tipo dotado de certas qualificações técnico-
profissionais que o situam na intersecção de uma forma de atividade religiosa ou econômica com outra,
simbólica: é alguém que exercita as ‘letras’ – entendidas genericamente, aqui, como as várias auctoritates
do costume antigo recicladas na imitação, não em termos ‘literários’ de autonomia estética, contemplação
desinteressada, originalidade, psicologia e direitos autorais – recebendo, com isso, certa qualificação
produtiva (por exemplo, mestre de retórica) e, por vezes, certa distinção nobilitante (por exemplo, orador
da Capela Real).
não numerados (tomos I e II), ora numerados separadamente (tomo X), ora, mais
comumente, numerados em conjunto com o corpo do livro, acompanhando-o
sequencialmente (demais tomos). Apesar das virtuais vantagens da produção desse
material nas mãos de impressores e livreiros, uma vez que desobrigaria o envolvimento
dos autores em sua produção, sua elaboração nem sempre era qualificada e gerava
desconfiança relativamente à sua acurácia, derivada, aliás, da desconfiança geral ao
impresso durante todo o Antigo Regime Tipográfico – o chamado “estigma da
impressão” (CHARTIER, 2014, p. 108) (BOUZA, 2001). Em relação aos índices, Juan
Caramuel y Lobkowitz (1664) lembra que, sendo responsabilidade do impressor ou do
livreiro, raramente letrados, índices tornaram-se passíveis de erros frequentes. Com isso,
é necessário relativizar o poder do autor sobre as significações possíveis projetadas por
seus índices, uma vez que, até a prensa, o texto era passível de modificações nem
sempre desejáveis pelo autor e que acabavam refletindo uma série de modificações em
seus sentidos possíveis. A compreensão do lugar ocupado pelos índices no Antigo
Regime Tipográfica perpassa, então, pelo conflito pela imposição de sentidos
conduzidos pelos índices a partir dos próprios autores e dos impressores e editores do
texto impresso. Essa luta pode ser verificada buscando quem são os autores desses
índices e de que modo eles o fazem. Para contornar esses erros, textos sobre o modo de
hacer las tablas, ò indices con facilidade, y aprouechamiento, como o de Padre Juan de
Estrada (1667, p. 34), ao constatar “não só nos estudos manuscritos, mas nos livros
impressos defeituosas tábuas”. Estas, que tanto espanto causavam a Juan de Estrada,
provocavam, além da produção de índices manuscritos independentes de índices
impressos, a intervenção manuscrita no índice impresso considerado deficiente. É o que
se vê numa cópia impressa do “índice dos conceitos” acrescentado aos Sermoens das
Tardes das Domingas da Quaresma (1670), do Frei Álvaro Leitão:
Nesse índice, optou-se por uma ordenação que desconsiderava os loci
communes, elemento de ordenação característico dessa e de outras espécies de índice.
Além disso, os conceitos, ou sententiae, foram numerados a partir do peculiar critério de
serem provados ou não no texto, como é revelado no título do índice: “indice dos
conceitos que se provão, que os que se não provão, vão sem numero”. Assim, a
ordenação desse índice é pela ordem de aparecimento ao longo do texto, com indicação
de página quando previsto pelo critério enunciado. Embora tal critério não refli ta a
prática editorial usual do período, a ordenação empregada é típica de tábuas de
conteúdo, cuja função é sinalizar as subdivisões do corpo do texto, mas não de índice de
matérias, mais específicos e elaborados com a finalidade de indicar os loci e sententiae
considerados notáveis. Atento à incongruência – já que não se trata duma tábua de
conteúdo – e inadequação remissiva, que certamente confundiria muitos leitores, o
consulente adicionou, nas marginalia do índice, os loci communes a que pertenciam as
sententiae coletadas. Na segunda página do índice (imagem acima), foi anotado, em
espanhol, ao lado da décima sententiae, o loci “seguridade”; ao lado da sententiae
seguinte, “pecado” e assim por diante. Apesar de quase todos os loci serem abstrações
dos substantivos mais significativos das sententiae, há espaço para loci diversos, como o
da primeira sententia do índice: “Bondade de Dios” contempla “Tam desejoso de darse
aos homes, veyo Deos menino ao Mundo, que so elle queria ser Author de darse”. Essa
alocação, uma vez que reflete uma ordenação personalizada, revela um índice mais
prático e útil para aquele consulente particular. Apesar de lugares-comuns manuscritos,
essa ordenação revela como loci communes impressos poderiam ser elaborados,
alocando-se num locus abstrato a sententia concreta. Essa não foi a única intervenção do
consulente, que ainda numerou as páginas dos índices – que, como se disse, muitas
vezes não eram numeradas, pois impressos após o corpo do livro – e as sententiae. Uma
vez que não era comum a numeração de sententiae impressas conterem essa numeração,
o consulente precisou de elaborar os loci a partir das sententiae impressas, é evidente
que ele não poderia alfabetá-las a partir dos loci pertencentes. Ao mesmo tempo, a
ordenação pela página não é satisfatória, até porque nem todas as sententiae são
numeradas pela página, uma vez que o peculiar critério do responsável pela elaboração
do índice era os conceitos terem (numerados) ou não provas (não numerados) – o
próprio escrivão acrescenta a página a uma das sententiae não numeradas. Assim, o
consulente preferiu estabelecer sua própria ordenação do índice associando cada
sententia a um locus e a um número. Na impossibilidade de ordenar os loci communes
alfabeticamente, o consulente ordenou-os numericamente – uma ordenação pouco
prática, mas, ainda assim, menos confusa do que a do impressor. A terceira intervenção
é a numeração do índice. Prática comum, índices muitas vezes não eram numerados (ou,
quando impressos junto com o livro, continuavam a numeração do livro). No caso, esse
índice não possui qualquer tipo de numeração, o que torna sua consulta menos cômoda.
Essa paginação independente do livro também indica seu uso autônomo. Embora não
passe de exercício especulativo, não é inverossímil que tais intervenções auxiliassem na
elaboração dum índice manuscrito mais acurado, uma vez que, devido a erros
tipográficos ou má elaboração, como no exemplo indicado, muitos letrados
acrescentavam índices manuscritos mesmo a obras impressas que já possuíam índices
(ZEDELMAIER, 2007; CHARTIER, 2014; TAVONI, 2010; TAVONI, 2011).
Além de confirmarem a desconfiança aos índices impressos que levou o Padre
Estrada a ensinar oradores sacros a elaborarem seus próprios índices, as intervenções
manuscritas ao índice mal elaborado acrescido ao Sermoens do Frei Álvaro Leitão
sugerem a necessidade de as oficinas tipográficas desenvolverem estratégias para
conferir credibilidade ao seu trabalho e dirimir a desconfiança relativamente a índices
impressos.
Uma primeira estratégia era atribuir a responsabilidade pela confecção do índice a uma
autoridade, alguém reconhecidamente letrado, ainda que não o autor do próprio texto. É
o que se vê no “index dos nomes próprios” adicionados a Os Lusíadas comentados por
João Franco Barreto – aliás, rara edição seiscentista do poema com índices. A
particularidade dessa estratégia, que indica o responsável pela recolha e ordenação dos
nomes próprios, repousa na garantia da acurácia das informações relativamente aos
nomes próprios do texto indexado a despeito da intervenção editorial – daí a
importância de enfatizar que a “recolha e ordenação” foi realizada por Barreto e não por
algum dos impressores iletrados referidos por Juan Caramuel.
A segunda estratégia, diretamente ligada a Vieira, era o engajamento dos
próprios autores na confecção dos índices de suas obras. Vieira deu testemunho de
trabalhar em seus índices simultaneamente aos seus sermões. É o que diz em carta ao
Padre Francisco de Avelar de 28 de fevereiro de 1658 ao comentar que estaria
trabalhando, a mando do Padre Provincial, nos seus papéis para serem impressos e que,
longe das impressões e das livrarias europeias, estaria, no Maranhão, a “emendar
borrões e fazer tabuadas”9. Noutra carta, manifestou ainda seu empenho na confecção
dos índices dos seus sermões, considerando-os “o mais exacto que se fez” 10. O
testemunho de autores encarregados em elaborar seus índices também aparece nas
preliminares dos próprios textos. Jorge da Natividade diz, no “Prologo a quem ler” de
suas Centurias predicáveis dos evangelhos: “tudo deve ao meu cuidado, que te propõem
com novidade os rumos, os atalhos, & os caminhos; pera achares com brevidade os
passos, os lugares, & os conceitos.” Tais testemunhos sugerem a consciência que os
autores possuíam a respeito do poder dos índices na condução a um sentido do texto e,
por isso, a importância de manter os loci communes e as sententiae notáveis sob seu
controle. No caso de Natividade, além desse aspecto, que se revela na ênfase de que o
9
D’AZEVEDO, 1925, p. 474, vol. I.
10
D’AZEVEDO, 1925, p. 651, vol. I. A carta é comentada ainda no primeiro capítulo deste trabalho na
subseção “tópicas indiciais”.
leitor deve a ele o “cuidado” na elaboração do índice, ainda se pode pensar no modo
como esses “rumos, atalhos e caminhos” eram consultados e utilizados produtivamente
na elaboração de novos discursos a partir dos mesmos “passos, lugares e conceitos”.
Tais indicações partem da concepção de inuentio na instituição retórica.
Na ausência duma autoridade como João Franco Barreto ou do autor da própria
obra, resta uma terceira estratégia, a ênfase no cuidado da oficina tipográfica, como se
vê no comentário acerca das vantagens dos índices acrescidos à terceira impressão de
Alivios tristes, e consolação dos queixosos (1688), de Mateus Ribeiro. O autor do
“Prologo”, dirigindo-se ao discreto leitor, salienta que “[n]elles [índices] buscamos mais
o teu comodo, & a facilidade de achares com toda a pressa as muitas descripçoens, &
diffiniçoens, de que abunda esta Historia, que he muito singular”. Valorizando seu
ofício, lembra ainda do “zelo, & vontade, com que nesta obra te servimos [...]”. Como
estratégia comercial, o destaque à diferença estabelecida em relação às impressões
anteriores pela presença de índices incentiva a aquisição de uma nova edição – mais ou
menos como muitas editoras atualmente, que relançam novas edições de seu catálogo,
destacando, na capa, a novidade de estarem “de acordo com a nova ortografia”.
Considerando as estratégias utilizadas para conferir credibilidade aos índices impressos,
não é casual que as mesmas obras que destacam, na folha de rosto, a presença de índices
na folha de rosto, contenham prefácios que enfatizem o “zelo” com que foram
elaborados: ao atribuírem uma importante função ao aparato indicial e ressaltarem a
acurácia de sua elaboração, os editores preveniam-se da acusação de acrescentarem
índices apenas como estratégia comercial. De fato, a presença de índices impressos era
desejada pelo leitor, a começar pela dificuldade para elaborar um índice manuscrito,
cuja falta de método poderia custar muito papel, pouco escrito e resultado confuso
(ESTRADA, 1667). Além de a confecção em si ser trabalhosa, os leitores deparavam-se
com uma proliferação desenfreada de livros após a invenção da imprensa, o que tornava
a tarefa ainda mais penosa11. Com as mudanças ocorridas nas condições de produção e
disseminação dos textos após o surgimento dos tipos móveis, o acesso direto aos textos
estudados, em princípio, havia se tornado mais fácil, de modo que recorrer aos
retalhados florilégios não parecia mais vantajoso. Ocorre, entretanto, justamente o
contrário. A “floresta”, o “oceano” ou a “inundação” de livros – lugares-comuns
empregados para se referir à profusão livresca dos séculos que sucedem a invenção da
imprensa – estimulou a elaboração de ferramentas de leitura, como florilégios, notas
marginais, sumários, bibliotecas e índices 12, ainda que o estímulo a esse tipo de
ferramenta não tenha sido a única resposta ao acúmulo livresco e, com ele, tenha se
produzido discursos que de algum modo desprezavam-nos. Adrien Baillet sugere que a
multiplicação de livros seria o caminho para a barbárie sucedida da queda do Império
Romano13 enquanto, no século XVIII, Jean d’Alembert propõe a simples destruição de
livros considerados inúteis a fim de estancar o acúmulo desenfreado14.
Como disse, impressores e livreiros, frequentemente não letrados, não raro
produziam índices imprecisos de sorte que os autores das obras preferiam, muitas vezes,
encarregar-se de sua elaboração. Nos discursos preambulares mencionados, essa
ambiguidade funcional é bem exemplificada, uma vez que, pelos prólogos, verifica-se
que o índice de Alivios tristes não foi elaborado por seu autor, Mateus Ribeiro, ao passo
que o índice das Centurias é seguramente de autoria de Natividade. Ainda assim, o
“cuidado” na elaboração dos índices referido por Natividade é análogo ao “zelo”

11
BURKE, 2002.
12
BURKE, op. cit.
13
BAILLET, 1685.
14
D’ALEMBERT, 1753.
destacado pelo autor do prólogo dos Alivios tristes, aproximando-os na defesa da
diligência com que executaram a indexação das obras. Quando referem a essa
diligência, ambos aludem a duas etapas implicadas na elaboração de um índice: a
conceitual, realizada no ato da leitura do texto, em que se coletam e ordenam os loci
communes e as sententiae que irão compô-lo; e a tipográfica, efetuada no ato de
impressão, que envolve a dispositio na página. No caso da impressão, o “cuidado” e o
“zelo” são tais que se recomenda, em artes de la imprenta do período, o máximo de
atenção, pois um índice crivado de erros tipográficos poderia levar um leitor impaciente
a descartar a obra consultada, julgada inferior 15, prejudicando tanto a atividade
comercial do impressor responsável pela obra quanto a fama de seu autor. Daí a
preocupação tanto dos impressores e livreiros quanto dos autores com a feitura
tipográfica e conceitual dos índices a serem impressos.
Embora a imprensa não tenha inventado tábuas de conteúdo ou índices,
seguramente ela contribuiu para a maior disseminação dessas ferramentas de leitura.
Uma das principais razões é comercial. A fabricação dum livro impresso, ainda que
mais barata do que dum livro manuscrito, era um investimento com riscos, uma vez que
sua produção não garantia necessariamente um mercado consumidor imediato. Desse
modo, editores buscavam livros que permitissem um retorno financeiro sustentável,
motivo pelo qual livros de referências, isto é, livros de consulta pontual, que não
exigiam uma leitura integral, como dicionários e florilégios, eram bastante populares no
período, uma vez que potencialmente atendiam a um amplo espectro de leitores, como
pregadores, professores, estudantes abastados, nobres e homens de armas (BLAIR,
2011). Em Portugal, a produção desse tipo de obra foi bastante restrita até pelo menos o
século XIX (VERDELHO, ?), mas isso não significa que os índices não ocupassem um
lugar importante nas estratégias comerciais dos editores. Pelo contrário, mesmo em
obras de gêneros diversos, encontram-se vestígios de que o instrumento em si tornava o
livro potencialmente mais atrativo para um nicho de leitores.
Ao notarem a demanda letrada por índices, impressores e livreiros passaram a
adotar estratégias comerciais que ressaltassem sua presença nas obras impressas. Dentre
essas estratégicas, o destaque na folha de rosto, sobretudo quando se tratava de
reedições ou de livros de venda difícil 16, é particularmente relevante, como no caso de
Alivios tristes, de Mateus Ribeiro, em que se salienta o acréscimo à terceira impressão
de dois novos índices “muito copiosos” que as impressões anteriores “nunca tiveram”.
Outro gênero de livro propenso a indicações similares são aqueles de utilidade para
pregadores. Indicação similar encontra-se, para apresentar mais alguns exemplos, na
folha de rosto das Centurias Predicaveis dos Evangelhos das Domingas, Segundas,
Terças, Quartas, Quintas, Sextas, & Sabados da Quaresma (1698), do Frei Jorge da
Natividade, em que se anuncia a presença de “quatro indices copiosos. O primeyro dos
Sermoens, o segundo dos Lugares, o terceyro dos Reparos, & o quarto dos Conceitos”
ou nas Obras de Horacio, “ornadas de hum index copioso das historias, & Fabulas
conteudas nelas”. Mais pertinente do que a presença em si, porém, são as razões para a
ênfase na copiosidade dos índices adicionados.
Muitos manuais de bibliologia dos séculos XX e XXI descrevem a
multiplicidade indicial como vício editorial. Ruela Pombo, comentando métodos
indiciais de escritores franceses, espanhóis e brasileiros, indica que prefere o
agrupamento em um único índice alfabético de toda a matéria indexada, sem que se

15
PAREDES, 1680.
16
Lembro do caso de um livreiro alemão que pede a um impressor que acrescente um índice a uma obra
de difícil venda, uma vez que a presença de um índice facilitaria sua venda. Cf. ZEDELMAIER, 2007.
sobreponha uma divisão temática (onomástica, geográfica, ideológica etc.) 17. A
sobriedade indicial também foi sugerida por Antonio Houaiss ao afirmar que “a
multiplicidade de índices, em princípio, é um mal, porque supõe vários tipos de
consulta”18. No Antigo Regime Tipográfico, tal multiplicidade não só não era incomum,
como era bem-vinda, demanda evidenciada pelas estratégias comerciais que o
colocavam em relevo. Autores protestantes há que indicam que bons livros deveriam
possuir, pelo menos, quatro tipos de índices: Rerum, Verborum, Capitum e Auctorum 19.
Em Portugal, o autor de Ruth peregrina, João Cardoso, nas “Advertencias”, comenta ter
elaborado para sua obra “o que não pode deixar de ser” 20, referindo-se ao “Index da
Scriptura, das cousas notaueis, & dos parágrafos, & capitolos”. É verdade que, por trás
dessa demanda, a copiosidade dos índices esconde uma estratégia comercial. Por outro
lado, devemos lembrar que muitos e longos índices também significavam um custo mais
elevado na produção do livro – custos com o papel – de autores como Vieira. O índice
do primeiro tomo de Vieira, por exemplo, possuía 72 páginas. Além disso, se eles não
cumprissem uma função importante no universo livresco, os autores do livro não se
preocupariam em fazê-lo com “zelo” e “cuidado”. Do ponto de vista do autor, quanto
mais lemmata fossem incorporados ao seu índice, menos provável seria que as
sententiae caíssem em categorias impertinentes. Igualmente, os leitores eram
beneficiados, uma vez que índices alfabéticos não acusavam uma hierarquia do material
indexado pelo editor e liberavam-nos a um uso mais personalizado do texto 21. Por outro
lado, no caso de índices produzidos pelos próprios autores dos textos indexados, como
os Sermões, de Vieira, a copiosidade dos índices pode acusar justamente a afirmação de
uma interpretação específica dos textos sugerida pelo autor. Essa mesma hierarquização
da matéria é evidenciada no próprio nome de uma das espécies de índices mais
prodigiosas do Antigo Regime Tipográfico: o índice das coisas mais notáveis. Desse
modo, pode-se pensar em índices não como mero sinalizador mecânico de passagens de
um texto tal, mas como partícipe ativo e efetivo na constituição retórica da obra. Em
outros termos, evidencia-se a existência de uma hierarquização da matéria indexada
instaurada pela noção de notabilidade: no momento em que um índice é elaborado com
base na notabilidade de suas entradas e abonações, estabelece-se aí uma dicotomia entre
o que é notável e o que não é ou, pelo menos, indica que certas passagens, personagens,
objetos, lugares ou conceitos são mais notáveis do que outros no interior da matéria
tratada – daí sua função epilogal amplificadora (por presença) ou minimizadora (por
ausência).

A materialidade indicial

Nas últimas décadas do século XX, Gérard Genette propôs reunir sob o termo
“paratexto” uma série de elementos que, embora não compreendam o texto
propriamente dito dos livros, complementam e ampliam seu sentido 22. Quer dizer, “o
paratexto é aquilo por meio do qual um texto se torna livro e se propõe como tal a seus
leitores, e, de maneira mais geral, ao público”23. Assim, uma longa lista de elementos
seriam considerados paratextuais, como nome de autor, títulos, dedicatórias, epígrafes,
prefácios, intertítulos, notas etc. Por meio desses elementos, o paratexto seria
17
RUELA POMBO, 1952.
18
HOUAISS, op. cit., p. 149.
19
BARTHOLIN, 1676.
20
CARDOSO, 1628.
21
PARKES, 1995.
22
GENETTE, 2018.
23
Ibid., p. 9.
responsável pela recepção dos textos que acompanham, sejam materialmente ligados a
eles (peritexto), como índices, sumários e prefácios, ou não (epitexto), como entrevistas
ou correspondências24. A abordagem sincrônica do estudo inaugural de Genette, porém,
volta-se para edições modernas francesas, desconsiderando as especificidades históricas
que condicionam a função dos paratextos. Um exemplo é o tratamento dispensado aos
índices, reservando a eles não mais que uma nota de rodapé ao discutir sumários e
títulos correntes (parte dos intertítulos). Apesar de não ser sua preocupação empreender
uma “história do paratexto”, Genette declara a conveniência de “definir os objetos antes
de estudar-lhes a evolução”25.
Em vez de isolar os chamados “paratextos” a partir de taxonomias e definições
trans históricas, um modo de lê-los é historicamente, atentando antes para
contextualizações dinâmicas do que para tabelas classificatórias e relacionando-os entre
si26. Essa relação pode se dar em diferentes níveis: a partir das preliminares de diferentes
partes da mesma obra, de diferentes obras do mesmo autor ou de obras de diferentes
autores. Assim, a compreensão dos índices de Vieira passa pela relação que estabelecem
entre si nos diferentes tomos e com espécies diversas de índices encontrados nos mais
diferentes gêneros retóricos e poéticos praticados na instituição retórica. Deve-se
considerar a historicidade própria em que se inscreve a prática indicial no Antigo
Regime Tipográfico, cuja relações entre os elementos paratextuais depende de relações
diferenciais entre eles e técnicas de reprodução, suporte e reprodução de textos
específicas. Trata-se, enfim, de substituir a “linguagem das instâncias textuais pelo
léxico do objeto”27, definindo índices a partir de sua materialidade tipográfica.
Nesse sentido, para avaliar a relação estabelecida entre índices e os livros que
compõem no Antigo Regime Tipográfico, seria interessante pensar em uma analogia
entre livro e discurso, de modo que se estenda ao “livro o modelo de composição do
discurso retoricamente instruído”28. Assim, discursos que antecedem a matéria tratada,
entendidos retoricamente como exórdio, favorecem a constituição de verossimilhança
da obra, colaborando com a composição de sua autoridade, configurando um decoro
específico do gênero que principia e ocupando um lugar na disposição do livro 29. A
analogia não se restringe aos discursos prefaciais, estendendo-se para os demais
elementos que acompanham o texto, ainda que a complexidade no emprego das técnicas
retóricas seja variada: “Tábuas de conteúdos, índices [...] têm aproveitamento muito
específico, mas ainda assim são reveladoras da disposição retórica que as prevê no
universo livresco”30. A partir dessa disposição retórica, é possível propor tábuas de
conteúdo como exordiais, na medida em que, como os discursos preliminares como um
todo, apresentam a obra e índices – que, retomando Bluteau, “de ordinário se poem no
fim dos livros” – como epilogais dos livros, entendendo suas funções aristotelicamente:
“tornar o ouvinte favorável para a causa do orador e desfavorável para a do adversário;
amplificar ou minimizar; dispor o ouvinte para um comportamento emocional;
recapitular”31. Sem dúvidas, no caso dos índices, a função recapitulativa é a mais
evidente, mas não necessariamente a única. No próprio ato indicial e no título do índice
das coisas mais notáveis, é possível admitir uma amplificação ou minimização da

24
Ibid.
25
Ibid., p. 19.
26
CHARTIER, 2014.
27
Ibid., p. 257.
28
CARVALHO, 2009, p. 6.
29
Ibid.
30
Ibid., p. 14.
31
ARISTÓTELES, Ret., 1419b.
matéria tratada. Os componentes patéticos, por sua vez, evidenciam-se em ditos agudos
encontrados em certos índices, como os de Vieira.
Importa pensar as “práticas de leitura” por meio da reconstituição de um corpus
de “atitudes antigas” diante da leitura, “[repondo] as referências históricas de uma
pragmática já dissolvida no presente”32. Para fazê-lo, os próprios textos forneceriam
vestígios, “protocolos de leitura”, que permitiriam tal análise. Esses protocolos seriam
de dois tipos: um que tomam como referência o próprio autor, que no próprio texto
deixa pistas de sua correta interpretação. No caso dos índices de Vieira, isso se dá no
próprio processo de coleta dos loci communes e na ordenação das sententiae. O segundo
diz respeito à própria matéria tipográfica, de modo a favorecer certa extensão da leitura
e a caracterizar o seu “leitor ideal”, que não necessariamente coincide com aquele
ideado pelo autor. Nesse sentido, seria pensar no sistema remissivo dos índices e nos
elementos que o compõem. Trata-se tanto de constituir um corpus de “atitudes antigas”
de leitura para compreender de que modo os “protocolos de leitura”. No caso, a
presença múltipla de índices – nos gêneros em geral e nos livros dos gêneros em
particular – evidencia uma “atitude antiga” de leitura que permite ou parte da leitura
metonímia indicial. Mas, também, há um segundo sentido para o protocolo de leitura,
que tem que ver mais com sua materialidade, “nos dispositivos de sua impressão”. No
caso de índices, significa atentar para o sistema remissivo implicado e todos os
elementos que o compõe, como Nesse sentido, um estudo dos índices que busque
pensá-los deve considerar o corpus restrito de textos sobre índices – geralmente,
extraídos de discursos preliminares, que, per se, estabelecem um modo de ler, que inclui
a consulta indicial – e também sua materialidade.

No século XVII, índices são elaborados a partir de um sistema que não se


resume à ordenação alfabética dos loci communes ou à remissão das sententiae pela
página. No Antigo Regime Tipográfico, os autores de índices combinavam, em sua
remissão, níveis e divisões hierárquicas, de modo a indicar precisamente o locus da
sententia na mise en page do corpo do livro. Para pensar a relação entre esse sistema
remissivo, distinto dos livros de hoje, e a mise en page no Antigo Regime Tipográfico, é
fundamental considerar a comodidade do leitor como preceito da prática indicial, em
que pese que a excelência da prática indicial variava de acordo com a capacidade e com
a vontade do impressor e, nesse sentido, a comodidade do leitor poderia ser melhor ou
pior atendida. Essa comodidade do leitor não é genérica e válida para todo e qualquer
livro, mas dependente do gênero do livro indexado. Tal subordinação manifesta-se de
diferentes maneiras, revelando-se em variações comportadas pelo sistema remissivo em
relação às espécies de índices (index capitorum, index locorum scripturae sacrae, index
res memorabilium etc.), tipo de remissão (capítulo, página, fólio, coluna, parágrafo
etc.), ordenação dos lugares-comuns e das sententiae (alfabética ou temática e, no caso
das sententiae, também pode ser cronológicas). A princípio, livros de certos gêneros,
como sermões, parecem favorecer a leitura indicial, uma vez que a relativa
independência entre os sermões não configura uma ordem de leitura impositiva.
Entretanto, muitos livros cuja dependência entre as partes é evidente, como livros de
gênero histórico, fizeram usos similares de índices, sinalizando que a leitura indicial
atravessa diferentes gêneros, mesmo aqueles que, supostamente, resistiriam à
indexação. Nesse sentido, índices são dispositivos que independem da ordo narrationis
para exercerem sua função. Essa é, aliás, uma característica fundamental que os
distingue de outras ferramentas de leitura dependentes das marginalia ao longo do livro.

32
PÉCORA, 2011, p. 9.
Quando considera a comodidade do leitor, o autor do índice atenta para o ato de
sua consulta. Tal ato constitui uma ordem consultiva suposta, sempre iniciada a partir da
busca do elemento mais geral em direção ao mais particular. É essa sequência ideada
que determina a ordenação tipográfica dos elementos remissivos constantes do índice,
dispondo, em sua mise en page, os elementos gerais centralizados, uma vez que são os
primeiros buscados, e, logo após, à esquerda, passando à direita conforme a
particularização da entrada. Em suma: a ordem consultiva suposta obedece a ordem de
leitura suposta de um texto qualquer nas línguas ocidentais (isto é, de cima para baixo,
da esquerda para a direita). Embora esse processo seja generalizado, quais e como os
elementos remissivos eram dispostos dependia das variações desse sistema, que, no
Antigo Regime Tipográfico, como se disse, são múltiplas e dependem
fundamentalmente do gênero da obra indexada. Não por acaso seu caráter multiforme
levou-o a ser chamado de monstrum33 e já foi dito que uma história dos índices ainda
por ser escrita deveria, antes de mais, examinar que material foi indexado e como34. Para
que as diferenças e similaridades fiquem evidentes, seria imprescindível uma análise
material de diferentes livros com diferentes índices. Análise material que, no âmbito dos
estudos literários brasileiros, “é ignorada como o unicórnio, esse animal que não
existe”35. E mesmo os estudos sobre letras coloniais “que ainda não morreram abatidos
no pasto romântico pouco ou nada a consideram” 36. A hermenêutica continua a campear
à caça do Sentido nos estudos literários brasileiros talvez porque estes persistem que as
palavras no papel não passam de “artefato sem suportes”. Fronteiras comodamente
delimitadas, a bibliografia entretém-se com “pedaços de papel ou pergaminho”
enquanto os “certos signos escritos e impressos” que cobrem tais pedaços ficariam a
cargo da crítica literária. Não há, porém, fronteira entre bibliografia e crítica do texto, de
um lado, e, de outro, entre crítica literária e história literária: “[n]a busca de significados
históricos, nos movemos do mais diminuto aspecto da forma material do livro às
questões sobre contexto autoral, literária e social” 37. Assim, é possível propor um lugar
histórico verossímil ocupado pelos índices no Antigo Regime Tipográfico e,
simultaneamente, na instituição retórica a partir da análise das variações dos mais
diminutos aspectos da forma material que constituem as diferentes espécies de índices
acrescentados a livros de diferentes gêneros retóricos e poéticos. Faço aqui,
evidentemente, um recorte sugestivo, analisando os tomos dos Sermões de Vieira, e
verificando as variações comportadas por esse sistema remissivo. Além de contribuir
para o entendimento do índice na sua constituição material, tal análise sugere diferentes
práticas de leitura de acordo com o gênero lido, uma vez que suas diferentes ordenações
almejam a comodidade do leitor, projetada a partir duma prática de leitura suposta de
cada gênero.

“Pera achares com brevidade os passos, os lugares, & os conceitos”:


índice como ferramenta da predicação

Sabe-se que, no século XVII, todo discurso inscrevia-se na instituição retórica 38,
um regime discursivo. Isso significa, entre muitas outras coisas, que, ao elaborar um
texto, um orador passava por cinco partes: inuentio, dispositio, elocutio, actio. Para

33
GREGORY, 1995.
34
ZEDELMAIER, 2007.
35
HANSEN, 2011, p. 14.
36
Ibid.,
37
MCKENZIE, 2018, p. 38.
38
Para uma abordagem sintética, mas consistente, da instituição retórica, cf. HANSEN, 2013.
estudiosos do período, não há novidade nisso e, pelo contrário, a questão já foi
exaustivamente abordada. Menos comentados, por outro lado, são os instrumentos de
predicação utilizados por oradores para a inuentio de seus discursos. Embora a memória
fosse, ao contrário de hoje, sempre exercitada, ainda assim havia a necessidade, já desde
o século XIII, quando, séculos antes da invenção da imprensa, ocorre uma explosão na
produção de livros, devido ao surgimento das universidades... (HAMESSE, ?) sua
insuficiência. Nesse sentido, índice foram escritos a fim de suprir a natural insuficiência
da memória.

Também acrescento os indices em duas cousas, na quantia, & na extenção: na


quantia, como se testemunha o terceyro; & na extensão, como testifica o
quarto. Tudo deves ao meu cuidado, que te propoem com novidade os rumos,
os atalhos, & os caminhos; pera achares com brevidade os passos, os lugares,
& os conceitos. Alguns acomodo muytas vezes com huma prova sómente, ou
porque o pede assi o Santo, ou porque o manda assi o Texto: ou porque o
Santo assi o pede, ou porque o Texto assi o manda: mas sem trabalhares
muyto, das palavras, que acomodo; & das palavras, que conceituo; podes
formar duas provas, pera que os passos te creçaõ, & os lugares te sobrem.
Delles pódes fazer muytos Sermoens, se os teceres com a doutrina, com que
se devem tecer, ainda que sejaõ parengyricos; & os vestires com a Rethorica,
com que se podem vestir, ainda que sejaõ doutrinaes. E porque te não pareça
impossível, antes de escrever os quatro indices, porey no fim quatro
Sermoens, pera que veja claramente, que podem ser doutrinaes, ainda que
sejaõ panegyricos (NATIVIDADE, 1688, p. s. p)

***

Índices preambulares dos Sermoens

Em todos os tomos dos Sermões, encontra-se uma tábua de conteúdo. Sua


função é apresentar a ordo do livro, remetendo cada um dos sermões à sua primeira
página ou coluna (no caso da primeira parte) no tomo correspondente. Embora essa
espécie de índice seja encontrado em obras antigas como Historia naturalia, de Plínio,
ou em Noites Áticas, de Aulo Gélio, ela começa a se disseminar por volta do século XII
(BLAIR, 2011; WEIJERS, 1992; PARKES, ?). Dos índices encontrados nos Sermões, é
o mais estável, sempre obedecendo a ordenação dos sermões no tomo correspondente e
comportando variações mínimas em sua remissão numérica, podendo ser coluna ou
página. Ainda que fosse produto das melhores oficinas do Reino de Portugal, também
estava sujeita a erros tipográficos, como no tomo VIII, em que o último sermão é
apontado para a página 265 quando, na verdade, inicia na página?
No entanto, no décimo quarto tomo – o primeiro, aliás, impresso por Valentim
da Costa Deslandes – a tábua que se encontra está longe da simplicidade remissiva das
demais. A organização do “índice universal” de todos os sermões é exemplar do
cuidado e da complexidade remissiva que um índice no Antigo Regime Tipográfico
poderia assumir. Tal índice combina calendário litúrgico e dispositio dos sermões,
cruzando sete elementos remissivos simultaneamente: tipo de sermão (festas imóveis;
festas móveis e quaresmas; sermões e papéis vários), mês, dia, título do sermão, tomo,
número do sermão no tomo e página:

Índices com esse nível de sofisticação remissiva não eram raros em livros de
sermões. Para traçar um paralelo com outra obra do gênero, no prólogo da segunda parte
dos Sermoens de Diogo de Paiva de Andrade, o autor da recopilação, Marcel da
Conceição, sobrinho do autor, explica que dispôs as pregações pela ordem dos meses, a
começar por dezembro, princípio do ano eclesiástico. Menciona, ainda, que basta
acessar o índice para encontrar o dia do mês em que a festa é celebrada 39. O resultado é
um índice muito similar ao do décimo quarto tomo dos Sermões de Vieira. Nesses
índices, a dispositio indicial reproduz a dispositio livresca. Uma vez que se trata de
compilações de sermões, a comodidade do leitor não reside no gênero como elemento
geral, que é sempre o mesmo, mas no calendário litúrgico. A comodidade do leitor é,
também, a comodidade do pregador. Como o calendário litúrgico é componente básico
para a inuentio de um sermão, a facilitas inveniendi reside na especificação dos dados
que o compõe (mês, festa, dia). Afigura-se então, uma remissão quádrupla (mês,
sermão, dia, página) ou, no caso do décimo quarto tomo dos Sermões de Vieira, sétupla,
distinta da remissão, também quádrupla (gênero, letra inicial do incipt, incipit, fólio),
dos livros de poesia. Repare-se ainda, que, embora a remissão seja realizada por meio
de elementos distintos dos livros de poesia, o sistema remissivo é o mesmo: parte-se dos
elementos mais gerais, centralizados e em destaque (espécie de índice, mês, festa, dia),
passando imediatamente à esquerda (sermão) e particularizando a entrada à direita até o
elemento remissivo mínimo (página).

Índices epilogais dos Sermoens

Deixando o exórdio e percorrendo os tomos dos sermões até seus epílogos,


encontram-se dois índices respectivamente: o índice dos lugares das escrituras e o índice
das coisas mais notáveis. A mesma comodidade orientada pela liturgia é que impõe a
presença em livros de sermões do index locorum sacrae scripturae. Nesse caso, o
elemento ordenativo geral não é nem o gênero da matéria poética nem a ordem dos
meses, mas os livros bíblicos, cuja ordenação, por sua vez, é canônica. A partir daí,
distingue-se capítulo, a sententia latina e, finalmente, o fólio e a coluna. A quantidade
de res envolvida e o complexo processo de coleta e ordenação desses dois índices
tornam-nos espécies muito diferentes da primeira da tábua de conteúdo, em que basta
assinalar a página em que inicia cada sermão de acordo com a ordem com que foram
dispostos. Nesse sentido, não seria aconselhável sua elaboração sem um método
adequado e, como indiquei, a negligência ou a falta de critérios ordenativos adequados
poderia tornar índices confusos ou pouco práticos. Muitos estudos têm destacado a
importância do De Indicibus Librorum, de Conrad Gessner, na consolidação de um
método de indexação no impresso (COCHETTI, 1984; SERRAI, 1990). Polímata
protestante, Gessner escreveu diversos livros considerados heréticos e, por isso, teve seu
nome incluído já na primeira versão do Index Prohibitorum Librorum. Ainda que
termos como “contrarreforma” obliterem a importância que o protestantismo teve no
mundo católico pós-Concílio de Trento, a disputa religiosa levava a diferenças
teológicas fundamentais, que se manifestavam mesmo em pequenas definições. Nesse
sentido, é verossímil imaginar que a prática indicial pudesse de algum modo ser
fundamentada teologicamente ou então que modelos paralelos de indexação pudessem
ser desenvolvidos no mundo católico. Embora muitos estudos sobre o método indicial
de Gessner já tenham sido desenvolvidos, sua recepção no universo católico é um
aspecto a que não tem sido dada a devida importância. O próprio Gessner, talvez
39
ANDRADE, 1604.
provocativamente, afirmava que índices alemães eram muito superiores aos espanhóis.
Nesse sentido, apresento um modo de hazer las tablas, ò indices espanhol produzido no
século XVII e que, à sombra de Gessner, permanece esquecido.
Estrada propõe que se dobre ao meio meia folha de papel, reservando para a
escrita dos loci communes apenas um dos lados de cada uma das duas partes formadas.
Feito isso, deve-se escrever nas duas colunas os lugares da Escritura conforme sua
identificação ao longo do texto. Ao finalizar a leitura do texto e a coleta dos loci
communes, deve-se cortá-los em pequenas cédulas, dispondo-as sobre duas caixas e
separando-as em duas pilhas de acordo com o Testamento pertencente. Após, deve-se, a
partir do Velho Testamento, dividir os loci em novas pilhas conforme a ordem dos livros
da Bíblia. Realizada a divisão, deve-se distribui-las em um livro grande, reservando
uma ou mais folhas para cada um dos livros bíblicos. Por fim, as cédulas devem ser
ordenadas de acordo com os capítulos e versos do livro bíblico correspondente. Se
houver uma mesma autoridade em dois ou mais lugares, deve-se indicar na cédula.
Finalizado o índice do Velho Testamento, o mesmo deve ser feito com o Novo
Testamento, de modo que, ao fim de todo processo, o pregador obterá uma “tabla
copiosa, y distinta”. No caso dos índices das coisas mais notáveis, o procedimento é
similar, como indica Estrada. A principal diferença é que, em vez da divisão por
Testamentos, livros da Bíblia, capítulos e versos, deve-se realizar a ordenação dos loci
communes alfabeticamente
O método proposto por Estrada sugere uma coincidência entre comodidade do
leitor e comodidade do autor do índice na coleta e ordenação das sententiae em seus
respectivos loci communes. Se as sententiae são recolhidas durante a leitura, é cômodo
ordená-las conforme seu aparecimento ao longo do texto, uma vez que sua localização
em relação à página, coluna e parágrafo é sinalizada ao longo da leitura. Em muitos
casos, porém, as instruções de Estrada ordenação cronológica não é estritamente
seguida. Uma hipótese imediata seria de que haveria uma ordenação temática regendo
determinados loci communis. Mas, supô-lo, seria talvez entrar na “obsessiva ...” da
crítica literária no século XX, que vê no mais diminuto acidente tipográfico uma
expressão autoral. Portanto, deve-se voltar-se à materialidade dos índices e à prática
editorial do período para formular outras hipóteses. Páginas atrás referi que eram
comuns erros tipográficos cometidos por impressores e livreiros. Caramuel, Estrada e
Paredes não especificam que tipo de erro poderia ser cometido, mas supõe-se que,
quando eles eram os autores dos índices, os equívocos poderiam se dar no âmbito da
própria construção conceitual, isto é, na escolha dos loci communes e das sententiae a
constarem do índice. Erros também poderiam ser cometidos após a coleta da res a ser
impressa, mais precisamente na ordenação da matéria a ser indexada. Assim, os erros
poderiam se dar na ordenação alfabética equivocada dos loci communes, na remissão
incorreta às páginas, colunas ou parágrafos, e na ordenação cronológica incorreta das
sententiae. No caso dos índices de Vieira, o terceiro caso é o mais comum.
Visivelmente, as sententiae de alguns tomos foram ordenadas mais cuidadosamente do
que em outros. A ordenação do índice da quarta parte, por exemplo, é acuradíssima, e
mesmo em loci communes extensos, como “Amor” ou “Deus”, a ordem cronológica é
seguida com notável diligência. Noutros tomos, como no primeiro, mesmo loci
communes com duas ou três sententiae são desordenadas. Na maioria dos loci
communes, porém, as sententiae seguem a ordem em que aparecem ao longo da obra,
mas, como se disse, nem sempre elas eram estritamente seguidas. Por exemplo, no
lugar-comum “Filho” no índice da terceira parte dos Sermoens:
Nesse locus communes, há onze sententiae seguindo a seguinte ordenação por
página: 30; 31; 32; 33; 34; 39; 41; 47; 37; 84; 127. Note-se que a desordem começa a
ocorrer a partir da página 39 e que, até a 47, a ordem segue cronológica até voltar à
página 37 e seguir, novamente, a ordem cronológica. Há muitos outros exemplos. Um
ainda mais contundente é o lugar-comum “Deus” da décima parte, em que, das vinte
sete sententiae indexadas, apenas uma está fora dessa ordem. Em outros casos, a
ordenação das sententiae não parece seguir qualquer lógica e o responsável pela
indexação sequer tenta seguir uma ordem cronológica. Isso sugere que, embora a ordem
cronológica pudesse ser considerada exemplar, ela nem sempre era seguida, seja por
lapso ou incompetência do impressor, que, muitas vezes, tenta seguir a ordem
cronológica, mas comete algum erro no processo ou simplesmente desconsidera a
ordem cronológica. Outro dado que reforça essa hipótese é de que essa desordenação
ocorre, com mais frequência, em loci communes com muitas sententiae, o que poderia
ocasionar a possibilidade de o impressor “fechar” um lugar-comum, mas, ao longo das
demais ordenações, se deparasse com alguma sententia perdida. Ou então que a
montagem de um loci communes foi feita com uma sententia que, posteriormente, foi
replicada em outro lugar-comum.

Os números apontam

Para guiar o leitor na consulta aos índices, abaixo do título dos índices da
maioria dos Lugares das Sagradas Escrituras e das Coisas Mais Notáveis dos Sermões,
encontram-se brevíssimas instruções nas quais se esclarece o elemento remissivo a que
se refere o número que acompanha as sententiae dos índices. Já foi dito que sua
presença sugeriria a novidade do índice na cultura impressa, ferramenta de leitura com a
qual os leitores estariam pouco familiarizados40. Penso, entretanto, que é outra a razão
para a existência dessas instruções. Como tenho argumentado, impressores compunham
seus índices conforme o gênero da obra indexada. Isso uma vez determinado,
40
MUELLER, 2015.
escolhiam-se os elementos remissivos que favoreceriam a comodidade do leitor em sua
consulta. No caso dos numerais, o autor do índice poderia remeter a sententia à página,
fólio, coluna, parágrafo etc. Como, muitas vezes, simultaneamente o número da página,
da coluna e do parágrafo compunham a mise-en-page, o leitor ficaria naturalmente
confuso em relação ao elemento a que o índice refere. Os impressores desenvolveram
alguns modos para contornar esse empecilho. Em alguns tomos dos Sermões, optou-se
por um simples n. ao lado do número marginal e um p. ao lado da página. No tomo X, a
indicação da col. é feita na primeira sententia e não é mais retomada. Mas, talvez para
poupar o esforço de colocar a mesma letra centenas de vezes em cada sententia, alguns
impressores preferiam fornecer apenas o número ao lado da sententia e instruir, no
início do índice, o que o número “significa” ou “aponta”.
Em uma consulta ao índice das coisas mais notáveis do segundo tomo dos
Sermões, de Vieira, o consulente que buscasse o lugar-comum “exéquias”, acharia
apenas uma sententia: “as exéquias dos mortos são ordinariamente obséquios aos
vivos”. Ao lado direito dela, encontraria dois números, 456 e 457. Na mise-en-page
desse livro, os números podem se referir tanto à página quanto ao parágrafo. Como
saber a qual elemento o índice remete? Justamente pela instrução, reproduzida abaixo,
apresentada no início do índice, em que se lê: “Os numeros, naõ significaõ folha, nem
pagina, nem columna, senão o numero marginal”41.

A sequência hierarquicamente decrescente dos elementos remissivos citados não


é fortuita e indica uma ordem consultiva suposta que o leitor suporia, primeiramente,
que o número indica a folha ou página, depois a coluna, e, finalmente, o número
marginal (parágrafo). Consultando o parágrafo 456, correspondente à página 418, o
consulente encontrará o trecho distendido do que ficou sintetizado na sententia
indexada. Em observância à comodidade do leitor, a escolha pelo parágrafo como
elemento remissivo deve-se à consulta mais rápida e eficiente ao reduzir, em relação à
página, o escopo do texto em que a sententia será buscada. Parece-me verossímil,
portanto, que a presença dessas instruções nos índices seja antes uma tentativa de
acomodar as múltiplas e comumente simultâneas possibilidades de remissão numérica
41
VIEIRA, ?, s/p.
nos livros do Antigo Regime Tipográfico sem que isso prejudicasse o ato consultivo aos
índices do que um modo de familiarizar o leitor a um instrumento de leitura que
supostamente lhe seria estranho.
***

À guisa de conclusão, ressalto, uma vez mais, que outras espécies de índices
relacionam-se a gêneros retórico-poéticos diversos [incluir exemplos]. Pelo vulto de
Vieira para as letras luso-brasileiras do século XVII, por seus significativos testemunhos
de empenho na confecção de seus índices e pela relevância das oficinas tipográficas
responsáveis por sua impressão, os quinze tomos de seus Sermões são, seguramente,
exemplares paradigmáticos de índices de livros de sermões produzidos em Portugal no
século XVII para pensar muitos aspectos relacionados à prática indicial: na disputa
pelos sentidos do texto entre autor e editor; na multiplicidade, variedade e extensão
indicial; no complexo sistema remissivo do período; nas indicações de seu uso; na
produção de sermões a partir dos conceitos coletados nos índices; em práticas de leitura
verossímeis de sermões. Sua análise, porém, não esgota a prática indicial. No universo
do Antigo Regime Tipográfico português, interessa revelar, como já se disse, as
multifacetas do monstrum. Essa reconstituição parte do reconhecimento tanto dos
“paradigmas de leitura válidas para uma comunidade de leitores, num momento e num
lugar determinados”42quanto dos gestos específicos comportados pelas diferentes
maneiras de ler. Quer dizer, a variedade indicial torna-se particularmente produtiva, do
ponto de vista de seu estudo, se for buscada sua relação com diferentes gêneros de
livros, sugerindo maneiras específicas de lê-los por meio de índices. Nesse sentido,
lembro que o estudo do gênero índice não se encerra em si e é sua onipresença em livros
portugueses do século XVII que torna seu estudo benéfico para estudos dos gêneros
retórico-poéticos a que se associa como preâmbulo ou epílogo – seja por conterem um
léxico historicamente próprio, que permite o cotejo de diferentes sententiae encontradas
em diversos índices a respeito dos mesmos loci communes ou, pelo contrário, no
rastreio da especificidade elocutiva dum determinado conceito num determinado autor,
seja por constituírem importantes vestígios para pensar atitudes antigas de leitura, seja,
ainda, simplesmente por ajudarem o consulente de hoje, como o do século XVII, a
encontrar a coisa buscada no livro lido.

À primeira vista, não é clara a classificação conceitual dos excerpta dos índices.
Apesar de já haver uma tentativa nesse sentido, ainda merece alguma consideração a
partir do cotejo dos índices de Vieira com o encontrado nas compilações de outros
pregadores. Por exemplo, as Centúrias de Natividade, como se apontou, possuem quatro
índices. O terceiro é denominado “índice dos reparos”. Nele, a maioria dos extratos são
iniciados pela conjunção “se” e apontam uma questão a ser desenvolvida no sermão.
Assim, “Se Deos mandou, que lhe sacrificassem as aves; porque mandou Deos, que lhe
naõ sacrifisscassem os peyxes?”.
Noto o termo que denomina o índice: “dos reparos”. No gênero sermão, reparo
possui uma significação particular, como lembra Bluteau 43: “Reparo do Pregador. A
dúvida, que move sobre a inteligência de algum lugar da sagrada Escritura, ou a
reflexão, que faz sobre alguma circunstância do dia, tempo, lugar etc. do Sermão.
Animadversio, ou observatio”. Isto é, trata-se de uma figura em que o pregador avança
por uma “ponderação misteriosa” a fim de propor uma significação. Nesse sentido, é
possível supor, mesmo sem a possibilidade de consultar os índices manuscritos de
42
CHARTIER, ?
43
BLUTEAU, ?, p. 254.
Vieira, que esse é uma categoria de excerto pertinente a índices de sermões e que os de
Vieira não se diferenciam quanto a outros contemporâneos. Se insistirmos na hipótese
de que o destinatário privilegiado dos índices, esse tipo de excerto, embora Vieira não
os separe num índice particular, como Natividade, torna-se espécie de exempla
argumentativa: são questões que o orador em formação precisa de desenvolver, notando
as nuanças do orador frente a “ponderações misteriosas”.

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