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AMBIENTE
RESUMO
Na atualidade, cresce o reconhecimento da importância da prática da preservação de paisagens
culturais no Brasil, o que tem resultado, dentre outros produtos, em ações de proteção de conjuntos
urbanos. É o caso, por exemplo, do bairro Lagoinha, em Belo Horizonte-MG. Seu conjunto urbano,
arquitetônico e paisagístico é testemunho de várias épocas, histórias e práticas locais. Entretanto, a
passagem do tempo nem sempre foi generosa. Importantes marcos históricos, materiais ou
imateriais, transformaram-se, modificaram-se ou mesmo desapareceram, transmutando-se no que
denominamos cicatrizes urbanas. À vista disso, o objetivo principal deste artigo é identificar, no
espaço urbano presente do Lagoinha, marcas não visíveis enquanto objetos. Para tanto, análises
urbano-históricas foram necessárias, resultando no reconhecimento das principais cicatrizes urbanas
cuja importância ainda reflete no cotidiano dos dias atuais.
A vida, de uma forma geral, está em constante evolução. Da mesma maneira, o ambiente
patrimonial perpassou e perpassa, ao longo da história, diversas etapas evolutivas. O
próprio entendimento daquilo que é considerado patrimônio é um conceito em constante
evolução (Torelly, 2012). Partimos de uma compreensão rasa e superficial, onde o interesse
patrimonial esteve unicamente vinculado aos bens materiais de ordem artística e/ou
monumental. Passamos por uma interpretação um pouco mais flexível, que lida com o
patrimônio como algo que expande a natureza físico-material e deve, portanto, considerar
bens imateriais como componentes e formadores de culturas e, por conseguinte,
patrimônios. Até alcançamos os dias atuais, quando conceitos correlatos também
experimentam certo grau de aprimoramento.
Nisso, as paisagens culturais são, hoje, uma das manifestações mais complexas do
patrimônio (Castriota, 2013). Assim como a disciplina onde se insere, o conceito de
paisagem cultural também é amplo e complexo. Para além do que subtamente nos vem ao
pensamento, paisagens culturais compõe-se de um conjunto de elementos meio
ambientaiss característicos que superpõem-se sobre o ambiente físico. Ou seja, uma
paisagem cultutral é tudo aquilo que for passível de percepção humana em um determnado
local (Pena, 2019). Portannto, tato, olfato, visão, audição e paladar são fundamentais na
caracterização e percepção de uma paisagen cultural.
Apesar da lagoa não compor mais o espaço urbano local, sua presença permanece viva por
ser o elemento que deu origem ao nome do bairro. Entretanto, a passagem do tempo nem
sempre é tão generosa. Os marcos históricos, materiais ou imateriais, podem, com ele, se
transformar, modificar, ou mesmo, desaparecer. À vista disso, o objetivo principal deste
artigo é identificar, no contexto urbano do bairro Lagoinha, marcas não visíveis enquanto
objetos, palpáveis ou não, no espaço urbano presente. Ou seja, referindo-nos às cicatrizes
urbanas locais, ao que um dia esteve ali, ao que um dia foi palpável e caracterizou o lugar. E
que, ainda, por algum motivo, foi suprimido ou retirado, restando o registro dessa vivência
como uma referência para o cotidiano local e até mesmo, para além disso, para a cidade de
As cicatrizes devem ser entendidas, no âmbito deste estudo, como uma referência poética
que se apresenta sutil sempre que o espaço é visitado. Embora não tangíveis, elas tem
endereço certo. Não se tratam de uma rugosidade do tempo, como refere-se Santos
(SANTOS, 2002), já que o objeto causador da cicatriz, em sua natureza física, pode não
estar ali. O que permanece é sua marca, registrando a sua ausência e, conforme ensina
Bosi (1994), destrói “[...] os suportes materiais da memória, [já que] a sociedade capitalista
bloqueou os caminhos da lembrança, arrancou seus marcos e apagou seus rastros” (Bosi,
1994, p.19).
Então, esta pesquisa é saudosista? Quer de volta a Lagoinha que já não é? Quer arrancar o
BRT (Bus Rapid Transit)? Não! Este texto propõe instigar discussões que superem a
situação atuam de avanço urbano-imobiliário sobre o território do bairro, Isso, levantando
questões como: Onde, nas ações de preservação, estão as cicatrizes do que já não está lá,
mas que, um dia, definiu o bairro? Subindo ao Mirante veremos essas marcas? Também
não! De lá, veremos outra cicatriz: a da Serra do Curral exaurida pela mineração. Quem não
sabe? Quem não viu?
Eu sou a Moça-Fantasma.
O meu nome era Maria
Maria-Que-Morreu-Antes.
Deste modo, a região suburbana - nascida a partir das colônias agrícolas Carlos Prates e
Américo Werneck e incorporadas formalmente à zona suburbana de Belo Horizonte, nas
décadas de 1910 e 1920 (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1997) - já não existe mais. Senão,
como fragmentos de uma cartografia que não mais se representa na sua materialidade. Ou
que se representa, em alguns casos, nas memórias de seus antigos moradores.
Nesse sentido, a própria Lagoinha outrora existente seria, ela mesma, uma grande cicatriz.
O registro cotidiano à sua memória está na fala, nos documentos e nos endereços de seus
residentes. O próprio nome do bairro é uma expressão que faz sólida referência, senão
reverência, à sua memória. E isso ocorre desde de muito antes da atual importância dada
aos atuais sistemas supressores do bairro de então: como os de circulação viária que ou o
processo de metropolização que levou parte do território do bairro, isolando-o como uma ilha
de conteúdo pouco conhecido ao restante de seu território e deixando, no alto da rua Além
Assim, então, a cicatriz poderia tornar-se um fantasma? Em alguns casos, sim. Porém, a
cicatriz tem endereço, não paira no éter. O complexo viário da Lagoinha, por exemplo, está
brutalmente implantado onde antes havia Lagoinha. Simplesmente, Lagoinha. Como o revés
anterior, estão o Mercado do Peixe, na rua Bonfim e a linha de bonde à qual se refere
Drummond (1940) em seus escritos. Ambos despareceram como a loura fantasma 1que toda
noite desaparecia no portão do Cemitério do Bonfim.
A segunda grande cicatriz é marcada pela abertura da Av. Antônio Carlos. Para sua
implantação, foi necessária a demolição da antiga Praça Vraz de Melo, ambiente de
centralidade e símbolo da vida bohemia do bairro (Arcanjo, 2017). Hoje, a avenida separa o
Lagoinha em duas regiões muito distintas. Apesar disso, ambas seguemse reconhecendo e
sendo reconhecidas como Lagoinha. Ainda são o mesmo bairro, porém, com realidades
notadamente díspares. Essa grande cicatriz fragilizou significativamente o bairro sendo, ela
própria, instigadora de novas supressões no mesmo local. É, portanto, uma cicatriz que
permite ampliação da supressão inicial. Supressões sobre supressões, podendo levar à total
desfiguração, onde já não se reconhece mais o que ali estava.
Como, com o passar do tempo, a Avenida Antônio Carlos passa a ser, crescentemente um
canal de tráfego muito demandado, das testados dos lotes à ela fronteiriços passa o poder
público a exigir uma faixa de reserva de cinco metros para um possível futuro alargamento
(FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1997). Isso leva essa área à condição de espera e à
subutilização, além de desestimular investimentos e novos empreendimentos.
1
Esta lenda urbana mitifica a história de uma mulher que teria sido assassinada por um taxista e, desde então,
viveria a assombrar os motoristas da região, levando-os para o cemitério do Bonfim e desaparecendo perante os
olhos deles.
As duas partes que passaram a constituir a Lagoinha são unidas por uma precária passarela
(Figura 01), que só foi erguida após insistentes pedidos dos moradores.
Figura 01 – Passarela de interligação entre as regiões separadas pela Avenida Antônio Carlos
Assim, se a primeira grande cicatriz foi a abertura da Avenida Antônio Carlos, a seguinte foi
a implosão da Praça Vaz de Mello (Figura 02) e demolição de seus arredores, em outubro
de 1981. Esse evento não atingiu apenas a Lagoinha, mas a cidade inteira, já que a praça
era importante do referencial da cidade como um todo. Causou a indignação de muitos
moradores, pesquisadores, intelectuais e frequentadores (Arcanjo, 2017)
Portal de entrada para o bairro - que se desenvolvia, como visto, de forma heterogenia - até
as linhas de cumeada, a praça era uma proteção para o interior do bairro. A cidade
identificava a Praça Vaz de Mello como Lagoinha, fundindo as duas imagens. Pouco se
falava do interior do bairro. Exceto a Rua Itapecerica, já que fazia parte também da visão
que os moradores da cidade tinham da região.
O restante do espaço implodido foi objeto de um paisagismo frágil, onde se criou a Praça do
Peixe como forma de fazer referência às atividades do antigo Mercado do Peixe ali
localizado. Para constituir o ambiente desta praça, uma artista plástica doou uma escultura
de peixe (Figura 04).
Hoje, nem mesmo essas estratégias subsequentes se mantiveram por falta de identificação
da população com aquele ambiente. Assim, a praça do Peixe teve roubado seu único peixe
de aço que lembrava, ou queria lembrar, o Mercado do Peixe que agora é nada, apenas
uma área vazia em um lugar tumultuado onde, do paisagismo, restam gramíneas
pisoteadas. Em seu blog, Paixão (2012) cita o escritor Vander Piroli (2004):
Todo o exposto torna evidente que a existência pretérita desses elementos tem significativa
relevância no histórico sociocultural do bairro. Através dos elementos físicos e atributos
culturais, a paisagem do Lagoinha exibia formas expressivas e muito particulares daquela
população viver e organizar o espaço. Ali,
Considerações Finais
Portanto, além de instigar discussões sobre o tema através do levantamento das principais
cicatrizes urbanas do bairro, objetivou-se, com este artigo, alertar o poder público municipal
para a necessidade de formulação de estratégias que busquem impedir as supressões
física, histórica e sociocultural do bairro. E isso deve ser feito não só com vistas à
valorização da importância histórica do bairro para a cidade de Belo Horizonte, mas
também, com respeito ao (r) existir de uma comunidade que vem sendo sufocada em seu
próprio território.
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Referências Bibliográficas
ANDRADE, Calos Drummond de. Sentimento do mundo. 1ed. Brasil. Editora Pongetti.
1940.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade - lembranças de velhos. 3ed. São Paulo: Cia das
Letras, 1994. 484p.
FONTE FIGURA 01
FONTE FIGURA 02
FONTE FIGURA 03
FONTE FIGURA 04
MENDONÇA, Rafael. Ali na Turvo tem um beco. Revista Marimbondo. 2016. Disponível
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NASCIMENTO, Flávia Brito do; SCIFONI, Simone. A paisagem cultural como novo
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SANTOS, Milton. A natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão emoção. São Paulo.
HUCITEC, 2002.