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Sobre a historia e a teoria da forma escolar* Resumo antigo, ao se interrogar se a crise atual da escola pode ser interpretada como o fim de um modelo escolar ou o fim de uma predominancia, a forma escolar, propée-se a conceituar forma escolar, recorrendo a uma andlise s6cio-histérica da constituiggo da escola na Franca. Para tanto, debruga-se sobre sociedades orais ¢ saciedades escritas, relacionando mocos de conhecimento a maneiras de exercicio do poder. Conclui ee pode vvira desaparecer como instituigao social, & porque a forma escolar de socializagio & hoje hegeménica. Palavras-chave: forma escolar, historia da educagio, sociologia da educagao, crise, fracasso escolar. afirmando que se, a escola esté em cri Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jun/2001 ‘Guy Vincent Berard Lahire Daniel Thin Professoresda Université Lumiére Lyon 2- Franga Abstract The article aims to discuss the concept of schoo! shape, through a social and historical approach, focusing the constitution of primary school in France. It questions the idea of unsuccessfulness of school taday as the end of a schooling model To do so, it analysis oral and written societies, relating their knowledge to their exercise of power. Finally, the article claims that if the school is at a turning point it's not because its end is close, but because the schoo! shape had spread all over the social institutions. Key-words: school shape; history of education, sociology of education, turning point, school unsuccessfulness. " Yexto extraio do originatom func ta obra contend por Guy Vincent, education prisonntece de la forme scolaire? Scolarisation et socialisation dans les seeictés industrieles, aon: PUL, 19904 11-48. ‘Traducio da Prof, ra. Diana Goncalves Vidal, docente da Raculdaclee clo Prgrama de Hes Graduagaa.em Halcaao de Cniversielael de So Pate, Vora Litcla Gasparda Sih, Profs la Universidade do Bstado de Santa Catarina ¢ doutorancla da Programa de Pés-Graduagdo em Fducastio da Universidade ce Sto Paulo: ¢ Vatdoniz Muria da Barna, mestranda do Curso de PosGraduagiio ean tducagae~ Histéria, Pobttca, Soctedadecte Ponificie Universidade Catblica de Sto Pau, Revivo ste Guilherme joa de Frettas Yobxeara Sobre a histéria e a teoria da forma escolar A crise atual da escola, as criticas as vezes muito exacerbadas feitas aos sistemas escolares..., podem ser interpretadas como o fim de um modelo (por exemplo, © “modelo republicano”), ‘ou como o fim de uma predominancia - ou seja, a forma escolar -, segundo o modo de socializagio peculiar as nossas sociedades européias, até mesmo como o fim da forma escolar em si mesma enquanto configuragao. sécio-historica ida no século XVI nessas sociedades? A questo assim posta, como toda questao de interpretagao, faz. intervir um conceito, o de forma escolar; deste modo, importa definir de alguma maneira seu sentido ¢ scu uso, o que pede uma aniilise sécio-histérica, irredutivel a uma historiografia das instituigdes escolares, mesmo que acompanhada de uma histéria das idéias pedagégicas*. Nao se pode, portant, fazer uma “historia da forma escolar” independentemente de uma leoria, 4 mao ser na condi de transformar a expresso “forma escolar” cm uma formula pseudo-cientifica, utilizada em lugar do terme corrente “escola”. Depois de ter sublinhado a “gravissima crise” que atravessava 0 ensino secundario francés desde a segunda metade do século XVIII, Durkheim afimava -na primeira ligio do curso que foi enc: rregaclo de ministrar tos candidatos 4 agregagio em 1905; aliis, em seguicla, este curso foi publicado sob © titulo L'Evolution pédagogique en France -, que somente “o método das ciéncias historicas e sociais", mais precisamente “a andlise histérica’, permitia “conhecer € compreender” 0 sistema escolar, Conhecimento que, actescentava cle, longe de responder 2 uma simples curiosidade do erudito, permitia chegar a “resultados py cima vo que a prosente obra se tuteresse tannin pelts future da disciplina "Sociologia ds Etvcacau, lembremas que, no final das anos 70, um certo miners de wabalbes do “Grupo depesquisa subwea soctalizagao’, condirzidos numa perspectina de soctotogia istics, elaborcarane o comceito de forma excolur a partir ita so que dete fizeram alguns bistortadores, tate come K Ghani, D Jute MoM Compore (Lédacstion en Fetewe du XVI" au XVINF viele, Sees, 1976). Bees printetras trabalbos (wer, notadamente, Guy Vorcent, UEe primaire francatse, PUE, 1980: 8, Bernard, “Les petites cles rurale e’Aricie Régime: lectures er bypoibses ein Bducation, Fete et culture, PE, 1981) destacaram, do tom Sado, @relacao ontre a formes escolar et ower forma deddominagée tigada a ima reorgenizagéi do campo potitien-religiosoo, do autre, a velagao exreite entre processes de escolartracdo ¢ processes cle urbantzogio. Seevoccamos, aul, um perciaso lepers éprguca tert da forma escolar, come toa toria, folse constunitad ‘como tala meet ons que sen poder de constrgde dex Jatos se apiroavea no trabalbo sores fas (# Herliat eC. Passeron, La Reproduction: éléments pour ne theorie du systeme dienseignement, inti, col. “He senscommnian’, ISTOUINT: ta obra estadiponivet en: Portugués sub o tuto Reprodagios elementos pans unit teoris do sistema de ensino, com inicio dle Reyna Kaito e resis cle Palo Benjamins Greta 2 Ari Hares acta, publicada na série “balwcugs em: Questia” pokd Eaditora Francisco Ales! Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jun/2007 ditigir o futuro do ensino e, para os futuros professores sem os quais nenbuma reforma pode ser feita, se situar em relagdo a essas reformas (Education et sociologie, p. 150 © seguintes ). Ese a anilise histérica apresenta tal importinncia porque nossas instituicdes escolares correspondem “nip a necessidades universais do homem que chegou a um certo grau de civilizagio, mas a causas definidas, a estados sociais muito particulare: Mas, qualquer que seja o interesse clas amilises apresentadas, a obra L'Evolution pédagogique en France mio esti isenta das ambigiiidades que pesam sobre o método de Durkheim: concepgio restritiva € positivista da causalidade, nogiio de forma reduzida a forma “exterior” e integracla 4 explicagio causal pela “morfologia", e, ao mesmo tempo, recurso 4 funcionalidade € & analogia bioldgica (aqui, as nogdes de “evolugio", de “germe", ete.), ambigtidades por J.-M Berthelot no seu preficio a Regles de la colocadas em evidéncia méthode sociologique (ed. Champs- Fiammation ), A nogio de forma escolar pode responder a certas intencdes do fundador desta subdisciplina desde ha muito tempo chamada “sociologia da educagio”, mas Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jun/2001- - 20 mesmo tempo escapa aos limites do objetivismo durkheimiano como da histéria positivista. Num texto que, durante décadas, foi relegado ao esquecimento em decorréncia da predominancia do estruturalismo, Merleau-Ponty (Sens et Non-sens, Paris, Nagel, 1948, p. 170 © seguintes) mostrava como 4 nogio de forma, tal qual a teoria da Gestalt havia comegado a elabord-la, poderia permitir as Ciéncias Humanas, € nado soment a Psicologia, ultrapassar a alternativa objetivismo- subjetivismo repensando as relagoes do subjetivo e do objetivo, A forma é, antes de tudo, aquilo que nilo € cols, nem idléia: uma unidade que nao € a da intengio consciente, A esta nocio, Merleau-Ponty ligava a de sentido e de historia, definida como busca “tateante” de sentido: ha somente formas histéricas, remclendo a “solugio” que cada sociedade “invent, tanto na sua religido como na sua economia ou sus politica, para o problema das relagdes do homem com a natureza como homem" (Merleau-Ponty, op.cit,, p. 180). Falar de forma escolar 6, portanto, pesquisar o que faz a unidade de uma configuragie histérica particular, surgida em determinads formagées sociais, em cetta época, € ao mesmo tempo que Sobre a histéria e a teoria da forma escolar Sobre a histéria e a teoria da forma escolar 10 outras transformagoes, através de um procedimento tanto dlescritivo quanto “compreensivo”. Fste se opde no s6 A busca de relagdes entre fendmenos esmiucados, tomados como elementos ¢ sempre concebidos como exteriores uns aos outros, quanto a busca de elementos permanentes (Merleau-Ponty, 9p. cit, p.80), ou ainda ao inventirio empirico dos tracos caracteristicos desta “realidade” que seria, por exemplo, a escola. J4 definimos 0 que faz a unidade da forma escolar - seu principio de dizer de inteligibilidade -, como a rckagio com engendramento, quer regras impessoais. A partir daf tomam sentido, de um lado, os diversos specto: da forma (notadamente, como espaco € como tempo especificos); dle outro lado, a histéria, quer dizer a “formacio”, 0 processo pelo qual a forma se constitui ¢ tende a se impor (em instituigdes ¢ relagdes ao retomar ¢ modificar certos “elementos” de formas antigas, como sera demonstrado pelo exemplo do “exercicio"). B esta emergéncia da forma escolar nao acontece sem dificuldades, conflitos ¢ lutas, de tal sorve que a histéria da escola est repleta de polémicas posigdes exacerbadas; por sua vez, 0 ensino encontra-se, talvez, sempre “em crise". Vé-se, entdio, que uma teoria da forma escolar permite, diferentemente das teorias estruturalistas, pensar a mudanca. Em primeiro lugar, o que se poderia chamar a recorréncia através das modificagées: das escolas dos Imios? & escola miitua ¢ & escola da Reptiblica, houve muitas mudangas que o chegaram a interferir naquilo que definimos como forma escolar. Em seguida, esta teoria permite compreender a emergéncia de uma forma colocando-a em telacio com outras ‘transformagées". E preciso ainda libertar-se do positivismo e do causalismo: a aparigdo eo podem ser colocados em relacica com o desenvolvimento da forma escola desenvolvimento da forma politica historicamente singular que, desde a época cle Maquiavel e de Bodin, recebeu onome de Estado; mas a natureza desta relagdo (homologia? congruénciz?...) ainda esti por definir, Sabe-se que, auialmente, este € 0 objetivo de numerosos trabalhos epistemolégicos sobre a “forma” na Matematica, Fi , Biologia ¢ Ciencias Humanas. No que conceme a Sociologia, a reflexao apresentada por R. Ledrut (em La Forme et ie sens) convém, no. 7 NR: Ao falarem de tras, os autores referents aus ‘Frome des Ecoles ebrétionnes” Educagio em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jun{2001 essencial, As pesquisas que j4 tinhamos empreendido e que perseguimos. Comecemos, entio, pela ‘invengio” da forma escolar para compreender como, niio sem dificuldades, um modo de socializagao escolar se impds a outros modos de socializagao; e para discernir também quais so as suas principais caracteristicas e tudo © que faz parte desta configuragao historica singular, quando nossa tendéncia € acreditar que tal modo, nio sendo natural, é, pelo menos, eterno e universal; a “pedagogia”, as “disciplinas”, etc. Para compreender, enfim, como a hipdtese de uma “pedagogizagio das relagées sociais"* poder explicar, de maneira paradoxal, crise atual. I-A invengdo da forma escolar Existe uma historiografia corrente do ensino ou da educacio‘ que, antes de tudo, € continuista e se expde a incessantes anacronismos: ela vincula o que chamamos escola e sistema de ensino as escolas da Idade Média ou, até mesmo, para além da ocupagio romana, & paidéia da Grécia antiga. Parte-se do pressuposto de que tivesse existido uma espécie de crescimento naturai da escola clesde a Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jun/2001. « » Antigiiidade até nossos dias, o que obriga, as vezes, a procurar a qualquer prego a existéncia de escotas prima rias, secundarias ¢ superiores em todos os paises ¢ em todas as épocas. Esta pseuclo- génese esta condenada a recorrer 2 argumentacio duvidosa da etimologia - por exemplo, tentando comprovar o paralelismo entre o que chamamos pedagogo e 0 paidagogos de Atenas do século V. Ela recorre também, mais ou menos sub-repticiamente, a metiforas biolégicas, como a de filiagao, notadamente quando serve a operacdes hagiograficas* , Ao criar divisdes, tal historiografia as estabelece também em fungao de interesses facilmente identificaveis: por exemplo, opée o “desenvolvimento de um ensino organizado pela Igreja” (da Idade Média ao fim do século XVII) a “organizagio de um ensino piiblico do “Gf. Bernani, Rapport scientifique du CRS, RA 893~ NBS, Unwersité Lumiere Lyon 2, jumdno de 1987. p. 159 4 ble também uma iste escolar: ver as manwats de istérta das instinulgdes escoleresutlizados nas Escola Normiais de Professores Primdrios. 5 Hassioe que, em 1895, duasinstiegdes to alifnemtes coma a t8cola Normal Superior eas Bxcalas Normals Primaria proclemaran sud fiiagao em relacda a Bscota Normal do ano Ill, durante a celobragao do contendric deste Sobre oassunto, cer. Vincemi, “l-Baxle normed dean Mt do ba P" République francaise’, in Preckayoxles historia, International Jou ofthe Hlisory of Eduxsition, NOV, 1991-192, p. 215-230. Sobre a histéria e a teoria da forma escolar iW Sobre a histéria e a teoria da forma escolar 12 Estado” (séculos XIX e XX )*. Se acrescentarmos que uma das conseqiiéncias deste tipo de “historia” foi de representada pelas escolas urbanas fazer justiga & novidade radical desenvolvidas pelos Inmaos das Escolas Cristiis no fim do século XVI, pocemos dizer que o principal interesse cientifico de uma anilise s6cio-historica das formas consiste em produzir cortes ¢ continuiclades inesperados. Uma descrigio € uma anillise precisa das “Petites écoles", das escolas do abade Charles Démia em Lyon (1666), das “Escolas Cristas”, clas Escolas Mituas, das escolas primdrias da 3* Reptiblica, sem esquecer os Colégios do “Antigo Regime”, as Escolas Centeais da Revolugio, etc., levam a situar a invengio da forma escolar nos séculos XVI XVII; a aproximar—a despeito do qque as separa e apesar dla ideologia laica -aes ‘ola primaria reformada por Jules Ferry, em 1880, das escolas dos Irmaos; a se interrogar sobre as pretensdes dos republicanos, no fim do século XIX, de realizar os projetos dos revolucionitios de 1789... Se desejarmos ver nesse estudo somente o resultado de querelas entre especialistas, sem qualquer importincia para a solucao dos problemas contemporiineos, estariamos esquecendo © seguinte: que toda aparigho de uma forma social esta ligada a outras transformagdes; que a forma escolar esti ligada a outras formas, notadamente politicas; que certos apelos feitos hoje aos prefeitos de subtirbio lembram as “Adverténcias para a instrugio de povo pobre” enderecadas em 1668 ao Prévot [chefe da municipalidade] de Lyon; que, enfim, o que esta hoje em jogo no que se chama a crise da escola &, talvez principalmente, o futuro da demoeracia? F, portanto, a andlise sécio-histdrica da emergéncia da forma escolar, do modo de socializacao que ela instaura, das resisténcias encontradas por tal modo, que permite definir esta forma, quer dizer, perceber sua unidade (a da forma) ou, mais exatamente, pensar como unidade aque, de outro modo, somente poderia ser cnumerado como caracteristicas, miltiplas. tes so 08 ttlos dla primera e la seaundta partes ta store cles instttions scolares, pory.leife Rusti, Delageace, 1954, wu sy, uncles manuausutlizadescars data muito recente nas Fscolas Normaisde Professores Primaries. A introducao ("lax origines de Vécole") aborda a Mewpordmia, o Fatty, @ China, o “Maree _greco-romemo”.. Asobmas censRcaseneqite os meatus _forain Inspiradios nem sempre esiveram ksentas dessets falbasem reiagaa ao métedo bistoriea, GFE Plonel, Eta et inachevée, Payot, 7995, cole en France, Lt République Educacao em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jun/2001 © que aparece em certa época, nas sociedades curopéias, é uma forma inédita de relagio social entre um “mestre” (num sentido novo do termo) € um “aluno”, relagio que chamamos pedagégica. Ela € inédita, em primeiro lugar, no sentido em que é distinta, se autonomiza em relacio As outras relagdes sociais: 9 mestre: nao € mais um artesio “transmitindo” o saber-fazer a um jovem; alids, durante muito tempo, nas cidades, os “mestres- escritores" resistiram 2 intrusio dos mestres de escola. Esta autonomizagiio por referéncia As outras relagdes desapossa os grupos sociais de suas competéncias ¢ prerrogativas. Por toda parte, em relagio ao que, de agora em diante, seri considerado como a antiga sociedade, “aprender” se fazia “por verfazer © ouvirdizer: seja entre camponeses, arte: Ss ou nobyes, aquele que aprendia - isto €, em primeino hugar, a crianga -, fazia a aquisig¢io do saber ao patticipar das atividades de uma familia, de uma casa, Dito de outra maneira, aprender nio era distinto de fazer. E esta retirada de poder que vai suscitar resistencias escolarizacio, inclusive, por parte de grupos, como a nobreza, com relagao a escolas concebidas especialmente para ela. Como toda relagiio social se realiza no espago € no tempo, 4 autonomia da Fducagio em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jun/2001 relagdo pedagégica instaura um lugar especifico, distinto dos lugares onde se realizam as atividades sociais: a escola Este espago é cuidadosamente concebiclo organizado como o testemunham, particularmente, os escritos de J. B. de La Salle que, por sinal, recusava que os novos “mestres de escola” se instalassem em locais ndo apropriados* . Da mesma maneira aparece um tempo especifico, o tempo escolar, simultaneamente como periodo da vida, como tempo no ano e como emprego do tempo cotidiano. Para prosseguir a anilise e compreender a especificidade das priticas escolares, é necessirio evecar as transformagdes as quais esti ligada a emergéncia da forma escolar, Nas cidades, no fim do século XVII, sao criadas escolas de um destinadas tipo neve explicitamente a “todas inclusive, as do “povo" que, no entanto, para exercerem os oficios que Ihes seriam atribuides, nao necessitavam dos “saberes” transmitidos pela escola. Para além de explicacdes simplificadoras (os Pore realizar em primetro lugar, sa escola, & form escolar pode tambeni tender 4 estraurar outros expacas, do mesmo mado que ta relaca social pode serpedagogizacks. Nese aspetto, observagio dvds cotidiana fornece maltipios exemplos: posigae respectiva das tmierlocutores, levantar a mao. tom “sabi, et da forma escolar teoria Sobre a hist6ria e a 13 Sobre a histéria e a teoria da forma escolar 14 imperativos da Contra-Reforma, o temor das classes perigosas...), € preciso, sem diivida, ver nessa ocorréncia a instauraclo de uma nova ordem urbana, uma redefiniclo (e nao somente uma redistribuigio) dos poderes civis € religiosos. A forma escolar ndo ésomente um efeito, uma conseqiiéncia, mas participa dessa nova ordem. Colocar todas as criangas ~ “até mesmo as pobres” - em escolas, aparece como um vasto empreendimento que se poderia chamar de orcdem ptiblica, coma condi¢io de nao reduzi-lo a simples ato de dominagio. Trata-se de obter a submissio, a obediéncia, ou uma nova forma de sujeigao; além disso, 0 aluno ilidades" aprende a ler por meio de *Ci € nio nos textos sagrados (ou nos documentos manuscritos que, porventura, estivessem em poder de sua familia)” . Nas “escolas cristis”, 0 catecismo nao é a matéria principal; além disso, os Inmaos nao sao sacerdotes € a formagiio recebida prepara-os para serem Gini ¢ inteiramente “novos mestres”. E, sobretudo, a introdugio do catecismo” com a Reforma € a Contra-Reforma participa de transformagdes profundas da teligifio: a catequese se faz doravante, correlativamente a uma definigao das Igrejas e do poder eclestistico, sob forma escolar (manusis, licdes distintas, feitas de questdes-respostas a serem lidas © aprendidas de cor...) O que aprende, portanto, a erianga ao ler as Civilidadese, em seguida, a0 copiar cuidadosamente o grande mimero de tipos de escrita, diante de um mestre que, na medida do possivel, nunca deve falar? Ela aprende a obedecer a determinadas regras ~ maneira de comer, de assoar o nariz, de escrever, etc. — conforme regras que sao constitutivas da ordem escolar, que se impdem a toclos (a comegar pelo prdprio siléncio dos mestres); uliis, nas escolas dos Irmaos, algumas delas estito inscritas em “Sentencas” sobre as paredes da sala (“E preciso se aplicar na escola estudar sua ligdo"...). Para a maioria dos alunos, a inutilidade de aprender nao somente a ler, mas a escrever (ealigrafan) um grande ntimero de escritas mostra bem que, contrariamente a idéia freqientemente desenvolvica segundo qual a “funcdo da escola” seria de * Neste sentido, embora ndo meregam as descrigdes -iserabitisticas que fregiientemtente thes tm sido fellas, as “petites écoles” turats tunbéne mda fradem ser consideradas como participanies det “forma eseule (CFR Hernard, es Petes “ecoles rurales 0p. elt). © Gf JC: Dhotel, les Olrigines dis catéchisme moderne, 'upnds les premiers manuelsimprinxés en France, Peis, Aubier, 1957, Hébrard, “La scolarisatton des savoir: Elémeniaires a Fépque moderne”, in Histoive de Pécucation, ¢ 38 maiode 1988, Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jun/2001 “transmitir saberes e saber-fazer" - sendo que os “métodos pedagégicos” garantem a eficacia desta transmissao -, a invengao. da forma escolar se realiza na produgao das “disciplinas” escolares!'. E estes mestres - que na ensinam nem, @ fortiori, “pregam" - mostram de maneira clara o que € a “relacto pedagdgica”: nao mais uma relagao de pessoa a pessoa, mas uma submissito do mestre € dos alunos a regras impessoais™. Num. espaco fechado e totalmente ordenado para a realizacio, por cada um, de seus deveres, num tempo tho cuidado- samente regulado que niio pode deixar nenhum espacgo a um movimento imprevisto, cada um submete sua atividade aos “principios" ou regras que a regem. Tal &, no essencial, a forma escolar Ela define, como demonstrado, os novos estabelecimentos criados nas cidades, mas € possivel identificé-la também nas mudangas ocorridas nos estabelecimentos existentes, prin- cipalmente os Colégios. Sabe-se que P. Ariés foi um dos primeiros a sublinhar (sem, no entanto, analisar) as mudangas que desembocaram na criagio dos Golégios dos Jesuitas e fizeram passar “de uma comunidade de mestres e alunos ao governo severo dos alunos pelos mestres”, do enunciado das condigdes de um estilo de vida a um “regulamento dle disciplina’, fixando com rigor e detalhes cada ocupagio cla dia’. R. Chartier mostrou com clareza como, esta “nova instituig’io” - ou seja, 0 colégio- . }@ estava instalada, para além das clivagens religiosas, desde o fim do "Goma ensina “simu, «Bsc ds rns trv cos mana, comcrtizund molars forma do quca sco “parol” eco ce Dime J. ce ta Sale redige, assin, uma “Civildade Crista” fuartr dos “Tratades de Casldace” que orm pubicados em sta ica termo “disciplinas” foi mventado com este sentido no Inicio doséculo XX, came indica A. Choral (LPistere dessins solr” inlisioiede Fédveation, ate de 1998, 138) Aigo preeada om pornaisscbatte *Hisiria das dsciptnas ecole: flees sobre 11 campo pesquisa” in Teoria & Fac (2177-229, 1950) secur perce ctr das “dcp” escoleres no pode ser fetta sem ser comstruide 0 cuncelty ta etsciplina, assim comme ot “Pdagonin™ 6 0 “componente interno do ensino” « dove sor comprocndida.apartirdas folds” socaisdaccu roentane tendo tiizow syftclentementoes rahatbas do scibleguspra efprefrdar suas amiss ° arta diferent mich doumeapes conser con saga pcp osayrad av demo cxaa “hem querr"deapesica que se marafete necessariamonte em determbasto Snstnte ude manera improvise nmap eyo sentido, inexgotdvel, doverd ser chectfiael... Omestrecbadece as mga "Conia des scolas” esc [pel punto ao ala se redur a nicontardbe as ners ‘asinaen-eces fale comets are ercarids tstdlendvon vera, mesramd tx par mei do “anal” uma das sontanesnscrits urea parce of Corn 2008 oaluno nunca iem dese referir a manifestagiio de tum desjo do mest: lem cso, etoridade deste pork re sun prea subraste eas 11.1 fant et ve Fiala P Ancien Regen Paris ac Sel, 1975, p. 182 Fducagao em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jun/2001 Sobre a hist6ria € a teoria da forma escolar Sobre a histéria e a teoria da forma escolar 16 século XVI; como, na sua conquista dos “mundos urbanos”, a “nova forma escolar" reencontrara a resisténcia de uma parte das elites ligadas aos “modos de formagao tradicionais”; como, enfim, no proprio Amago da pedagogia do Colégio, “as regeas € a disciplina da arte retrica se constituem um dos exercicios: que mais severamente reprimem a espontaneidade”’. A definigdo proposta em relagto a forma escolar, a par i da qual se pode compreender as caracteristicas das priiticas escolares (principalmente dos “exercicios" que ji nada tém a ver com 0 “exercicios" religiosos, apesar do que foi afirmado por Michel Foucault, uma lenta progressio exigida pela conformidade com a regra em cada etapa...) compreender suas variantes - como as permite, igualmente, negagdes mais ou menos radicais, por exemplo, no momento da Revolucao de 1789 — tal como apareceram entre os séculos XVIII e XX. Com efeito, para entender a pedagogia das Luzes basta conceber a regra niio mais como imposi¢ie do exterior a todos, mas como manifestagdo, em cada um, de uma Razio universal. Do mesmo modo, o cidadio respeiloso ¢ obediente, conhecedor de seus direitos e, sobretudo, de seus deveres, correspondendo 20 que pretende a escola da 3* Repiiblica, continua sendo um alteno Se é isso o que se passa é porque a emergéncia da forma escolar é contemporinea a uma mudanga em ¢ politico (e no religioso) mais fundamental que as mudangas de regimes ou instituigdes politicas que marcaram 3 sociedades curopéias a partir do século XVII (monarquias parlamentares, “reptiblicas®, com a ordem publica que presidiu o ).J& notamos a preocupacio desenvolvimento das escolas urbanas. carter piblico da instrucdo lembrado bem antes dos planos dle “educacao nacional? que precederam © acompanharam a Revolucao’. E se, nat primeisa metade do século XVII, os Fisiocratas sto conhecides por terem sido defensores da instugio do povo por 088, Chartier, Compére eD. Julia, UBdvcwion en France... op. it 2 273. id, ibid, p 197 * Seacompanbrasernos a bisa dasidetas padre, seria necusciriyetaheloccr paratelismes entre mses como fot cosifeadte ndagto pectagdgica no sécilo XVI sess de Kant ade Ronsseau hem conbectd, na obra spre ca ego de cutriee pseu em Kant, acrianca se submeto as lets constitetivas sh cordem escolar, 140 ponte, em set entender, asm texas usificdas, mas porque ea emia consciéacia da universabidade de tais te 1G. Vincont, “Plans d'éducation @ Lyon entre 1704 et 1783", Comunicagdo feta na 12 Sessio do INCH, Praga, agasta de 1990 (ne pret. Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jun/2001 raz6es econdmicas, um deles, Turgot, destacou o papel politico da escola, mais exatamente, seu lugar nas relagdes politicas, na instauragio de uma nova relagao de dominagio. Considerado (retrospectivamente) como defensor da separagdo entre o Estado e 4 Igteja, com © objetivo de abolir a taxa a ser paga a0 Rei € a maior parte dos direitos feudais, além de suprimir as corporagées 10 ministro - que perdeu a protecio de Luis XVI - depositou uma confianga sem limites, como sublinhou Tocqueville, em “uma cesta instrugio pitblica ministrada pelo Estado, procedimentos e com certo espirito”. “As segundo certos criangas que tém, atualmente 10 anos, escreveu cle ao Rei, tornar-se-’o, entio, homens preparados para o Estado, afeigoados ao seu pais, sulmissos - no pelo temor, mas pela razio-A autoridade, solidarios com scus concidadaos, acostumados a reconhecer ¢ respeitar a justiga.™* A sociogénese permite, portanto, estabelecer que existem selagdes entre a forma escolar € outras formas sociais, principalmente, _politicas, aprofundamento destas relagdes passa pelo aprofundamento da questio das culturas escritas. Educagao em Revista, Belo Horizonte, n® 33, jun/2001 H-Formas sociais escriturais- escolares e formas sociais orais: modos de conbhecimento e formas de exercicio do poder A andlise sociogenética da forma escolar como forma de relagdes sociais permite tornar estranha a nds mesmos esta realidade social, hoje onipresente, desnaturalizando certas nogdes constituidas freqiientemente como categorias genéricas: “educagio", “pedagogia”, etc.” Segundo parecs forma escolar de relagdes sociais 86 se capta completamente no Ambito de uma configuracdo social de conjunto ¢, particularmente, na ligagao com a transformagio das formas de exercicio do poder. Como modo de sociali: especifico, isto é, como espaco onde se estabelecem formas especificas de relagdes sociais, ao mesmo tempo que transmite saberes e conhecimentos, a escola esta fundamentalmente ligada a formas de exercicio do poder. Isto ¢ io A escola: verdadeiro no s6 em rei qualquer modo de socializagao, qualquer A, de Tocipevile, ‘Notes sur Turgot"(n UAneien Régime tla Révolation, 2, Qeuvies completes, ll Glin 1955p. 418. °° igen dle mde mats caro que, redurinds aanatise sbclo-bistivica a bnstoragrafia, mio seria pusiveleaplar ste importdacia para aenalise da presente” ea teoria da forma escolar Sobre a histori Sobre a histéria e a teoria da forma escolar 18 forma de relagdes sociais, implica ao mesmo tempo na apropriagio de saberes {constituidos ou nado como t isto €, como saberes objetivados, explicitos, sistematizados, codificados) e na “aprendizagem” de relagdes de poder. A andlise permite evidenciar as ligacdes profundas que unem escola © cultura escrita num todo sécio-histérico: a constitui¢io do Estado moderno, a Progressiva autonomizagio de campos dle priticas heterogéneas, a generalizacao dla alfabetizacao e da forma escolar (lugar especifico separado, baseado na objetivagio-codificagio-acumulacie dos saberes), assim como at construcio de uma relacio distanciada da linguagem e do mundo (relagdo escritural-escolar com @ linguagem e com o mundo) devem ser pensadas como modalidades especiticas de uma realidade social de conjunto, caracterizada pela generalizacio de formas sociais escriturais, isto é, de formas de relacdes sociais tramadas por prdticas de escrita e/ou tornadas possiveis pelas priticas de escrita © pela relagio com a linguagem e com o mundo que Ihes € indissociavel". Se cvilarmos, sistematicamente, armadilhas clissicas associadas as oposicées entre orai/escrito, oralidade/ escrita”', podemos enti construir, teoricamenic, a oposi entre formas sociais escritiwrats/formas sociais orais que permite tomar valido um conjunto coerente de fendmenos. Num primeiro momento, vamos operar a comparacto. (que se brutal para nao alongar exposigio, para fazer aparccer melhor certas oposigées e, por isso mesmo, 1 especificidade da forma escritural-escolar das formagdes sociais dominadas pela Logica de relacdes sociais) entre a situa das formas soci: orais ea situa formagdes sociais “na escola”. Em seguida, destacaremos algumas implicagdes em matéria de construgo do abjeto. Formas sociats orais @- Formas sociais orais e formas de exercicio do poder ‘As sociedadles “primitivas’ - sociedades dominaclas quase inteiramente pela logica das formas sociais orais -, s40 definiclas também como sociedades “acéfalas “sem Estado", “segmentirias” ou baseadas #8. Lair, Fone sociales seviprurales ot Forme seals ‘oles: une analyse siologique de I"éehec scala ecole primaire, Yew deloutonaal em Sociol, magn de 1990, Université Lumiove Eyen 2, 1016. 2 CFB. bablre, “Sociologte des pratiques &eriture contrebasticn @ Fanalyse du lion enure le social ot fe langagier in Edinolegie Francaise, 19905, p. 262.273, Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jun/2001 na ‘linhageny#, Da mesma maneira que, propriamente falando, nio se pode utilizar 0 termo religilo para justificar certos fendmenos mitico-rituais dessas formagées sociais {4 que io existe nenhum corpo de saber, nenhuma doutrina ou instituicio religiosa, separacos claramente do conjunto das atividaces soci: , também nio se pode falar de politica no sentido de uma pritica politica autdnoma, diferenciada das outras praticas socials A auséncia (este termo marcado por forte carga negativa no deve ser lido como uma caréncia) de uma forma qualquer de Estado, quer dizer, de uma instituicdo de poder separada de outras instituigdes que Viria a se impor a todos, esti ligada ao tipo de legitimidade que constitui a especificidade milico-ritual. A autoridade é colocada fora da comunidade dos homens. Qs homens sao desapossados (ou se desapossaram) das “normas” que servem de fundamento, legitimam e organizam suas priticas sociais. Nenhum homem da comunidade pode pretender encarnar ou deter a , segundo a afirmagio de M. Weber, "ter uma chance autoridude que Ihe permiti de se fazer obedecer”. A medida que 2 sociedade encontra seu fundamento “no exterior” dela mesma, nenhum poder Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jum/2001 humana, instituigho humana ou esfera do politico, podem existir separados clo resto das atividades sociais. Do ponto de vista econdmico, esta situagiio impede qualquer acumulagiio primitiva de um capital econdmico. Do mesmo modo que nio existe religiio separada, assim também mio existe campo auténomo da economia, Eis 0 que mostrou M. Sahlins ao falar de um modo de producio doméstico que nic esti voltado para a produgio de mais valia, nem afinal de contas para a troca comercial. E por esta razio que o economismo se engana a propésito do universo por mio ter operado a dissociagio entre a economia e as outras esferas de atividade’*. No entanto, estabelecer um vinculo entre a auséncia de um campo econémico auténomo € a austncia de um poder politico separado nio deve conduzir a criar uma relagio de causa e efeilo entre esses fendmenos: seja do econdmico na diregao do politico (pura numerosos antropologos marxistas), 00 do politico para o econdmico* 26. Baandier, otieopologge polique, PLE 1967. 240p. 2 as aspas sao importantes 1 Ver P Bouerdiou, ln Sens pratique. Mint, 1980, 475). 7 P.Ghasires esereve: "A tnfracestrutira 6 0 police.) enquanto asupereseretura éyccondnic” isla Soci contre Ita, Mit, £974, p. 172. Sobre a histéria ¢ a teoria da forma escolar 19 Sobre a histéria e a teoria da forma escolar 20 Em defi itive, “6 no grau da objetivagio do capital que reside o fundamento de todas as diferencas pertinentes entre os modes de dorinagao: 08 universos sociais em que des refazem na e pela interagio entre as es se fazem, fazem ¢ s pessoas, opdemese As formagdes sociais em que, mediatizadas por mecanismos objetivos ¢ institucionalizados - tais como o ‘mercado auto-regulivel’ (self: regulating market) no sentido de Karl Polanyi, o sistema de ensino ou oaparelho juridico - elas tém a opacidade e a permanéncia das coisas © escapam as tomadas de consciéncia e do poder individuai "Nas formacGes sociais em que tuclo est ligado a0 estado incorporaclo dos saberes e saber-fazer, dos costumes, tracigdes, mitos € ritos, isto é, a formas sociais orais, locais, sempre contex- tualizadas, nada ou muito pouco do que faz © grupo (as “normas”, os “saberes”, ec.) aparece verdadeiramente como tal prira 08 sujeitos sociais*”. Eles proprios os possuem ¢ produzem, mas de tal maneira, segundo um modo tal, que silo mais possuidos por eles do que os possuem verdadeiramente. Sobre isso sepousaria um poder separado, uma vez que nenhum principio, regra ou lei aparecem como tais, Sendo imanentes 4s praticas sociais contextuali das, sempre concretas e particulares, além de estarem indissociavelmente ligados a um fazer, um, agit, as “normas”, os “saberes” € “saber fazer", estiio, portanto, fundidos neste fazer, neste agir. Como as formas sociais orais implicam ur vida incorporadla ao estado de corpo dos "saberes*, ¢ sua imanéncia a situagdes sempre particulares, jo tanto mais movidos os sujeites soci por seus “saberes”, milos, ritos, etc, na medida em que nio os utilizam conscientemente A solugo - que poderia ser considlerada Logica (mas trata-se cle ums (6gica totalmente social) -, para esta situago de desapossamento em relagio a08 saberes, saber-fazer, priticas mitico- rituais, ete., consiste numa agao de desapossamento (coletivamente) ssumido em relagio a um passado fundador ea. uma origem pré-humana (os Por nilo poderem possuir verdadei- deuses, os ancestrais, os herdis cultur ramente oS mitos € OS ritos, OS saberes € 0 saber-fazer - em sintese, tudo 0 que permite a perduragao de seu universo soci L-, objetivando-os, isto &, destacando- 03 mio somente de seus corpos, das 2 PP Bourien, be Sens pratique 0p. ik P. 224. NT: Esta fol a expressin qine comsidleremos: mnees adequuada para a tradugao de "éressscei” Educagéo em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jun/2001 pessoas detentoras destes subercs, etc., mas também das situagdes priticas sempre particulares de seus usos, mobilizagdes € realizagoes, os sujeitos sociais destas formagoes sociais os colacam fora do slcance de todos. Como a objetivacao permite, entre outros aspectos, conservar © acumular, sua auséncia ou seu grau extremamente frail de desenvolvimento Fz com que certo prestigio possa ser temporariamente adquirido, embora seja questionado imediatamente apds. As relagdes de dependéncia que podem existir nessas formagdes sociais que se exercem “de pessoa para pessoa" ¢ sto “o produto de uma verdadeira eriagio continuada”, niio podem, portant, desemboear na constituicto de uma verdadeirs relagio de dominagio que implicaria que a legitimidade ja no fosse remetida a um. passado mitico, mas aparccesse como relacionada (de uma mancira ou outa: sob a forma de representantes do ou dos deuses, ou soba forma de representantes das le particulares (e diferentes clos outros) , do povo, etc.) a sujeitos sociais Além do mais, um poder separado suporia uma espécle de cent mitos € ritos, clos saberes ¢ saber-fazer. Ora, apesur do que os estruturalistas deixaram entender, também nito existem Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jun/2001 variantes estruturais de um Mito, mas determinadlos mitos sempre efetuados em situagdes particulares. O aspecto local especifico, contextual dos ritos ¢ mitos esté indissociavelmente ligacdo a sua imanéncia nas relagdes sociais € A sua invisibilidade do ponto de vista dos atores que, portanto, estio despossuidos dos mesmos, Para que possa existir um poder separado, seri necessitio, 20 mesmo tempo, uma objetivagdo dos mitos separados das pessouts (dlesincorporicio)s sua visualizagdo ¢ conscientizagdo por parte dos atores ¢, portanto, a possibilidade de ficarem ao alcance destes; seu desvinculamento relativamente a miliplas sicuacbes imediatas, « maltiplas ages nas quais eles possam agit; e sua relativa e progress “a des-localizagéio— ouitos tantos fates que supdem a eserita ea acum do capital cultural Nao 6, portanto, espantoso que se possa escrever, como fez G. Balandier, que “nas sociedades ditas segmentirias, a Vida politica difusa se revela mais pelas situagdes do que pelas instituigoes politicas. Trata-se, conforme expressio de 2° Bowrdiuy, “bos maces de domination”, in Autos de recherche un sciences sociales, 2:3, jibe ate 1 MSH, pe 126. 21d, hid, p. 128, Sobre a histaria e a teoria da forma escolar 27 Sobre a histéria e a teoria da forma escolar 22 G.-A. Almond, de sociedades em que cas Siio as menos as estruturas politi ‘visiveis’ © as mais ‘intermitentes'”®”. Estas reflexes vém de encontro as adverténcias de P. Bourdieu sobre a adequagao do “olhar interacionista" em relagdo As sociedades sem escrita. Num artigo sobre os modos de dominagao, 0 autor observa que o olhar interacionista que ignora “os mecanismos objetivos e sua eficdcia" €, deste modo, “se vincula As interagdes diretas entre o: agentes, encontraria seu terreno de elei¢ao” nas sociedades sem “mercado auto- reguldvel”, sem “sistema de ensino", sem “aparelho juridico” e sem“ Inversamente, o estruturalismo “como ciéncia das estruturas objetivas do. mundo social (...) nunca € tao inadlequado (ou menos fecundo) do que quando se aplica a sociedades em que as relagédes de dominagio e dependéncia sto o produto de uma verdadeira ctiagdo continuada”". Uma vez que a “cultura”, os “mitos”, os “saberes”, etc., ndo esto separados dos corpos e das mtiltiplas situagées de sua aplicagio, as interacdes deve: cS am constituir os objetos privilegiados de andlise por parte dos analistas destas sociedades*. b— Formas sociats orais, “saberes” e modos de apropriagio de “saberes” E dificil compreender bem todas as implicagdes cognitivas ligadas «um modo de socializagao oral, a formas sociais orais. Da mesma forma que se vé como o fondamento da legitimicade dos mitos, colocado no exterior das agdes humanas, est logicamente ligado as formas sociais orais que os caracterizam, também se pode mostrar como 0 modo de conhecimento (que se acha também nos mitos, poesias omais, saberes e saber-fazer, etc.) destas formagdes sociais adlquire toda sua coeréncia desde que separado das formas cle relagdes sociais através das quais ele se constdi. E possivel compreender, além disso, os vinculos intimos que unem um tipo de legitimidade, um modo de conhecimento e determinadas formas de rel ages sociais, mostrando, como diziam Berger c Luckmann, que “a legitimagha nto & somente uma questito de ‘valores’, mas °'G Batandter, Antwopalogic politique, op. cit, f. 77 # 8 Bourdon, “Les modes deddominarion, op. cit, 122+ 123, % feat anatagan, P-Boweilien (opm. Balen detanie ‘que tem sido designado porcaupos cle peningness respectios do uiteracionismo ¢ do estruturalismo. CF. A asbire, “Linguistiqueéorture/pédagegie: champs de Dentinence et transfers iftggaur”, fs LMomme et la Sociol, 1991, 2 expectal “Théorie saiateat thor du suger" Educago em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jun/2001 implica, igualmente, ‘conhecimento’." Nas formas sociais orais, os mitos € os ritos, os “saberes” ¢ saber-fazer so existem, como disse Bourdieu, no “estado incorporado", Isso significa que o grau de objetivagio dos “saberes” e saber fazer se encontra a zero ou quase® zero. Os “saberes” ¢ saber-fazer nio existem set ’io acionados em situacdes sempre particulares de uso. A aprendizagem se opera na e pela pritica, de situagdo em situagio, de geragio em geracio; aprendizagem pelo fazer, pelo ver fazer, que ndo necessita de explicagdes © nao passa necessa amente pela linguagem verbal. Pode-se perguntar com G. Spindler se, nesle caso concreto, a existe transmissio de ‘cultura’, Questio fundamental na medida em que esse mode de tansmissio desafia toda do “saber” as nossas concepgées do que podemos entender por cultura ou por saber. As criancas sto colocadas no fluxa do fazer e do dizer e “aprendem” nesse proprio fluxo. Esta situacio reforca a evidéncia das priticas cfetuadas, Aprendizagem no decorer ct pratica ¢ nao separada das priticas, aber" que nao existe fora clas situagdes de sua efetivagio, de sua mobilizagio e, indissociavelmentc, de sua aprendizagem. Existe de fato um “suber”, Educagio em Revista, Belo Horizonte, a? 33, jun{2001 uma “cultura” transmitidos, objetivamente, quer dizer, de nosso ponto de vist, do ponto de vista daqueles que participam de universos sociais nos quais © saber (no caso, o saber cientifico) € objetivado, separado, autonomizado, etc. no entanto, a seu respeito, devemos dizer que ele & imanente as situagSes e As pessoas que o incorporaram, além de permanecer invisivel do ponto de vista native” (endégeno). Ele na do ponte de vista daqueles que o deem aparece como tal no estado incorporado. Partanto, 0 proceso dle “aquisicio” supde a mimese ca identificagio: *o processo de aquisi¢io, mimese (ov mimetismo), pritica que, como fingimento, implicando uma relagio global de identificagio, nao tem nada de uma imi 0 que supde o esforgo consciente para reproduzir um ato, uma fala ou um objeto explicitamente constituide como modelo, ¢ 0 processo de reprodugao que, como reativacio 8p Berger eT Luckmann, Ja. Construction sociale he bs salle, Mérieliens-Kllncsieck, 1996, 129. 11 P Bourdieu, “Les modies de domnsation op. C..f 124 -Quase” porque, de fato, existe un preturicideade we quatl alguns pudoram ver ex promisvas la exert © G. Spindler, “ihe thastulssion of cultune”, inEdwestion and Caltural Process. Toward an anttnopology of ‘eduemion, Now York, Holt, Rinebuan® Winston, 1974, p.281. NK: Nooriginal,nuligine Sobre a historia e a teoria da forma escolar Sobre a histéria e a teoria da forma escolar 24 pritica, se ope tanto a uma lembranga quanto a um saber, tendem a se realizar aquém da consciéncia e da expressio, portanto, da distancia reflexiva que elas supdem. © corpo acredita no que representa: ele chora se imita a tristeza, Ele nao representa aquilo que desempenha, nao memoriza 0 passado, aciona © passado, assim anulado como tal, ele 0 revive. O que é aprendido pelo corpo nao € alguma coisa que se tem, como um saber que se pode segurar diante de si, mas alguma coisa que se é. Isso se vé especialmente nas sociedades sem escrita em que o saber herdado sé pode sobreviver no estado incorporado. Nunca separado do corpo que o carrega, 86 pode ser restituide mediante uma espécie de gindstica, destinada a evocii- lo, mimese que, segundo for observado pot Platao, implica um investimento toral © uma profunda identificacio emocional®. Como niio existe nenhum lugar separado de aquisiglo de um saber especifico, & preciso sublinhar © fato importante de que o tempo da pritica é confundido com o tempo da aprendizagem. Isso € valide tanto para aquele que emtende, vé e se identifica com aquele que pratica o ritual e enuncia 05 mitos, provérbios, -, COMO para este liltimo que no est sabendo da separagio entre 0 que seria da ordem da redugiio & ‘o que seria da ordem de sua recitacao. E isso que nota C. Geertz a propésito da poesia oral que “nio &, em primeiro higar, compost e depois recitada, mas é elaborada no decorrer da recitacdo, construfda enquanto é cantaca num recinto ptiblico"® , De ftto, esta partigio €m momento da redagio, momento dit aprendizagem “de cor” © momento cit recitacao, nao tem nenhum sentido nas formagdes sociais sem escrita, sem obje desligamento/separacao dos saheres. agdo/desincorporagao/ Tudo isso explica que tenha sido possivel caracterizar o “pensamento mitico” pela auséneia de “espitita critico” ou de “ceticismo". O que se entende habitualmente por critica, &2 possibilidade: de comparar, encontrar contradiges ou, ainda, ° P Bourdien, Le Sens pratique, op.e, p. £23, Comprevneke- 4s que a touria construtda por P. Bordiest sess particilarmente autapiada para expllear as priticas suciats emi formas soctais oraus. Quando H Bonectiea cugita sobre a génese da construgio do coucelty ee "habitus" ede suc teoria da pica, efe dice que css ats aspectos foram coushiuidos pare mosiea certas Uigicas soviais le universes com frac objtwereo- coddfiedgiio (sem instigate jurtdica, estate, escear, 1) P, Bourdieu, “Habitus, code ot codification”, i Actes de la rechereiue en sciences soviles, 1° 6, set. le 1986, °C; Geertz, Savor local, savove ylobal, POF. 1986, p. 142 © Ver; em particular, Horton gnu cita ecritica f. Gedy. emele Raison gaphique, Minuit, 1979, p96 +++ Educagéo em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jun/2001 Interpretar, ou seja, outros tantos dispositivos peculiares a modos de conhecimento escritural, Como as condigoes de produgio/reproducio/ aquisigao requerem a identificacio ea mimese no decorter de uma tnica € mesma pritica, C. Lévi-Strauss pode escrever: “O pensamento selvagem nao, estabelece distincdo entre o momento da. observagio ¢ o da interpretagao, do mesmo modo que niio é pelt observaga0 que, em primeito lugar, sao registrdos 08 sinais emitidos por um interlocutor € sé depois seria feita uma tentativa para 10 compreendé-los: ele fala e a emis sensi vel raz com ela seu significado”. A idéi ia segundo a qual os “primitivos” seriam “quase sempre indiferentes a contradic’io"®, se esclarece 4 partir das mesmas taz6es. O “mito” se adapta a cada contexto de enunciacho. Pode, portanto, nas miltiplas enunciigdes € dentro das necessarias variagdes aparecer do ponto de vista de um modo de conhecimento escritural como um discurso incoerente, que, a0 mesmo tempo, diz branco ¢ preto. Ora, & justamente porque aquele que enuncia o mito ou aquele que o entende nao o diz e nem o entende “ao mesmo. tempo", mas sucessivamente, em situagdes, com platéias e em momentos diferentes, que eles podem ser Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jun{2001 + + jasensiveis” ao que nos parece ser uma contradigaio. Do ponto cle vista dos sujcitos sociais que participam destas formas sociais orais, as categorias que eles utilizam ou associam estio ligadas a cada contexto especifico de uso. Para compreender isso, € preferivel adorar uma sociolingiistica pragmatiea, em vez de uma lingitistica estrutural formalist Seo uso de uma categoria ou a associagao de categorias (por exemiplo, negro & mal, moga e esterilidade, ete.*) nem sempre estiveram ligados a contextos especificos e se vieram a se tornar evidentes para aqueles que usam € associam sem saberem ¢ sem terem riecessiclade de saber que categorizam e associam, isso significa que se passa do uso pratico para o uso reflexivo, da “analogia como esquema pratico da agio ritual para a analogia como objeto de reflexto ¢ como método racional do pensamento”" A analogia pritica, contextual, prochito de situagdes ¢ sempre reempregada em 9 € éve-Stras, 1s Pensée sauvage, Pon, 1962, p. 2% 2951N.T: Obra dispontiel em porngudssob a ttidoO pensimenta selvagem, Iradtegio ce Marit Gest ce Costes oSérzare Amir de Oliveira Aguiar, publcaar pets itoras Nactamat ede USE, MC. Lig Firat Ls Memtalité premtive, PLE, 1960, p. 8. +14, Goody, ka Raison graphique, op. eit. p. 187 9" ourdica Le Sens pratique Op eit p 425. da forma escolar Sobre a histdria e a teor 25 Sobre a hist6ria e a teoria da forma escolar 26 jematica novas situagbes 86 poderia ser si se 08 contextos estivessem congelados, sempre imutaveis. O varidvel, o contradit6rio, 0 parcial, 0 ilégico, eis as formas socitis oris © os modos dle conhecimento que lhes esto vineulaclos, vistos através de determinadas formas sociais escriturais. Nao se deve atribuir modos de conhecimento do que eles ja sdo mais coeréncia aos portadores, como tem sido defendido pelos estruturalistas™, nem conjeturar um espirito ilégico, incoerente, contraditério (no caso extremo, préximo do comportamento do louco) como é apontado por tantos antropdlogos (colocando desta maneira na cabega dos Sujeitos sociais 0 produto da retacio entre dois universos sociais diferentes). As contradigbes sio perfeitamente coerentes do ponto de vista da l6gica social das formas sociais orais. O “pensamento mitico” (magico", “selvagem’, etc.) € definide, com freqiiéncia, pelo fato de que ele nao dissocia as palavras © as coisas, a linguagem eo real, B. Cassirer caracteriza © mito pela “relagio de identidade, de coincidéncia completa entre a ‘imagem’ €a ‘coisa’, entre o nome c objeto”. E. Sapir sublinha ‘o sentimento difuso - em particular, nos primitivos - de uma quase identidade ou de uma correspondéncia estreita entre a palavra € a coisa’. R. Horton define o pensamento miigico como um pensamento no qual “as palavras, as idéias ¢ o real estio intrinsecamente ligacos™*. Por sua parte, B. L. Whorf observou que no “universo mental dos hopi”, o “pensamento" nio estd isolado do “espago real”, No seri possivel continuar a enumeracao dos autores que tém apresentado o Pensamento mitico desta maneira. Alguns acrescentaram que a indistingo atinge nao somente “linguagem” e “real”, “palavras" e “coisas’, mas ainda, de modo mais preciso, linguagem/pensamento/ sujeito falante/real. Ora, uma vez mais, esta caracteristica do pensamento mitico se compreende perfeitamente se o considerarmos como sendo produzido em formas sociais ortis, no fimago das quais a linguagem e a fala #7 Very. Goes, Ya Raison grsplaque, op. ci, eespecialinetihe 2 cap. IV: “Rerinareet classification et Fart ce youersir lestabieaus’, p. 108-139, E, Cassirer, Langage et the, Moun, 1973, p. 75NT Obra disponnet em portuguis sob oriuloLinguagen & Init, tradtcdo de Ginsburg Miriam Scbnaickrnain, revisdo de Mary Amazonas Leite cle Narros,pucbticad pola Faitora Perspectina na col. “Petwetes') °° Spt Linguistique, Minus, 1968, p. 38. * Cikaco-em J. Goedd, ta Raison wriphique.op. ct. p. 93. 1 BL, Worf, Linguistique et antivopologie, Devel” Médiasions/Contbier, 1969, p97. Fducacao em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jun/2001 $6 existem nas miltiplas relagdes sociais, complexas, circunstanciadas, imbricadas em atos € agdes particulares. A partir do momento em que se considera a imbricagdo da palavra na aglo ¢ nos corpos daqueles que falam, se compreende a razio pela qual a linguagem (A semelhanca do que dissemos a respeito do “saber” ou da “cultura") uma pritica que se ignora como tal, que se esquece no seu funcionamento para se fundir em seus alos, agSes, acontecimentos, situacdes... Nada permite deslocar ou descolar sujeito falame de sua fala para the fazer entever seu funcionamento interno. Se o nativo destas formagées sociais simboliza, produz sentido, classifica 0 universo, isto é, produz uma distancia simbética entre ele mesmo € @ mundo através cle suas priticas de linguagem, ele Jo pensi essas operagdes como acubamos de enuncié-las. Nas formacGes sociais em que, em nenhum momento, o saber é separado das praticas sociais do grupo, mas se transmite na pritica, no amago da pritica, numa participaciio, numa mimese e numa idemtificacio, o que € feito (dizendo), 0 que existe e o que é dito (fazendo, agindo) é absolutamente indissociaivel. Os sujeitos sociais esto presos na linguagem Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jun/2007 e nao exercem nenhuma influéncia sobre esta como tal. Eles nao separam a atividade diferenciante € sistemauizante daquilo que ela diferencia ¢ sistematiza, Sem falar de ciéncia da linguagem, € um retorno reflexive sobre a fala que é interdito por sua imbricagdo em cada situagdo ¢ em cada operacao sobre 0 mundo ¢ sobre os outros, Nao & surpreendente que, como relatow J. Goodly a propésito das linguas Lo Dagaa e Gonja, nao haja “nenhuma pakavra para dizer ‘palavra'’™, Nao existe nenhuma confustio, propriamente fakindo, entre as palavras eas coisas, mas uma J6gica social particular no cerne da qual a distine3 entre a “linguagem” ¢ 0 “mundo” nao € pertinente. Distinguir entre as “palavras” eas “coisas” supde, dle fato, sim Conjunto coerente de transformacées sociais logicamente ligadas, tais como 0 surgimento da escrita, de uma instituigio de poder separado, ete. 2. Formas escriturais-escolares de relagées sociats Entremos, agora, numa configuracho social de conjunto completamente dlistinta; a Franga urbana do fim do século 7 Gocudy, a Raison graphique, op. cit, ps 202. storia e a teoria da forma escolar © x 5 3 a 27 Sobre a histéria e a teoria da forma escolar 28 XVII A primeira metade do século XIX. Apesar das diferencas importantes entre Charles Démia que abre sua primeira escola para os meninos pobres da paréquia Saint-Georges, em Lyon, em 1667; J. B. de La Salle em tomo de quem, por volta de 1681, se constitui o grupo das Irmaos das Escolas Gristas; personalidades, tais como Laborde, de Gérando, de Lasteyre, Jomard © Gaultier, sob a responsabilidade dos quais as escolas ditas Mtituas foram crtadas a partir de 1815, é possivel assisti a constituiglo de formas relativamente invariantes (isto &, recorrentes) de relagdes sociais: certas formas escolares de relagées sociais. Resumiremos em cinco pontos as caracteristicas destas formas: 1) A escola como espago especifico, separado das outras priticas sociais (em particular, as peaticas de exercicio do oficio), esté vinculada a cxisténcia de saberes objetivados. A escrita que permite a acumulagdio da cultura até entdo conservada no estado incorporado tora cada vez mais indispensavel a aparigaio de um sistema escolar. Com a gencralizacao das culturas escritas em campos de priticas hcterogéneas, a escola toma-se 0 lugar cada vez mais central, o ponto de passagem obrigatorio para um mimero cada vez maior de sujeitos sociais que se destinam a pos de atividades e a posigoes sociais muito diferemes Podemos tomar o cxemplo das escolas lassaleanas. Sto lugares fechados especificos, Primeiramente, estas escolis sio lugares fechados aos olhares exteriores ¢, poderiamos dizer, heterénomos, Em segundo lugar, as “escolas” esto socialmente sepanadas das familias], Enfim, as escolias ndo sio lugares "profissionais”, nem “religiosos’, mas lugares no Ambito dos quis a religito Centre outras coisas") é escolarizada. O ensino dos Irmaos niio se reduz 20 catecismo ¢, sobretudo, este catecismo & escolarmente teansmitido, submetide 3 logica escolar dat transmissto dos saberes. 2) A escola & a pedagogizacio das relagdes sociais de aprendizagem e ligadas 4 constituigde de saberes escriturais formalizados, saberes objetivados, delimitados, codificados, concernentes tanto a0 que € ensinado quanto a maneira de ensinar, tanto is pritticas dos alunos quanto a pritica los mestres. A pedagogia (no sentido restrito J.B. de be Salle, Conduits. des écoles chrsticanes. Introduction et notes comparatives avec Us prineeps de 1720, Proctiregéndraly, 1951, 2 Moborard, “La seolarteation." 0. ition Fducacio em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jun/2001 da palayra) se articula a um modelo explicito, objetivado ¢ fixo de saber a transmitir. Os saberes objetivados, explicitados, fixos, que se pretende transmitir colocam um problema historicamente inédito quanto ao modo de transmissio do saber. Trata-se de fazer interlorizat, pelos alunos, determinados saheres que conquistaram sua coeréncia na/pela escrita (através de um trabalho de classificagio, divisto, articulagio, estabelecimento de relagSes, comparagio, se de fazer hierarquizagdo, ete); wat reviver, por um trabalho vivo especifico (a pritica pedagégica), os resultados do trabalho passado. Historicamente, a pedagogizacao, a escolarizagio das relagdes sociais de aprendizagem & indissociavel de uma escrituralizagéo- codificagdo dos saberes ¢ das priticas. Uma pedagogia do desenho, da nnisica, da atividade fisica, da ativicade militar, da danga, ete. no se faz sem uma escrita do desenho, uma escrita musical, uma escrita esportiva, uma eserita militar, uma escrita da danga. Escritas que exigem quase sempre a utilizagio de gramiticas e teorias das praticas*. O modo de socializagio escolar €, portanto, indissociiivel da natureza escritural dos saberes a teansmitir. As escolas lassaleanas - como as de Démia ¢ as escolas mtituas - so modelos Fducagéo em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jun/2001 do ponto de vista da codificagio do conjunto das priticas escolares: dos sabcres ensinados aos métodos de ensino, passando pelos aspectos mais insignificantes da organizagio do espaco, e do tempo escolar, nada € deixado ao acaso, tudo € objeto de escrita, decomposicio, fixagio des movimentos e das seqiiéncias, permitindo assim uma sistematizacao reforgada € um ensino simultineo. E como tudo foi escrito, previsto, controlado, codificado por antecipagdo numa série fastidiosa de descrigdes-prescrigdes, certos mestres bem formados podem passar despercebidos em proveito de funcionamentos escolares mais esiritos. J.B. de La Salle sabia bem que - por exemplo, para que em todos os lugares onde se instalassem as escolas fossem uniformes as priiticas (ou seja, que estas se repetissem sem variagdes) - era necesstirio fixar regras escritas que cada mestre deveria respeitar ao pé da letra, isto é, sem interpretagio que pudesse inttoduzir modificagdes: “Foi necessirio 518. Dagounet, Berture eticonographie, Maris, Vrin, 1975; jugvelle et punt. Nuisance de ht prison, Paris, Gallimard, 1973 [007 ‘portaguds sob 0 stale Vigiae einen da priv, eradiicda de Ligin Mf. Poncte Vesullo, pubicaelis pola teitora Voxest:G. Viacom, ets. Obra disponive! en pun: cole primaie..,.0p, teoria da forma escolar riaea Sobre a hist Sobre a histéria ea teoria da forma escolar 30 instituir esta ‘Conduta das escolas cristas’ a fim de que tudo seja uniforme em todas as escolas e em todos os lugares onde existem Irnyios deste Instituto a fim de que, nessas escolas, as priticas sejam sempre as mesmas. O homem esti tio sujeito & frouxidao - , até mesmo, as mudangas - que tem necessidacle de regras por escrito, mantendo-o em seu dever e impedindo-o de introduzir alguma coisa de novo e, deste modo, destruir o que foi sensatamente estabelecido™ . Quando os diferentes membros da comissio de ensino se reuniram para criar uma Escola Matua modelo, em Paris, no ano de 1815, mostraram preocupagio em relagdo aos materiais pedagdgicos: preparacia de sikibsdrios, confecetio de quadros de leitura, escrita e aritmética, quadros de sentengas morais, redagio de um manual de maneira a difundir © método e seus procedimentos. 3) A cotlificagdo dos saberes ¢ priticas escolares torna possivel uma sistematizagéo do ensino e, deste modo, permite a produgdo de efeitos de socializagdo durdveis, registrados por todos os estudos elaboridos sobre os efeitos cognitives da escola". A forma escolar de aprendizagem se opde entdo, 20 mesmo tempo, a aprendizagem no ago de formas sociais orais, pela ena pratica, sem nenhum recurso & escrita (trata-se sobretudo, conforme a expressiio de G. Delbos € P. Jorion, de uma “transmissio de trabalho” ou de “experiéncias", j4 que nenhum saber aparece verdadeiramente como tal) € aaprendizagem do “ler € do “escrever" nao sistematizade, nao formalizado, no duravel. 4) Aescol se fazem presentes formas de relagdes - como instituigiio na qual sociais baseadas em um enorme trabatho de abjetivagio e de codificagio - é 0 lugar da aprendizagem de formas de exercicio do poder. Na escola, nio se obedece mai uma pessoa, mas a regras supra-pessoais que se impdem tanto aos ahtinos quanto aos mestres. Alids, o professor primario - enquanto detentor de uma competéncia especifica, garantida pelo “titulo” ou “diploma” (reconhecimento formal de uma competéncia mensurdvel por ser objetivada) - é um agente intercambivel que entra em relagdes institucionais objetivadas. A forma de exercicio do 4.8 debe Salle, Comeuites.., op. cit. P.. 8 Scribner eM. Cole, The Psychology of iteeay, Hervant ‘Unaersity Press, Gamibridge, Sassachussets ant Lomelon, 1981, 335p. * G. DulboseP Jorion, La Transmission thes savoies, a4, 1988, p.310, Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 33, jun/2007 poder que se instaura na escola, fundada na objetivagio ¢ na codificagio cas relages soviais, repousa sobre uma dominagio legal no sentido em que foi definida por M. Weber; “o detentor legal-tipo do poder, 0 ‘superior’, quando institui e, portanto, quando dl orens, obedece, por suis vez, 2 orcem impessoal pela qual ele orienta suas disposigéies, (Jao obedecerem ao detentor lo poder, os membros do agrupamento no estio obedecendo & sua pessoa, mas a regulamentos impessoais"”. A relagto entre os alunos ¢ 0 mestre no espago escolar € mediatizacia pela regra geral, impessoal, cdo mesmo modo que com 0 direito coxlificado. Além domais, como escreveu P. Bourdieu, “a codificacio esté vinculada a disciplina e a nomnalizagio das priticas. Quine diz, alhures, que os sistemas simbél ‘normatizam' 0 que codificam’™. A codlficagao da organizagiio das proprias priticas ¢ sabcres escolares (por exemplo, cod processos extra-cscolares — principatmente, is” -, de codificagio e, deste modo, estd indissociavelmente ligada a um modo ago. gramatical) € correlativa de particular de organizagio ¢ de exercicio do poder. Acescola lassaleanat -comoa de C. Démia se camicteriza bem pela submissito a regras impessoais. O mestre dirige-se aos alunos na 2 pessoa do plural [“vés'e mio “tule nio se permite insulta-los; quando castiga deve limitar-se a aplicar a lei € niio responder a “nenhum desejo de vinganea particular”, Nao é 0 mestre como pessoa particular que aplica 0 castigo, mas limita- se a sero representante de regras escritas gemis, supru-pessoais. Ble mesmo deve se submeter as “sentengas", impondo-se 0 siléncio, mostrando em cada momento o exemplo daquele que cumpre as "regras’’ Alids, J. B. de La Salle explica que “o mestre fard com que os alunos entendam que devem guardar silencio, nao porque cle esta presente, mas porque Deus os vé, ¢ esta a sua Santa Vontade™ . © aluno €0 mestre se colocam no plano exteriorizado, objetivado das sentengas escritas; als, nto € por acaso que, desde o fim do século “XVII, a palavea “regra” “assumiu o sentido de instrugio regulamentar, deixando de designar a regra de vida"®. °°, Weber, Beoromie et soci, Mon, 1971, p. 233 (Obra disponivet em portgnés sob 6 titulo canons & Sociedade, publicada peta Kaitora dla Univcrsidande te rasta SP Moundion, “Habis...” op. iy) AL © R Chartier, “Lespratiques de !éert”, wsdistoine dt vie privée, tomo I, Be ka Rerissanceesune Lumen, Pets, id di Seuil, 2OBGIN-T: Obra dsporivel em portugues sob ttufo istévia da Vids Privads da Renascencs 30 Sécule cas Lunes, radio de Hildegard Fs, pubbicaer pela Ketone Companhia das letras! MWebor, carole eg, tid, p 123. 6. Vincent, Poole primaire... op.eit, p. 32. Educagao em Revista, Belo Horizonte, n° 33, junf2001 ov ee Sobre a histéria e a teoria da forma escolar 31

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