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Casa de Oswaldo Cruz – FIOCRUZ

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde

MATHEUS SANTOS SANTANA

Central de Medicamentos: a construção das políticas de assistência farmacêutica da


ditadura civil-militar e suas divergências com a Associação Brasileira da Indústria
Farmacêutica (1971-1985)

RIO DE JANEIRO

2020
* Título do projeto original - Central de Medicamentos (CEME): Estado, multinacionais e a
disputa pelo mercado farmacêutico de medicamentos básicos na ditadura civil-militar (1971-
1985)

* Título do projeto no dossiê de qualificação – Central de Medicamentos: militares,


burocratas, cientistas e a implantação das políticas de assistência farmacêutica no Brasil
(1971-1981)

* Data do exame de qualificação: 23/03/2020

Objetivos

* Compreender o papel exercido pela Central de Medicamentos na estruturação das primeiras


políticas de assistência farmacêuticas desenvolvidas no Brasil a partir do governo Médici.

* Analisar como funcionou a relação entre o Estado e a Associação Brasileira da Indústria


Farmacêutica, principal entidade representante do setor, a partir da criação da CEME.

* Descrever os principais motivos e interesses que estimularam o governo Médici a intervir


no setor farmacêutico e iniciar políticas de produção e distribuição de medicamentos para
camadas empobrecidas através da CEME.

* Reconstruir parte da rotina de reuniões da Comissão Diretora da CEME, ocorridas entre


1972 e 1974, a fim de compreender quais eram as prioridades fundamentais da autarquia no
período em que esta gozou de ampla autonomia administrativa e orçamentária.

* Aprofundar o entendimento sobre os motivos que levaram o governo Geisel, através do IIº
Plano Nacional de Desenvolvimento, a esvaziar as políticas de desenvolvimento tecnológico e
produção de matérias-primas farmacêuticas geridas pela CEME entre 1971 e 1973.
Argumento de projeto

Este projeto busca analisar a implantação das primeiras políticas públicas de


assistência farmacêutica no Brasil, sendo objeto de estudo a Central de Medicamentos,
autarquia federal criada em 1971 e destinada à produção, controle de qualidade, distribuição,
promoção e financiamento de pesquisas, modernização da cadeia produtiva pública e
racionalização da demanda nacional de medicamentos para uso humano.1 Articulada em um
contexto de grave crise da indústria farmacêutica brasileira, a CEME pode ser considerada
resultado de um esforço estatal no intuito de intervir e estabilizar um processo de
desnacionalização que desde 1964 transferiu o controle acionário de noventa por cento das
indústrias farmacêuticas nacionais para conglomerados com sede nos EUA, Alemanha, Suíça
e Grã-Bretanha.2 Estas empresas, a partir de então, reduziram ou encerraram a produção de
matérias-primas farmacêuticas em suas subsidiárias brasileiras, ampliando drasticamente o
volume de importações desses produtos e inflacionando perenemente os preços dos
medicamentos na segunda metade dos anos 1960, conjuntura que favoreceu a criação da
CEME.3

Durante o governo Médici, a CEME teve a tripla finalidade de gerenciar políticas de


produção e distribuição de produtos farmacêuticos às populações carentes do país, coordenar
a modernização da infraestrutura tecnológica de laboratórios públicos estaduais, universitários
e militares, além de investir em pesquisas cuja finalidade fosse a produção de matérias-primas
farmacêuticas.4 Para o alcance de tais objetivos, a Central de Medicamentos em seus anos
iniciais gozou de notável autonomia, sendo sua gestão responsabilidade de uma comissão de
cinco diretores com voto equitativo cuja nomeação era feita diretamente pela Presidência da
República.5 Em um período tradicionalmente conhecido como “anos de chumbo” devido ao
fechamento do regime e aos amplos poderes conhecidos ao Presidente da República em

1
Decreto nº 66. 806, de 25 de junho de 1971. Diário Oficial da União, Seção 1, 25/6/1971, página 4839.
2
LUCCHESI, Geraldo. Autonomia e Dependência no Setor Farmacêutico — um estudo da Central de
Medicamentos (CEME). Rio de Janeiro, Escola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ, 1991. (Dissertação de
mestrado). p.3.
3
MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL. Plano Diretor de Medicamentos.
1973. Volume 1. Brasília, Ministério da Previdência e Assistência Social. p.37. EVANS, Peter. A Tríplice
Aliança: as multinacionais, as estatais e o capital nacional no desenvolvimento dependente brasileiro. Rio de
Janeiro, Zahar Editores, 1980. p.114.
4
SENADO FEDERAL. Pronunciamento do presidente da Central de Medicamentos – João Felício
Scardua – na CPI da Previdência do Senado Federal. Brasília, 19/10/1983. pp.2-3.
5
Decreto 69.451, de 1º de novembro de 1971. Diário Oficial da União, Seção 1, 3/11/1971, Página 8827.
função do AI-5, a proposta da autarquia encontrou restrições políticas e orçamentárias
menores do que as impostas às outras instituições análogas geridas por ministérios, cujas
verbas possuíam teto limitado, ocorrendo uma ampla expansão das atividades da CEME até
1973.6

No entanto, tal conjuntura foi significativamente alterada entre 1974 e 1975, quando a
pressão da iniciativa privada farmacêutica contra o projeto e o despontar de uma crise
econômica e sanitária levaram o governo a publicar uma série de decretos e dispositivos
legais que transferiram a CEME para o âmbito do Ministério da Previdência e Assistência
Social (MPAS). Criado já sob a gestão Geisel, o referido MPAS era símbolo de um processo
de unificação do sistema previdenciário brasileiro e foi marcado na década de 1970 tanto pela
expansão de sua cobertura assistencial e farmacêutica quanto por suas graves limitações
financeiras.7 Tal fato gerou um descompasso entre as prioridades assistenciais do MPAS e
parte das finalidades científicas e tecnológicas da CEME, impondo tetos de orçamento e
gerando contradições de funcionamento que remodelariam a finalidade política e social da
autarquia a partir de então.

As verbas destinadas à pesquisa, desenvolvimento tecnológico e modernização de


infraestrutura foram reduzidas já na segunda metade da década de 1970, enquanto eram
acrescidos investimentos para expansão do alcance assistencial da CEME.8 Esta, a partir de
então, se torna principalmente uma central de logística responsável pela encomenda, estoque e
dispensação de medicamentos, tendo sua cobertura se ampliado de 64 para 90 por cento do
território nacional entre 1974 e 1978.9 O período marcou também uma inédita mudança no
perfil de parcerias da autarquia, tendo as aquisições do Estado junto aos laboratórios privados
superado os índices de produção de medicamentos dos laboratórios públicos conveniados à
CEME.10

6
MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL. Central de Medicamentos, Relatório
de Atividades 1977. Brasília, 1978. 52p. Anexos.
7
OLIVEIRA, Jaime Antonio de; TEIXEIRA, Sonia Maria Fleury. (Im)previdência social: 60 anos de
história da Previdência no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1985. p.237.
8
MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL. Central de Medicamentos, Relatório
de Atividades 1977. Brasília, 1978. 52p. Anexos; CORDEIRO, Hésio. A Indústria da Saúde no Brasil. Rio de
Janeiro, Edições Graal, 1985. p.148; MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL. O que é a
CEME. Brasília, 1981. p.13
9
MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL. O que é a CEME. Op. Cit. p.9
10
MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL. O que é a CEME. Op. Cit. p.9
A finalidade da presente pesquisa é o estudo desta transição de políticas públicas de
assistência farmacêutica entre 1971 e 1985, buscando compreender os interesses e os
objetivos políticos do regime com a criação da CEME, descrever a relação entre a iniciativa
privada, representada principalmente pela Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica, e
a auarquia e entender as motivações para a rearticulação das finalidades da empresa a partir
do governo Geisel.

Hipóteses

A hipótese principal desta pesquisa afirma que a CEME foi criada pela ditadura civil-
militar a fim de frear a desnacionalização dos laboratórios farmacêuticos brasileiros e alcançar
a autonomia nacional na produção de matérias-primas farmacêuticas, atendendo assim
demandas protecionistas e autonomistas provenientes de setores da iniciativa privada, do
funcionarismo público e das Forças Armadas. Através da criação da CEME, em 1971, o
Governo Federal passou a intervir diretamente na economia, organizando uma rede de
laboratórios públicos cuja finalidade era o suprimento dos medicamentos demandados pelos
sistemas de saúde e assistência médica da Previdência Social. Entretanto, devido à
dependência nacional no setor de matérias-primas farmacêuticas, o projeto da CEME também
previa a disponibilização de verbas para modernização da cadeia produtiva dos laboratórios
oficiais e para o desenvolvimento de pesquisas em áreas como botânica, química e farmácia.

Nossa análise considera que o discurso de financiamento à modernização do


maquinário dos laboratórios oficiais e de alcance da autonomia tecnológica nacional na
produção de matérias-primas atraiu diversos segmentos do funcionarismo público, civil e
militar, e possibilitou a execução de uma política pública com forte participação do Estado e
cujo espaço para a iniciativa privada era diminuto nos seus primeiros anos. Contando com a
colaboração de funcionários de carreira com amplo prestígio e experiência profissional na
área da saúde, como Luiz Moura, Presidente do INPS, além de diretores de laboratórios
estaduais, universitários e militares espalhados por todas as regiões do país, foi construída na
CEME, entre 1971 e 1973, uma política de assistência farmacêutica com substancial
articulação interministerial e com potencial de dirimir a preponderância dos laboratórios
farmacêuticos multinacionais instalados no país.
No entanto, a consulta às fontes primárias e jornalísticas indica que o crescimento da
participação do Estado no setor farmacêutico foi acompanhado por um proporcional aumento
do descontamento da iniciativa privada, na época majoritariamente representada pela
Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica (ABIF). Logo, a hipótese secundária que
orienta a presente pesquisa considera que a intensificação do oposicionismo da ABIF, a partir
de 1974, foi fator preponderante para o reposicionamento das finalidades da CEME após a
ascensão do governo Geisel. Apesar de ter formalizado seu apoio à CEME na declaração de
Brasília, assinada em outubro de 1971, a ABIF foi paulatinamente se distanciando da
autarquia na medida em que a costura das políticas de assistência farmacêutica pretendidas
pelo governo Médici sinalizava uma preferência da CEME por parcerias produtivas com
laboratórios públicos.11

Entre 1971 e 1973 a ABIF atuou no sentido de apontar os gargalos técnicos e as falhas
evidentes da gestão da CEME, a fim não de encerrar esta autarquia, mas de tornar a iniciativa
privada sua principal fornecedora de matérias-primas, medicamentos e know-how. Foram
denunciados fatores como a baixa integração da CEME em relação à iniciativa privada, a
demasiada participação de laboratórios públicos nas parcerias de fornecimento de
medicamentos e a insuficiência nacional de mão de obra especializada capaz de suprir a
demandas técnicas e de modernização defendidas pela CEME. No entanto, tais críticas
ganharam outra proporção a partir de 1974, em função de mudanças conjunturais como o
início da crise econômica e inflacionária ocasionada pelo 1º choque do petróleo, o ápice da
pior epidemia de meningite da história do país e a incapacidade da CEME de colaborar para o
controle desta emergência sanitária. Nossa análise considera que é neste contexto de
instabilidade que parte das demandas da ABIF foram acolhidas pelo governo Geisel,
ocasionando as mudanças que rearticulariam as finalidades da autarquia entre os anos de 1974
e 1975.

Fontes Primárias

Apesar de já ter sido objeto de estudo em outros trabalhos, a CEME, nesta pesquisa,
terá sua releitura a partir de algumas fontes até então inéditas sobre o tema, selecionadas em
11
A Gazeta da Farmácia, Outubro de 1971. p.14. Disponível em
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=029548&Pesq=ABIF&pagfis=9913. Acesso em
12/11/2020.
caráter qualitativo e analisadas de acordo com a divisão de capítulos que compõem a tese. No
capítulo 1, apresentado na qualificação e dedicado a uma introdução à temática de pesquisa,
foi utilizado o dossiê do Conselho Consultivo da CEME (PB016), presente no Fundo Paulo
Barragat, da Casa de Oswaldo Cruz, dos quais foram aproveitados documentos do Grupo
Executivo da Indústria Farmacêutica (GEIFAR), órgão cuja operação inspirou as atividades
da CEME, além da Relação de Produtos Essenciais de 1965 e dos Critérios de Essencialidade
de Medicamentos de 1973. Também foram extraídas informações do projeto de criação da
CEME, de 1971, e dos Relatórios anuais da autarquia publicados dos anos de 1973, 1974,
1975, 1981 e 1982, documentos do Ministério da Previdência e Assistência Social cedidos
pelo Professor Marcos Dantas, ex-secretário da presidência da CEME e atual professor do
Departamento de Comunicação da UFRJ.

A redação do capítulo 1 também contou com obras completas e artigos de


pesquisadores com reconhecida contribuição no debate das políticas de assistência
farmacêutica, como Oliveira, Bermudez e Osorio-de-Castro, Mercucci e Bonfim, Marquesini
e Carmo, Pasquetti e Junges, Lucchesi e Cordeiro, tendo a consulta a tais estudos finalidade
de construir um amplo panorama de motivações já consideradas pela pesquisa especializada
como fundamentais para criação da Central de Medicamentos. 12 Dos autores citados, são
pioneiros os trabalhos de Geraldo Lucchesi e Hésio Cordeiro, responsáveis por introduzir uma
compreensão que busca as raízes da CEME no nacionalismo desenvolvimentista e no
intervencionismo econômico pregados pelos governos Costa e Silva e Médici. Como afirmou
Cordeiro, em 1985

Ainda não se realizaram estudos sobre os determinantes do processo de tomada de


decisão governamental relativo à criação da CEME; entretanto, supõe-se que,
substanciada na ideologia da segurança nacional, a burocracia estatal e militar tenha
tomado a iniciativa que representou propósitos de intervenção estatal na área de
produção, pesquisa e comercialização de medicamentos.13

12
OLIVEIRA, Maria Auxiliadora; BERMUDEZ, Jorge Antonio Z. & OSORIO-DE-CASTRO, Claudia G.
S. Assistência Farmacêutica e Acesso a Medicamentos. Rio de Janeiro, Editora FIOCRUZ, 2007; BONFIM.
J.R.A & MERCUCCI, V.L. (Orgs.) A Construção da Política de medicamentos. São Paulo,
Hucitec/Sobravime,1997; MARQUESINI, Ana Maria B.G.; CARMO, Gerson T. Assistência farmacêutica -
Análise sistêmica Institucional da Central de Medicamentos: CEME. Revista de Administração Pública. Rio de
Janeiro, v.14 nº 1; p.127-78. 1980; PASQUETTI, Carolina. & JUNGES, Fernanda. O Desenvolvimento da
Assistência Farmacêutica no Brasil: evolução da legislação e o seu contexto histórico. UnB, 2013.;
LUCCHESI, Geraldo. Dependência e autonomia no setor farmacêutico: um estudo da Ceme. 1991. 370f.
Dissertação (Mestrado em Saúde Pública). Escola Nacional de Saúde Pública: Rio de Janeiro, 1991;
CORDEIRO, Hésio. A Indústria da Saúde no Brasil. Rio de Janeiro, Graal, 1985.
13
CORDEIRO, Hésio. A Indústria da Saúde no Brasil. Op. Cit. p.144.
Já Geraldo Lucchesi, em dissertação de 1991, destacou a centralidade de categorias
como dependência e o nacionalismo na compreensão de iniciativas de cunho intervencionista
como a CEME, tendo fatores como a superação da dependência tecnológica e o alcance da
autonomia nacional na produção e consumo de produtos farmacêuticos sido preponderantes,
na visão do autor, para a decisão de criação da autarquia. 14 Todavia, apesar de apontarem para
esta interessante perspectiva acerca da criação da empresa, Lucchesi e Cordeiro não se
debruçaram profundamente sobre o tema, a fim de verificarem evidências que pudessem
sustentar suas proposições, sendo este o principal diferencial da presente pesquisa.

A fim de se inserir em tal debate, também foi realizada no capítulo 1 uma breve
revisão bibliográfica no intuito de compreender como políticas sociais tão necessárias como
as de assistência farmacêutica foram absorvidas pelo nacionalismo desenvolvimentista e pela
ideologia de segurança nacional defendida pela ditadura civil-militar, possibilitando assim a
criação da CEME. Foram consideradas obras de referência acerca da participação dos
militares na política brasileira, como as de Alain Rouquié, João Roberto Martins Filho, Alfred
Stepan e Maria Helena Moreira Alves, a fim de ser discutida a Doutrina de Segurança
Nacional e a relação desta com pautas como desenvolvimento econômico, a industrialização e
o nível de autonomia ou dependência nacional em setores produtivos considerados
estratégicos, dentre eles o setor farmacêutico.15

Já o capítulo 2, parcialmente concluído mas ainda carente de ajustes, sustenta seu


argumento a partir da consulta às atas de 222 reuniões da Comissão Diretora da CEME,
transcorridas entre 1972 e 1974, durante o governo Médici e no período de maior autonomia
política e orçamentária da CEME e de sua diretoria. Disponíveis no Dossiê CEME, também
pertencente ao Fundo Paulo Barragat, da Casa de Oswaldo Cruz, tais documentos descrevem
em alto grau de detalhes informações sobre a rotina da Comissão Diretora da autarquia, os
estados e regiões em que foram realizadas reuniões deste grupo, além dos diretores e
representantes de laboratórios públicos e privados que buscaram parceria com a CEME e as
respectivas demandas destes atores. Nosso objetivo com o estudo de tais atas é entender,
como sugeriu Hésio Cordeiro em trecho destacado acima, os detalhes da tomada de decisão da
14
LUCCHESI, Geraldo. Dependência e autonomia no setor farmacêutico: um estudo da Ceme. Op. Cit.
p.35.
15
ROUQUIÉ, Alain. Os partidos militares no Brasil. Rio de Janeiro, Record, 1991; MARTINS FILHO,
João R. O palácio e a caserna. A dinâmica militar das crises políticas na ditadura (1964-1969). São Carlos, Ed.
UFSCAR, 1994; STEPAN, Alfred. Os militares na Política. Rio de Janeiro: Artenova, 1974; ALVES, Maria
Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis, Vozes, 1984.
cúpula gestora da CEME no período em que esta gozava de grande autonomia política e
orçamentária, para assim compreender as principais bases e prioridades que organizaram as
primeiras políticas de assistência farmacêutica do Brasil no início dos anos 1970.

O capítulo 3, redigido durante a quarentena e já finalizado, está dedicado à


compreensão do relacionamento da iniciativa privada farmacêutica e de sua principal entidade
setorial representante com a CEME. Para isso, foi feito um histórico da relação entre a
Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica, instituição que em meados da década de
1970 representava 85 por cento do faturamento das indústrias farmacêuticas estabelecidas no
país, com a Central de Medicamentos, a fim de comparar em diferentes anos o grau de
receptividade, engajamento ou oposição da ABIF em relação à CEME. 16 Outros detalhes
sobre a elaboração deste capítulo e sobre o método de seleção das fontes utilizadas para
redação do mesmo estão reunidos no último tópico deste texto, relativo ao desenvolvimento
da tese após a qualificação.
Apesar de ainda não redigido e com construção prevista entre fevereiro e agosto de
2021, o capítulo 4 da tese buscará compreender as transformações ocorridas no
funcionamento da CEME durante o declínio e crise da ditadura civil militar, entre 1976 e
1985. Tal período foi marcado por um aumento da pressão civil pela redemocratização e pela
ampliação dos direitos sociais, demandas consubstanciadas principalmente no Movimento
pela Reforma Sanitária, mas também por uma crise econômica nacional que reduziu
orçamento do Ministério da Previdência e Assistência Social a partir de 1981 e comprometeu
fortemente o funcionamento da CEME. Através de fontes como a Relação Nacional de
Medicamentos de 1980 e o Plano de Ação da CEME de 1982, disponíveis no já citado dossiê
do Conselho Consultivo da CEME, do Plano Decenal da CEME de 1981, presente no Fundo
Presidência da Casa de Oswaldo Cruz, e de relatórios e depoimentos oficiais concedidos pelo
então presidente da CEME à CPI da Previdência, buscamos traçar um panorama sobre os
dilemas de funcionamento da autarquia perante a nova conjuntura de políticas de saúde que se
apresentava no Brasil com o fim do governo autoritário.

16
A Gazeta da Farmácia. Abril de 1975. p.5. Disponível em
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=029548&Pesq=ABIF \&pagfis=11120. Acessado em
03/11/2020.
Resumo do capítulo apresentado na qualificação

CAPÍTULO 1 - Central de Medicamentos: criação da rede pública de assistência


farmacêutica do Governo Médici (1971-1973)

O capítulo busca contextualizar historicamente as origens da CEME, apresentando o


cenário político e econômico de sua criação, o arcabouço jurídico que sustentou seu
funcionamento e descrevendo as atividades e principais realizações desta autarquia em seus
primeiros anos. Etapa basilar para a compreensão do objeto de pesquisa, o capítulo reconstrói
a grave conjuntura econômica e inflacionária enfrentada pelo país na década de 1960,
buscando perceber o profundo impacto desta crise para os laboratórios privados de capital
nacional, setor que já sofria dificuldades competitivas em relação às multinacionais desde os
anos 1950.
O fundamento essencial do capítulo é entender como o discurso de autonomia e
estímulo à produção de tecnologia farmacêutica utilizado pelo governo durante a criação da
CEME canalizou as demandas de grupos nacionais dispersos entre o funcionarismo público e
as Forças Armadas. Estimulados pelo ideal desenvolvimentista e autonomista do regime
naquele período e interessados no potencial de financiamento de suas pesquisas e na
modernização tecnológica de seus laboratórios, influentes burocratas do INPS, diretores de
laboratórios públicos estaduais, universitários e militares e a própria Comissão Diretora da
CEME colaboraram para a estruturação de uma política científica e de assistência
farmacêutica com complexa cooperação interministerial e cuja finalidade era a redução da
dependência tecnológica e produtiva nacional no setor de medicamentos e matérias-primas
farmacêuticas.
Logo, é interesse do capítulo descrever a construção das primeiras políticas de
assistência farmacêutica implementadas no país a partir da ditadura civil-militar, buscando
explicar como estas eram influenciadas pelos interesses de atores, grupos e instituições que
compunham o próprio governo no período.
Principais questões colocadas pela banca de qualificação

Foi destacada pela banca a necessidade de especificar mais claramente o tipo de


desnacionalização sofrida pela indústria farmacêutica brasileira na segunda metade da década
de 1960. Segundo o professor Pedro Campos, não ficou evidente no dossiê de qualificação se
tal desnacionalização foi de base produtiva ou de capital, ou seja, se o controle estrangeiro no
setor se deu através da gestão direta da maioria das plantas industriais farmacêuticas presentes
no país ou se tais fábricas permaneceram geridas por diretores e engenheiros brasileiros, mas
com controle acionário e poder de decisão pertencentes a empresas estrangeiras.

A consistência da crítica influenciou diretamente na redação e descrição da pesquisa


após a qualificação, sendo presente atualmente a menção à desnacionalização de controle
acionário como característica marcante da economia brasileira naquele período. No entanto,
como destacado na introdução do argumento deste projeto, o tipo de desnacionalização
referido acabou ocasionando um processo de desindustrialização da economia nacional,
ampliando as importações de matérias-primas farmacêuticas, pressionando a demanda
cambial por moeda estrangeira e, consequentemente, acelerando a já alta inflação brasileira.
As empresas estrangeiras, após adquirirem o controle acionário de laboratórios brasileiros,
passaram a reduzir ou encerrar a produção de matérias-primas farmacêuticas em suas fábricas
no país, ampliando o volume de importações desses produtos e inflacionando perenemente os
preços dos medicamentos na segunda metade dos anos 1960, conjuntura que favoreceu a
criação da CEME.

Foi mencionada também a necessidade de descrição da oposição da iniciativa privada


ao projeto da CEME, tarefa que acabou sendo realizada no capítulo 3 da tese, redigido após a
banca de qualificação. Como o capítulo apresentado no dossiê teve caráter essencialmente
introdutório, tiveram destaques personagens e fontes institucionais que sinalizaram uma
relevante preponderância de militares e funcionários públicos para a construção das diretrizes
de funcionamento da CEME em seus primeiros anos. Consequentemente, foi escasso o espaço
oferecido nesta primeira parte da pesquisa a uma análise da atuação da iniciativa privada,
sendo tal limitação destacada pela banca como uma pergunta cuja solução se mostrava
essencial para a conclusão do estudo de maneira eficiente.
Desenvolvimento da tese após a qualificação

Apesar dos inúmeros percalços que se apresentaram em 2020, tenho a satisfação de


informar que obtive significativos avanços no trabalho, sobretudo no que se refere à análise de
suas fontes fundamentais. Entre janeiro e março editei, corrigi e enviei o dossiê de
qualificação de doutorado. Neste, cuja apresentação e críticas da banca foram realizadas em
23 de março e já no contexto do lockdown em função do coronavírus, apresentei o capítulo 1
da minha tese, que faz uma introdução ao objeto de pesquisa e se debruça sobre as atas de 127
das 128 reuniões realizadas pela Comissão Diretora da CEME em 1972, primeiro ano de
funcionamento da empresa.
Após a banca de qualificação, utilizei o mês de abril para leitura, fichamento e síntese
de 95 atas de reunião da Comissão Diretora da CEME ocorridas nos anos de 1973 e 1974.
Desta forma, foi encerrada a primeira etapa de análise de fontes prevista na pesquisa desde
seu projeto original e dedicada a um estudo sobre os atores e instituições de origem civil e
militar que influenciaram na construção das políticas de assistência farmacêutica do período.
As informações recolhidas através da consulta a tais fontes ampliaram nossa compreensão
sobre a importância das Forças Armadas, sobretudo do Exército, na construção das políticas
de assistência farmacêutica do governo Médici.
Entre 1973 e 1974 foram seladas diversas parcerias produtivas entre a CEME e
Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército e também com o Laboratório Farmacêutico
da Marinha, além de serem formalizados convênios de financiamento tecnológico para
produção de matérias-primas farmacêuticas no Instituto Militar de Engenharia. A CEME
também possuía convênios de fornecimento de medicamentos para as Ações Cívico-Sociais
(ACISO’s), intervenções assistencialistas realizadas pelas Forças Armadas em regiões de
interior e com finalidade variada, servindo tanto para a legitimação do regime quanto para
espionagem de comunidades camponesas e ribeirinhas.17 Algumas das informações obtidas
nas referidas atas são evidências fundamentais que sustentam o capítulo 2 da tese, já
parcialmente redigido, mas ainda não finalizado, e que explica como o discurso autonomista e
desenvolvimentista da CEME atraiu grupos dispersos entre o funcionarismo público e as

17
GUIMARÃES, Plínio Ferreira. Outras formas de enfrentar a ameaça comunista: os programas
assistenciais do Exército brasileiro como estratégia de combate à guerra revolucionária (1964-1974). Belo
Horizonte, 2014.300f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais.
Forças Armadas, que passaram a colaborar para o sucesso da política farmacêutica da
autarquia a fim de atenderem seus interesses privados.
Nos meses de maio e junho iniciamos a segunda fase de consulta às fontes a fim de
construir o capítulo 3 da tese. Este está dedicado à compreensão do relacionamento entre a
iniciativa privada farmacêutica e sua principal entidade setorial representante, a Associação
Brasileira da Indústria Farmacêutica (ABIF) com a CEME. Para isso, busquei fazer um
histórico da relação entre a ABIF e a Central de Medicamentos, a fim de comparar em
diferentes anos o grau de receptividade, engajamento ou oposição da ABIF em relação à
CEME. A fim de historicizar a trajetória de relação da associação com o governo brasileiro,
foi feito levantamento das declarações dos presidentes e dos diretores da ABIF entre os anos
1962 e 1975, sendo, para isso, consultados periódicos como o Jornal do Commércio, Jornal
do Brasil, Correio da Manhã, e principalmente o Gazeta da Farmácia, jornal mensal
especializado publicado pelo Sindicato dos Proprietários de Farmácias e Laboratórios do Rio
de Janeiro e com circulação entre 1932 e 1981.
Foram utilizados como fontes adicionais os livros publicados pela ABIF e pela sua
herdeira, a Febrafarma, respectivamente denominados Indústria Farmacêutica e Cidadania e
História da Indústria Farmacêutica no Brasil.18 Apesar de serem obras oficiais encomendadas
por estas instituições, os referidos livros possuem um valor considerável em relação à
cronologia dos mandatos presidenciais na ABIF e das principais demandas defendidas pela
associação em cada época.

Chegamos ao fim de 2020 com três capítulos de nossa tese quase concluídos e com
mais de um ano para conclusão do doutorado. Temos a esperança de que concluiremos este
desafio independentemente das dificuldades.

18
PRADO, Luís André. Indústria Farmacêutica e Cidadania. São Paulo, Editora ABIFARMA, 1997;
CYTRYNOWICZ, Monica (Coord.). Origens e trajetória da indústria farmacêutica no Brasil. São Paulo,
Narrativa Um, 2007.

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