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Abstract This article takes a double perspective Resumo O artigo enfoca, de um duplo ponto de
– epistemological and bioethical – towards the vista, o objeto de estudo específico das pesquisas
object of specific study in social sciences research em ciências sociais que envolvem indivíduos e po-
involving human individuals and populations. pulações humanas: o ponto de vista epistemológi-
The author focuses particularly on social sciences co e o ponto de vista bioético. Aplica, em particu-
research in Brazil, referring to the descriptive, lar, este duplo ponto de vista às pesquisas em ci-
normative, and protective practice in the evalua- ências sociais no Brasil, referindo-as à prática
tion system developed by research ethics commit- descritiva, normativa e protetora desenvolvida
tees and the National Commission on Research pelo sistema avaliador representado pelo conjun-
Ethics (Conep). The article also highlights some to Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) e Comis-
of the inherent difficulties in the evaluator’s role, são Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Des-
confronted with the specificity of the object at taca, também, algumas dificuldades inerentes ao
hand and contingent on resistance by social sci- papel de avaliador, quando confrontado com a es-
ences researchers when their research projects are pecificidade do objeto em exame, e contingentes
evaluated according to norms derived from mod- às resistências dos investigadores em ciências soci-
els referring to the morality of biomedical re- ais quando seus projetos de pesquisa são avalia-
search. Finally, the article adopts a bioethical dos de acordo com uma normativa estabelecida a
model based on the triple task – descriptive, pre- partir de modelos referentes à moralidade das
scriptive, and protective – called the bioethics of pesquisas biomédicas. Por fim, propõe adotar um
protection. modelo de bioética baseado na tríplice tarefa des-
Key words Bioethics of protection, Social sci- critiva, prescritiva e protetora, chamado bioética
ences, Research Ethics Committees, Epistemology, da proteção.
Research on human beings Palavras-chave Bioética da proteção, Ciências
sociais, Comitês de Ética em Pesquisa, Epistemo-
1 Departamento de logia, Pesquisa com seres humanos
Ciências Sociais, Escola
Nacional de Saúde Pública,
Fiocruz.
Av. Leopoldo Bulhões
1.480, sala 914,
Manguinhos, 21040-210,
Rio de Janeiro RJ.
roland@ensp.fiocruz.br
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Schramm, F. R.
que “utilizavam o termo práxis para indicar a conflitos envolvidos, prescrever e proscrever
ação moral” (Ferrater Mora, 1999). comportamentos considerados, respectivamen-
A rigor, dever-se-ia mencionar o fato de te, corretos ou errados, tentando evitar, por-
que, a partir da possibilidade aberta pela biolo- tanto, que pesquisadores e pesquisados se tor-
gia contemporânea e, em particular, pela bio- nem “estranhos morais”. O trabalho dos CEPs
tecnociência contemporânea, de “fabricar” no- tem então uma dupla função: a) uma função
vos seres vivos e, em tese, novos seres humanos, descritiva e compreensiva da moralidade de
a distinção aristotélica entre poiésis e práxis uma pesquisa; b) uma função normativa, con-
vem se tornando cada vez mais problemática, sistente em resolver (ou, quando isso não for
pois “prática” e “fabricação” tendem a se con- possível, regular) os conflitos de interesses e de
fundir. Porém, neste artigo não analisaremos valores, tanto no sentido de propor a melhor
esta nova fronteira da prática humana, pois solução possível quanto no sentido, mais co-
não diz diretamente respeito às práticas de pes- mum, de reduzir ao máximo os eventuais da-
quisa em ciências sociais, embora, certamente, nos possíveis, inclusive aqueles de tipo moral
terá cada vez mais relevância social, podendo, (que podem tornar o pesquisador e o pesquisa-
portanto, ser objeto também de pesquisas em do “estranhos morais”). Mas isso não é tudo,
ciências sociais. pois existe uma terceira função, além das duas
Como prática social, toda prática humana tradicionalmente aceitas em campo bioético,
se inscreve inevitavelmente na dialética entre como veremos a seguir.
conflitos e cooperação que molda as socieda-
des históricas. E a ética pode ser vista como o A tríplice função da ferramenta bioética
“saber prático” que visa justamente dar conta
desta dialética do ponto de vista de suas impli- A bioética pode ser considerada a ética apli-
cações morais. Em primeiro lugar, tentando cada às ações humanas referidas a fenômenos e
entendê-la e explicá-la, pois “em qualquer rea- processos vitais; mais especificamente – de
lidade existem conflitos, mas nem toda realida- acordo com a distinção feita por Aristóteles na
de se reduz a conflitos [visto que] se são reais a Política (I, 2, 1253a 7-5) entre vida orgânica
inimizade e a guerra, também o são a amizade (zoé) e vida prática (bíos) – como o conjunto de
e a paz. Em seu conjunto, a realidade é comple- conceitos, argumentos e normas que valorizam e
xa e constitui um conglomerado de conflitos e legitimam eticamente os atos humanos [cujos]
harmonia” (Maliandi, 1998). Em segundo lu- efeitos afetam profunda e irreversivelmente, de
gar, tentando justificar sua pertinência, pois [a] maneira real ou potencial, os sistemas vitais
ética seria supérflua em um mundo totalmente (Kottow, 1995). Em outros termos, a bioética
harmônico, e seria impossível em um mundo to- pode ser considerada um novo campo de inves-
talmente conflituoso (Maliandi, 1998). tigação [que visa] compreender [de forma críti-
Tal dialética entre conflitos e cooperação ca] as conseqüências de uma ação (...), responder
em bioética pode ser designada como a dialéti- questões filosóficas substantivas relativas à natu-
ca que perpassa o conjunto de relações entre reza da ética, ao valor da vida, ao que é ser uma
aqueles que o bioeticista Engelhardt chamou pessoa, ao sentido de ser humano, (...) [incluin-
“amigos” e “estranhos” morais (Engelhardt, do] as conseqüências das políticas públicas e o
1996). Sendo assim, as práticas de pesquisa que rumo e controle da ciência (Kuhse & Singer,
envolvem seres humanos (“pesquisadores” e 1998). Mas pode-se também entender a bioéti-
“pesquisados”) podem implicar conflitos de ca de uma maneira mais radical, recuperando
interesses e valores entre determinados atores, o sentido provavelmente mais antigo da pala-
autores da pesquisa, e outros atores, objetos da vra ethos, que, na origem, significava “guarida”
mesma, no qual caso pesquisadores e pesquisa- para os animais domésticos contra ameaças
dos podem tornar-se “estranhos morais”. Por por predadores e, por extensão, “proteção” do
isso, na maioria das sociedades contemporâne- humano (Schramm & Kottow, 2001). Em su-
as, tais pesquisas estão sendo paulatinamente ma, se considerarmos que o “ethos” constitui
submetidas à avaliação (e ao “controle”) por em cada sociedade o sistema de crenças normati-
parte de CEPs, guiados por normas e regula- vas acerca de como se deve lidar com os conflitos
mentações que visam, a partir de uma necessá- (Maliandi, 1998) e que a ética é a “filosofia prá-
ria descrição – a princípio fidedigna e imparci- tica” [que visa] uma reflexão sistemática sobre o
al – dos aspectos éticos da pesquisa, e de uma normativo [e que] deve lidar também com a
também necessária compreensão dos eventuais aplicabilidade, [o] caráter de “filosofia prática”,
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do como “mundo da vida moral” (de acordo rece, portanto, razoável perguntar se as pesqui-
com a definição aristotélica), seja compreendi- sas em ciências sociais deveriam também estar
da e, portanto, controlada, para que os seres regulamentadas pelo mesmo tipo de regras ou
que se tornam objeto de pesquisa sejam prima se, ao contrário, precisariam de regras de con-
facie protegidos, inclusive através de instâncias duta específicas, devido à identidade diferente,
como as Resoluções que regulam as pesquisas do ponto de vista epistemológico e metodoló-
com seres humanos. Isso porque os códigos de- gico, das ciências sociais quando comparadas
ontológicos, embora importantes para nortear com as ciências naturais e, em particular, as ci-
moralmente o que cada profissional deve fazer ências biomédicas.
para ser considerado um agente eticamente Esta pergunta é de fato dúplice, pois a ques-
respeitável, não são suficientes, visto que deve- tão da cientificidade, embora deva ser distinta
ríamos ainda considerar os possíveis efeitos dos daquela da eticidade (respeitando prima facie a
atos, inclusive aqueles que podem paradoxal- lei de Hume), não pode ser separada desta, vis-
mente decorrer das melhores intenções do to que, atualmente, pode-se admitir a existên-
agente moral, mas que podem ser daninhos e cia de uma relação complexa entre fatos e va-
até nefastos para os “pacientes morais”. Em su- lores, logo também uma interpretação comple-
ma, por um lado, a bioética da proteção se jus- xa da lei de Hume, sobretudo quando a referi-
tifica devido ao fato de os seres vivos humanos mos aos problemas enfrentados pela bioética
e não humanos estarem desamparados (“sem (Schramm, 1997), inclusive aqueles relativos
guarida”) diante das ameaças vindas de tercei- aos CEPs abordados aqui. Com efeito, de acor-
ros; por outro, existem boas razões para que do com o método da complexidade e que pode-
instâncias como os CEPs façam seu trabalho, mos sintetizar pela competência em saber dis-
que tem uma relevância social considerável no tinguir sem separar e juntar sem confundir (Mo-
sentido de justamente proteger os “pacientes rin, 1990), pode-se considerar que um mesmo
morais” contra riscos e abusos criados, volun- sujeito tenha tanto a necessária competência
tária ou involuntariamente, por outros seres epistêmica e metodológica para avaliar corre-
humanos, chamados “agentes morais”, e para tamente uma pesquisa quanto a também dese-
que agentes e pacientes não se tornem “estra- jável competência ética para avaliar a morali-
nhos morais”, mas entrem na “democracia por dade da mesma, ou seja, o mesmo sujeito pode
vir” da “hospitalidade incondicional” sugerida muito bem “fazer comunicar estas instâncias
por Derrida. separadas” (Morin, s/d). Isso vale a fortiori pa-
ra um CEP como um todo devido à sua com-
posição multiprofissional que, em princípio,
A questão da identidade da pesquisa garante a pluralidade de competências necessá-
em ciências sociais e sua relevância rias para dar conta dos vários tipos de pesqui-
para o trabalho de avaliação bioética sa. Inversamente, existe um relativo consenso
entre eticistas e bioeticistas em dizer que uma
As pesquisas em ciências sociais, como qual- pesquisa deva ser não só aceitável moralmente,
quer pesquisa que envolva seres humanos, de- mas também relevante socialmente e válida do
vem respeitar as normas e resoluções nacionais ponto de vista epistemológico e metodológico,
e internacionais para serem consideradas etica- caso contrário ela seria praticamente inútil.
mente aceitáveis, embora isso possa levantar No caso específico que nos ocupa aqui, a
uma série de dúvidas e resistências nos pesqui- pergunta pertinente é se as ciências sociais te-
sadores, como veremos a seguir. riam um estatuto específico ou se as ferramen-
Com efeito, quando se fala em eticidade da tas conceituais da epistemologia geral e os pro-
pesquisa envolvendo seres humanos é quase cedimentos da metodologia adotados para
inevitável considerar o fato de que, historica- analisar os objetos estudados pelas ciências bi-
mente, as primeiras diretrizes para a boa práti- omédicas poderiam ser válidos também, muta-
ca de pesquisa exigindo o consentimento das tis mutandis, para compreender os objetos de
pessoas pesquisadas, surgiram na Prússia a par- estudo das ciências sociais, como pretendia de
tir de 1900 para evitar abusos de médicos e fato o positivismo (Kincaid, 1996).
pesquisadores no campo da biologia e proteger
os sujeitos pesquisados, sendo em seguida apli-
cadas, com as mesmas finalidades, em outros
países (Palacios, Rego & Schramm, 2002). Pa-
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razão das críticas vindas do neo-racionalismo e crescente do processo que leva do desenho da
do construtivismo, que admitem, o primeiro, a pesquisa, passando pela obtenção do consenti-
preexistência de algum ponto de vista sobre a mento livre e esclarecido dos indivíduos e po-
realidade a ser estudada; o segundo, a “co-cons- pulações a serem pesquisados, até o procedi-
trução” entre sujeito cognoscente e realidade mento consistente em obter o compromisso
conhecida no processo de conhecimento (Pia- dos responsáveis das instituições envolvidas de
get, 1937). De fato, esta posição epistemológica que a pesquisa que será feita por seus pesquisa-
“naturalista” pode implicar uma ética baseada dores esteja de acordo com as regras estabeleci-
numa solidariedade para com todos os seres vi- das pelo Conselho Nacional de Saúde. Este tipo
vos ou uma hospitalidade incondicional e uni- de queixa é particularmente vivo entre os pes-
versal como aquela pensada por Derrida ou, quisadores em ciências sociais em saúde e uma
mais tradicionalmente, uma ética natural de ti- razão disso pode ser que o pesquisador em ci-
po spinozista. Tanto a solidariedade como a ências sociais pensa que as informações a se-
hospitalidade e, de uma certa maneira, o natu- rem obtidas dos sujeitos pesquisados represen-
ralismo spinozista podem ser pensados em ter- tariam, de fato, um risco menor de prejudicá-
mos de uma bioética da proteção, visto que a los e até um risco nulo no caso de pesquisas fei-
“natureza” seria prima facie garantia da conti- tas com dados secundários obtidos a partir da
nuidade de seus entes. análise e reinterpretação de dados já disponí-
Mas existem também aparentes boas razões veis publicamente. Um argumento em geral
para adotar uma epistemologia antinaturalista utilizado é que, contrariamente às pesquisas
em ciências sociais. Para o epistemólogo Fred em campo biomédico – que sempre implica-
D’Agostino (1999) existiriam de fato três ra- riam algum risco físico dos sujeitos pesquisa-
zões prima facie válidas para isso. Em primeiro dos além da sempre possível estigmatização e
lugar, a natureza “reflexiva” das ciências sociais discriminação dos eventuais portadores de do-
em relação a seus objetos de estudo, ou seja, o enças atuais e futuras por parte de planos de
fato de os seres humanos estarem, com seus saúde, seguros e até pela população em geral –,
pontos de vista e crenças, em interação simbó- a pesquisa social teria prima facie muito menos
lica entre si, contrariamente aos objetos das ci- riscos, e até nenhum, porque seus dados seriam
ências naturais, que em princípio não interagi- quase sempre menos “aproveitáveis” por plane-
riam com o pesquisador. Em segundo lugar, a jadores, seguros, etc., devido à sua menor
natureza particularmente “complexa” dos fenô- quantificação possível, logo a seu baixo poder
menos sociais que tornaria extremamente difí- de predição. Afinal – argumenta-se – a pesqui-
cil fazer predições sobre os comportamentos sa em ciências sociais, inclusive em ciências so-
dos atores sociais estudados. Em terceiro lugar, ciais em saúde, é essencialmente “qualitativa”
a natureza controvertida de muitas das catego- (Minayo, 1996), logo o que ela detectaria seria
rias das ciências sociais, visto que seriam inse- sempre tão somente indiciário. O que mal se
paráveis de julgamentos de valor. Esta diferen- adaptaria ao paradigma da verificação/refuta-
ça faria com que, do ponto de vista ético e bio- ção tradicionalmente adotado nas ciências na-
ético, as ciências sociais devessem ser conside- turais, às quais pertence cada vez mais também
radas, como já pretendia Jürgen Habermas, em a ciência biomédica desde que ela se tornou,
seus aspectos práticos e críticos, ao contrário graças à genética e à engenharia genética, uma
das ciências naturais, que poderiam ser consi- das formas da biotecnociência. Este argumento
deradas em seus aspectos meramente técnico e está ligado a um outro, pois se a atividade de
instrumental (Habermas, 1981). pesquisa em ciências sociais em saúde tem as
características descritas acima, ela tornaria o
pesquisador social menos suscetível de estar
Considerações bioéticas finais envolvido com grupos de interesses, tais como
indústria farmacêutica, seguros e outros agen-
No Brasil, uma das queixas mais freqüentes dos tes econômicos potencialmente “suspeitos”. Tal
pesquisadores que submetem seus protocolos argumento se expressa geralmente pela afirma-
de pesquisa a um CEP é que as normas vigen- ção de que a moralidade do agente pesquisador
tes e sua interpretação e aplicação na emissão seria garantia suficiente da eticidade da pesqui-
do parecer pelo CEP dificultariam e até invia- sa, haja vista a tradicional vocação das ciências
bilizariam de fato a pesquisa científica. Isso é sociais em estar do lado dos mais vulneráveis e
identificado com uma suposta burocratização desamparados!
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