Você está na página 1de 80
Problemas da literatura infantil, de Cecilia Meireles, aborda alguns dos aspectos mais importantes de um género que s6 agora vem sendo encarado com a merecida consideracao. Destinado a pais, professores e estudiosos do assunto, ele fala do conceito de livro infantil, sua qualidade, 0 velho habito de ouvir hist 3, as obras significantes e nao, a exploracao da riqueza do mundo interior da crianga, 0 papel do herdi e a biblioteca ideal, entre outros. Através deles, a autora delineia com nitidez os contornos de uma das mais ricas e complexas divisdes da literatura. fteratur Or a 42 EDICAO eZ varios aspectos de ul literatura infantil ricos e complexos tipo comunicagao escrita. Cecilia Meireles (Rio Abordando tépicos 1901-1964), Problemas permanente utilidade, va infantil reflete o senso conceito de livro infant o de uma escritora que qualidade, o velho hab “anos e anos ao ensino da historias, as obras sign no Brasil e no exterior. endo, a exploracao da ora respondeu por uma das ‘mundo interior da cria ws seees em matéria de do heréi, e outros, a au 0 na imprensa brasileira, fornece dados que delin ido no Diario de Noticias. nitidez os contornos de ‘outro jornal, A Manha, @ parte no mundo da lit jou uma coluna sobre folelore Obra indispensdvel a mil durante muito tempo. e pais, Problemas da lite icadora no sentido mais amplo infantil é wma stimula de B fermo, escreveu ainda um belo ensinamentos vatiosos pa ; 1ro para o curso primdrio, - aqueles que certamente al grau da época, Crianga, meu encontrardo na voz de Cet jor, também publicado pela Meireles a opiniao abaliz fova Fronteira. uma de nossas maiores Datando originalmente de 1951, autoridades no assunto em ‘mais recente titulo de Cecilia 0s tempos. “Meireles lancado por essa editora brange trés de suas conferéncias ‘oferidas em Belo Horizonte por casio de um curso promovido ela Secretaria de Educagao local. ‘efundindo seus textos integrais, autora desenvolveu alguns itens ‘multiplicou exemplos para maior clareza de seus argumentos € idéias. Com grande lucidez, Cecilia Meireles aqui nao pretende solucionar os intimeros sendes daquele género literério. Salienta ua importancia e alguns dos CECILIA MEIRELES PROBLEMAS DA LITERATURA INFANTIL Com itustragoes de SIR JOHN TENNIEL, ARTHUR B. FROST, HENRY HOLIDAY, HARRY FURNISS, E LEWIS CARROLL A EDITORA, ‘OVA FRONTERA (©1984 by Herdeiras de Cecilia Meireles Direitos adquiridos para a tingua portuguesa pela EDITORA NOVA FRONTEIRA S/A ‘Rua Maria Angélica, 168 — Lagoa — CEP: 2.461 — Tel.: 286.7822 Revisto MARCO ANTONIO VARELLA ALLIZ LUCIA MOUSINHO. ENRIQUE TARNAPOLSKY CIP-Brasl. Catalogagto-na-fonte Sindicato Nacional dos Baitores de Livros, RI 4.0132 ro que a Crianca Panorama da Literatura Infanti “Da Literatura Oral a Escrita . © Exemplo Moral : Experiéncias . . SUMARIO PREFACIO Este livro foi publicado pela primeira vez em 1951. Ori- sginou-se de trés conferéncias proferidas pela autora e que fo- e reunidas em livro a fim de integrar a “Co- sgica” da Secretaria de Educagao do Estado de viva, Seus pontos de vista, de grande humanidade, se man- @ ‘tem pertinentes. Sua dos problemas que envolvem a Literatura Infantil continua completa, E a sensibilidade com que Cecilia Meireles aborda os di- vversos problemas que propde faz deste livro uma obra defi- nitiva para todos aqueles que se interessam, no s6 por Lite- ratura, mas principalmente por educago. De fato, a persona- lidade educadora de Cecilia Meireles se revela em todas as linhas desta obra, Todos conhecem a fama da autora como poetisa e seu grande renome de tradutora. Mas nem todos esto a par de i des do campo da educacto, Formada pela Escola Normal do Rio de Janeiro exerceu durante longos anos o magistério primério. Ensinou Literatura Luso-Brasileira e Técnica e Critica Literdrias na Universidade do Distrito Federal. Lecionou Literatura e Cultura Brasileira na Universidade do Texas nos Estados Unidos. Foi jomnalista, tendo sido responsével por uma seco sobre problemas do en- sino no Dirio de Noticias e uma segao de estudos de folclore infantil no jornal A Manha. Colaborou destle a sua instalagdo com a Comissio Nacio- nal de Folelore, sendo considerada uma autoridade no assun- to. ‘Seu grande amor aos livros, que ela prépria refere — “Quando eu ainda nao sabia ler, brincava com imaginava-os cheios de vozes, contando o mundo’ se e sua dedicagao a educagao levaram-na a criar uma biblioteca infantil, a primeira do género no Brasil. Proferiu um sem-ni- ‘mero de conferéncias, no s6 no Brasil como no exterior. Era, como vemos, uma verdadeira educadora, sem preo- cupagio com aspectos técnicos espectficos, mas com larga visio da verdadeira fungao da educagao. E logo nas primeiras péginas deste livro podemos pereeber © respeito — pedra angular da educagio — que Cecilia Mei- reles demonstrava pela crianca: 8 'or isso, em lugar de se classificar e julgar o livro in- como habitualmente se faz, pelo critério comum da opinito dos adultos, mais acertado parece submeté-lo a0 uso = nilo estou dizendo & critica — da erianga, que, afinal, sendo 4 pessoa diretamente interessada por ess@ leitura, manifestaré pola sua preferéneia, se ela a satisfaz ou nio.’ Toda sua atividade voltada para a educagio ela a exerceu ‘40 mesmo tempo em que se dedicava & poesia, construindo Juma das mais importantes obras potticas de nossa literatura, Isso me faz pensar nos seus versos e na contradigio que resentam sobre a propria autora: “Quem sobe nos ares néo fica no chio, quem fica no cho nfo sabe nos ares.”” ninguém subiu mais alto do que ela, nos ares da Soc conte, sere os diaher apap cea firmes no chao. Com Iucidez, com objetividade, mas também com Integrando harmoniosamente seu trabalho. Que sem I ilo se pensa bem a educagdo. Sem obj {rOi em educagio. : Mas sem beleza nao tem a educagdo nenhum propésito. RUTH ROCHA A tarefa da educagito priméria, exatamente porque é lidar ‘que o dom poético a ilumine e the infunda novo sentido de conhecimento, apto a compassar 0 territério equivoco e dificil do mundo moral, sentimental e fisico das criangas compre- cender-Ihe a aspera geografia. Sem um pouco de flor no coragio nio hi entender flores. Havera, quando muito, o olhé-las com colhos aridos 0 batizé-las com feios nomes em linguas en- terradas. Eis por que deve considerar-se rara ventura haver a Secre- i socorrer-se do auxilio admirével de ‘mento, colaborando a efeto de recalcar a plano infimo a baixa qualidade da literatura que, em geral, se pe 20 alcance das criangas em nosso Pais, até fazer com que deixe de existir. Evidentemente, esse esforgo de convocacao da ido pii- lica haveria de ter como centro a escola priméria por inter- do seu professor, que, suficentemente escarecido, es- tard em condigaes de excitar uma chain reaction capa de abranger a comunidade onde a sua escola se acha loclizada € atingt, assim, aos poueos, toda a sociedade, O primeiro passo é revelar a existéncia do problema, da qual grande segmento da opinito nem sequer tem a mais ton- ginqua suspeita. Paralelamente, devem ser despertados os po- deres piiblicos, para que assumam a responsi lade de um procedimento adequado as circunstfincias, e alertadas as nos- sas easas editoras, para que colaborem, através de escolhas criteriosas de originais, em amplo movimento em favor da pu- blicacdo de livros dignos das nossas criancas, tao dignos delas, em virtude de sua beleza material e de sua beleza a falsa literatura infantil baixe e se recolha, afi spropriado ao seu desaparecimento. 12 . Entretanto, 0 que a ias vem fazendo, caprichosa, cuidadosa, metodicamente, € diminuir aquelas possibilidades ‘ou substituir o jogo pela sua caricatura ou contrafagao, ilu- crianga. Ora, uma das formas de jogo que vem sendo falsificada ou caricaturada & 0 conto, faiado ou lido, composto para as criangas, é a literatura infantil Tal processo de adulteragao assume, entre outros, estes aspectos distintos e independentes, que, em casos extremos e para tornar-se geral a desgraca, costumam fazer-se muito boa companhia: temas deseducativos; linguagem inadequada; tex- to inseparavel da ilustragio, isto 6, texto e ilustragao a formar um todo, Assim, verificam-se nto s6 a substituiclo de temas educativos por temas deseducativos e 0 uso de linguagem im- propria, mas ainda, por forga de ser a palavra inseparivel da ilustragho — pois surgem sempre de mistura uma com a ou- tra — a substituic&o, no espirito da palavra pelo desenho, perdendo a primeira a sua significagdo e o seu valor simbélico e passando a nfo ser nada, A conseqiéncia extrema 6 que a curva genética do poder verbal infantil — 0 meio mais, rico de expresso e de integraco social da crianga — é fatal- mente interrompida e sacrificada e, assim, gravemente se mu- tila a personalidade em fase de formacdo. Este € um ponto consideravel, que a autora examina e discute com grande agudeza, ‘A crianga é, essencialmente, o ser que constréi, e constr6i menos manual do que imaginativamente. Ora, qualquer cons- truglio exige materiais exteriores ao construtor, € 0 conto, sob qualquer das suas formas, é material de teor excelente para as, criagdes da crianca, que, por meio delas, se constréi a si re par ‘mesma. Do material depende, em larga escala, a qualidade da construgio, ou seja — a espécie de conto, que a crianga ouve ou Ié, determina, em grande parte, a espécie de construgio que fara e na qual a sua pessoa se mistura, se compromete e se completa. iedade e a importincia deste livro, que, por sua sto é, humana e pottica, pela abundancia dos dados literdrios, pela graca do estilo e pelo senso critico, igurar também na ““Colecdo Cultural’” desta Secreta- ria, tanto é verdade que a pedagogia, sem embargo do seu técnico, envolve necessariamente vigorosos pressupos- tos culturais e exige dons agudos de arte, finura e sensibi- lidade. ‘A “Coleco Pedagégica” tem acrescido o seu valor inesti- mavelmente com a publicagdo deste volume, no qual o magis- ‘tério mineiro encontrara motivos sem conta para deleite do seu enriquecimento cultural ¢ completagio A poetisa, eseritora e professora Cecilia Meireles — fulgu- ante expresso da cultura contemporanea — agradeco, em nome do ilustre Governador Milton Campos, a honra desta contribui¢ao, por todos os titulos admiravel, ao esforgo da administragao do ensino do Estado em prol do bem-estar, da alegria e da felicidade das nossas criancas, por intermédio dessa forma suprema de sonho, de jogo ¢ de construgao que é a palavra humana a cantar-Ihes aos ouvidos ou a acender os seus olhos deslumbradamente. ABGAR RENAULT EXPLICACAO PREVIA © presente volume abrange trés conferéncias proferidas em Belo Horizonte, no Curso de Férias promovido pela Secre- ia da Educagdo, em janeiro de 1949, sobre Literatura In- iada para dar forma escrita a essas palestras, pre- ;, aproyeitando a oportunidade para 3s que apenas havia aflorado na expo- , ¢ multiplicar alguns exemplos, para maior nitidez de certas alusdes. ‘Assim, se 0 espirito daquelas conferéncias permanece 0 mesmo, a disposigio da matéria conformou-se A apresentacao escrita, embora, tanto quanto possivel, fiel ao proprio desen- volvimento da exposiclo oral. ‘Nao se pretenden aqui dar solugtio aos intimeros proble- ‘mas da Literatura Infantil. Pretendeu-se apenas insistir sobre ‘a sua importincia e alguns dos seus variados aspectos. 1s ‘Se em tal assunto pudesse a autora exprimir alguma aspi- ragio, talvez fosse a da organizagiio mundial de uma Biblio- teca Infantil, que aparelhasse a infancia de todos os paises para uma unificacao de cultura, nas bases do que se poderia, muito marginalmente chamar um “humanismo infantil”. Na cesperanga de que, se todas as criangas se entendessem, talvez ‘0s homens nao se hostilizassem. Isto, porém, nao passa de uma aspiragio, nestas paginas. Fora do outono certo, nem as aspiragdes amadurecem. Mas, entre todos os tempos, ainda é permitido servir. A autora agra- dece a oportunidade deste pequeno servigo. LITERATURA GERAL E INFANTIL Sempre que uma atividade intelectual se mani- festa por intermédio da palavra, cai, desde logo, no dominio da Literatura. A Literatura, porém, nao abrange, apenas, o que se encontra escrito, se bem que essa pareca a maneira mais facil de reconhecé- la, talvez pela associacao que se estabelece entre jiteratura” e “letras”. A palavra pode ser apenas _ pronunciada. E o fato de usa-la, como forma de expresso, independente da escrita, o que designa o fenémeno literArio. A Literatura precede o alfabe- 10. Os iletrados possuem a sua Literatura. Os povos primitivos, ou quaisquer agrupamentos humanos alheios ainda as disciplinas de ler e escrever, nem por isso deixam de compor seus cAnticos, suas len- das, suas historias; e exemplificam sua experiéncia € sila moral com provérbios, adivinhagées, repre- sentagdes draméticas — vasta heranca literaria 19 transmitida dos tempos mais remotos, de meméria em meméria e de boca em boca. Essa é a Literatura oral que, quando se escre- ve é como registro folelérico. Registro que nao im- pede a continuagao da sua vida sob aquela forma que Ihe propria, e na qual sofre as transforma- ges que os homens e os tempos Ihe vao impri- mindo, sem a corromperem. Esta digressaio sobre a Literatura considerada em seus dois vastos aspectos — 0 escrito e o oral — permite uma pergunta: “‘A Literatura Infantil faz parte dessa Literatura Geral?” Pergunta a que se poderiam acrescentar mais estas: ‘‘Existe uma Lite- ratura Infantil?” ‘Como caracteriz4-la?” Evidentemente, tudo é uma Literatura sO. A dificuldade esta em delimitar 0 que se considera como especialmente do ambito infantil. Sao as criancas, na verdade, que o delimitam, com a sua preferéncia. Costuma-se classificar como eratura Infantil o que para elas se escreve. Se- ria mais acertado, talvez, assim classificar 0 que elas Iéem com utilidade e prazer. Nao haveria, pois, uma Literatura Infantil @ priori, mas a pos- teriori. A confusao resulta de propormos o problema no momento em que ja se estabeleceu uma “lite- ratura infantil””, uma especializagao literaria visan- do particularmente os pequenos leitores. Mais do que uma “literatura infantil”’ existem “livros para crianeas’’. Classificé-los dentro da Literatura Geral € tarefa extremamente ardua, pois muitos deles nao possuem, na verdade, atributos literarios, a nao ser os de simplesmente estarem escritos. Mas 0 equi- 20 voco provém de que se a arte literdria é feita de palavras, nao basta juntar palavras para se realizar obra literéria. Para chegarmos, pois, ao centro da questo, temos de remover 0 obstaculo do “livro infantil”, que no estado atual perturba a dissertagao ¢ a clas~ sificagao. a TILNVANI OUAIT O A histéria do livro infantil é relativamente re- cente. E ainda assim é preciso esclarecer de que livro se esti falando, pois nessa categoria se incluem os livros de aprender a ler, ¢ as séries de leituras gra- dos a eprencizagem formal, e se caracterizam mais como de recreacéo. Naturalmente, os livros sem palavras, os chamados “Albuns de gravuras””, destinados aos pequeninos, ¢ que representam uma comunicacao visual — pelo desenho — anterior As letras, sao também casos especiais. Os livros de aprender a ler ¢ as historias que imediatamente se seguem, como aplicacao da leitu- ra, podem, excepcionalmente, possuir interesse lite- ririo, por um milagre do autor. Pois, como 0 que se tem em vista € o exercicio da linguagem, e a 25 obediéncia a estas ou Aquelas recomendages peda- gégicas, o texto fica mais ou menos na dependéncia desse mecanismo, sem grandes possibilidades para a imaginacao. Mas haveré bem-aventurados que con- sigam, pela associacao feliz de pequenas e poucas Palavras, sugerir mundos de prazer espiritual e de alto exemplo que facam dessas modestas obras va- liosos exemplos de Literatura Infantil. O mesmo pode ocorrer com os chamados vros de texto”. Nao é de sua natureza serem mais do que obras “‘didaticas’’: redacdo literaria de uma comunicacio dentro de um programa determinado. Mas nem sempre é facil estabelecer nitidas dis- tingGes, nesse terreno, porquanto, por evolucao da Pedagogia, e tendo em vista, mente, tornar estilos e procurado temas que quase o transformam em livros de histérias maravilhosas. O que deixa a alguns desconfiados feicao de uma bola de gude... 26 O LIVRO QUE A CRIANCA PREFERE Uma simples questao de estilo poderia, a prin- cipio, parecer suficiente para a caracterizacfo dos livros infantis. Seriam livros simples, faceis, ao al- cance da crianga... Como se o mundo secreto da infancia fosse, na verdade, tao facil, tao simples... Mas um estilo a que corresponda também cer- to contetido... Fatos ao alcance da crianga, e dos quais decorram conseqiiéncias ou ensinamentos que © adulto julga interessante para ela. De modo que, em suma, o “‘livro infantil”, se bem que dirigido a crianga, é de invencdo e inten- Ao do adulto. Transmite os pontos de vista que este considera mais titeis 4 formacao de seus leito- res, E transmite-os na linguagem e no estilo que 0 adulto igualmente cré adequados a compreensio e ao gosto do seu piiblico. 29 Nessas condi¢6es, qualquer tema, de suficiente elevagao moral, exposto em forma singela e correta pode transformar-se num livro infantil. E € 0 que na maioria dos casos tem acontecido. Uma das complicacées iniciais é saber-se o que ha, de crianea, no adulto, para poder comunicar-se com a infancia, e o que ha de adulto, na crianca, para poder aceitar 0 que os adultos Ihe oferecem. Saber-se, também, se os adultos sempre tém razio, se, As vezes, no esto servindo a preconceitos, mais que & moral; se nao ha uma rotina, até na Pedagogia; se a crianca nao é mais arguta, e sobre- tudo mais poética do que geralmente se imagina.. Por isso, em lugar de se classificar julgar 0 livro infantil como habitualmente se faz, pelo crité- rio comum da opiniao dos adultos, mais acertado parece submeté-I0 ao uso — nfo estou dizendo a critica — da crianca, que, afinal, sendo a pessoa diretamente interessada por essa leitura, manifes- tar pela sua preferéncia, se ela a satisfaz ou nao. Pode até acontecer que a crianca, entre um livro escrito especialmente para ela e outro que 0 nao foi, venha a preferir 0 segundo. Tudo € mis- terioso, nesse reino que 0 homem comega a desco- nhecer desde que 0 comeca a abandonar. Quem pudesse crescer sem perder a memoria da infancia, sem esquecer a sensibilidade que teve, a claridade que cintilava dentro da sua ignorancia, € 0s seus embarques por essas auroras de aventuras que se abriam nas pAginas dos livros! Talvez a ciéncia pedagdgica nao diga tudo, se nio for animada por um sopro sentimental, que a aproxime do lirismo da vida quando apenas co- 30 mega; desse lirismo que os homens, com o correr do tempo, ou perdem, ou escondem, cautelosos envergonhados, como se 0 nosso destino nao fosse © sermos humanos, mas praticos. Pode-se chegar a determinar como seria um livro adequado As criangas. Seria um grande alivio obter-se tao sabia receita. Mas poderia acontecer que o leitor se desinteressasse por esse livro sob medida, trocando-o por outros, tidos por menos recomendaveis. O fato dea crianga tomar um livro nas maos, folhea-lo, passar os olhos por algumas paginas nao deve iludir ninguém. Ha mil artificios e mil oca- sides para a tentativa de captura desse dificil leitor. Sao 0s aniversarios, sfo as festas, so as capas co- loridas, so os titulos empolgantes, so as abun- dantes gravuras... Ah! tu, livro despretensioso, que, na sombra de uma prateleira, uma crianga livremente descobriu, pelo qual se encantou, e, sem figuras, sem extra- vagancias, esqueceu as horas, os companheiros, a merenda... tu, sim, é um livro infantil, e 0 teu prestigio sera, na verdade, imortal. Pois nao basta um pouco de atengio dada a uma leitura para revelar uma preferéncia ou uma aprovacao. E preciso que a crianga viva a sua in- fluéncia, fique carregando para sempre, através da vida, essa paisagem, essa mtisica, esse descobrimen- to, essa comunicacao.. SO nesses termos interessa falar de Literatura Infantil. O que a constitui 6 0 acervo de livros que, de século em século e de terra em terra, as crian- gas tém descoberto, tém preferido, tm incorpo- St rado ao seu mundo, fé izadas com seus heréis, suas aventuras, até seus habitos e sua linguager sua maneira de sonhar e suas glérias e derrotas. Nem ha que temer o livro improprio senao quando se apresenta como um potencial arrasador, difundido com veeméncia, e tio ajustado a época que 0 produz como se fosse o seu evangelho. Ainda neste caso, sé as boas, as grandes, as eternas lei- turas poderao atenuar ou corrigir 0 perigo a que se expée a crianca na desordem de um mundo com- pletamente abalado, e em que os homens vacilam até nas nogdes a seu proprio respeito. A Literatura ndo é, como tantos supdem, um passatempo. E uma nutric&o. A Critica, se tisse, e em relacao aos livros infantis, deveria dis- criminar as qualidades de formacao humana que apresentam 0s livros em condigdes de serem manu- seados pelas crianeas. Deixando sempre uma deter- minada margem para o mistério, para o que a in- fancia descobre pela genialidade da sua intuicAo. 32 PANORAMA DA LITERATURA INFANTIL Os livros que hoje constituem a ‘biblioteca classica’” das criangas foram selecionados por elas. Muitos nao traziam, inicialmente, esse destino; ou- tros, que o traziam, foram postos de lado, esqueci- dos. Ainda outros, envelheceram: serviam ao leitor de uma época, nao ao de todas as épocas. Faltava- Ihes eternidade. E, para a crianga, como para o adulto, a eternidade € um sonho inconfessado mas. vigilante, se no em termos divinos, pelo menos em humanos: reconhecer a continuidade do nosso des- tino na terra; sentir perpetuada esta interminavel familia humana, aconchego semelhante ao da enu- merag&o biblica, em que nos encontramos idénti- cos, desde sempre, para sempre, em nossas fraque- zas e virtudes. Hoje, vemos por toda parte as brilhantes cores dos livros infantis atraindo leitores que antecipada- 35, mente vibram com as hist6rias ainda ocultas por detras dessas vistosas figuras. Diriamos que tudo novo, que os livros infantis se multiplicaram imen- samente... Mas aos poucos vemos que muitas des- sas narrativas nos so ha muito familiares, apenas um pouco desfiguradas, as vezes, pela redactio ou a apresentacaio, Haverd narrativas novas. Inspiradas muito de perto noutras que conhecemos. Havera mais novas ainda, atuais e originais. Destas, a crianga escolheré as que v4o perdurar; as que se vao incorporar aquele tesouro que vem de longe. Outras, desaparecerao suavemente, depois de vive- rem seu precario momento, apesar de tantas cores, tantas ilustragées; as vezes, tanta propaganda, e até da animadora venda de algumas edigdes. Os livros que mais t¢m durado nao dispunham de tamanhos recursos de atraciio. Neles, era a his- toria, realmente, que seduzia — sem publicidade, sem cartonagens vistosas, sem os mil recursos tipo- grAficos que hoje solicitam adultos e criancas fasci- nando-os antes de se declararem, como um amor a primeira vista... Tudo isso so atragdes recentes. Livros assim, nem os que antigamente se distribuiam como pré- mios, € cujo luxo todo consistia em algumas gra- vuras, encadernacao de percalina, com discreto ara- besco, e as beiras das paginas douradas. Ainda no fim do século passado, como se pode yer na biblioteca familiar, dois autores disputavam a predilegao das criancas: Mme. de Ségur e Jilio Verne. Vinham de longe, contavam coisas delicio- sas: saldes diferentes, nomes desconhecidos, festas 36 inesqueciveis, viagens, ah! viagens verdadeiramente fabulosas. Como se tudo isso nao fosse suficiente, a esses livros encantados se acrescentavam as emogdes do dia de recebé-los: palanques floridos, encerramento de aulas, hinos civicos, nome na lista dos prémios, dedicatorias, aniversarios, mesas de doce, Natal, Toupa nova, maravilhosos sapatos transbordantes de presentes... Na sua evocagao dos dias escolares, no Ate- neu, Raul Pompéia citava, em 1888, alguns auto- Tes mais: o cénego Schmidt, Swift, e o redator das aventuras do Barao de Miinchhausen. Os livros de Histéria Sagrada misturavam seus milagres a essas narrativas humanas. Sobre as es- tampas cristés vemos curvar-se a cabeca de Rui Barbosa, ao lado de sua irmazinha, sentado 4 mesa da sala de jantar, nesse aconchego da familia bra- sileira ha cerca de cem anos... Vemos outros autores. Vemos, por exemplo, esse fantastico Alexandre Dumas, cujas obras Me- deiros ¢ Albuquerque, entre menino ¢ mogo, devo- rou todas, avidamente — to irresistivel era 0 po- der das aventuras desses mosqueteiros, das intrigas desses fidalgos, dos segredos dessas princesas, da etiqueta desses palacios... © século XIX, no Brasil, oferece ja um pa- norama variado de leituras infantis. Mas o mes- mo nao se pode dizer dos séculos anteriores. A inci- piente instrucéo dos tempos coloniais era impedi- mento natural ao uso de livros, principalmente dessa espécie. Pelo menos do seu uso generalizado. A leitura nao era uma conquista popular. 7 ___ Mas a Europa, pela mesma época, j4 possuia livros que s6 mais tarde viemos a conhecer. Uns, tinham sido escritos especialmente para certos lei- tores, e depois se divulgaram; outros, foram desde © principio pensados para todas as criangas. Assim, se La Fontaine deu a velhas fabulas a forma incom- paravel do livro destinado ao Delfim de Franca, os contos de Perrault ¢ os de Mme. d’Aulnoy foram recolhidos da tradic&’o popular como quem salva um tesouro para todas as criancas do mundo. Entre os séculos XVII e XVIII, j& tinham aparecido o Robinson Crusoé de Defoé ¢ as Via- gens de Gulliver, de Swift, que nao eram livros infantis, bem como as Aventuras do Bardo de Miinchhausen. E um outro livro fora escrito, cujo destino seria brilhar cerca de trés séculos, e exercer sua influéncia em mais de um povo: As aventuras de Telémaco, que Fénelon compusera para 0 du- que de Borgonha, segundo Delfim de Franga, neto de Luis XIV. Desses livros, e de outros mais temos noticias pelas préprias edicdes, pelos prefacios tao explica- tivos de seus autores, e por alguns leitores antigos, gue anotaram, com suas recordagées de infancia, as de suas primeiras leituras. Assim, ha cerca de dois séculos, o menino Goethe entretinha-se com colegdes de fabulas e mi- tologias; com as Metamorfoses de Ovidio; deli- ciava-se com as doces impressdes causadas pelas Aventuras de Telémaco, lia 0 Robinson Crusoé, percorria esses ‘‘restos da Idade Média’’, como diz 0 poeta, que sao o Eulenspiegel, Os quatro filhos de Haimdo, A bela Melusina, O Imperador Otaviano, 38 A bela Magalona, Fortunato — literatura que até hoje perdura (a chamada “literatura de cordel”” — por aparecer em pequenos cadernos, que se expdem & venda a cavalo em barbantes estendidos, ge- ralmente a porta de engraxates), sempre tao apre- ciada pelo povo, especialmente na provincia. A esses livros, acrescentava Goethe 0 Orbis Pictus, de Co- menius, enciclopédia ilustrada que vinha dos mea- dos do século XVII, e que era, de todos os livros citados, 0 tinico realizado com intengao educativa, e de autoria de um pedagogo famoso. ‘As Aventuras de Telémaco, a cujas doces im- pressées se refere Goethe, se bem que escritas por um prelado — ou por isso mesmo — sofreram, como se sabe, uma vasta campanha de difamacao. Nem por isso deixaram de exercer sua influéncia benéfica na formagao do gosto de seus inimeros Ieitores — pois bem se pode dizer que esse foi o livro classico de Ieitura infanto-juvenil até 0 século XIX, na Franca e até no estrangeiro. Um desses Ieitores, Renan, cujo estilo, por sua vez, iria in- fluenciar tao grande piblico, nao se furtou a decla- rar a fascinacio experimentada com o seu convivio: “Le “Télémaque” était le seul livre léger qui fat entre mes mains, et encore dans une édition ou ne se trouvait pas l’épisode d’Eucharis, si bien que je n’ai connu que plus tard ces deux ou trois adora- bles pages. Je ne voyais Vantiquité que par Télé- maque et Aristonotis. Je m’en réjouis. C’est la que j'ai appris Vart de peindre la nature par des traits ‘moraux. Jusqu’en 1865, je ne me suis figure Vile de Chio que par ce trois mots de Fénelon: “Vile de Chio, fortuné patrie d’Homeére. Ces trois mots, har- 39 monieux et rythmés, me semblaient une peinture accomplie, et, bien qu’Homere ne soit pas né a Chio, que peut-étre il ne soit né nulle part, ils me représentaient mieux la belle... ile grecque que tous les entassements de petits traits matériels’”.* Daqui e dali, pelo passado, vamos encontran- do noticias de outras leituras. As de Hans Christian Andersen, por exemplo, 0 adoravel escritor que de- veria ser, por sua vez, um dos mais queridos auto- res infantis. Com que amor se referia ele 4 pobre mas PX infancia que lhe tocou viver! Freqiien- temente, o pai lia, de noite, em voz alta, trechos da Biblia, para a familia. Mas lia, também, trechos de La Fontaine, de Holberg ou das Mil e uma noi- tes. Um dia, também, o menino, gracas a umas vizinhas, veio a ter noticia de Shakespeare. Grande acontecimento, na verdade. O gosto pelo teatro, que possuia por natureza, pois desde muito cedo se ocupara de teatro de bonecos, kespeare e a linguagem da Bil gundo ele proprio conta — uma das suas pri tragédias — composi¢4o infantil de grandes ras- gos... iro leve que tive em mios ¢ ainda ‘numa edigdo na qual nilo havia o episédio de Eucharis, de forma que 86 conheci mais tarde estas duas ou trés paginas adordveis. Eu 6 via 4 antigiidade através de Telémaco e Aristonols. Eu me encantava. Foi ali que aprendi a arte de pintar a natureza, através dos tragos ‘morais. Até 1865, s6 imaginava a ilha de Chio através destas tres alavras de Fénelon: A ilha de Chio, pé ‘és palavras, Nao é sem interesse esta informacaio de An- dersen, sobre a sua segunda peca teatral: desejando pér em cena um rei, nao sabia como fazé-lo falar, Pois, na sua opinido, os reis deviam ter uma lin- guagem propria, talvez um idioma especial... Nem compreendia que Shakespeare n&io houvesse pensa- do nisso... Indagou dos conhecidos. Mas ninguém, entre os que interrogava — boa gente da aldeia — jamais ouvira falar um rei... Ento, com a ajuda de um dicionério poliglético, organizou Andersen fra- ses compostas de palavras dinamarquesas, inglesas, francesas, alemas — antecipacao do volapuque e do esperanto... — Guten Morgen, mon pere, har De Gods sleeping? (Bis uma crianga em plena liberdade de sonho!) ; é Por essa mesma época, Lincoln, menino, lia com profundo interesse uma Vida de Washing- ton, e Augustin Thierry, inspirado numa pagina de Chateaubriand, comecava a sentir sua vocagao pelos estudos histéricos... Curiosas, essas antigas leituras! Curiosas, essas antigas criangas! Mme. Roland, embebida nas Vi- das ilustres, de Plutarco; Rousseatt, entusiasmado com os episédios romanescos de L*Asirée, 0 livro de Honoré d’Urfé, que foi a grande moda do sé- culo XVII, e do qual dizia também La Fontaine: “Etant petit garcon, je lisais son roman, Et je le lis encore, ayant la barbe grise. ® "Sendo menino, lia seu romance, E ainda o \do a barba grisalha." (N. da E.) 41 Eis, em duas linhas do poeta, a definigaio de um livro que servia 4 vida toda de um homem da- quele tempo, da infancia a velhice. No passado, € comum verem-se livros usados indistintamente pelos adultos e pelas criancas. Co- mo Goethe, ¢ apesar da distancia de dois séculos, é Ovidio um dos primeiros autores lidos por Mon- taigne. Vale a pena ouvir essa voz antiga, contan- do-nos suas primeiras experiéncias: “Le premier goust que j’eus aux livres, il me veint du plaisir des fables de la Metamorphose d’Ovide: car environ l’aage de 7 ou 8 ans, je me desrobois de tout autre plaisir pour les lire; d’au- tant que cette langue estoit la mienne maternelle, et que c’estoit le plus aysé livre que je cogneusse, et le plus accomodeé @ la foiblesse de mon aage, @ cause de la matiére: car des Lancelot du Lac, des Amadis, des Huons de Bordeaux, et tels fatras de livres @ quoy Uenfance s’amuse, je n'en cognoissoys pas seulement le nom ny ne foys encores le corps...’* Pela confiss&o, verifica-se que os meninos con- temporaneos de Montaigne liam Lancelote do La- g0, 0 Amadis ¢ outros romances de cavalaria, tao divulgados, alias, anteriormente que, para ridicula- ‘© “Meu primeiro gosto pelos livros me veio do prazer das fabulas de Metamorfose de Ovidio: pois, mais ou menos entre meus sete ¢ ito anos, renunciava a todos os outros prazeres para Iélas; prineipal- ‘mente porque sua lingua era minha lingua materna e porque era o livro mais fécil que eu conhecia e o mais conveniente a fragilidade de minha idade por causa de seu assunto: pois dos Lancelotes do Lago, ddos Amadis, dos Huons de Bordeaux e de similares amontoados de livros que divertem a infincia, eu as vezes nao conhecia nem o nome, nem o texto..."(N, daE.) 2 rizé-los e combaté-los, Cervantes teria de escrever 0 imortal D. Quixote... : Transpondo-se a data da invengao da impren- sa, chega-se A Idade Média, aos copistas, aos livros manuscritos, & cultura limitada a um certo ntimero de privilegiados. Epoca das grandes complicacdes de historias vindas de toda parte: cruzados, viajan- tes, mercadores, filésofos, monges recolhem lendas piedosas, proezas militares, ensinamentos morais, aventuras estranhas, casos curiosos ¢ engracados ocorridos em lugares exéticos. Recolhem-nas na meméria ou por escrito. E da Pérsia, do Egito, da India, da Arabia caminham para longe e espalham- se pelos quatro cantos do mundo narrativas que se encontram com as de outros povos, que se reco- nhecem, as vezes, em suas semelhancas, comple- tam-se, acrescentam-se, confundem-se, refundem- se e continuam, interminavelmente, a circular... Em albergues, conventos, pousos, caravancaras, as horas de descanso enriquecem-se de conversas que arrastam a experiéncia do mundo e a sabedoria dos povos, sob a forma dessas composi¢Ses orais, tra- dicionalmente repetidas, e ouvidas sempre com en- canto e convicgao, 4B DA LITERATURA ORAL A ESCRITA © oficio de contar historias é remoto. Em to- das as partes do mundo o encontramos: ja os pro- fetas o mencionam. E por ele se perpetua a lite- ratura oral, comunicando de individuo a individuo de povo a povo o que os homens, através das idades, tém selecionado da sua experiéncia como mais indispensavel vida. Porque essa literatura primitiva comeca por ser utilitaria. A principio, utiliza a propria palavra co- mo instrumento magico. Serve-se dela como ele- mento do ritual, compelindo a Natureza, por or- dens ou siplicas, louvores ou encantagGes, a conce- der-Ihe o que mais importa, segundo as circunstn- cias, ao bem-estar humano. O valor estético vem acrescentar-se, depois, como acess6rio ao primeiro valor, de interesse ime- diato. Pedir, ordenar, suplicar, louvar — é 0 essen- 47 cial. Saber fazé-lo concorre para favorecer o bene- ficio. E implica, também, uma especializagio. Es- colhem-se os mais aptos para 0 oficio, como quem diz: uma selecao profissional. A boa meméria, o talento interpretativo, o inventivo — a imagina- ¢40, a mimica, a voz, toda uma arte de representar — a capacidade de utilizar oportunamente o reper- torio fazem dos contadores de histérias, ainda hoje, personagens indispensaveis a determinados ambientes. Basta ver, infelizmente, 0 éxito social dos grandes contadores de anedotas... Mas, na verdade, quando se pensa nessas mo- numentais coledes das Mil e uma noites, do Pantchatantra, € muitas outras, que salvaram do esquecimento lendas, historias, fabulas, cangdes, adivinhagdes, provérbios... ndo se pode deixar de sentir uma profunda admirac&io por esses narrado- res anénimos que com a disciplina da sua mem6- ria e da sua palavra salvaram do esquecimento uma boa parte da educacao da humanidade. Um dia, 0 Ocidente procurou repetir essa li- 40, por escrito: Charles Perrault, Mme. d’Aulnoy, 0s irmaos Grimm e outros coligiram narrativas que encontraram ainda sob a forma oral, entre a gente do povo, para que perdurassem escritas, quando 0 liltimo narrador houvesse desaparecido. Nao hé quem nao possua, entre suas aquisi- des da infancia, a riqueza das tradigdes, recebidas por via oral, Elas precederam os livros, ¢ muitas vyezes os substituiram. Em certos casos, elas mes- mas foram o conteitdo desses livros. (_ O negro na sua choga, o indio na sua aldeia, 0 (lapio metido no gelo, o principe em seu palacio, 0 8 camponés a sua mesa, o homem da cidade em sua casa, aqui, ali, por toda parte, desde que 0 mundo é mundo, est4o contando uns aos outros 0 que ou- viram contar, o que lhes vém de longe, o que ser- viu a seus antepassados, 0 que vai servir a seus netos, nesta marcha da vida. Conta-se e ouve-se para satisfazer essa intima sede de conhecimento e instruc&o que € propria da natureza humana. Enquanto se vai contando, pas- sam os tempos do inverno, passam as doengas e as catdstrofes — como nos contos do Decameron — chegam as imagens do sonho — como quando as criangas docemente descaem adormecidas. O gosto de contar é idéntico ao de escrever — ¢ os primeiros narradores so os antepassados and- nimos de todos os escritores. O gosto de ouvir € como 0 gosto de ler. Assim, as bibliotecas, antes de serem estas infinitas estantes, com as vozes presas dentro dos livros, foram vivas e humanas, rumoro- sas, com gestos, cangdes, dancas entremeadas as narrativas. ‘As conquistas da imprensa n&o inutilizaram por completo o oficio de narrador. Por toda parte ele se mantém, e a cada instante reaparece, por discreta que seja a sua atuagao. Antes de todos os livros, ele continua presente nas manifestagdes in- cansveis da literatura tradicional: na cangao de betgo que a mae murmura para seu filho; nas his- t6rias que maes, av6s, criadas, aos pequenos ouvin- tes transmitem; nas falas dos jogos, nas parlendas, nas cantigas e adivinhas com que as proprias crian- cas se entretém umas com as outras, muito antes da aprendizagem da leitura, 49 Por isso, quando ainda nao havia bibliotecas is, ndo era to grande e sensivel a sua falta; 0 io humano as substituia. Tempos em que a familia, aconchegada, criava um ambiente favoré- vel 4 formaco da crianca. O livro vem suprir essas auséncias. Tudo quan- to se aprendia por ouvir contar, hoje se aprende pela leitura, E, examinando-se boa parte dos livros inda os melhores — que as criancas utilizam, ai encontramos as histérias da carochinha que perten- cem ao tesouro geral da humanidade: as Mil e uma tes, as grandes narrativas que embalaram a an- tigiiidade, como essa do Marinheiro Simbad — os contos que Perrault, Mme. d’Aulnoy, os irmaos Grimm recolheram, historias vindas de outras cole- Ges, fragmentos de epopéias — tudo se comprime nesses livros, aproximando tempos e paises, permi- tindo 0 convivio unanime dos povos, em poucos volumes... ANTES DO LIVRO INFANTIL A Literatura Tradicional , j4 0 dissemos, niti- damente utilitéria. Por um lado, valendo-se do po- der magico da palavra, dirige-se as forcas da natu- reza, aos poderes dispensadores de beneficios ma- teriais, para que a vida do homem seja mais pros- pera ou mais feliz. Por outro lado, utilizando o poder comunicativo e sugestivo da palavra, procura transmitir a experiéncia ja vivida, e que encerra, embora de modo empirico, nogées do mundo e de seus diversos problemas, numa sintese da vida reali- zada pelos que a observaram de mais perto, € a custa propria. Os géneros literdrios surgem dessas primeiras provas, afeicoando-se ja a fluéncia das narrativas, ao ritmo do drama, matizando-se em lenda, resu- 53 mindo-se no breve exemplo do Provérbio, gerando todas as outras espécies literarias, Até as formas liricas se ressentem desse utilita- tismo primitivo: nascem as cangdes para suaviza- rem certos trabalhos; os acalantos buscam evitar mas influéncias ou impedir que a crianca se extra- vie no seu sono; as cangdes de amor pressupdem, quase sempre, uma ac&o de magia simpatica; as can- ges dancadas freqiientemente so de tema encanta- trio, e cardter ritualistico. Se considerarmos que essa literatura, conti- nuando a evoluir, conservou, no entanto, suas re- minisc8ncias, especialmente nas maos das criangas — quando os adultos passaram a contempla-las co- mo ridiculas supersti¢des, praticas ineficazes, habi- tos desnecessdrios, A medida que a ciéncia, trazen- do-Ihes novas luzes, Ihes indicava outro comporta- mento — veremos que ha um vasto contetido de experiéncia humana nessas tradicdes infantis dis- Persas pelo mundo. E dela se nutria a crianca, antes do livro, rece- bendo-a como um alimento natural nos primeiros anos da vida, Nao se pode evocar uma infancia de outrora, sem a sentir nessa atmosfera de ensinamentos tra. dicionais. Quando, num livro relativamente recen- te, Klaus Mann procura desenhar a vida de Ale- xandre, o Grande, imagina-o entre as historias ma- ravilhosas, as historias mitol6gicas que lhe conta- tia a ama: “‘du ceps de vigne en or couvert de grap- pes d’émeraude, du torret doré et de la source ot naissait le soleil, de toutes sortes d’aventures, de 54 farses et de folies qu’ elle prétait aux dieux infe- rieurs et moyens...’" v1 Quanto a Olimpias, mie de Alexandre, “il lui fallait toujours redire’histoire d’Orphée, que dechi- rrerent les Ménades...’"** E, atras da historia de Or- feu, viriam as de Osiris e as de Tamuz e as de Adonis... — ou seja, as tradicdes, as lendas da Gré- cia, do Egito e da Babil6nia. pre E que nao se pode pensar numa infancia a co- mecar logo com gramatica e ret6rica: narrativas orais cercam a crianca da Antigiiidade, como as de hoje. Mitos, fabulas, lendas, teogonias, aventuras, poesia, teatro, festas populares, jogos, representa- Ges varias... — tudo isso ocupa, no passado, o lugar que hoje concedemos ao livro infantil. Quase se lamenta menos a crianca de outrora, sem leituras especializadas, que a de hoje, sem os contadores de historias e os espetaculos de entio... ‘A Idade Média aparece como a grande época da difusao das narrativas tradicionais. E quando a Historia passa a hist6ria: os herdis das batalhas bri- Iham com luzes novas — sfio quase heréis imagi- narios... Grécia, Roma, Bretanha, Franca afluem como grandes temas das cangdes de gesta: Alexan- dre, Carlos Magno, Roldao, o Rei Artur e 0s Cava- ieiros da Tavola Redonda multiplicam suas aven- Vides de videira de ouro, cobertas de uvas de esmeralda, tor rentes douradas e fontes onde nascia 0 sol, toda espécie de aventur de farsas e loucuras que ela atribuia aos deuses inferiores e médios. (N.daE.) #¢ “Ela sempre precisava contar novamente a hist6ria de Orfeu ‘que foi despedacado pelas Ménades.”" (N. da E.) turas, em sucessivas transformag6es, chegam até nos sob a forma de literatura de cordel — que im- Porta? — depois de terem sido, na Europa Ociden- tal, como as figuras do Maabarata e do Ramaia- na, na India, como as Sagas dos finlandeses, e as Bilinas dos russos... Dessa poderosa fonte, derivariam os infinitos “romances de cavalaria”’ de que 0 D. Quixote veio @ ser sdtira, e de que Cervantes enumera uma boa lista, logo nos primeiros capitulos. Essa € também a grande época dos hagiolé- gios, das lendas de santos, dos milagres que, sob forma narrativa ou dramatica, irradiariam pelos Povos a doutrina crista. Do valor dessa literatura, primitivamente oral, fala-nos o interesse dos copistas, a servigo dos no. bres ou das instituicées religiosas e culturais. O contetido moral de tais historias tornava-se instru- mento de educac&o, como se pode ver claramente da apresentagao de algumas dessas obras. © Hitopadexa, que, embora constituido por material muito mais antigo, tem um dos seus mais velhos, se nao o mais velho manuscrito datado de 1373, diz: “Porque 0 ornato impresso em um vaso novo de barro nao se pode apagar, por isso ensina- Se neste livro a moral aos meninos pelo disfarce do conto.” O EXEMPLO MORAL ae ii. = = Através dos séculos repercutira essa idéia do ensinamento Atil sob o adorno ameno. ‘A transformaeao da literatura tradicional oral em literatura escrita pode ser apreciada por exem- plos esparsos: o Infante D. Juan Manuel, sobrinho de Alfonso X, 0 Sabio, ¢ que se presume ter falecido em 1349, j4 deixara uma obra notavel. “El libro del Conde o Libro de los Ejemplos del Conde Lucanor y de Patronio’”’, obra que representa, na Europa Ocidental, papel id@ntico ao do Hitopadexa. Da sua colecao de cingiienta e dois contos, varios sAo comuns a diferentes povos e 0 encadeamento é ana- logo, no s6 ao Hitopadexa, mas a outras obras orientais, como as Mil e uma noites ¢ os En- tretenimentos de Nagan Tantrai. ‘A finalidade do livro de D. Juan Manuel & ‘educativa. Ele visa salvar os homens, contando-lhes 59 essas historias, que s&io exemplos morais para forta- Iecimento da alma. O compilador confia nas suas hist6rias. Nao ha problema humano que nao en- contre solucdo em alguma delas. Assim o explica no prefacio: “Este libro lo hizo Don Juan, hijo del muy noble infante Don Manuel, deseando que los hombres hiciesen en este mundo tales obras que les serviesen em provecho de las honras, de las hacien- das y de sus estados, y estuviesen més allegados al camino por el que pudiesen salvar las almas. Y puso en él los ejemplos que supo de mayor provecho en las cosas que acaecieron, para que los hombres uedan hacer esto que dicho queda. Y seré mara- villa si de cualquier cosa que acaezca a cualquier hombre, no hallaré en este libro su semejante que acaecié a otro.”* Vé-se a Literatura Tradicional em plena agao. Apenas reduzida, da forma oral, que Ihe é prépria, a escrita. E certo que destinada a homens, nao a criangas. Mas, no tempo de D. Juan Manuel, nao se chegara a discernir entre 0 homem grande € pe- queno; essa sutileza aparece muito mais tarde e, se nao pecamos contra a Pedagogia, tende a desapa- Tecer outra vez, nestes duros tempos em que dificil- mente se distingue a crianca do adulto. * "Este liv foi feito por Dom Juan, filho do muito nobre infante Dom Manuel, que desejava que os homens fizessem neste mundo obras tais que thes servissem em proveito das honras, dos bens ¢ de seus estados ¢ estivessem mais proximos do caminho pelo qual pur

Você também pode gostar