CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no
Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 351 p.
A historiografia sobre a escravidão uma “escravidão”, mas muitas, já não
brasileira sofreu um deslocamento de há mais “liberdade” absoluta, mas foco na última década: tornaram-se formas de viver em liberdade, de di- mais frequentes os estudos acerca da reito e/ou de fato. Esse desdobramen- liberdade. A partir das abordagens já to é ainda mais importante se lembrar- clássicas baseadas nos estudos de al- mos que nos últimos anos a historio- forrias ou de ações de liberdade, flo- grafia sobre a escravidão e a liberda- resceram trabalhos que enfocam os de consolidou seu diálogo com áreas libertos e investigam suas chances de como a História do Trabalho, a His- mobilidade social e espacial, sua cul- tória do Direito, a nova História Po- tura política e lutas por direitos, a pre- lítica, a nova História Militar, a His- cariedade material de sua existência tória Agrária e a História Atlântica. e a instabilidade jurídica em que vi- As contribuições para esses campos viam e contra a qual lutavam. Os no- são consideráveis e, com esse inves- vos estudos sobre os libertos, seguin- timento no tema da liberdade, podem do os caminhos abertos pela historio- ser ainda mais importantes. grafia da escravidão, reafirmam o O mais recente livro de Sidney protagonismo e reconhecem o impac- Chalhoub, A força da escravidão, é to de suas ações individuais ou cole- um ensaio dedicado ao tema da pre- tivas e também – isso é mais recente cariedade da liberdade no Brasil oi- – estão mais atentos para as nuances tocentista. Seu argumento é desenvol- das limitações impostas a essas ações vido ao longo de dez capítulos e ba- e aos contextos em que as histórias seado, principalmente, na correspon- estudadas transcorrem. Já não há mais dência da chefia de polícia da Corte
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com diversas autoridades (de juízes “despropósito” pelas autoridades im- de paz e diretor da Casa de Correção periais, é tratado a sério pelo historia- ao ministro da Justiça), entre as dé- dor e ancora a construção do argu- cadas de 1830 e 1860, e nos livros de mento, assim descrito: “o assunto entrada da Casa de Detenção da Cor- desse livro é precisamente a demons- te, nas décadas de 1860 e 1870. Com- tração da confluência histórica des- plementam a análise os debates par- ses dois processos: os modos pelos lamentares, pareceres do Conselho de quais a força da escravidão tornava Estado, processos cíveis, relatórios precária a experiência da liberdade de ministeriais e a legislação, além da negros livres e pobres no Brasil oito- literatura de Machado de Assis. O centista e as lógicas sociais e políti- primeiro capítulo, intitulado “O gran- cas duma espécie de interdito à pró- de medo de 1852”, serve de apresen- pria representação dessa situação” (p. tação ao livro e parte da descrição 28). Em outras palavras, são duas vívida das revoltas ocorridas em vá- questões abordadas em paralelo: a rias localidades do interior do Nor- precariedade da liberdade e suas deste em reação à implantação do re- transformações ao longo do século gistro civil, no início de 1852. “Ou- XIX, e os problemas que a falta de vindo” os revoltosos através dos re- aplicação da lei de 1831 suscitou. latórios e da correspondência dos pre- Os próximos quatro capítulos tra- sidentes de província com o ministro tam, mais ou menos cronologicamen- da Justiça, Chalhoub apura que, en- te, da “intricada engenharia institucio- tre outros motivos para a revolta, era nal” montada para silenciar a respei- recorrente o receio de que o registro to da entrada de centenas de milha- civil servisse à escravização das pes- res de africanos contrabandeados en- soas livres pobres, na sua maioria pre- tre a proibição do tráfico, em 1830- tas e pardas. Nessa motivação o au- 31, e sua efetiva repressão, desenca- tor encontra uma conexão com a re- deada pela lei de 1850. No capítulo cente crise em torno da repressão ao 2, “Escravismo”, Chalhoub apresen- tráfico de escravos: em Santo Antão, ta as linhas gerais do problema: cer- Pernambuco, o juiz de Direito rela- ca de 42% do total estimado do co- tou que o povo estava convencido de mércio de escravos para o Brasil – que “as disposições do Decreto têm quatro milhões e oitocentas mil pes- por fim cativar seus filhos, visto que soas – teriam chegado na primeira os Ingleses não deixam mais entrar metade do século XIX, sendo que Africanos” (p. 20). Esse receio de uma parte significativa deles escravização que moveu os revolto- contrabandeados após as proibições sos, descartado como “fanatismo” ou do tráfico por tratado internacional ou
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por legislação nacional. Como se ar- Muniz Barreto e de José Bonifácio ticularam o processo de construção de Andrada e Silva para ilustrar os do Estado nacional brasileiro e tama- dilemas em torno da independência e nho contrabando? O problema, pro- para sugerir que o País teria vivido posto por Luiz Felipe de Alencastro uma “marcha interrompida da eman- em 1979, foi abordado do ponto de cipação escrava”, bloqueada pelo vista da história política e intelectual mergulho no “segundo escravismo” pelo recente livro de Tâmis Parron;1 (p. 43). no livro de Chalhoub, ele ganha um Nos capítulos seguintes, Chalhoub tratamento de história social. O con- se concentra em demonstrar a cons- texto que enquadra todo o argumen- trução da armação política que per- to é dado pela conjuntura econômica mitiu silenciar a respeito do direito à internacional: o aumento da deman- liberdade dos africanos trazidos por da por matérias primas para as nas- contrabando declarados livres no pri- centes indústrias e para a massifica- meiro artigo da lei de 1831, e fazer ção do consumo de produtos tropi- dela uma aplicação muito seletiva. cais (algodão, açúcar, café) gerou Em paralelo, fazendo extenso uso da uma expansão da escravidão de correspondência do chefe de polícia plantation. Em outras regiões das da Corte, descreve as artimanhas para Américas a escravidão foi gradual- a legalização do contrabando e a per- mente abolida, mas no sul dos Esta- seguição sistemática aos africanos li- dos Unidos, em Cuba e no Brasil ela bertos, acusados de sedução de escra- entrou em nova fase, o “segundo es- vos ou outros tipos de ameaça à or- cravismo”, tradução da expressão dem. O capítulo 3, “Sob o domínio cunhada por Dale Tomich.2 Em um da ilegalidade”, cobre o começo da panorama breve do período anterior década de 1830 e mostra que houve a 1831, Chalhoub apresenta as posi- inicialmente intenção de aplicar a lei ções de Domingos Alves Branco e que a polícia do Rio de Janeiro ado- tava na repressão do tráfico a experi- ência acumulada com o roubo de es- 1 Luiz Felipe de Alencastro, “La traite cravos. A atribuição de responsabili- négrière et l’unité nationale brésilienne”, dades pela falta de aplicação da lei Revue Française d’Histoire d’Outre-Mer, tomo 66, n. 244-45 (1979), pp. 395-417; recai, nesse capítulo, sobre o judiciá- e Tâmis Parron, A política da escravidão rio e os agentes da polícia por rece- no império do Brasil (1826-1865), Rio de berem subornos dos traficantes e fa- Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 2 Dale W. Tomich, Through the Prism of zerem vistas grossas para os desem- Slavery: Labor, Capital, and World barques. Eusébio de Queirós, perso- Economy, Lanham: Rowman and nagem central do livro, a essa altura Littlefield, 2004.
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chefe de polícia da Corte, teria pleno O capítulo 5, “Em 1850, a preci- conhecimento da existência e do fun- são de calar sobre 1831”, revisita o cionamento do tráfico ilegal. contexto de passagem da lei Eusébio O capítulo 4, “Modos de silenci- de Queirós, desde a retomada do pro- ar e de não ver”, trata da tentativa de jeto Barbacena, em 1848. Acrescen- revogação da lei de 1831 pelo proje- ta ao já longo debate sobre esse con- to de lei proposto pelo Marquês de texto várias provas de que a lei de Barbacena ao Senado, em 1837, e de 1831 esteve no centro das preocupa- um contexto de “institucionalização” ções dos parlamentares, do Conselho da escravização ilegal dos africanos, de Estado e do gabinete no qual Eu- no final da década de 1830 e durante sébio de Queirós ocupava agora o a década de 1840. Sinais dessa polí- cargo de ministro da Justiça. A rejei- tica estão, segundo Chalhoub, na am- ção do debate público sobre a falta pliação do conceito de africano ladi- de aplicação da lei teria motivado no para incluir gente recém-chegada várias sessões secretas na Câmara e que falasse qualquer coisa de portu- no Senado. Segundo Chalhoub, o êxi- guês e passasse por importada antes to na repressão ao tráfico depois de da lei, e no afrouxamento dos critéri- 1850 se deveu à clara distinção feita os de prova da propriedade escrava e pelas autoridades imperiais entre os produção de papéis que davam apa- africanos de desembarques recentes, rência de legalidade à propriedade a serem apreendidos e emancipados, ilegal. O texto é pontilhado de evi- e aqueles encontrados em terra cuja dências quanto a apreensões de afri- data do desembarque não era regis- canos novos e casos de dúvidas so- trada. Sobre o direito à liberdade des- bre o estatuto de africanos ou criou- ses últimos, o governo se omitiu para los tidos por escravos fugidos. Na evitar confronto com os fazendeiros. chefatura de polícia da Corte, em A interpretação dos dados do meados da década de 1830, a presun- “Transatlantic Slave Trade Database” ção era de escravidão e o ônus da pro- usados para demonstrar o volume da va sobre a liberdade cabia à pessoa entrada de africanos nos anos subse- considerada escrava. Este seria o maior quentes a 1850, aproximadamente indício da existência de uma política 6.900 (p. 127), merece uma correção: de precarização da liberdade das pes- desses, pelo menos 5.000 foram apre- soas de origem africana, fossem liber- endidos e emancipados como africa- tas ou nascidas livres, em vigor até a nos livres e não acabaram ilegalmen- década de 1860, que Chalhoub asso- te escravizados. cia diretamente à conivência com o Mais dois capítulos completam o tráfico ilegal de africanos. panorama do silêncio acerca do direi-
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to à liberdade dos africanos trazidos ça a interpretação dos casos de sedu- por contrabando, agora na fase pós- ção de escravos como se estivessem 1850. Em “O que os escravos sabiam”, relacionados ao conhecimento do di- Chalhoub tenta apurar a extensão do reito à liberdade, mas não apresenta conhecimento que os escravos tinham qualquer evidência nesse sentido. do seu direito à liberdade. Suas fontes O capítulo 7, “O que os ingleses aqui são variadas: anais do Parlamen- viam”, visa expor o conhecimento que to, pareceres do Conselho de Estado, os funcionários da legação britânica correspondência da polícia da Corte. tinham do funcionamento da repres- O resultado é um capítulo frágil, em são ao tráfico de escravos. A partir das que há apenas um sujeito, o africano denúncias feitas por William Christie Brás, apreendido no início de 1853 sobre o tratamento dos africanos livres após o desembarque do Bracuí, que que ficaram sob a guarda do governo efetivamente declarou conhecer seu imperial e sem recorrer à extensa do- direito à liberdade com base na lei de cumentação britânica disponível, 1831.3 As outras evidências são refle- Chalhoub constrói um capítulo frag- xos do receio dos senhores, parlamen- mentado e impressionista. Nele, repe- tares e governantes. Algumas são sig- te a interpretação tão corrente na his- nificativas, mas caberia explorá-las toriografia de que eram praticamente para além do discurso.4 Chalhoub for- escravos. Aborda também outro tema da pressão britânica: a defesa da liber- 3 dade dos africanos ilegalmente escra- A estratégia de Brás foi revelada por Martha Abreu, “O caso do Bracuí”, in vizados através da denúncia dos anún- Hebe M. Mattos de Castro e Eduardo cios de leilões que traziam suas ida- Schnoor (orgs.), Resgate: uma janela para des. O capítulo, no entanto, traz evi- o Oitocentos (Rio de Janeiro: TopBooks, 1995), pp. 165-97, e discutida no contex- dências contundentes de que a década to do conhecimento da lei de 1831 em de 1860 representou um período de Beatriz G. Mamigonian, “O direito de ser africano livre: os escravos e as interpreta- grande rebeldia dos africanos livres e ções da lei de 1831”, in Silvia H. Lara e de recurso ao judiciário por parte de Joseli M. N. Mendonça (orgs), Direitos e escravos e africanos livres em busca justiças no Brasil (Campinas: Editora da Unicamp, 2006), pp. 129-60, 142. do reconhecimento do direito à liber- 4 Uma discussão detalhada da apreensão do dade com base na importação ilegal. Piratinim encontra-se em Beatriz G. Sem dialogar com autores que se de- Mamigonian, “In the Name of Freedom: Slave Trade Abolition, the Law and the bruçaram sobre as ações de liberdade Brazilian Branch of the African Emigration baseadas na lei de 1831 abertas nas Scheme (Brazil-British West Indies, 1830s- 1850s), Slavery and Abolition, v. 30, n.1 décadas de 1860 a 1880, Chalhoub (2009), pp. 52-9, e a reação do governo e conclui peremptoriamente que o judi- do parlamento é relatada em Parron, A ciário cedeu à razão de Estado e política da escravidão, pp. 314-15.
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continuou a negar aos africanos da em 1868, o Conselho de Estado contrabandeados e seus descenden- expandiu a compreensão dos “liber- tes o seu direito à liberdade e a sus- tos” da lei para incluir todos os não- tentar a ficção de legalidade de boa escravos. As evidências arroladas parte da propriedade escrava existen- buscam demonstrar que houve um te no país (p. 208). deslizamento na política imperial da Na realidade, a vida dos senhores discriminação por estatuto para a dis- e do governo teria sido mais fácil se criminação por cor ou origem, refor- tivesse sido assim, mas não foi; pro- çando argumento defendido por Wla- va disso é o grande debate ocorrido a myra Albuquerque.6 respeito da validade da Lei de 1831 O capítulo 9, “Liberdade precá- em 1883.5 Mas o que os ingleses ti- ria”, é o que tem a argumentação mais nham a ver com isso? cuidadosa e estruturada em forma de Os dois capítulos que sustentam demonstração. Baseia-se novamente o argumento da precariedade da li- na correspondência da polícia da berdade são mais consistentes. Em Corte com diversas autoridades, ago- “Que se cumpra a lei”, Chalhoub de- ra complementada por um extenso senvolve o tema da aplicação do arti- levantamento de mais de oito mil en- go 7º da lei de 1831, que proibia o tradas de presos nos livros da Casa desembarque de libertos no país. Ele de Detenção, das décadas de 1860 e demonstra que Eusébio de Queirós 1870. Aqui, Sidney Chalhoub tem o formulou, já em 1834, uma interpre- nó do seu argumento sobre a precari- tação ampliada da lei, que incluía “to- edade da liberdade: filtrando apenas dos os estrangeiros de cor”, suposta- as prisões por “suspeita de ser escra- mente incluindo africanos, nascidos vo” ou “suspeita de estar fugido”, vê- livres ou não, e ainda pessoas de ori- se que, na década de 1860, os regis- gem africana de outras partes das tros do preso cujo estatuto estava em Américas. O capítulo acompanha vá- dúvida eram feitos nos livros de es- rios casos de pessoas que chegavam cravos e na década de 1870 passaram ao Rio e precisavam provar terem para os livros das pessoas livres. Dis- nascido livres, do contrário seriam so ele conclui que a presunção de li- consideradas libertas e expulsas. Ain- berdade agora se impunha sobre a política de considerar escravo qual- quer negro até que provasse seu di- 5 Mamigonian, “O direito de ser africano li- vre”, 151-55; Antônio Joaquim Macedo 6 Soares, “Doutrina: a lei de 1831 está em Wlamyra Ribeiro de Albuquerque, O jogo vigor” [1883], in Campanha jurídica pela da dissimulação: abolição e cidadania libertação dos escravos, 1867-1888, Rio negra no Brasil, São Paulo: Companhia de Janeiro: José Olympio, 1938, pp. 29-85. das Letras, 2009.
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reito à liberdade. No estilo que con- outro da fronteira do Rio Grande do sagrou o autor de Visões da Liberda- Sul com o Uruguai. Segundo o argu- de, o capítulo acompanha histórias de mento de Chalhoub, a liberdade teria pessoas que viveram no limbo entre se precarizado entre as décadas de a escravidão e a liberdade, por incer- 1830 e 1860 em virtude da “força da teza quanto ao seu estatuto. Uma escravidão” – a grande articulação grande seção é dedicada à política entre proprietários de terra e de es- imperial a respeito do leilão dos “bens cravos, parlamentares, magistrados, do evento” (termo oitocentista para conselheiros imperiais e ocupantes de propriedade sem dono), que acabou cargos do executivo imperial para si- por atingir centenas, talvez milhares lenciar sobre o direito à liberdade dos de pessoas presas como se fossem africanos trazidos por contrabando – escravas, mas nunca reclamadas por que, ao virar política de governo, lan- algum senhor. Na década de 1830, çou uma sombra sobre a vida de to- alguém que passasse seis meses na das as pessoas de origem africana e prisão sem que o senhor viesse bus- seus descendentes, fossem escravos, car era levado a leilão; um decreto libertos ou livres. de 1842 diminuía o prazo de espera A força da escravidão é um livro para sessenta dias. A política só mu- politicamente engajado. De escrita dou depois da lei de 1871, quando cuidadosa e leitura fluida, busca le- efetivamente quem não houvesse sido var a um público amplo o tema da matriculado como escravo deveria ser discriminação racial no Brasil oito- considerado livre. Sidney Chalhoub centista e assim contribuir para os pinça da documentação policial mui- debates acerca da política de identi- tos casos de erro de identificação de dade no Brasil contemporâneo. Essa gente que era liberta e não podia pro- é a força e fraqueza da obra, pois ao var sua liberdade e acabou sendo lei- mesmo tempo em que possui uma lin- loada como escrava (pp. 245-247). A guagem acessível e uma estrutura essa forma de precariedade da liber- ensaística, evita alguns debates recen- dade se somam outras, como a incer- tes da historiografia. teza do estatuto dos escravos alforri- Um dos eixos do livro, o tema da ados condicionalmente, frequente- aplicação seletiva da lei de 7 de no- mente ameaçados de reescravização; vembro de 1831, tem atraído a aten- roubo e escravização ilegal de crian- ção de um crescente número de his- ças de cor e de crioulos; e casos do toriadores. Argumento em ações de interior do Brasil que acabaram apa- liberdade, especialmente nas décadas recendo na Corte, um justamente de de 1870 e 1880, a invocação à lei de Pau d’Alho, Pernambuco, de 1865, e 1831 para provar escravização ilegal
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era o que havia de mais radical no temente, a investigação das implica- abolicionismo.7 Os testemunhos dos ções diplomáticas da escravização africanos ilegalmente escravizados ilegal dos africanos importados por contidos nessas ações serviram como contrabando ou de pessoas livres de evidência do funcionamento do tráfi- cor vindas de fora do Império (do co ilegal, contribuindo para um ramo Uruguai ou da Argentina, por exem- fértil da historiografia.8 Mais recen- plo) vem demonstrando outras moti- vações para a dinâmica política de repressão ao tráfico, em 1850, ou a 7 Elciene Azevedo, Orfeu de carapinha: a adoção da política de abolição gra- trajetória de Luiz Gama na imperial cida- dual, em 1871.9 O livro de Chalhoub de de São Paulo, Campinas: Editora da Unicamp, 1999; Elciene Azevedo, O direi- 9 to dos escravos: lutas jurídicas e abolici- Para os conflitos suscitados com o Uruguai onismo em São Paulo, Campinas: Editora na fronteira sul, ver Rafael Peter de Lima, da Unicamp, 2010; Argemiro Eloy Gurgel, “A nefanda pirataria de carne humana: “A lei de 7 de novembro de 1831 e as ações escravizações ilegais e relações políticas na cíveis de liberdade na cidade de Valença fronteira do Brasil meridional (1851-1868)” (1870-1888)” (Dissertação de Mestrado em (Dissertação de Mestrado em História, História, UFRJ, 2004); Maria Angélica UFRGS, 2010); Jonatas Marques Caratti, “O Zubarán, “Sepultados no silêncio: a lei de solo da liberdade: as trajetórias da preta 1831 e as ações de liberdade nas fronteiras Faustina e do pardo Anacleto pela fronteira meridionais do Brasil (1850-1880)”, Estu- rio-grandense no contexto das leis abolicio- dos Afro-Asiáticos, n. 29 (2009), pp. 281- nistas uruguaias (1842-1862)” (Dissertação 99; Ricardo T. C. Silva, “O resgate da lei de Mestrado em História, UNISINOS, de 7 de novembro de 1831 no contexto do 2010); Keila Grinberg, “Slavery, abolicionismo baiano”, Estudos Afro-Asi- Manumission and the Law in Nineteenth- áticos, n. 29 (2007), pp. 301-40. Century Brazil: Reflections on the Law of 8 Vinicius P. de Oliveira, De Manoel Congo 1831 and the ‘Principle of Libert’ on the a Manoel de Paula: um africano ladino em Southern Frontier of the Brazilian Empire”, terras meridionais, Porto Alegre: EST Edi- European Review of History / Revue ções, 2006; Ricardo Tadeu Caíres Silva, Européenne d’Histoire, n. 16 (2009), pp. “Memórias do tráfico ilegal de escravos nas 401-11; Keila Grinberg e Rachel da Silveira ações de liberdade: Bahia, 1885-1888”, Caé, “Escravidão, fronteira e relações diplo- Afro-Ásia, n. 35 (2007), pp. 37-82; João José máticas Brasil-Uruguai, 1840-1860”, Afri- Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus J. cana Studia, n. 14 (2010), pp. 275-85; para M. de Carvalho, O Alufá Rufino: tráfico, uma nova perspectiva dos conflitos diplo- escravidão e liberdade no Atlântico negro máticos com a Inglaterra acerca da escravi- (c. 1822-c. 1853), São Paulo: Companhia dão, ver Beatriz G. Mamigonian, “A Grã- das Letras, 2010; Marcus J. M. Carvalho, Bretanha, o Brasil e a liberdade dos africa- “A repressão ao tráfico atlântico de escra- nos na crise da abolição do tráfico atlântico vos e a disputa partidária nas províncias: os de escravos (1848-1851)”, in Daniel Aarão ataques aos desembarques em Pernambuco Reis e Denis Rolland (orgs.), Intelectuais durante o governo praieiro, 1845-1848”, e modernidades (Rio de Janeiro: Editora Tempo, n. 27 (2009), pp. 151-67; Paulo C. da FGV, 2010), pp. 13-29; Beatriz G. Oliveira de Jesus, “Notícias de um peque- Mamigonian, “O Estado nacional e a ins- no traficante ilegal na Bahia (1837-1855)”, tabilidade da propriedade escrava: a Lei trabalho apresentado no XXVI Simpósio de 1831 e a matrícula dos escravos de Nacional de História, São Paulo, 2011. 1872”, Almanack, n. 2 (2011), pp. 20-37.
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se insere, portanto, na historiografia naquele território, cabendo as diretri- que vem relendo os nexos entre a zes nacionais ao ministério da Justiça. manutenção da escravidão e a cons- O segundo é social: a amostragem de trução do Estado nacional brasileiro pessoas livres que caíam nas malhas no século XIX. da polícia da Corte por suspeita de A precariedade da liberdade é o serem escravas é distorcida em rela- tema central do livro. O termo “preca- ção ao conjunto e esconde uma signi- riedade” é adotado ao longo do livro ficativa camada de livres de cor e li- com o sentido de instabilidade jurídica bertos que não sofria tão de perto essa e não de condição de vida ou de traba- ameaça, por terem ascendido na hie- lho. Sidney Chalhoub procura sensibi- rarquia da sociedade escravista. Os lizar os leitores para os dramas nas his- mecanismos desta hierarquização en- tórias de escravização de pessoas livres tre as pessoas de origem africana, fun- e de reescravização de libertos. Servem damental para o entendimento dos cri- como denúncia da operação do Estado térios da polícia, só poderiam ser apre- em defesa dos interesses escravistas fre- endidos levando-se em conta outras quentemente à revelia da legislação e variáveis, que não foram consideradas. são também dolorosas demonstrações O cenário mais amplo de discus- de discriminação correntes na socieda- são da liberdade das pessoas livres de brasileira oitocentista. pobres abre-se para outra precarieda- O leitor familiarizado com os te- de: a das suas condições de vida e tra- mas oitocentistas observará algumas balho, e coloca os sujeitos de origem lacunas no argumento. Ao abordar a africana descritos no livro entre ou- questão da liberdade, Chalhoub optou tros grupos da população livre, como por um recorte quase cirúrgico, próxi- índios, soldados, marinheiros, viúvas, mo da fronteira com a escravidão: de- crianças menores etc.10 Ao evitar si- talhar o funcionamento dos mecanis- tuar a precariedade jurídica de que mos de (re)escravização de pessoas trata no livro no universo maior das livres de origem africana. A documen- experiências na liberdade, Chalhoub tação de polícia da Corte, espinha deixou de conversar com os inova- dorsal para o argumento do autor, im- dores trabalhos recentes acerca da põe certos limites à generalização. O população livre pobre e suas aspira- primeiro é geográfico: a polícia da Corte velava sobre a maior cidade es- 10 cravista das Américas e o maior porto Para um primeiro tratamento da precarie- dade da liberdade nesse sentido, ver Hen- do tráfico ilegal do Atlântico, mas ti- rique Espada Lima, “Sob o domínio da nha atribuições específicas relaciona- precariedade: escravidão e os significados das à manutenção da ordem apenas da liberdade de trabalho no século XIX”, Topoi, v. 6, n.11 (2005), pp. 289-325.
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ções de dignidade, respeitabilidade nal do “segundo escravismo”. Ora, por mobilidade social ascendente e apa- um lado, haveria que discutir os meca- gamento da cor.11 O tema da cidada- nismos da aplicação de tal política em nia, tão importante para as pessoas regiões do país onde não houve a tal livres de cor no Oitocentos, e chave expansão da agricultura exportadora. para a compreensão da política de Por outro, resta a pergunta: se o cha- restrição da mobilidade social e físi- mado “segundo escravismo” está asso- ca dos africanos, está surpreendente- ciado à montagem do esquema de de- mente ausente do livro.12 fesa da escravização ilegal, o que ex- Chalhoub assume – sem o dizer – plica a desmontagem do esquema? que a política conservadora das déca- A falta de aplicação da lei de 1831 das de 1830 a 1860 é a tradução nacio- teve enorme impacto sobre as vidas dos africanos importados durante o período do tráfico ilegal e sobre os de 11 Peter M. Beattie, The Tribute of Blood: seus filhos e netos, é certo, mas não Army, Honor, Race, and Nation in Brazil explica totalmente a precariedade da 1864-1945, Durham: Duke University Press, 2001; Mônica Duarte Dantas (org.), Revol- liberdade no Brasil oitocentista, como ta, motins, revoluções: homens livres pobres Chalhoub dá a entender. Precarieda- no Brasil do século XIX (São Paulo: Ala- de, no sentido de instabilidade jurídi- meda/USP/CAPES, 2011); Roberto Guedes, Egressos do cativeiro: trabalho, família, ca, nos casos de escravização de pes- aliança e mobilidade Social (Porto Feliz, soas livres, de alforria condicional ou São Paulo, c.1798-c.1850), Rio de Janeiro: promessa de alforria em testamento, Mauad/FAPERJ, 2008; Zephyr L. Frank, Dutra’s World: Wealth and Family in não chegava a ser novidade do perío- Nineteenth Century Rio de Janeiro, Albu- do da centralização monárquica. Al- querque: University of New Mexico Press, 2004; Marcelo MacCord, Artífices da cida- guns casos de escravização de pesso- dania: mutualismo, educação e trabalho no as livres relatados por Marcus Carva- Recife oitocentista, Campinas: FAPESP/ lho e citados por Chalhoub remontam Editora da Unicamp, 2012. 12 Manuela Carneiro da Cunha, Negros, es- ao período anterior à lei de 1831.13 trangeiros: os escravos libertos e sua vol- Fernanda Domingos Pinheiro relata ta à África, São Paulo: Brasiliense, 1985; uma variedade de casos de reescravi- Hebe Maria Mattos, Das cores do silên- cio: os significados da liberdade no su- zação em Mariana no século XVIII.14 deste escravista, Brasil, século XIX, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998; Keila 13 Marcus J. M. Carvalho, Liberdade: roti- Grinberg, O fiador dos brasileiros: cida- nas e rupturas do escravismo, Recife, dania, escravidão e direito civil no tem- 1822-1850, Recife: Editora da UFPE, po de Antonio Pereira Rebouças, Rio de 1998, p. 242-44. Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; 14 Fernanda A. Domingos Pinheiro, “A pre- Gladys Sabina Ribeiro, A liberdade em cariedade da liberdade: experiências de construção: identidade nacional e confli- libertos em Mariana, século XVIII”, Anais tos antilusitanos no Primeiro Reinado, do 4º Encontro Escravidão e Liberdade no Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. Brasil Meridional, Curitiba, 2009.
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E antes mesmo de 1831, a proibição mate)”, em que Chalhoub invoca Me- do tráfico ao norte do Equador, em mórias Póstumas de Brás Cubas para 1815, tinha jogado na ilegalidade o demonstrar que o romance machadia- fluxo entre a Costa da Mina e a Bahia, no, publicado originalmente em 1880 gerando algumas dezenas de milhares e considerado obra-prima da literatu- de africanos escravizados ilegalmen- ra nacional, é construído sobre uma te e forçando, da parte dos senhores e homologia entre o tema do adultério autoridades baianas, um silenciamen- de Brás e Virgília e o problema do to a respeito do direito à liberdade. A contrabando de africanos e da pro- existência de diferentes mecanismos priedade escrava ilegal no Brasil de escravização de pessoas livres não imperial (p. 292). necessariamente relacionados com a precarização motivada pela conivên- Machado lidava com o conheci- cia com o tráfico ilegal pode explicar mento que o público tinha da ilegalida- o medo de escravização de pessoas li- de da escravidão que, como um caso de vres no interior do Nordeste em 1852, adultério, suscitava reações. Chalhoub região bem menos afetada pelo con- extrai de uma fala de Brás Cubas no trabando de africanos do que o interi- romance a reflexão que lhe serve de or das províncias do Rio, Minas ou São conclusão moral: Paulo. Outrossim, afeiçoei-me à contempla- Se a precariedade da liberdade ção da injustiça humana, inclinei-me não pode ser atribuída apenas à “for- a atenuá-la, a explicá-la, a classificá- ça da escravidão” construída durante la por partes, a entendê-la, não segun- a centralização conservadora, não do um padrão rígido, mas ao sabor podemos deixar de reconhecer que a das circunstâncias e lugares (cap. XI) (p. 296). escravização ilegal dos africanos tra- zidos por contrabando depois da proi- O personagem simboliza todos bição do tráfico é elemento fundante aqueles cientes da injustiça, mas de da história do Brasil, trouxe conse- fato tão enredados nela que incapazes quências que mal começamos a de qualquer movimento que não seja identificar e implica a todos os brasi- o da tentativa de compreensão. Talvez leiros. É esse o tom do capítulo que estejamos nós, como país, ensaiando fecha o livro, “Machado de Assis (re- ultrapassar esse estágio apenas agora. Beatriz Gallotti Mamigonian bgmamigo@gmail.com Universidade Federal de Santa Catarina