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Poemas completos de Alberto Caeiro

(Fernando Pessoa)

cepcionado, e decidiu estudar por conta própria, pas-


1. BIOGRAFIA E BIBLIOGRAFIA sando o tempo livre a ler os filósofos gregos, ale-
mães e os decadentistas franceses. Sua avó morreu
em agosto, deixando-lhe uma herança. Resolveu mon-
Fernando António Nogueira Pessoa nasceu em
tar uma tipografia (Empresa Íbis – Tipografia Edito-
Lisboa, aos 13 de junho de 1888, no Largo de S. Car-
ra – Oficinas a vapor) com uma parte do dinheiro,
los. Em 1893, morreu o pai, Joaquim Seabra Pessoa,
mas não chegou a realizar qualquer atividade. Traba-
vítima da tuberculose, que também levou seu irmão
lhou como correspondente comercial em línguas es-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Jorge em janeiro do ano seguinte. Essas perdas pare-


trangeiras durante toda a vida, pouco se preocupando
ce que transformam a infância do menino, causando-
com dinheiro e passando mesmo grandes apertos fi-
lhe uma profunda solidão e isolamento. Essa pode ter
nanceiros.
sido a razão de seu primeiro heterônimo, Chevalier
Em 1914, Fernando Pessoa teve o “primeiro encon-
de Pas, como confessou por carta, anos depois, a
tro” com seus heterônimos Alberto Caeiro, Ricardo Reis
Adolfo Casais Monteiro.
A mãe, d. Maria Magdalena Pinheiro Nogueira, e Álvaro de Campos, como confirmará alguns anos mais
casou-se em dezembro de 1895, por procuração, com tarde em carta para Adolfo Casais Monteiro.
o comandante João Miguel Rosa, nomeado cônsul Em 1915, preparou a primeira versão de seu livro
português em Durban, África do Sul. Fernando Pes- Antinous. Em março, saiu o primeiro número da re-
soa tinha apenas sete anos em 1896, quando viajou vista Orpheu, com colaborações importantes de Pes-
com a mãe para o estrangeiro. Em novembro do mes- soa. Em setembro, Mário de Sá-Carneiro voltou para
mo ano, nasceu a primeira filha do casal, Henrique- Paris e comunicou ao amigo por carta que não tinha
ta Madalena. Em 1898, nasceu Madalena dinheiro para o terceiro número da revista por causa
Henriqueta. Fernando Pessoa foi matriculado, em de suas dificuldades financeiras e dos problemas com
1899, na Durban High School, onde permaneceu por o pai. No ano seguinte, Mário de Sá-Carneiro suici-
três anos. Revelou-se um leitor assíduo de literatura dou-se.
inglesa. Foi nessa época que surgiu mais um heterô- Em 1916, surgiu a revista Exílio, com a qual Pes-
nimo: Alexander Search. Em 1900, nasceu o tercei- soa colaborou.
ro filho do casal, Luís Miguel. A solidão de Pessoa Em 1920, conheceu Ophélia Queiroz, no escritó-
intensificava-se com a atenção da mãe para os fi- rio de “Félix, Freitas e Valladas”. A partir daí passa-
lhos mais novos. ram a se corresponder e a namorar. Depois da morte
Em 1901, toda a família viajou para Lisboa, le- do padrasto, sua mãe e irmãos resolveram voltar para
vando o corpo de uma das irmãzinhas morta. Depois Lisboa, e o poeta passou a viver com a família. Em
foram encontrar-se com a família da mãe nos Açores. novembro, interrompeu o seu relacionamento com
Em junho todos regressaram para Durban, exceto ele, Ophélia com uma carta: Que isto de “outras afeições”
que voltou sozinho em setembro. No mesmo ano, foi e de “outros caminhos” é consigo, Ophelinha, e não
matriculado na Commercial School. comigo. O meu destino pertence a outra Lei, de cuja
Em novembro de 1903, completou seus estudos e existência a Ophelinha nem sabe, e está subordinado
fez exame de admissão para a universidade do Cabo cada vez mais à obediência a Mestres que não per-
da Boa Esperança. Apesar de ter obtido um resultado mitem nem perdoam.
medíocre, recebeu o prêmio Queen Victoria Memori- Em 1921, Fernando Pessoa fundou a editora Oli-
al Prize pelo melhor ensaio de estilo inglês. Voltou à sipo, onde publicou seus poemas English poems I,
High School. English poems II, English poems III, e Invenção do
Em 1905, regressou definitivamente para Lisboa. dia claro, de Almada Negreiros.
Em 1907, desistiu da faculdade, pois se sentia de- Em 1924, dirigiu a revista Athena com Ruy Vaz.

1
Em março de 1927, José Régio publicou o primeiro transformada a forma para a casar como eu sou:
número da revista Presença. No terceiro número da Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
revista, ele reconheceu em Fernando Pessoa o mestre Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la
da nova geração, que passou a colaborar na revista a penso.
partir de junho. Só quero torná-la grande,
Em 1929, o relacionamento com Ophélia foi reto- ainda que para isso tenha de ser o meu corpo
mado. No mesmo ano, saiu o primeiro estudo sobre a e a (minha alma) a lenha desse fogo.
obra de Fernando Pessoa, com a publicação de Te-
Fernando Pessoa indiscutivelmente transformou
mas, do crítico e amigo João Gaspar Simões. A data
toda a sua vida em criação literária. Viveu através de
da última carta de Ophélia para Fernando Pessoa foi
seus poemas, de seus textos em prosa, de suas perso-
março de 1931, o que indicaria o provável rompimento
nagens. Afinal, essa foi sua missão e sua finalidade
do namoro nessa mesma época.
maior, o que acabou por torná-lo um poeta com a mes-
Os anos que se seguiram foram de dificuldades
ma dimensão de Luís Vaz de Camões. Considerado o
financeiras e de problemas de saúde para o poeta,
melhor poeta moderno português e um dos maiores da
acometido de crises de neurastenia. Fernando Pessoa língua, Fernando Pessoa é uma personalidade literária
chegou a ser preterido ao candidatar-se ao cargo de marcada por profunda complexidade. Sua produção
conservador-bibliotecário do Museu-Biblioteca Con- literária obriga-nos a separar o estudo de sua obra em
de de Castro Guimarães, em Cascais. Apesar da crise etapas que deverão ser seguidas lentamente para uma
psíquica, escreveu intensamente.

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melhor tentativa de compreensão de seus trabalhos.
Em janeiro de 1935, escreveu uma extensa carta ao Essa personalidade intrincada, para não dizer misteri-
amigo Adolfo Casais Monteiro, na qual procurou ex- osa, marcada tantas vezes por um paradoxismo inco-
plicar a gênese de seus heterônimos. Em novembro, mum, pode ser observada no trecho da análise ou
encontrou-se pela última vez com João Gaspar Simões autobiografia que ele fez de si mesmo:
e com Almada Negreiros. Poucos dias antes, o poeta
sofrera uma grave crise hepática que o fizera perder os Ideologia política: Considera que o sistema mo-
sentidos. Nessa ocasião, o médico avisou sobre o peri- nárquico seria o mais próprio para uma nação or-
go fatal de mais um cálice de aguardente. No dia 29 de ganicamente imperial como é Portugal. Considera,
novembro, Fernando Pessoa foi internado no Hospital ao mesmo tempo, a Monarquia completamente in-
viável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito
de S. Luís dos Franceses, tendo recebido o diagnóstico entre regimes votaria, embora com pena, pela Re-
de cólica hepática. No dia 30 de novembro de 1935, pública. Conservador do estilo inglês, isto é, liberal
faleceu o poeta, vítima de cirrose hepática. dentro do conservantismo, e absolutamente anti-
As obras de Fernando Pessoa já publicadas são: reacionário.
Posição iniciática:
Poesia: 35 Sonnets (1918); Antinous (1918); En- Posição patriótica: Partidário de um nacionalismo
glish poems I e (1921); English poems II (1921); En- místico, de onde seja abolida toda infiltração católi-
glish poems III (1921); Mensagem (1934); Poesias ca-romana, criando-se, se possível for, um sebastia-
de Fernando Pessoa (1942); Pessoa, Fernando (1944); nismo novo, que a substitua espiritualmente, se é
que no catolicismo português houve alguma vez es-
Poemas de Alberto Caeiro (1946); Odes de Ricardo piritualidade. Nacionalista que se guia por este lema:
Reis (1946); Poemas dramáticos (1952); Poesias iné- “Tudo pela Humanidade; nada contra a Nação.”
ditas de Fernando Pessoa — de 1930 a 1935 (1955); Posição social: Anticomunista e anti-socialista. O
Poesias inéditas de Fernando Pessoa — de 1919 a mais deduz-se do que vai dito acima.
Resumo destas últimas considerações: Ter sem-
1935 (1956); Quadras ao gosto popular de Fernando pre na memória o mártir Jacques de Molay, Grão-
Pessoa (1965); Novas poesias inéditas (1973); Poe- Mestre dos Templários, e combater, sempre e em
mas ingleses (1974); Obra poética (1986); O guar- toda a parte, os seus três assassinos — a Ignorân-
dador de rebanhos de Alberto Caeiro (1986); Primeiro cia, o Fanatismo e a Tirania.
Fausto (1986); Livro do desassossego por Bernardo Lisboa, 30 de março de 1933.

Soares (1982).
Uma leitura mesmo superficial desse texto indica
que politicamente Fernando Pessoa era incoerente.
Entretanto, nessa síntese autobiográfica, encontramos
2. INTRODUÇÃO também certas premissas que nos serão úteis para
entender na sua obra a vocação para um nacionalis-
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: mo místico, para o sebastianismo racional, como ele
“Navegar é preciso; viver não é preciso”. mesmo paradoxalmente classificava, por exemplo.
Quero para mim o espírito [d]esta frase, O primeiro aspecto para quem quiser entender

2
Fernando Pessoa, é partir sempre da premissa de que livros foram escritos em inglês. A única obra em por-
os estudos sobre a sua obra ainda não se completa- tuguês que viu publicada foi Mensagem (1934). As
ram; muito do que ele escreveu permanece ainda iné- demais, atribuídas a ele-mesmo (poesia ortônima),
dito: milhares de anotações entre poemas, textos em foram publicadas postumamente. Deve-se ressaltar
prosa, crítica literária etc, deixados por ele num baú ainda que, ao identificar-se com seus heterônimos,
(18.816 manuscritos, 3.948 datilografados, 29 cader- Fernando Pessoa acabava por projetar-se a si mesmo
nos de variados conteúdos) e que só foram abertos também como uma espécie de heterônimo, máscara
algumas décadas depois de sua morte a pedido dele. por sua vez de máscaras3, já que se escondia atrás
Além disso, não se estudou adequadamente boa par- das máscaras inventadas por ele próprio, ou seja, um
te da obra publicada até aqui. Deve-se ter em mente, heterônimo de si mesmo.
pois, que o mistério sobre sua produção artística con-
tinua e ainda permanecerá despertando nossa curio- A POESIA HETERÔNIMA
sidade por um bom tempo. O problema da heteronímia é, sem dúvida, um
Fernando Pessoa é um caso sui generis na litera- mistério instigante quando se estuda a obra de Fer-
tura mundial: não se contentou apenas em escrever nando Pessoa. Cada um dos heterônimos nada mais é
poemas, resolvendo também criar poetas, personagens do que entidade única, com personalidade e vida pró-
poéticas, personas (que significa as máscaras utiliza- prias, além de estilos e visões de mundo autônomas.
das no teatro grego), que mantiveram absoluta auto- Os heterônimos refletem, indiscutivelmente, uma
nomia de estilo, linguagem e temática em relação ao
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multiplicidade na unidade, já que se completam e se


autor Fernando Pessoa, o que não se deve confundir unem ao próprio criador, Fernando Pessoa.
com pseudônimos (nomes falsos com que um autor Assim, consideraremos como ponto de partida
assina a própria obra). Essas personagens-poetas de- apenas o fato de que Fernando Pessoa procurou mul-
nominam-se heterônimos (outros nomes). Assim, tiplicar-se através de outros eus (os heterônimos),
qualquer estudo de sua obra leva à necessária divisão para melhor sentir ou enxergar a realidade e a totali-
em duas etapas mínimas, que se multiplicarão como dade do mundo que o cercava:
veremos: primeiro analisar os poemas que o próprio
Fernando Pessoa escreveu e assinou, chamados mui- Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
to propriamente de poesia ortônima (próprio nome);
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
depois, os poemas que ele escreveu, mas foram assi- Despi-me, entreguei-me,
nados por seus heterônimos. Assim, se o Modernis- E há em cada canto da minha alma um altar a um deus
mo exigia a criação de novos mitos, Fernando Pessoa [diferente.
pareceu confirmar essa posição, pois foi um criador PESSOA, Fernando. “Passagem das Horas”.
de mitos: Desejo ser um criador de mitos, que é o Muitos foram os heterônimos ou semi-heterôni-
mistério mais alto que pode obrar alguém da huma- mos criados por Fernando Pessoa, tais como Cheva-
nidade1. lier de Pas (1894), Jean Seul, Alexander Search, A.
O fenômeno da heteronímia é, pois, um caso par- A. Crooss, L. Guerreiro, Vicente Guedes, C. Pache-
ticular de multiplicação ou desdobramentos de eus, co, Gervásio Guedes, António Mora (1930, filóso-
uma tentativa de o poeta multiplicar-se através de fo), Raphael Baldaia (filósofo), Charles Robert Anon,
outros indivíduos para multiplicar-se também em te- Jean Seul, Pero Botelho, Thomas Crosse. Entretanto,
mas, estilos e formas variadas. seus principais heterônimos foram Alberto Caeiro,
Uma outra maneira de explicar os motivos de sua Ricardo Reis e Álvaro de Campos, para os quais o
heteronímia foi apresentada pelo próprio Fernando autor criou uma biografia própria, obras com carac-
Pessoa: Com uma tal falta de literatura, como há hoje, terísticas bem definidas, estilo pessoal, personalida-
que pode um homem de sensibilidade fazer senão in- de e até mapas astrológicos para analisar a
ventar os seus amigos, ou, quando menos, os seus personalidade de cada um deles. Não podemos nos
companheiros de espírito?2 esquecer de que Pessoa foi também profundamente
ligado ao esoterismo, ao misticismo e a várias socie-
A POESIA ORTÔNIMA dades secretas. A esses heterônimos, pode-se acres-
Fernando Pessoa publicou poucos livros, como centar Bernardo Soares, a quem se atribui O Livro do
pôde ser observado em sua biografia. Os primeiros desassossego, publicado muito tempo depois da morte

1
Fernando Pessoa. Prosa.
2
Fernando Pessoa. Prosa.
3
SEABRA, José Augusto. O heterotexto pessoano. São Paulo: Perspectiva, 1988. p. 28.

3
do escritor, e que pode ser considerado como um semi- Na visão de Leyla Perrone-Moisés, Caeiro não é
heterônimo, já que projeta o próprio Fernando Pes- somente o mestre dos outros heterônimos e do ortô-
soa em estado de raciocínio e afetividade. Teresa Rita nimo, mas, primeiramente, o mestre aplicado em si
Lopes, estudiosa dos manuscritos e inéditos de Pes- mesmo. Em sua poesia, há um constante desdobra-
soa, cita a existência de 72 heterônimos distintos. mento dialógico: nela, um ‘mestre’ da constatação e
Massaud Moisés considera que os heterônimos são da sensação puras está sempre em debate com um
projeções arquetípicas do inconsciente (coletivo) de ‘discípulo’, que teima em reincidir na análise e na
Pessoa, e os arquétipos4 podem ser considerados he- abstração. Assim, ele estaria todo o tempo ensinan-
terônimos, imagens coletivas, “pessoas” que falam do-se a ser ele mesmo, Caeiro. Nesse caso, mestre e
de um “outro” no inconsciente de cada um.5 De uma discípulo são um só, o que revela o dialogismo6 não
outra maneira, podemos observar que ao criar os he- dialético, mas oximórico7.8
terônimos, Fernando Pessoa inventou outros seres que
materializaram sua poesia em diversidade e multipli- Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me
cidade. Essas criações parecem atender ao desejo do [ensinaram,
poeta de criar novos mitos, marcados agora por uma E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
modernidade indiscutível. Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
O objeto deste estudo é a poesia de Alberto Caei- Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
ro, mais especificamente os poemas que compõem o Mas um animal humano que a Natureza produziu.
livro Poesias completas de Alberto Caeiro.

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Alberto Caeiro nasceu no ano de 1889, em Lisboa, OBRA
onde faleceu, vítima de tuberculose, em 1915. Levou O guardador de rebanhos (1911-1912), O pastor
uma vida simples junto a uma tia velha, tia-avó, numa amoroso, Poemas inconjuntos (1913-1915).
quinta na região do Ribatejo. Viveu de pequenos ren-
dimentos deixados pelos pais, que morreram cedo. Sua
instrução foi rudimentar, só primária, e não teve pro-
fissão. Caeiro tinha estatura média, era louro, sem cor
3. ANÁLISE DA POESIA
e de olhos azuis. Escreveu quase toda a sua obra no DE ALBERTO CAEIRO
campo, exceto uma parte dos Poemas inconjuntos, ter-
minados em Lisboa, pouco antes da morte. Pode ser A poesia de Alberto Caeiro é marcada por uma
considerado o mestre de Álvaro de Campos, Ricardo simplicidade formal e vocabular extremas, pois é um
Reis e do próprio Fernando Pessoa: homem simples, um poeta da natureza, que enxerga
o mundo como um reflexo de si mesmo, ou seja, da
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um própria natureza e não do pensamento. Não é à toa
dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro — de in-
ventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e
que é chamado de “poeta camponês”. Sua poesia é
apresentar-lho, já me não lembro como, em qual- resultado do sensacionismo e não do pensamento, daí
quer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar a negação completa da metafísica por parte de Caei-
o poeta mas nada consegui. Num dia em que final- ro: Porque pensar é não compreender… Desse modo,
mente desistira — foi em 8 de Março de 1914 —
acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando um
resulta de sua obra um realismo sensorial que o faz
papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sem- negar qualquer metafísica. Caeiro retira os disfarces
pre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a para desvendar a realidade de todas as coisas. Apesar
fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não con- de ser contra o pensamento e favorável às sensações,
seguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e
nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O
é considerado um “poeta filósofo”, que, de forma
guardador de rebanhos. E o que se seguiu foi o apa- paradoxal, acabou criando uma antifilosofia, uma fi-
recimento de alguém em mim, a quem dei desde logo losofia da negação da própria filosofia:
o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo
da frase: aparecera em mim o meu mestre. Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
Carta a Adolfo Casais Monteiro. In: PESSOA, Fernando. Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Poesias de Fernando Pessoa. Mas porque a amo, e amo-a por isso,

4
Segundo C. G. Jung, os arquétipos são imagens psíquicas do inconsciente coletivo, que são patrimônio comum a toda a humanidade.
5
MOISÉS, Massaud. Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge. São Paulo: Cultrix/ Edusp, 1988. p. 104-105.
6
Arte de dialogar; figura que consiste em construir uma reflexão sob a forma de diálogo, com perguntas a que o próprio autor responde,
ou em reproduzir em diálogo as idéias e os sentimentos dos personagens.
7
Relativo a oxímoro, figura em que se combinam palavras de sentido oposto que parecem excluir-se mutuamente, mas que, no contexto,
reforçam a expressão.
8
MOISÉS, Leyla Perrone-.Aquém do eu, além do outro. 3. ed. rev. amp. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 198.

4
Porque quem ama nunca sabe o que ama Sou fácil de definir.
Nem sabe por que ama, nem o que é amar… Vi como um danado.
Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque
Alberto Caeiro propõe uma espécie de filosofia;
[nunca ceguei
porém, ao avesso dos sistemas filosóficos de nos-
Poemas inconjuntos. Op. cit., p. 237.
sa tradição, despreza a razão e o intelecto, des-
confia das explicações totalizantes. Promete, como
O paganismo é o centro das atenções de Caeiro.
as religiões, uma harmonia, uma união, a paz inte-
rior e a libertação. Caeiro consola como quem co- Ricardo Reis considera-o como o reconstrutor da es-
nhece o mal, por isso sua obra “é um repouso e um sência do paganismo; enquanto Álvaro de Campos
livramento, um refúgio, uma libertação”. dizia que ele não era pagão, mas o próprio paganis-
mo. Sem dúvida, ele rompe com quaisquer valores
Amar é a eterna inocência, ou sistemas religiosos, emocionais, filosóficos e até
E a única inocência não pensar… mesmo poéticos.
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 205.

Alberto Caeiro valoriza a objetividade, o que deter- Entretanto, seu paganismo “não representa uma
mina que não deseja aceitar nada para além da realidade fé, mas uma visão intelectual da verdade”. Nem fi-
losofia, nem religião, no sentido em que conhece-
imediata. O senso de objetividade, por outro lado, está mos uma e outra, a sabedoria de Caeiro está
diretamente ligado ao culto das sensações. […] o pen- próxima de ambas mas num caminho divergente,
sar transforma-se num correlato da visão, da audição, que Ricardo Reis define: “Por uma intuição sobre-
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do tato, do olfato e do gosto: “E os meus pensamentos humana como aquelas que fundam religiões porém
a que não assenta o título de religiosa, por isso que
são todos sensações./Penso com os olhos e com os ouvi- repugna toda a religião e toda a metafísica, este
dos/E com as mãos e os pés/E com o nariz e a boca”.9 homem escreveu [??] o mundo sem pensar nele e
Seus versos são livres e brancos, marcados pela criou um conceito do universo que não contém uma
oralidade, coloquialismo, objetividade e pelo emprego interpretação [?]”.10
de um vocabulário simples, limitado, e, por isso, mar- O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o
paganismo. O Ricardo Reis é um pagão, o Antônio
cado por repetições. Essa modernidade radical parece Mora é um pagão; o próprio Fernando Pessoa se-
pecar contra a disciplina pagã à qual aderiu desde mui- ria um pagão, se não fosse um novelo embrulhado
to cedo. Entretanto, não podia ser diferente, já que seu para o lado de dentro. Mas o Ricardo Reis é um
ser poético procura o primitivismo mais original, o que pagão por caráter, o Antônio Mora é um pagão por
inteligência, eu sou um pagão por revolta, isto é,
permite uma poesia que flui de maneira natural e es- por temperamento. Em Caeiro não havia explica-
pontânea, porém de maneira consciente e coerente, no ção para o paganismo; havia consubstanciação.
que diz respeito ao seu rigor intelectual: Poemas completos de Alberto Caeiro. Posfácio
de Álvaro de Campos.
XIV
Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me
4. ANTOLOGIA COMENTADA
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior
POEMAS COMPLETOS DE ALBERTO CAEIRO
Olho e comovo-me,
Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado, O guardador de rebanhos
E a minha poesia é natural como o levantar-se vento…
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 219. I
Eu nunca guardei rebanhos,
Sua aparente inocência e simplicidade em relação Mas é como se os guardasse.
ao mundo acabam por permitir um maior aprofunda- Minha alma é como um pastor,
mento na objetividade e na materialidade do univer- Conhece o vento e o sol
so que o cerca. A realidade só existe enquanto objeto E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
de uma experiência sensorial particular, daquilo que Toda a paz da Natureza sem gente
ele pode ver, desnudada de qualquer experiência trans- Vem sentar-se a meu lado.
cendental ou metafísica: Mas eu fico triste como um pôr-de-sol

9
GOMES, Álvaro Cardoso. Fernando Pessoa: As muitas águas de um rio. São Paulo: Pioneira/ Edusp, 1987. p.16.
10
Idem, p. 149.

5
Para a nossa imaginação, Comentário: O poema instaura os objetivos cen-
Quando esfria no fundo da planície trais da poesia de Alberto Caeiro: a simplicidade, o
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela. sensorialismo (é só porque sinto o que escrevo ao pôr
do sol). A presença da metalinguagem é outro recur-
Mas a minha tristeza é sossego so evidente no poema de abertura (Escrevo versos num
Porque é natural e justa papel que está no meu pensamento, / Sinto um caja-
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe do nas mãos / E vejo um recorte de mim). O verso
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso. Minha alma é como um pastor traduz a corporifica-
ção da alma como coisa, reforçando desde o primeiro
Como um ruído de chocalhos poema a valorização exclusiva da matéria e da capa-
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
cidade de sentir a natureza.
Só tenho pena de saber que eles são contentes, A visão materialista também está presente, no fi-
Porque, se o não soubesse, nal do poema, em sua integração com os objetos sim-
Em vez de serem contentes e tristes, ples do cotidiano, representativos de seu estado de
Seriam alegres e contentes.
paz com o mundo que o cerca e que deseja a seus
Pensar incomoda como andar à chuva leitores. Não é por acaso que Leyla Perrone-Moisés
Quando o vento cresce e parece que chove mais. observa nele uma visão de mundo marcada pela inte-
gração com a filosofia zen.
Não tenho ambições nem desejos

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Ser poeta não é uma ambição minha II
É a minha maneira de estar sozinho.
O meu olhar é nítido como um girassol.
E se desejo às vezes Tenho o costume de andar pelas estradas
Por imaginar, ser cordeirinho Olhando para a direita e para a esquerda,
(Ou ser o rebanho todo E de vez em quando olhando para trás…
Para andar espalhado por toda a encosta E o que vejo a cada momento
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo), É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
É só porque sinto o que escrevo ao pôr-do-sol, E eu sei dar por isso muito bem…
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz Sei ter o pasmo essencial
E corre um silêncio pela erva fora. Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Quando me sento a escrever versos Sinto-me nascido a cada momento
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos, Para a eterna novidade do Mundo…
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos Creio no mundo como num malmequer,
E vejo um recorte de mim Porque o vejo. Mas não penso nele
No cimo dum outeiro, Porque pensar é não compreender…
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias, O Mundo não se fez para pensarmos nele
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu (Pensar é estar doente dos olhos)
[rebanho, Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
E sorrindo vagamente como quem não compreende o
[que se diz Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
E quer fingir que compreende. Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Saúdo todos os que me lerem, Porque quem ama nunca sabe o que ama
Tirando-lhes o chapéu largo Nem sabe por que ama, nem o que é amar…
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro. Amar é a eterna inocência,
Saúdo-os e desejo-lhes sol, E a única inocência não pensar…
E chuva, quando a chuva é precisa, PESSOA, Fernando. Obra poética. O guardador de
E que as suas casas tenham rebanhos, de Alberto Caeiro. Rio de Janeiro:
Aguilar, 1977. p. 204-205.
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Comentário: O repúdio de Caeiro a qualquer ele-
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem mento metafísico está bem resumido no verso Porque
Que sou qualquer cousa natural — pensar é não compreender… O realismo sensorial ex-
Por exemplo, a árvore antiga pressa-se de forma evidente quando o poeta se recusa
À sombra da qual quando crianças a pensar no mundo e afirma que crê no mundo apenas
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
porque o vê (Porque o vejo. Mas não penso nele). O
Com a manga do bibe riscado. ser antimetafísico expressa sua repulsa à filosofia e
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 203-204. reafirma a crença única nos próprios sentidos: Eu não

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tenho filosofia: tenho sentidos… Vale ressaltar que a Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
visão é destacada por ser o mais objetivo dos sentidos, A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
como observa Álvaro Cardoso Gomes. A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
III
Que é a de não saber para que vivem
Ao entardecer, debruçado pela janela, Nem saber que o não sabem?
E sabendo de soslaio que há campos, em frente,
Leio até me arderem os olhos “Constituição íntima das cousas”…
O livro de Cesário Verde. “Sentido íntimo do Universo”…
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
Que pena que tenho dele! Ele era um camponês É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
Que andava preso em liberdade pela cidade. É como pensar em razões e fins
Mas o modo como olhava para as casas, Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados
E o modo como reparava nas ruas, [das árvores
E a maneira como dava pelas cousas, Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
É o de quem olha para as árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai Pensar no sentido íntimo das cousas
[andando É acrescentado, como pensar na saúde
E anda a reparar nas flores que há pelos campos… Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas


Por isso ele tinha aquela grande tristeza
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Que ele nunca disse bem que tinha,


Mas andava na cidade como quem anda no campo
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
E põe plantas em jarros…
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
O guardador de rebanhos.Op. cit., p. 205. Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Comentário: Esse poema traduz uma aproxima- Dizendo-me, Aqui estou!
ção entre o sensorialismo de Caeiro e o de Cesário
Verde. Entretanto, em Cesário o mundo citadino é (Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
sentido de maneira atormentada, pelo conflito entre
Não compreende quem fala delas
o mundo burguês e o proletário. Caeiro parece perce- Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
ber essa “doença”, que pode ser traduzida por triste-
za mesmo ou uma loucura, que estaria curada na troca Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
da cidade pelo campo.
Então acredito nele,
V Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
Há metafísica bastante em não pensar em nada. E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

O que penso eu do mundo? Mas se Deus é as árvores e as flores


Sei lá o que penso do mundo! E os montes e o luar e o sol,
Se eu adoecesse pensaria nisso. Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Que idéia tenho eu das cousas? Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos? Sol e luar e flores e árvores e montes,
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E sobre a criação do Mundo? E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas). E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
O único mistério é haver quem pense no mistério. Como quem abre os olhos e vê,
Quem está ao sol e fecha os olhos, E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
Começa a não saber o que é o sol E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
E ando com ele a toda a hora.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada, O guardador de rebanhos.Op. cit., p. 206-208.
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
Comentário: O poema é, indiscutivelmente, um
A luz do sol não sabe o que faz bom exemplo do modo de vida e do estilo de Caeiro,
E por isso não erra e é comum e boa. pois estão presentes o Sensacionismo, o realismo sen-

7
sorial, a antimetafísica, a oralidade e sua ligação pro- Comentário: O poema VII pode ser lido como um
funda com a natureza. A melodia dos versos brota da complemento ao poema III, pois explica o fato de Caei-
espontaneidade, da aparente despreocupação estéti- ro sentir dó de Cesário Verde, que só podia ver através
ca ou artística. A décima estrofe manifesta claramen- da cidade e nestas a vida é mais pequena. Assim, apro-
te o paganismo de Caeiro, que só consegue conceber veitando-se o verso “Porque eu sou do tamanho do
a existência de Deus a partir do sentido da visão, ou que vejo”, conclui-se que Cesário ficava também pe-
seja, de uma realidade palpável, material, concreta. queno e pobre, bem menor do que poderia ser.
Para Caeiro, a realidade está nos sentidos, principal-
VIII
mente na visão, sendo descabido acreditar na exis-
tência de uma coisa apenas em pensamento. Para ele, Num meio-dia de Primavera
só é real o que pode ser sentido. Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
O panteísmo fica evidente na décima segunda es- Veio pela encosta de um monte
trofe, pois Caeiro afirma acreditar em Deus apenas Tornado outra vez menino,
se ele se manifesta através da natureza, um deus como A correr e a rolar-se pela erva
manifestação por meio das flores, das árvores, dos E a arrancar flores para as deitar fora
montes, do sol e do luar. E a rir de modo a ouvir-se longe.
A ironia está presente na décima terceira estrofe, Tinha fugido do céu.
porque Caeiro interroga que motivo teria para cha- Era nosso demais para fingir
mar Deus de Deus se pode chamá-lo de flores, árvo- De segunda pessoa da Trindade.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
res e montes. O paganismo de Caeiro é, na verdade, No céu tudo era falso, tudo em desacordo
uma negação do cristianismo e não a fé na volta da Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
antiga crença. E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
VI
Com uma coroa toda à roda de espinhos
Pensar em Deus é desobedecer a Deus, E os pés espetados por um prego com cabeça,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos, E até com um trapo à roda da cintura
Por isso se nos não mostrou… Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Sejamos simples e calmos, Como as outras crianças.
Como os regatos e as árvores, O seu pai era duas pessoas —
E Deus amar-nos-á fazendo de nós Um velho chamado José, que era carpinteiro,
Belos como as árvores e os regatos, E que não era pai dele;
E dar-nos-á verdor na sua Primavera, E o outro pai era uma pomba estúpida,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!… A única pomba feia do mundo
O guardador de rebanhos.Op. cit., p. 208. Porque nem era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Comentário: O poema VI traduz, ainda uma vez, Não era mulher: era uma mala
a visão da integração do homem com os elementos Em que ele tinha vindo do céu.
simples da natureza como aproximação com o ele- E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E que nunca tivera pai para amar com respeito,
mento divino. Está presente no poema a idéia pagã e Pregasse a bondade e a justiça!
panteísta da divindade que emana da natureza.
Um dia que Deus estava a dormir
VII E o Espírito Santo andava a voar,
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
[Universo… Com o primeiro fez com que ninguém soubesse que
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra [ele tinha fugido.
[qualquer, Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Porque eu sou do tamanho do que vejo Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E não do tamanho da minha altura… E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Nas cidades a vida é mais pequena Depois fugiu para o sol
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro. E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave, É uma criança bonita de riso e natural.
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para Limpa o nariz ao braço direito,
[longe de todo o céu, Chapinha nas poças de água,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
[olhos podem dar, Atira pedras aos burros,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver. Rouba a fruta dos pomares
O guardador de rebanhos.Op. cit., p. 208. E foge a chorar e a gritar dos cães.

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E, porque sabe que elas não gostam Damo-nos tão bem um com o outro
E porque toda a gente acha graça, Na companhia de tudo
Corre atrás das raparigas Que nunca pensamos um no outro,
Que vão em ranchos pelas estradas Mas vivemos juntos e dois
Com as bilhas às cabeças Com um acordo íntimo
E levanta-lhes as saias. Como a mão direita e a esquerda.

A mim ensinou-me tudo. Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas


Ensinou-me a olhar para as coisas. No degrau da porta de casa,
Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Graves como convém a um deus e a um poeta,
Mostra-me como as pedras são engraçadas E como se cada pedra
Quando a gente as tem na mão Fosse todo o universo
E olha devagar para elas. E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente, Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
Sempre a escarrar para o chão E ele sorri porque tudo é incrível.
E a dizer indecências. Ri dos reis e dos que não são reis,
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia. E tem pena de ouvir falar das guerras,
E o Espírito Santo coça-se com o bico E dos comércios, e dos navios
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as. Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica. Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Diz-me que Deus não percebe nada Que uma flor tem ao florescer
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Das coisas que criou — E que anda com a luz do Sol


“Se é que ele as criou, do que duvido.” — A variar os montes e os vales
Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória, E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores. Depois ele adormece e eu deito-o.
Os seres existem e mais nada, Levo-o ao colo para dentro de casa
E por isso se chamam seres. E deito-o, despindo lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E depois, cansado de dizer mal de Deus, E todo materno até ele estar nu.
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa. Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
[…] E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro. Põe uns em cima dos outros
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. E bate palmas sozinho
Ele é humano que é natural. Sorrindo para o meu sono.
Ele é o divino que sorri e que brinca. […]
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro. Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
E a criança tão humana que é divina Pega-me tu ao colo
É a minha quotidiana vida de poeta,
E leva-me para dentro da tua casa.
E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta
Despe o meu ser cansado e humano
[sempre.
E deita-me na tua cama.
E que o meu mínimo olhar
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Me enche de sensação,
Para eu tornar a adormecer.
E o mais pequeno som, seja do que for,
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Parece falar comigo.
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
[…]
E outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Saltando e cantando e rindo
Por que razão que se perceba
E gozando o nosso segredo comum
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que é saber por toda a parte
Que tudo quanto os filósofos pensam
Que não há mistério no mundo
E tudo quanto as religiões ensinam?
E que tudo vale a pena.
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 209-212.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando. Comentário: Esse poema é de um lirismo mar-
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons cante dentro da poesia de Caeiro. A presença de ele-
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas. mentos narrativos (épicos) em nada diminui ou

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enfraquece sua expressão emocional e humana, já que E vai-se, sempre muito leve.
sua utilização permite o deslizar da imaginação do E eu não sei o que penso
Nem procuro sabê-lo.
eu lírico. As críticas ganham um tom de blague que
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 213.XV
apenas dessacraliza os mitos e mistérios que funda-
mentam o universo cristão. Caeiro materializa a di- As quatro canções que seguem
vindade de Cristo e rompe com os dogmas do Separam-se de tudo o que eu penso,
Mentem a tudo o que eu sinto,
cristianismo ao transformar o ícone do catolicismo São do contrário do que eu sou…
num menino comum.
Escrevi-as estando doente
X E por isso elas são naturais
“Olá, guardador de rebanhos, E concordam com aquilo que sinto,
Aí à beira da estrada, Concordam com aquilo com que não concordam…
Que te diz o vento que passa?” Estando doente devo pensar o contrário
Do que penso quando estou são
“Que é vento, e que passa, (Senão não estaria doente),
E que já passou antes, Devo sentir o contrário do que sinto
E que passará depois. Quando sou eu na saúde,
E a ti o que te diz?” Devo mentir à minha natureza
De criatura que sente de certa maneira…
“Muita coisa mais do que isso, Devo ser todo doente — idéias e tudo.
Fala-me de muitas outras coisas. Quando estou doente, não estou doente para outra coisa.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
De memórias e de saudades
E de coisas que nunca foram.” Por isso essas canções que me renegam
Não são capazes de me renegar
“Nunca ouviste passar o vento. E são a paisagem da minha alma de noite,
O vento só fala do vento. A mesma ao contrário…
O que lhe ouviste foi mentira. O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 214.
E a mentira está em ti.”
XVI
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 213.
Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
XI Que vem a chiar manhãzinha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Aquela senhora tem um piano
Quase à noitinha pela mesma estrada.
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem… Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter
Para que é preciso ter um piano? [rodas…
O melhor é ter ouvidos A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco…
E ouvir bem os sons que nascem. Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 213. E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 214.
XII
Os pastores de Virgílio tocavam avenas e outras coisas XVII
E cantavam de amor literalmente. No meu prato que mistura de Natureza
(Depois — eu nunca li Virgílio. As minhas irmãs as plantas,
Para que o havia eu de ler?) As companheiras das fontes, as santas
A quem ninguém reza…
Mas os pastores de Virgílio, coitados, são Virgílio,
E a Natureza é bela e antiga. E cortam-se e vêm à nossa mesa
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 213. E nos hotéis os hóspedes ruidosos,
Que chegam com correias tendo mantas
Comentário: O final do poema traduz de maneira Pedem “Salada”, descuidosos…
simples e direta o fingimento poético, porque considera Sem pensar que exigem à Terra-Mãe
que os pastores nada mais são do que projeções poéti- A sua frescura e os seus filhos primeiros,
cas do próprio poeta latino. Assim, a mimese aristotéli- As primeiras verdes palavras que ela tem, —
11
ca parece ser invertida pela visão de Caeiro, já que a As primeiras coisas vivas e irisantes
Que Noé viu
Natureza não é imitada diretamente, mas fingida. Quando as águas desceram e o cimo dos montes
Verde e alagado surgiu
XIII E no ar por onde a pomba apareceu
Leve, leve, muito leve, O arco-íris se esbateu…
Um vento muito leve passa, O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 214-215.

11
Cintilantes.

10
XVIII Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E para onde ele vai
E que os pés dos pobres me estivessem pisando…
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
Quem me dera que eu fosse os rios que correm
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
E que as lavadeiras estivessem à minha beira…

Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo… Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro Ninguém nunca pensou no que há para além
E que ele me batesse e me estimasse… Do rio da minha aldeia.

Antes isso que ser o que atravessa a vida O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Olhando para trás de si e tendo pena… Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 215. O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 215-216.

Comentário: O poema retoma a necessidade que Comentário: O discurso paradoxal faz-se presente
o eu lírico sente de transmutar-se nos elementos mais nos primeiros versos do poema, dos quais o que resul-
simples. Como ocorre com o carro de bois do poema ta é a afirmação de que se deve aceitar a realidade pró-
XVI (Quem me dera que a minha vida fosse um carro xima em vez de buscar o que os sentidos não alcançam.
de bois), ele deseja transformar-se no pó, nos rios,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

XXI
nas árvores (choupos), no burro do moleiro. Essa ne-
Se eu pudesse trincar a terra toda
cessidade de ser a matéria simples representaria, sem
E sentir-lhe um paladar,
dúvida, a anulação do pensamento, que parece reme- Seria mais feliz um momento…
ter o eu lírico a um sentimento de autopiedade, que Mas eu nem sempre quero ser feliz.
fica patente no último verso. Entretanto, cabe recor- É preciso ser de vez em quando infeliz
dar que não há em Caeiro a angústia de identidade Para se poder ser natural…
presente em Álvaro de Campos e no próprio Fernan-
Nem tudo é dias de sol,
do Pessoa. E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
XIX
Naturalmente, como quem não estranha
O luar quando bate na relva Que haja montanhas e planícies
Não sei que coisa me lembra… E que haja rochedos e erva…
Lembra-me a voz da criada velha
Contando-me contos de fadas. O que é preciso é ser-se natural e calmo
E de como Nossa Senhora vestida de mendiga Na felicidade ou na infelicidade,
Andava à noite nas estradas Sentir como quem olha,
Socorrendo as crianças maltratadas… Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
Se eu já não posso crer que isso é verdade E que o poente é belo e é bela a noite que fica…
Para que bate o luar na relva? Assim é e assim seja…
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 215. O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 216.

Comentário: Caeiro confirma, nesse poema, sua Comentário: A naturalidade existencial humana,
individualidade, pois não acredita muito na noção de para o eu lírico, resulta exatamente da capacidade de
conjunto, e a realidade só existe para ele enquanto sentir os altos e baixos da vida, esse fluir da existên-
resultado dos próprios sentidos. cia que se renova e reacende a chama do caráter hu-
XX
mano. A Natureza recria o mesmo ciclo, o que traduz,
na visão de Caeiro, uma unidade em plenitude com a
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Natureza e uma conformidade com as leis naturais.
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela
[minha aldeia XXIV
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O que nós vemos das cousas são as cousas.
O Tejo tem grandes navios Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
E navega nele ainda, Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, Se ver e ouvir são ver e ouvir ? O essencial é saber ver,
A memória das naus. Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
O Tejo desce de Espanha E nem pensar quando se vê
E o Tejo entra no mar em Portugal. Nem ver quando se pensa.

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Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!), XXVIII
Isso exige um estudo profundo,
Li hoje quase duas páginas
Uma aprendizagem de desaprender
Do livro dum poeta místico,
E uma seqüestração na liberdade daquele convento
E ri como quem tem chorado muito.
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras
[eternas
Os poetas místicos são filósofos doentes,
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
E os filósofos são homens doidos.
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores, Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores. E dizem que as pedras têm alma
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 217-218. E que os rios têm êxtases ao luar.

Comentário: Alberto Caeiro emprega aqui a téc- Mas as flores, se sentissem, não eram flores,
nica de um interlocutor invisível que, como já foi co- Eram gente;
mentado, é ele mesmo na busca de aprender a E se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas, não
[eram pedras;
desaprender para afirmar a si mesmo — o poeta que E se os rios tivessem êxtases ao luar,
acredita apenas no realismo sensorial e que rejeita Os rios seriam homens doentes.
qualquer matéria que resulte do pensamento.
É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
XXV Para falar dos sentimentos deles.
As bolas de sabão que esta criança Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
Se entretém a largar de uma palhinha É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
São translucidamente uma filosofia toda. Graças a Deus que as pedras são só pedras,
Claras, inúteis e passageiras como a Natureza, E que os rios não são senão rios,
Amigas dos olhos como as coisas, E que as flores são apenas flores.
São aquilo que são
Com uma precisão redondinha e aérea, Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa, E fico contente,
Pretende que elas são mais do que parecem ser. Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
Algumas mal se vêem no ar lúcido. Porque a Natureza não tem dentro;
São como a brisa que passa e mal toca nas flores Senão não era a Natureza.
E que só sabemos que passa O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 219.
Porque qualquer coisa se aligeira em nós
E aceita tudo mais nitidamente. Comentário: Caeiro utiliza uma interessante téc-
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 218. nica de construção poética para deixar clara a sua
maneira de ver o mundo. Ele fala de como os outros
Comentário: Um comentário de Leyla Perrone- devem enxergar para decifrar a si mesmo. Ainda vale
Moisés sobre esse poema é indispensável: O poeta teve ressaltar que o poeta toca mais uma vez na idéia da
um insight filosófico-estético ao contemplar as bolas doença, no caso a loucura metafísica, mal do qual
de sabão; a marca desse insight é a sensação de que também padecem Fernando Pessoa e Álvaro de Cam-
“qualquer coisa se aligeira” nele, e o faz aceitar o pos. A materialidade que Caeiro atribui à natureza
mundo mais nitidamente. O hábito de Caeiro de argu- pode ser claramente identificada no penúltimo ver-
mentar em defesa da transparência das coisas obriga-o so: “Porque a Natureza não tem dentro”.
a tentar provar seu ponto de vista: São translucidamente
uma filosofia toda; São aquilo que são; E ninguém, XXX
[…] Pretende que elas são mais do que parecem ser. Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem,
[tenho-o.
XXVII Sou místico, mas só com o corpo.
Só a natureza é divina, e ela não é divina… A minha alma é simples e não pensa.

Se falo dela como de um ente O meu misticismo é não querer saber.


É que para falar dela preciso usar da linguagem dos É viver e não pensar nisso.
[homens
Que dá personalidade às coisas, Não sei o que é a Natureza: canto-a.
E impõe nome às coisas. Vivo no cimo dum outeiro
Mas as coisas não têm nome nem personalidade: Numa casa caiada e sozinha,
Existem, e o céu é grande e a terra larga, E essa é a minha definição.
E o nosso coração do tamanho de um punho fechado… O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 220.

Bendito seja eu por tudo quanto não sei. XXXI


Gozo tudo isso como quem sabe que há o Sol. Se às vezes digo que as flores sorriem
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 218-219. E se eu disser que os rios cantam,

12
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores E ver se está bem, e tirar se não está!…
E cantos no correr dos rios… Quando a única casa artística é a Terra toda
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.
Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem
Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes [respira.
À sua estupidez de sentidos… E olho para as flores e sorrio…
Não concordo comigo mas absolvo-me, Não sei se elas me compreendem
Porque só sou essa coisa séria, um intérprete da Natureza; Nem se eu as compreendo a elas,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem, Mas sei que a verdade está nelas e em mim
Por ela não ser linguagem nenhuma. E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 220.
E levar ao colo pelas Estações contentes
XXXIV E deixar que o vento cante para adormecermos
E não termos sonhos no nosso sono.
Acho tão natural que não se pense O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 222.
Que me ponho a rir às vezes, sozinho,
Não sei bem de quê, mas é de qualquer coisa Comentário: O poema retoma a idéia de Caeiro
Que tem que ver com haver gente que pensa… de fazer uma poesia livre, espontânea e natural, fruto
Que pensará o meu muro da minha sombra? de um exercício supremo de romper com todas as re-
Pergunto-me às vezes isto até dar por mim gras em favor da naturalidade, da oralidade.
A perguntar-me coisas…
XXXIX
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

E então desagrado-me, e incomodo-me


Como se desse por mim com um pé dormente… O mistério das coisas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Que pensará isto de aquilo? Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Nada pensa nada.
Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem? Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
Se ela a tiver, que a tenha… E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Que me importa isso a mim? Sempre que olho para as coisas e penso no que os
Se eu pensasse nessas coisas. [homens pensam delas,
Deixaria de ver as árvores e as plantas Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
E deixava de ver a Terra,
Para ver só os meus pensamentos… Porque o único sentido oculto das coisas
Entristecia e ficava às escuras. É elas não terem sentido oculto nenhum.
E assim, sem pensar, tenho a Terra e o Céu. É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 221-222.
E os pensamentos de todos os filósofos,
XXXV Que as coisas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
O luar através dos altos ramos,
Dizem os poetas todos que ele é mais Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
Que o luar através dos altos ramos. As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas.
Mas para mim, que não sei o que penso, O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 223.
O que o luar através dos altos ramos
É, além de ser Comentário: O tema da aparência das coisas e não
O luar através dos altos ramos, de sua essência é retomado nesse poema, conforme
É não ser mais
explicam os versos: Porque o único sentido oculto das
Que o luar através dos altos ramos.
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 222.
coisas / É elas não terem sentido oculto nenhum.
XL
Comentário: O poema define claramente o rea-
lismo sensorial em que se baseia toda a poesia de Caei- Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
ro; ele teoriza a coisificação, ou seja, as coisas são o
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
que são, nada mais do que coisas. Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta.
XXXVI No movimento da borboleta o movimento é que se move.
E há poetas que são artistas O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
E trabalham nos seus versos A borboleta é apenas borboleta
Como um carpinteiro nas tábuas!… E a flor é apenas flor.
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 224.
Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um Comentário: Caeiro aplica nesse poema um certo
[muro antinominalismo, já que não dá a qualquer coisa outra

13
significação que não seja a própria aparência (transpa- Mas um animal humano que a Natureza produziu.
rência) ou o que representa, coisa, esvaziando-a de sig- E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem se
nificações ao fazê-la refletir sobre si mesma. Sua [quer como um homem,
técnica consiste em substantivar as palavras, negando Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
as relações entre estas, e tornando os próprios substan- E assim escrevo, ora bem, ora mal,
Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,
tivos em atributos da coisa.
Caindo aqui, levantando-me acolá,
XLII Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.

Passou a diligência pela estrada, e foi-se; Ainda assim, sou alguém.


E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia. Sou o Descobridor da Natureza.
Assim é a ação humana pelo mundo fora. Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos; Trago ao Universo um novo Universo
E o Sol é sempre pontual todos os dias. Porque trago ao Universo ele-próprio.
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 224.
Isto sinto e isto escrevo
Comentário: Esses versos traduzem a filosofia de Perfeitamente sabedor e sem que não veja
Que são cinco horas do amanhecer
vida de Caeiro de maneira espontânea, o que também
E que o Sol, que ainda não mostrou a cabeça
ocorre no poema que segue XLII (Antes o vôo da ave, Por cima do muro do horizonte,
que passa e não deixa rasto). Em sua concepção da Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos
vida, ele considera que, nós humanos, como todos os Agarrando o cimo do muro

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seres e coisas, apenas passamos, sem nada tirar ou co- Do horizonte cheio de montes baixos.
locar, e depois esquecemos. Apenas o sol fica. O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 225-226.

XLV Comentário: O mestre desconfia do pensamento


e da própria linguagem, pois sabe da necessidade do
Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta.
Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas.
conhecimento direto das coisas. A anulação do pen-
Renque e o plural árvores não são coisas, são nomes. samento representa a aceitação da Natureza como ele-
mento vital para o encontro definitivo da paz de
Tristes das almas humanas, que põem tudo em ordem, espírito. Ainda uma vez, Caeiro manifesta a necessi-
Que traçam linhas de coisa a coisa, dade de desaprender o que lhe ensinaram, a fim de
Que põem letreiros com nomes nas árvores absoluta-
[mente reais, anular Caeiro e ser apenas um animal humano pro-
E desenham paralelos de latitude e longitude duzido pela Natureza. A presença da metalinguagem
Sobre a própria terra inocente e mais verde e florida do é outro elemento de destaque no poema.
[que isso!
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 225. XLVII
Num dia excessivamente nítido,
XLVI
Dia em que dava a vontade de ter trabalhado muito
Deste modo ou daquele modo, Para nele não trabalhar nada,
Conforme calha ou não calha, Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,
Podendo às vezes dizer o que penso, O que talvez seja o Grande Segredo,
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas, Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever não fosse uma coisa feita de gestos, Vi que não há Natureza,
Como se escrever fosse uma coisa que me acontecesse Que Natureza não existe,
Como dar-me o sol de fora. Que há montes, vales, planícies,
Que há árvores, flores, ervas,
Procuro dizer o que sinto Que há rios e pedras,
Sem pensar em que o sinto. Mas que não há um todo a que isso pertença,
Procuro encostar as palavras à idéia Que um conjunto real e verdadeiro
E não precisar dum corredor É uma doença das nossas ideias.
Do pensamento para as palavras.
A Natureza é partes sem um todo.
Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir. Isto é talvez o tal mistério de que falam.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Foi isto o que sem pensar nem parar,
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
Acertei que devia ser a verdade
Que todos andam a achar e que não acham,
Procuro despir-me do que aprendi,
E que só eu, porque a não fui achar, achei.
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me en-
[sinaram, O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 226-227.
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, Comentário: Nos poemas XLV e XLVII, perce-
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro, be-se que Caeiro investe contra a nomeação das coi-

14
sas em sua pluralidade, valorizando apenas seus as- Comentário: Caeiro valoriza a realidade e des-
pectos individuais, preferindo nomeá-las particular- preza os rótulos à sua pessoa: recusa considerar-se
mente. Com isso, ele evita a abstração e permite que poeta e chama a atenção para o fato de que a única
cada coisa possa ser sentida de modo singular. coisa que pode ter valor são seus versos, porque inde-
pendem de sua vontade.
XLIX
Meto-me para dentro, e fecho a janela. Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha
Trazem o candeeiro e dão as boas-noites, [biografia,
E a minha voz contente dá as boas-noites. Não há nada mais simples.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva, Tem só duas datas — a da minha nascença e a da
Ou tempestuoso como se acabasse o mundo, [minha morte.
A tarde suave e os ranchos que passam Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.
Fitados com interesse da janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores, Sou fácil de definir.
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso, Vi como um danado.
Sem ler nada, sem pensar em nada, nem dormir, Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito, Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme. [nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanha-
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 227-228.
[mento de ver.
Poemas inconjuntos Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes
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[umas das outras;


A espantosa realidade das coisas Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
É a minha descoberta de todos os dias. Compreender isto com o pensamento seria achá-las
Cada coisa é o que é, [todas iguais.
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta. Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Basta existir para se ser completo. Além disso, fui o único poeta da Natureza.
Poemas inconjuntos. Op. cit., p. 237.
Tenho escrito bastantes poemas.
Hei-de escrever muitos mais, naturalmente. Comentário: A passagem Compreendi que as cou-
Cada poema meu diz isto, sas são reais e todas diferentes umas das outras; /
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada coisa que há é uma maneira de dizer isto. Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensa-
mento deixa claro o realismo sensorial de Caeiro.
Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra. Outro aspecto de relevo é a concepção que Caeiro
Não me ponho a pensar se ela sente. tem da morte, que não poderia ser mais simples e tran-
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ser uma pedra,
qüila, uma vez que a considera não como fim ou co-
Gosto dela porque ela não sente nada, meço de qualquer coisa, mas apenas como a inocência
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum do sono de uma criança. Para ele não existe perda ou
[comigo. lucro, já que, entre o nascimento e a morte, todos os
dias lhe pertenceram. Caeiro não fez uma poesia mar-
Outras vezes ouço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena cada pela inconseqüência ou inconsciência: foi pla-
[ter nascido. nejada e ele sabe que seu grande elemento foi a
natureza, à qual se integra por intermédio do sensori-
Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto; alismo marcadamente visual. Foi o cantor da maté-
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem
[esforço, ria, da coisa em si, das flores, das pedras, das estrelas,
Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar; dos elementos da natureza.
Porque o penso sem pensamentos,
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista, 5. ESTRUTURA DA OBRA


E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer coisa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo. Poesias completas de Alberto Caeiro é uma cole-
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho: tânea formada por uma introdução ou prefácio de
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha Ricardo Reis, por O guardador de rebanhos, O pas-
[vontade. tor amoroso e Poemas inconjuntos, além de um pos-
PESSOA, Fernando.Obra Poética. Poemas inconjuntos. fácio, assinado pelo heterônimo Álvaro de Campos,
Rio de Janeiro: Aguilar, 1977. p. 234-235. que analisa o próprio mestre Caeiro. A primeira parte

15
apresenta um total de 49 poemas de formas variadas, larmos antes de alguns movimentos precursores dessa
em versos livres e brancos. A segunda parte é forma- tendência, tais como o Saudosismo e o Paulismo, ou
da por seis poemas também de formas e dimensões mesmo de outros ismos decorrentes da geração órfica,
variadas. A última possui um total de 49 poemas, al- como o Interseccionismo e o Sensacionismo.
guns extremamente breves, quase em forma de hai- A publicação da revista Águia, em 1910, pode ser
cais. considerada como marco precursor do Modernismo
A crítica divide-se quanto ao melhor da produção português, uma espécie de Pré-Modernismo portu-
de Alberto Caeiro. Alguns, como o próprio autor da guês, que estabeleceu o surgimento do Saudosismo.
introdução, acreditam que o melhor de sua produção Sua edição visava restaurar e revigorar a cultura por-
esteja reunido nos Poemas inconjuntos. De maneira tuguesa, conforme desejo de seus principais líderes
geral, costuma-se ter como produção essencial de Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão e Leonardo
Caeiro os poemas que compõem a primeira parte da Coimbra. Teixeira de Pascoaes (1878-1952) criou atra-
obra que se está analisando. vés dessa revista o Saudosismo, e procurou enunciar
Em O pastor amoroso, Caeiro vê-se comovido pelo uma doutrina filosófica que valorizava o espírito na-
amor, como o título já indica, o que afeta a maneira cional lusitano, tentando retomar o patriotismo, uma
de enxergar a natureza, elemento permanente de sua pretensa “alma portuguesa”, a partir da saudade:
devoção. O amor altera a intensidade do seu sentir.
… a saudade é o próprio sangue espiritual da Raça; o
Amar é pensar seu estigma divino, o seu perfil eterno. […] É na saudade

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E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela. revelada que existe a razão da nossa Renascença; nela
PESSOA, Fernando. Obra Poética. O pastor amoroso. Rio
ressurgiremos, porque ela é a própria Renascença, origi-
de Janeiro: Aguilar, 1977. p. 230. nal e criadora.
Teixeira Pascoaes
A terceira parte coincide com a proximidade da
morte de Caeiro, como se vê anunciado em vários Fernando Pessoa participou do Saudosismo com
poemas dessa parte. uma série de estudos críticos sobre a nova poesia por-
tuguesa a partir do quarto número da revista Águia,
Quando tornar a vir a Primavera deixando definitivamente o grupo em 1914.
Talvez já não me encontre no mundo.
O outro movimento que antecedeu o Modernismo
Creio que irei morrer. foi o Paulismo, que se caracterizou pela fusão entre o
Mas o sentido de morrer não me move […] subjetivo e o objetivo, em desconexas associações de
O pastor amoroso. Op. cit. idéias, empregando uma sintaxe bizarra, frases nomi-
nais exclamativas, maiúsculas para traduzir a profun-
Last poem
didade essencial das palavras, e que procurava valorizar
(ditado pelo poeta no dia da sua morte) profundamente o tédio, o vazio, o vago, a busca de
algo que não se explica, o anseio de outra coisa. Esse
É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o Sol, levantando a mão direita, ismo foi criado pelo próprio Fernando Pessoa em seu
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus, poema Impressões do crepúsculo, cuja primeira pala-
Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada. vra (pauis) deu nome ao movimento estético e signifi-
O pastor amoroso. Op. cit. ca pântanos, ou terras baixas e alagadiças.
Pauis de roçarem ânsias pela minh’alma em ouro…
Dobre longínquo de Outros Sinos… Empalidece o louro
6.ESTILO DE ÉPOCA Trigo na cinza do poente… Corre um frio carnal por
[minh’alma…
Tão sempre a mesma, a Hora!… Balouçar de cimos de
O Modernismo surgiu em Portugal a partir da edi- [palma!…
ção da revista Orpheu em 25 de março de 1915, pu- Silêncio que as folhas fitam em nós… Outono delgado
Dum canto de vaga ave… Azul esquecido em estagnado…
blicação que se pretendia luso-brasileira e cujo Oh que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!
primeiro número teve a direção de Luís de Montal- Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora!
vor e do brasileiro Ronald de Carvalho. Estendo as mãos para além, mas ao estendê-las já vejo
Que não é aquilo que quero aquilo que desejo…12
OS ISMOS LUSITANOS O Paulismo intermedeia o Orfismo, o Simbolis-
Não se pode estudar a primeira geração do Moder- mo-decadentista e o Saudosismo. Sua linguagem
nismo português, conhecida como Orfismo, sem fa- libera o sentido da imagem, obrigando o significado

12
PESSOA, Fernando. Fernando Pessoa: Obra poética. Cancioneiro. Rio de Janeiro: Aguilar, 1977. p. 108.

16
a subordinar-se ao seu significante, libertando-se do como sensação, que não se oporia à reflexão, à emo-
encadeamento lógico-racional. ção e à memória. A transformação da emoção vivida
Também o Interseccionismo serviu de fundamen- em emoção artística seria feita através da racionali-
to aos primeiros modernos portugueses. Essa corren- zação. A realidade seria decomponível em elementos
te foi uma espécie de adaptação do Paulismo às geométricos psíquicos para aumentar a consciência
vanguardas, como o Futurismo e o Cubismo. Nela, humana. A figura geométrica seria o cubo, mas na
o poeta expressa a complexidade e a intersecção das busca da sensação das coisas e não em sua decompo-
sensações percebidas, aproximando-se do Cubismo. sição apenas, como fizeram os cubistas. O Sensacio-
Sua expressão caracteriza-se na intersecção de pla- nismo é a base moderna do Orfismo.
nos objetivos e subjetivos, passado e presente, havendo Afinal
uma sobreposição de imagens. A grande expressão
Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
desse ismo foi exatamente o poema Chuva oblíqua,
Sentir tudo de todas as maneiras.
de Fernando Pessoa. Entretanto, esse ismo contrapõe- Sentir tudo excessivamente,
se ao dinamismo, herança do Futurismo que influ- Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
enciou os modernos da geração de Orpheu, uma vez E toda a realidade é um excesso, uma violência,
que se deixa levar por intensa subjetividade e uma Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
atitude de estaticidade, valorizando aspectos abstra- O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
tos, oníricos e tediosos da existência. Que são as psiquês humanas no seu acordo de sentidos.
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I Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias


Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito [pessoas,
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes […]
[navios Álvaro de Campos
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas… Quando
Quando olho para mim não me percebo.
O porto que sonho é sombrio e pálido Tenho tanto a mania de sentir
E esta paisagem é cheia de sol deste lado… Que me extravio às vezes ao sair
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio Das próprias sensações que eu recebo.
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol… O ar que respiro, este licor que bebo,
Pertencem ao meu modo de existir,
Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo… E eu nunca sei como hei de concluir
O vulto do cais é a estrada nítida e calma As sensações que a meu pesar concebo.
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores Nem nunca, propriamente reparei,
Com uma horizontalidade vertical, Se na verdade sinto o que sinto. Eu
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma Serei tal qual pareço em mim?
[dentro…
Serei tal qual me julgo verdadeiramente?
Não sei quem me sonho… Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Súbito toda a água do mar do porto é transparente Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.
e vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá Álvaro de Campos
[estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder O Sensacionismo de Alberto Caeiro consegue
[em aquele porto, atingir uma simplicidade absoluta, o que não é cons-
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa tatado na obra do próprio Fernando Pessoa ou em
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
Álvaro de Campos:
E passa para o outro lado da minha alma… IX
O Sensacionismo representou a tentativa de viver Sou um guardador de rebanhos.
as sensações em sua plenitude. Pode-se enxergá-lo O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
como a soma do Paulismo e do Interseccionismo. Penso com os olhos e com os ouvidos
Para Fernando Pessoa, a dispersão é a característica E com as mãos e os pés
fundamental do sensacionismo. Para ele, a sensação E com o nariz e a boca.
é ao mesmo tempo reflexão, emoção e memória. Sua
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
teoria da sensação passa por três estágios: a sensação E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
pura e simples, a consciência dessa sensação, que lhe
dá um valor estético, e a intelectualização, que lhe Por isso quando num dia de calor
proporciona poder de expressão. Ele considera a arte Me sinto triste de gozá-lo tanto.

17
E me deito ao comprido na erva, de Sá-Carneiro e as dificuldades financeiras enfren-
E fecho os olhos quentes, tadas pelo grupo impediram sua publicação.
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz. O Orfismo acabou reunindo todos os ismos lusi-
O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 212-213. tanos e também os vanguardistas, propondo a criação
de uma literatura que chocasse os valores burgueses
Comentário: O realismo sensorial pode ser cla- através de sua irreverência formal e das provocações,
ramente percebido a partir da primeira estrofe quan- e que procurasse também aproximar culturalmente
do Caeiro nega o pensamento, elemento metafísico Portugal do resto da Europa. Entre seus objetivos, não
por excelência, para valorizar as sensações: tato, ol- se pode esquecer a intenção de criar escândalo, bem
fato e paladar. Para Caeiro, felicidade é obter o máxi- como a falta de compromisso de seus integrantes com
mo de sensações que a natureza pode proporcionar, o quaisquer caracteres históricos, políticos ou científi-
que se traduz como a única realidade, como os dois cos. O Orfismo era contra o passado romântico e re-
últimos versos podem comprovar. O verso O reba- alista, valorizando as estéticas de vanguarda européias,
nho é os meus pensamentos materializa ou objetiva, principalmente o Futurismo de Marinetti, ainda que
através da substantivação metafórica, a metafísica, seus criadores estivessem mais profundamente liga-
reforçando a materialização do pensamento. dos ao Simbolismo-decadentista e ao Saudosismo.
A repetição é outro recurso forte da poesia de Al- Sua atitude foi, antes de mais nada, irreverente quan-
berto Caeiro, como a anáfora que está presente na to à forma, o que pode ser constatado nos versos li-
repetição do termo “e com”, nos versos cinco e seis vres e brancos, na valorização dos temas cotidianos,

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da primeira estrofe. do prosaísmo, do sentimento pessimista em relação
ao homem e à sociedade. O Orfismo apresentava ain-
A GERAÇÃO DE ORPHEU: O ORFISMO da uma visão mística ou esotérica da vida, o que por
A geração de Orpheu surgiu a partir do encontro si só fundamenta a sua herança neo-simbolista.
entre alguns jovens poetas em cafés da baixa de Lis- Sem dúvida esse espírito novidadeiro e rebelde
boa em 1913, tais como Fernando Pessoa, Mário de desencadeou de maneira precoce o Modernismo por-
Sá-Carneiro, Almada Negreiros, Amadeo de Sousa tuguês, como observa Otávio Paz: O assombroso é o
Cardoso, Raúl Leal e Santa Rita Pintor, que discuti- aparecimento do grupo, à frente de seu tempo e de
am as estéticas de vanguarda européias. Luis de Mon- sua sociedade.13
talvor (Luís da Silva Ramos), António Ferro e
Armando Cortes Rodrigues também se juntaram aos
demais para projetar uma revista que conseguisse reu- 7. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
nir as diversificadas tendências artísticas desses jo-
vens e agitasse a intelectualidade lusitana, terminando
por representar o momento inicial do próprio Moder- BRADBURY, Malcolm e McFarlane, James. Moder-
nismo lusitano. A revista Orpheu foi financiada pelo nismo — Guia geral. São Paulo: Companhia das Le-
pai de Mário de Sá-Carneiro. Participaram do primeiro tras, 1989.
número Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Al- FRANÇA, Isabel Murteira. Fernando Pessoa na inti-
mada Negreiros, Cortes Rodrigues, Alfredo Pedro midade. Lisboa: Dom Quixote, 1987.
Guisado, Álvaro de Campos (heterônimo de Fernan- GIL, José. Fernando Pessoa ou a metafísica das sen-
do Pessoa) e José Pacheco, que foi o responsável pela sações. Lisboa: Relógio d’Água, s/d.
direção gráfica. A introdução foi assinada por Luis GOMES, Álvaro Cardoso. Fernando Pessoa: as mui-
de Montalvor, que foi o primeiro diretor, junto com tas águas de um rio. São Paulo: Pioneira /Edusp, 1987.
Ronald de Carvalho, o espírito prático que viabilizou MOISÉS, Leyla Perrone-. Aquém do eu, além do ou-
o surgimento da revista. tro. 3. ed. (rev. amp.) São Paulo: Martins Fontes, 2001.
O segundo número saiu em junho e teve a direção MOISÉS, Massaud. Fernando Pessoa: o espelho e a
de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Colabo- esfinge. São Paulo: Cultrix / Edusp, 1988.
raram nessa edição Mário de Sá-Carneiro, Eduardo MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa em pers-
Guimaraens, Fernando Pessoa, Angelo de Lima, Raul pectiva. São Paulo: Atlas, 1994, v. 4..
Leal, Luis de Montalvor, Santa Rita Pintor, Violante PAZ, Otávio. Signos em rotação. 2. ed. São Paulo:
de Cisneiros (provável pseudônimo de Armando Cor- Perspectiva, 1976.
tes Rodrigues) e Álvaro de Campos. Um terceiro nú- PESSOA, Fernando. Fernando Pessoa: Obra poéti-
mero chegou a ser preparado, mas a morte de Mário ca. Rio de Janeiro: Aguilar, 1977.

13
PAZ, Otávio. Signos em rotação. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1976.

18
QUADROS, António. Fernando Pessoa — Obra po- b) a natureza é pura exterioridade, desprovida de alma —
ética e em prosa. Porto: Lello & Irmão, 1986. ela é um ente animado, dotado de interioridade e per-
SARAIVA, António José e LOPES, Óscar. História sonalidade
da literatura portuguesa. 13. ed. (cor. e atual.) Porto: c) a natureza vale por seus aspectos estéticos e simbóli-
Porto Editorial, 1985. cos — ela tem valor prático e utilitário, ou seja, é valo-
rizada na medida em que, transformada pela técnica,
SEABRA, José Augusto. O heterotexto pessoano. São
serve para suprir as necessidades humanas
Paulo: Perspectiva, 1988. d) a relação com a natureza é pessoal e até íntima — a
SIMÕES, João Gaspar. Vida e obra de Fernando Pes- natureza apresenta caráter hostil e, mesmo, ameaçador
soa (História de uma geração). 2 volumes. Lisboa: e) a natureza é misteriosa e indecifrável — ela é portado-
Livraria Bertrand, 1954. ra de uma mensagem mística que o homem deve deci-
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e frar, servindo-se dos instrumentos da razão
Modernismo brasileiro. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1986.
Assinale a alternativa que apresente o excerto de um
poema de Alberto Caeiro que comprove o enquadramento
de sua visão de mundo no realismo sensorial:
Leia o texto abaixo para responder à questão 1:
a) O meu olhar é nítido como um girassol.
Não me importo com as rimas. Raras vezes Tenho o costume de andar pelas estradas
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra. Olhando para a direita e para a esquerda,
Penso e escrevo como as flores têm cor E de vez em quando olhando para trás…
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

E o que vejo a cada momento


Porque me falta a simplicidade divina
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
De ser todo só o meu exterior
Olho e comovo-me, E eu sei dar por isso muito bem…
Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado, Sei ter o pasmo essencial
E a minha poesia é natural como o levantar-se vento… Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
A respeito do texto transcrito responda: Sinto-me nascido a cada momento
a) A leitura atenta do texto permite afirmar que Alberto Para a eterna novidade do Mundo…
Caeiro valoriza a simplicidade e a espontaneidade. Que
recurso formal é recusado pelo eu lírico? b) Quando me sento a escrever versos
b) Que elementos do texto caracterizam a poesia de Al- Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
berto Caeiro? Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
(Fuvest-SP) Leia o seguinte poema de Alberto Caeiro: E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Ponham na minha sepultura Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Aqui jaz, sem cruz, Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
Alberto Caeiro
Que foi buscar os deuses…
E sorrindo vagamente como quem não compreende o
Se os deuses vivem ou não isso é convosco. [que se diz
A mim deixei que me recebessem. E quer fingir que compreende.

a) Identifique, no poema, a modalidade religiosa que o c) O mistério das cousas?


poeta rejeita e aquela com que tem maior afinidade. Sei lá o que é mistério!
Explique sucintamente. O único mistério é haver quem pense no mistério.
b) Relacione a referência a “deuses” (plural), no poema, Quem está ao sol e fecha os olhos,
com o seguinte verso, extraído de outro poema de Al- Começa a não saber o que é o sol
berto Caeiro: “A natureza é partes sem um todo”. E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
(Fuvest-SP) Comparando-se as concepções relativas E já não pode pensar em nada,
à natureza presentes no excerto de Guimarães Rosa com Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
as que se manifestam nos poemas de Alberto Caeiro, veri- De todos os filósofos e de todos os poetas.
fica-se que, em Rosa, _______ , ao passo que, em Caeiro, A luz do sol não sabe o que faz
_______ . E por isso não erra e é comum e boa.
Mantida a seqüência, os espaços pontilhados podem ser
preenchidos corretamente pelo que está em: d) Mas se Deus é as árvores e as flores
a) a observação da natureza provoca um desejo de nome- E os montes e o luar e o sol,
ação e até de invenção lingüística — o ideal seria o de Para que lhe chamo eu Deus?
que os elementos da natureza valessem por si mesmos, Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
sem nome nenhum Porque, se ele se fez, para eu o ver,

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Sol e luar e flores e árvores e montes, c) Observa-se a presença da coisificação, que sugere que
Se ele me aparece como sendo árvores e montes as coisas não são mais do que coisas.
E luar e sol e flores, d) O poeta procura abstrair-se do sentido aparente das
É que ele quer que eu o conheça coisas para conhecer seu sentido mais profundo.
Como árvores e montes e flores e luar e sol. e) O poema pode ser definido como antifilosófico, por-
que se nega a aceitar o pensamento.
e) Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores, Respostas
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos, 1. a) O eu lírico recusa o emprego das rimas porque não enxer-
E dar-nos-á verdor na sua Primavera, ga na natureza duas coisas iguais. Ele valoriza o emprego
E um rio aonde ir ter quando acabemos!… de versos brancos, sem rimas.
b) O texto apresenta uma linguagem simples, versos livres,
oralidade e a visão de Caeiro de que o modo de vida sim-
Leia o trecho a seguir para responder às questões 5 e 6.
ples e tranqüilo é a única maneira de encontrar a felicida-
O que nós vemos das cousas são as cousas. de. Outro aspecto relevante é a idéia de uma poesia que
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra? surge de forma natural e resultante de uma visão de mun-
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos do realista e sensorial, como o verso “De ser todo só o
Se ver e ouvir são ver e ouvir ?O essencial é saber ver, meu exterior” pode comprovar.
Saber ver sem estar a pensar, 2. a) O poeta rejeita o catolicismo (cristianismo), representado
Saber ver quando se vê, pela presença da cruz, porque o percebe como crença me-
tafísica, espiritual. Por outro lado, afirma sua afinidade

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa. com o paganismo, visto como aproximação com as forças
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!), da natureza e, portanto, material.
Isso exige um estudo profundo, b) Caeiro recusa a idéia de uma natureza una e de um con-
Uma aprendizagem de desaprender ceito abstrato, porque acredita que existam partes concre-
E uma seqüestração na liberdade daquele convento tas que mantêm sua individualidade (flores, pedras,
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras estrelas). Para o poeta, as coisas não necessitam de um
[eternas nome, porque são o que são. Ele recusa o nominalismo e a
E as flores as penitentes convictas de um só dia, idéia de unidade. Isso também é aplicável aos deuses, uma
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas vez que o paganismo recusa a unidade e valoriza a plura-
Nem as flores senão flores, lidade dos deuses, sua individualidade.
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores. 3. a
4. c
O Guardador de Rebanhos, Op. cit. p. 217-218.
A alternativa transcreve um trecho que define a realidade
como algo que não deve ser pensado, mas percebido através
Que características de Alberto Caeiro estão presentes do sentido da visão.
no poema? 5. O trecho apresenta a valorização sensorial em detrimento da
visão metafísica (realismo sensorial), a simplicidade voca-
Assinale a alternativa incorreta sobre o trecho trans- bular através da repetição, a aproximação com a linguagem
falada (oralidade) e a liberdade formal (versos livres e bran-
crito:
cos).
a) O poeta posiciona-se a favor de uma realidade sentida 6. d
e não pensada. O eu lírico procura valorizar exatamente o sentido aparente
b) O eu lírico valoriza o sentido da visão. das coisas, e não o sentido abstrato ou profundo.

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