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A Invensão Da Sexualidade
A Invensão Da Sexualidade
A invenção da sexualidade
Ana Cristina Teixeira da Costa Salles
Paulo Roberto Ceccarelli
Resumo
Os autores partem do princípio que todas as sociedades foram, desde sempre, interpeladas pelo
enigma do sexual, o que as levou a criar dispositivos para lidar com as demandas pulsionais.
Através de uma digressão sócio-histórica, os autores mostram como o Ocidente criou expedien-
tes para lidar com este enigma, levando ao que pode ser chamado da “invenção da sexualidade”.
Os discursos sobre a sexualidade aparecem em momentos sócio-históricos precisos como tenta-
tivas de normatizar as práticas sexuais de acordo com os padrões da época, visando ao controle
da via social e política através do controle do corpo e da sexualidade. Sendo a regulamentação
do sexo um assunto do Estado, das elites dominantes e da religião, o texto propõe mostrar como
a “moral” de cada uma destas instâncias cria tanto o discurso sobre a regulamentação da sexua-
lidade quanto os dispositivos que visam regulá-la, controlá-la ou mesmo curar as manifestações
da sexualidade “desviantes”. A infindável leitura que há séculos vem sendo feita sobre esta di-
mensão constitutiva do humano retrata o destino particular que a nossa cultura deu ao sexual. O
interesse em discutir este tema é mostrar quanto as nossas teorias, e a nossa prática clínica, são
tributárias da cultura. Para os autores, a psicanálise, fruto da cultura ocidental, só pode ser devi-
damente entendida a partir da perspectiva histórica que a precedeu.
Palavras-chave
Sexual, Sexualidade, Controle, Cultura, Psicanálise.
A ordem religiosa
1. Boa parte do que se segue baseia-se na obra de referência
Como já discutido em trabalhos an- sobre o tema: Eunucos pelo Reino de Deus Cf.
teriores (CECCARELLI, 2000; REIS RANKE-HEINEMANN, 1996.
vontade divina, tornando-se um paradig- res bonitas como um castigo de Deus por
ma de reflexão moral: tudo que é natural suas vaidades; e nas feias, como castigo
é bom e apraza a Deus. Surge, assim, a ideia pela inveja que tinham das bonitas. O in-
de “coito natural” que deu origem ao dis- teresse excessivo pelo sexo podia atrasar a
curso que separa as práticas sexuais em gravidez, quando não impedi-la (DEL
“normais”, identificadas à procriação, e PRIORE, 2001). A impotência, de um ou
“anormais”, que diziam respeito às práti- de outro dos cônjuges, era vista como uma
cas infecundas. A ideia é que existiria uma ameaça à sacralidade do matrimônio, po-
sexualidade normal, conforme as inclina- dendo levar à anulação do mesmo5 .
ções naturais das coisas, cujo desvio, a A partir do século XII, a moral que
depravação (pravus)4 , é definido como recusa o desejo e o prazer começa a abran-
“contra a natureza”. Toda vez que a sexu- dar-se com a aceitação do casamento
alidade desvia da finalidade primeira que como espaço legítimo para o uso dos pra-
a referência animal nos mostra – união de zeres. Todavia, a concepção do sexo como
dois órgãos sexuais diferentes para a pre- um mal em si mesmo persiste, sob forma
servação da espécie –, estamos diante de do controle sistemático dos prazeres da
um pecado contra naturam: pedofilia, ne- carne e com a inclusão de mais um peca-
crofilia, masturbação, heterossexualidade do capital: a luxúria. Luxuriosos eram os
separada da procriação, homossexualismo, que buscavam dentro do casamento prin-
sodomia... cipalmente o prazer e, fora dele, não ob-
Além dos atos abomináveis, certas servavam a castidade.
posições eram proibidas, e certas épocas Vimos, até aqui, como a sexualização
do ano impróprias às relações sexuais. A do pecado e a criação da confissão permi-
única posição “natural” era a do homem tiram à Igreja criar um discurso sobre a
deitado sobre o ventre da mulher. A mu- sexualidade, através do qual pode contro-
lher de costas para o homem assemelha- lar e intervir de forma profunda na sexua-
va-se à cópula dos animais; o homem em lidade dos fiéis. É dentro deste espírito que
baixo da mulher era considerado uma in- a moralidade cristã, que “situa os princi-
versão da natureza dos sexos já que deno- pais pecados da humanidade nos quartos
taria a passividade masculina e a ativida- de dormir” (RANKE-HEINEMANN,
de feminina. No primeiro caso, a ideia era 1996, p.47), desenvolveu-se.
extirpar todo traço de animalidade no de-
sejo humano e incluí-lo na razão natural. A ordem médica
No segundo, reafirmar a submissão femi- Segundo Foucault (1985, p.137), des-
nina ao homem. de o século XVIII o sexo ocupou um lugar
Um outro exemplo da infiltração do central que passou a definir tanto o sujei-
religioso no imaginário daqueles séculos to quanto a população. E no século XIX,
diz respeito à sexualidade do casal: a este-
rilidade era um indicador de alguma for-
5. A anulação do casamento era permitida em caso de
ma de impureza na vida conjugal. Ela po- infertilidade feminina e de impotência masculina,
dia se manifestar, em especial, nas mulhe- desde que provada pela esposa. Para tal, ela deveria,
segundo alguns teólogos, ter o testemunho de sete
pessoas. Outros eram a favor da ordália: para provar
a sua inocência, o marido acusado de impotência de-
4. O termo perversão, derivado de per vertere, “pôr de lado”, veria caminhar sobre ferros quentes ou colocar os pés
ou “pôr-se à parte”, aparece pela primeira vez em 1444. em água fervente. Se fosse inocente, nada lhe acon-
Foi somente no final do século XIX e no século XX que teceria. Outros ainda optavam pela indicação de sete
“perversão” passou a ser usado em relação aos comporta- parteiras que, após minucioso exame das partes geni-
mentos sexuais que fogem à norma. Cf. PEIXOTO JU- tais da esposa, verificavam se houve, ou não, a ruptu-
NIOR, 1999. ra do hímen.
forma totalmente nova, sem o moralismo corporal decorre da circulação dos humo-
que, até então, marcava a vivência da se- res, e o equilíbrio entre eles configuraria a
xualidade. O homem não é mais entendi- morfologia genital dos sexos. Ou seja, não
do como um ser guiado pelos instintos mas, é a anatomia que determina os sexos, mas
antes, como um ser civilizado capaz de sim os humores: este é o paradigma do sexo
conter-se, no que for necessário, para um único. Este paradigma só começou a mu-
valor maior: a sociedade. A nova concep- dar no século XVII quando, de forma es-
ção burguesa do casamento entendia o parsa, aparecem os primeiros atlas de ana-
instinto sexual como algo primordial do tomia nos quais as diferenças morfológi-
sujeito, que deveria ser controlado para cas entre o corpo do homem e o da mu-
ser reutilizado em favor da sociedade (algo lher começam a se delinearem. Embora a
bem próximo da concepção freudiana de formulação natural da diferença entre os
sublimação). Temos, então, as bases para sexos tenha se consolidado ao longo do
aquilo que, no final do século XIX, passou século XVIII e no início do XIX, o que
a ser chamado de “sexualidade”: não era teria definitivamente subvertido o mode-
mais possível pensar o sujeito sem o sexo. lo do sexo único foi a igualdade de direi-
Ao mesmo tempo, privilegiar a razão tos dos cidadãos proclamada pela Revo-
como a nova instância que determina o lução Francesa (LAQUER, 1992). Mas, as
sujeito autônomo teve um custo: a supre- conquistas ali alcançadas não propiciaram
macia do cérebro masculino sobre o siste- o proclamado: as mulheres não tiveram os
ma nervoso feminino centrado no útero. mesmos direitos que os homens. Com a
Ocorreu então, de um lado, uma biologi- falência do modelo do sexo único, funda-
zação da diferença sexual centrada sobre ram-se novas bases de hierarquia, susten-
o sistema nervoso feminino e o cérebro tadas pela natureza biológica, que deter-
masculino, e não sobre a diferença anatô- minavam as diferentes inserções sociais do
mica dos órgãos sexuais; e, por outro lado, homem e da mulher, o que, no fundo,
toda a discussão para se saber como o ho- manteve inalterada a dominação mascu-
mem poderia dominar sua sexualidade lina. É assim que, para avaliarmos corre-
para dela obter os prazeres conforme as tamente a posição da mulher na cultura
exigências da razão, da moral vigente e da ocidental – posição que influenciou o dis-
higiene (LAQUEUR, 1992). Trata-se do curso psicanalítico sobre a sexualidade fe-
modelo do sexo único. Como veremos minina –, não basta, por exemplo, denun-
mais adiante, por mais revolucionárias que ciarmos a sua exclusão em determinados
tenham sido as posições de Freud, ele setores da sociedade, sobretudo na época
manteve-se conservador no que diz res- de Freud. Mais do que isto: é necessário
peito a este modelo. Sua origem data da compreender as disposições hierárquicas
Antiguidade, e o expoente máximo foi que fizeram com que as mulheres, elas
Aristóteles. Para ele, existiria uma hierar- mesmas, participassem de sua própria ex-
quia entre os sexos, sendo o masculino o clusão (BOURDIEU, 2002). Talvez seja
mais perfeito. Após Aristóteles, Galeno na maternidade que o peso deste discurso
construiu uma versão final desse modelo mostre toda a sua força. O “tornar-se mãe”
que perdurou por séculos no Ocidente. passou a ser incentivado, como se se tra-
Introduzindo a teoria dos humores, Gale- tasse de algo natural – o instinto materno
no sustentava que o humores quentes con- – e não como uma construção ideológica
densaria as virtudes do masculino; e a sua que determinava sem apelo a importân-
ausência na circulação geral dos humores cia da mulher para o bem-estar social (BA-
caracterizaria o feminino (BIRMAN, DINTER, 1988). Ou seja, a única forma
2001). Galeno conclui que a morfologia de manter o novo paradigma sobre a dife-
20 Reverso • Belo Horizonte • ano 32 • n. 60 • p. 15 - 24 • Set. 2010
A invenção da sexualidade
Keywords
Sexual, Sexuality, Control, Culture, Psycho-
analysis.