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Contra Keynes e o Keynesianismo 1
1
O título deve inspiração à obra Contra Keynes and Cambridge: Essays, Correspondence (The Collected Works of F. A.
Hayek, Vol 9), University of Chicago Press, editado por Bruce Caldwell.
2
Estudo introdutório
2. A história de 3 crises
3. Keynes
4.3. Onde um terceiro passo é caracterizar o crescimento económico em termos de custos e preços -
a deflação benigna
4.4. O papel do sistema monetário e o juro como coordenador da alocação entre consumo e
investimento e as preferências temporais
5. Como contestar Keynes é identificar correctamente o que não funciona: a moeda, o crédito e banca
5.2. Um pouco da história da banca e as reservas fraccionárias, e como tem sido encarada
5.4. O papel dos Bancos Centrais como agentes que suportam e incentivam as reservas fraccionárias
6.1. O ano de 2008 - O reaparecimento das velhas corridas aos bancos… e aos Estados
3
6.2. Embriaguez dos Mercados – breve passagem pela história do pensamento económico recente e
a intuição do excesso de crédito: de Irving Fisher a Keynes, os neoclássicos-monetaristas, Minsky
e os post-Keynesianos
7. Conclusão
4
Estudo introdutório
À memória de Henry Hazlitt (1894 – 1993)2, profícuo jornalista económico mas também crítico
literário, escreveu editoriais e recensões no New York Times (NYT) de 1934 a 1946 sobre os perigos
do controlo económico, da fixação de preços, das falácias do Keynesianismo, do socialismo e
inflação. Abandonou o NYT devido à sua intransigente oposição ao acordo de Bretton Woods3,
incluindo à criação do Banco Mundial e FMI, tendo depois passado a escrever uma popular coluna na
Newsweek. Conhecido pelo seu livro de divulgação intitulado “Economia numa Lição”4, escreveu,
entre outros, um extraordinário livro em 19595 de análise crítica detalhada, no entanto acessível,
com múltiplas referências às contradições, inconsistências e mesmo distorções encontradas na
celebradíssima Teoria Geral6 de John Maynard Keynes, obra largamente referenciada e citada em
ambos os ensaios aqui presentes. Para quem conhece o valor de um elogio do sempre mordaz H. L.
Mencken, dizia este que Hazlitt era um economista que sabia escrever. Complemento esta
dedicação referenciando um texto escrito em língua portuguesa por Orlando Vitorino e publicado
em 1983, “Um sistema para a economia”7, o qual contém uma análise do Keynesianismo, com
referência à crítica que dele fazem Hayek e Milton Friedman, passando ainda pela praxeologia de
Mises.
O tema das crises económicas por si só transmite uma grande responsabilidade ao economista
independentemente da sua escola ou posicionamento político. Nas crises, o distúrbio da ordem
económica é elevado; o sofrimento de largos espectros da população é muito significativo,
2
Biography of Henry Hazlitt (1894-1993), Llewellyn H. Rockwell, Jr. (http://mises.org/page/1453/Biography-of-Henry-
Hazlitt-18941993, 20-10-2014).
3
Ler a sua entrevista de 1984 à The Austrian Economics Newsletter, onde conta o episódio com Arthur Sulzberger, editor
do Times (http://mises.org/journals/aen/aen5_1_1.asp, 20-10-2014).
4
Economics in one Lesson, Henry Hazlitt, [1946] 2007, (http://mises.org/document/6785/Economics-in-One-Lesson, 20-10-
2014).
5
The Failure of New Economics, Henry Hazlitt, [1959] 2007; a edição actual contém uma introdução de Murray N. Rothbard
(ver em http://mises.org/books/failureofneweconomics.pdf, 20-10-2014).
6
The General Theory of Employment, Interest and Money, John Maynard Keynes, 1936. Para uma edição online recorrer ao
excelente arquivo online Marxists Internet Archive em
http://www.marxists.org/reference/subject/economics/keynes/general-theory/index.htm, 20-10-2014.
7
Exaltação da Filosofia Derrotada, Orlando Vitorino, Guimarães Editores, 1983.
5
prestando-se esta, como será natural e compreensível, a momentos de desalento psicológico e
social, potenciando-se assim a sua receptividade a diagnósticos, culpabilizações e soluções propostas
com demagogia, perdendo-se a tranquilidade necessária a inquirir as causas mais profundas em vez
do arremesso imediato de potenciais falácias.
Além disso, é em grande medida, dentro do debate sobre causas e os remédios para as
consequências das crises que se joga uma boa parte do confronto de grandes conceitos entre
diversas escolas de pensamento económico, incluindo a chamada Escola Austríaca de Economia.8
Esta escola influencia a produção deste texto e de que os dois autores aqui traduzidos são uns dos
expoentes modernos e particularmente responsáveis pelo seu reavivar. Nesse sentido, a análise
crítica de Keynes ganha toda a importância dado estarem em jogo, por um lado, conceitos
económicos básicos fundamentais, e, por outro, uma história e narrativa que ofuscou e até silenciou
por décadas as perspectivas alternativas já existentes e as que se desenvolveram entretanto.
2. A história de 3 crises
A crise de 1920-21 nos Estados Unidos da América (EUA) começou por ser tão ou mais severa, em
alguns dos seus indicadores, que a Grande Depressão iniciada no final de 1929: por exemplo,
registou uma queda da produção industrial superior a 20% em 6 meses9. Devido a um conjunto de
circunstâncias únicas10 a crise de 1920-21 não foi sujeita a nenhum tipo de intervencionismo ou
8
Para uma síntese do que é esta escola do pensamento económico ver uma nota breve em What is Austrian Economics?
(http://mises.org/etexts/austrian.asp, 20-10-2014). Para aquilo que a diferencia das escolas de pensamento económico
dominante ver resposta a essa questão por Robert Higgs: “Acima de tudo, uma compreensão da escola austríaca revela
que a economia corrente e dominante é o exacto oposto do que ela afirma ser: não é ciência, mas cientificismo. Baseando-
se numa síntese da física do Século XIX, implícita ou explicitamente, assume que as acções humanas podem ser entendidas
da mesma maneira que os cientistas naturais entendem os movimentos e interacções de partículas materiais, substâncias
químicas, e correntes eléctricas. Infelizmente para a economia corrente, os seres humanos - ao contrário de partículas,
produtos químicos, e correntes - têm propósitos, que eles escolhem e que podem mudar, assim como uma capacidade
para a criatividade na escolha ou invenção de meios para a prossecução dos seus fins escolhidos. Só uma ciência que
reconheça a natureza essencial dos seres humanos, e como eles diferem de partículas materiais e correntes eléctricas,
podem alcançar uma compreensão da acção humana. A economia neoclássica esconde a sua nudez epistemológica sob um
manto enorme de representações simbólicas e manipulações matemáticas em modelos formais. Uma vez que se entenda o
em que tal consiste e pressupõe, neste viveiro de sábios idiotas lúdios, realizamos então que dificilmente alguma parte
dela sobreviverá a um escrutínio crítico cuidado.” (http://mises.org/daily/5614/Why-Austrian-Interview-with-Higgs, 20-10-
2014).
9
Ver em http://research.stlouisfed.org/fred2/graph/?id=INDPRO, 20-10-2014.
10
Concorreu para isso a incapacidade física do Presidente Woodrow Wilson, desde Outubro de 1919 até ao fim do
mandato em Março de 1921, mantida em segredo até 1924, afastando-o da cena pública e do contacto com o Congresso.
O outro factor foi que o Presidente seguinte, Warren G. Harding, era bastante ortodoxo fazendo-o notar logo no discurso
de inauguração, que aqui deixo traduzido, citado por Thomas E. Woods, Jr em The Forgotten Depression of 1920
(http://mises.org/daily/3788/, 20-10-2014): "O mecanismo económico é complexo e as suas partes interdependentes, e
sofreu os choques e incidentes de procura anormal, inflações de crédito, e alterações de preços. Os equilíbrios normais
foram prejudicados, os canais de distribuição têm sido obstruídos, as relações de trabalho e de gestão foram tornadas
tensas. Devemos procurar o reajuste com cuidado e coragem... Nenhuma consequência será leve, nem uniformemente
distribuída. Não há nenhuma maneira de fazer com que o sejam. Não há nenhum passo instantâneo da desordem para a
ordem. Temos de enfrentar a condição de uma realidade sombria, aceitar as nossas perdas e começar de novo. É a mais
antiga lição de civilização. Eu gostaria que o governo fizesse todo o possível para a atenuar e, então, no entendimento, na
6
estímulo – a despesa federal americana foi até reduzida agressivamente de 18.5 mil milhões (na
terminologia americana, biliões) de dólares no ano fiscal de 1919 para 3.3 mil milhões de dólares no
ano fiscal de 1922, e a deflação de preços no consumidor atingiu os 15,8% no ano seguinte ao pico
no Índice de Preços no consumidor registado em Junho de 1920, quando a Reserva Federal
Americana (FED) subiu a taxa de desconto para um valor, na altura, recorde de 7%. A taxa de
desemprego atingiu os 11,7% em 1921 mas desceu no ano seguinte para 6,7% e em 1923 era já de
2,3%!
É também, felizmente possível, comparar o desempenho dos EUA nessa mesma crise, também
internacional, no Japão recorrendo ao economista americano Benjamin Anderson (1866-1949):
Aliás, existe outra comparação possível, agora entre a Grande Depressão que dura mais de uma
década nos EUA (analisada mais à frente) e a mesma crise na Alemanha de 1931-32. Apesar de
reciprocidade de interesses, e na preocupação pelo bem comum, a nossa tarefa será resolvida. Nenhuma alteração de
sistema vai operar um milagre. Qualquer experiência selvagem só vai aumentar a confusão. A nossa melhor garantia está
na administração eficiente de nosso sistema que está comprovado".
11
Ver o artigo disponível online de Robert P. Murphy, The Depression You’ve Never Heard Of: 1920-1921, The Freeman,
December 2009. Publicado pela Foundation for Economic Education (http://fee.org/the_freeman/detail/the-depression-
youve-never-heard-of-1920-1921, 20-10-2014).
12
E, como diz o economista Robert Murphy no seu livro sobre a Grande Depressão: “Não se deu nada de pouco usual no
ritmo de colapso na massa monetária, ou na deflação de preços, no início da década de 1930. Se Friedman está correcto
em afirmar que a inacção da Reserva Federal causou a Grande Depressão, porque é que os EUA não passaram por piores
catástrofes antes de 1913, quando a Reserva Federal nem sequer existia?” The Politically Incorrect Guide to the Great
Depression, Robert Murphy, 2009, Regnerty Publishing, Inc. Location 467.
13
Tal como citado por Thomas E. Woods, Jr no seu artigo já referenciado, The Forgotten Depression of 1920.
7
alguns círculos (uns por afinidades políticas, outras pelas de doutrina económica em alguns aspectos,
apesar do antagonismo político) pretenderem atribuir às políticas de intervencionismo de Hitler um
qualquer milagre económico ocorrido com a sua subida ao poder em 1933. Contudo, a realidade
histórica parece conter mais subtilezas, segundo alguns autores.
Como resultado do traumatismo alemão com a hiperinflação alemã (1918-1923) sofrida durante
a República de Weimar na sequência do fim da Grande Guerra e do recurso à monetização directa
da despesa do Estado para, entre outras coisas, poder proceder ao pagamento das reparações
impostas no Tratado de Versalhes (curiosamente, o último pagamento formal deu-se ainda em
2010), quando surge a Grande Depressão em 1929, os alemães são, nesta altura, extremamente
relutantes a usar os mesmos processos via intervencionismo monetário (quer para “salvar” o
sistema bancário quer para fins da despesa pública). Não que o deixassem de aplicar na totalidade,
mas em bastante menor grau que outros, incluindo nos E.U.A. com Roosevelt. O resultado foi um
processo de liquidação (falências, renegociação de dívidas, etc.) e deflação acentuada (os salários
sofrem quedas nominais mais relevantes que nos E.U.A.) durante a contracção que se verifica em
1931 e 1932. Mas no ano em que Hitler sobe ao poder, em 1933, a economia cresce já mais de 5%14
e a sua atitude inicial terá sido mais contida que Roosevelt em vários domínios, incluindo em relação
à defesa mais ortodoxa da moeda ou se quisermos, resistência a implementar medidas mais
heterodoxas. É assim uma ironia fina que a recuperação alemã tenha chegado de facto muito mais
rapidamente que a americana e quando Hitler começa a projectar a sua agressividade militar e um
grau de intervenção mais acentuado na economia alemã já esta se encontrava em plena
recuperação, de tal forma que tem de intervir para enfrentar problemas de quase pleno emprego,
obrigando ao serviço civil-político obrigatório. Os Keynesianos terão como que dificuldade em
assumir, por razões óbvias, a sua outra interpretação, a de que teria sido a mão intervencionista de
Hitler que permitiu a recuperação rápida (a do emprego foi a mais célere entre todos os países), mas
o processo tem sim componentes do já citado caso da crise de 1920–21 nos EUA.15 Para comprovar
esta visão podemos também recorrer à obra de Adam Tooze, publicada em 200716 e cuja recensão
pelo conhecido historiador inglês Niall Fergusson considerou ser a mais importante e original obra
sobre as políticas do regime nazi publicado nos últimos 20 anos. Citando:
"No mesmo período [Fevereiro de 1933, quando Hitler tomou o poder... a Março de 1934] o
desemprego caiu mais de 2,6 milhões (...) A conclusão é inevitável: Apesar da fanfarra
propagandística que acompanhou o renovado programa da Batalha pelo Trabalho em 1934, de
facto pouca ou nenhuma contribuição pode ser imputada para a redução contínua do
desemprego. (...) o que é inconfundível é que em ambos os anos de 1933 e 1934 houve uma
recuperação natural poderosa no sector dos negócios alemão. Em 1933, as despesas de
investimento...foram um grande impulsionador da recuperação."
14
Ver em http://en.wikipedia.org/wiki/Economy_of_Nazi_Germany.
15
Fontes: The Economic Doctrine of the Nazis (video), Hans-Hermann Hoppe (http://www.mises.org/media/1571/The-
Economic-Doctrine-of-the-Nazis-video, 20-10-2014). E ainda comentários dispersos em palestras no Mises Institute
denominadas The Economics of Deflation por Jorg Guido Hülsmann (Professor de Economia na Universidade de Angers,
França).
16
The Wages of Destruction: The Making and Breaking of the Nazi Economy, Adam Tooze, Viking Adult, 2007.
8
Por curiosidade, e a propósito da evolução da economia alemã, vale a pena referir que na
publicação em 1938 da edição Alemã da Teoria Geral de Keynes este incluiu o seguinte na sua
Introdução:
“Contudo, a teoria do output como um todo, que é o que este livro se propõe a fornecer, é
muito mais facilmente adaptado às condições de um Estado totalitário que (…) sob condições de
livre concorrência e uma grande medida de laisser-faire.”
“Se na depressão de 1920-21 os salários nominais chegaram a cair 20% num ano, em 1931
esse declínio foi apenas de 3%. Por contraste, os preços caíram mais substancialmente 8.8%.
portanto os salários reais subiram significativamente em 1931 e eram maiores que em 1929,
altura em que a produção por trabalhador era mais alta… subiram à taxa anual composta de 3%
entre 1929 e 1933.”18
“Outro factor que está a contribuir para prolongar o actual período de depressão é a rigidez
dos salários. Os salários aumentam em períodos de expansão. Em períodos de contracção, devem
cair, não apenas em termos nominais, mas em termos reais também. Ao evitar a baixa dos
salários durante um período de depressão, a política dos sindicatos torna o desemprego um
fenómeno massivo e persistente. Além disso, essa política adia a recuperação indefinidamente.
Não se pode regressar a uma situação normal até que os preços e salários se adaptem à
quantidade de dinheiro em circulação”.
17
Sobre o papel de Hoover ver America's Great Depression, Murray N. Rothbard, [1963] 2009, o qual, como habitual no
caso de economistas da Escola Austríaca que publicaram no pico do consenso académico do que habitualmente se
denomina de síntese neoclássica-keynesiana, foi no seu tempo ignorado (para o qual parece ter contribuído ter sido
publicado sensivelmente na mesma altura que o famoso livro de Milton Friedman e a sua tese sobre insufuciente acção por
parte da Reserva Federal), incluindo nos círculos conservadores, mas a sua reedição mais recente – a quinta - contou já
com uma introdução do conhecido historiador, autor e jornalista Paul Johnson.
18
Citado em The Politically Incorrect Guide to the Great Depression, Robert Murphy, 2009, Regnerty Publishing, Inc.
location 697. Um dizer da época referia que a Grande Depressão não tinha sido tão má assim, desde que mantendo-se com
o emprego. Compreende-se, tendo os salários nominais sido artificialmente suportados, tentando contrariar uma natural
descida geral dos preços, todos os que se mantiveram empregados viram o seu poder de compra aumentar
significativamente.
9
Mais recentemente, um ensaio de 2009 sobre o tema de um reputado economista da UCLA, Lee
E. Ohanian, no Journal of Economic Theory denominado “What - or Who - Started the Great
Depression?”19 veio corroborar esta tese. No seu sumário escreve:
“Desenvolvi uma teoria de falha no mercado de trabalho para a Depressão com base nos
programas de trabalho industrial implementados por Hoover e que forneciam à indústria
protecção dos sindicatos em troca da manutenção dos salários nominais, essa teoria explica
grande parte da profundidade da depressão e para a assimetria da depressão entre sectores. A
teoria também pode responder porque a deflação e baixa da despesa nominal, teve um grande
impacto real durante os anos 1930, mas não durante outros períodos de deflação significativa.”
Já Keynes, como relata Rothbard na sua obra, tinha escrito um memorando ao primeiro-ministro
Ramsey Macdonald, informando-o da sua visita à América e elogiando os seus esforços para manter
o nível de salários.
20
Ficam aqui citadas no original e recomenda-se até a sua comparação com a mesma linha ortodoxa do discurso de
inauguração do Presidente, Warren G. Harding, que enfrentava a crise de 1920-21, contida na nota 10: “Liquide-se o
trabalho, liquide-se as acções, liquide-se os agricultores, liquide-se os imóveis... Irá limpar a podridão fora do sistema. O
alto custo de vida vai descer. As pessoas vão trabalhar mais, viver uma vida mais moral. Valores serão ajustados, e as
pessoas empreendedoras vão pegar nos destroços deixados pelas pessoas menos competentes.”
10
componentes do keynesianismo (a sugestão do subconsumo como causa, expresso nos efeitos
derivados da baixa de salários) já existam há muito:
“Os salários baixos e as longas horas de trabalho foram assim concebidas para extrair os
custos mais baixos e os lucros mais altos… mas estamos agora no longo caminho em direcção a
novos conceitos. A verdadeira essência da grande produção são os salários altos e preços baixos,
porque disso depende o alargamento… do consumo, a ser obtido pelo poder de compra de altos
salários reais e a melhoria do nível de vida.”21
A este respeito foi recentemente publicado no número 203 da Análise Social – Revista de Ciências
Sociais da Universidade de Lisboa por José Luís Cardoso, o texto “Ecos da Grande Depressão em
Portugal: relatos, diagnósticos e soluções”, onde se pode ler:
Não é assim de admirar que após 1929, Hoover estivesse desde logo aberto a praticar aquilo a
que sempre esteve predisposto e contribuindo assim com a sua quota-parte para o resultado de
mais de uma década em crise.
“Tentamos a despesa. Estamos a fazer mais despesa que alguma vez já fizemos e não
funciona… depois de 8 anos desta administração, temos tanto desemprego como quando
começamos … e adicionamos uma enorme dívida”24
A verdade não conveniente é que a Grande Depressão pode talvez ser apresentada como uma
primeira manifestação empírica dos efeitos negativos de políticas públicas concertadas (cartelização
patrocinada ou mesmo mandatada pelo governo federal, poderes reforçados dos sindicatos, etc.)
para impedir a queda de preços e salários, dado que é a primeira vez que uma acção governativa em
21
Hoover citado em ver America's Great Depression, Murray N. Rothbard, [1963] 2009.
22
Texto disponível em http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1341933298W9eCC7mw8Sp95GF9.pdf, 20-10-2014.
23
Bureau of Labor Statistics em http://www.bls.gov/home.htm.
24
Citado em The Politically Incorrect Guide to the Great Depression, Robert Murphy, 2009, Regnerty Publishing, Inc.
Location 678.
11
grande escala encontra condições objectivas de aceitação social generalizada25 para as implementar,
bem como do proteccionismo do comércio internacional e todo um programa de intervencionismo
experimental criando um regime de elevada incerteza sem paralelo na história dos EUA, retraindo
por isso mesmo, o investimento privado.
Até aí as recessões cíclicas caracterizavam-se por deflação de preços e salários, de tal forma que
Henry Hazlitt cita - não sem que antes cuidadosamente e tipicamente para um autor proto austríaco,
deixe de fazer observações sobre os problemas que emanam da tentativa de determinar
estatisticamente uma qualquer elasticidade de preços - uma investigação de Paul Douglas e A. C.
Pigou num seu cálculo sobre a relação entre salários e emprego, e onde se conclui da possibilidade
de uma redução de 1% nos salários poder aumentar em 3% o emprego.26 Este dado parece estar de
acordo com os exemplos já citados de períodos de deflação.
Mas com esta análise, podemos concluir também de uma inconsistência, à partida, na explicação
convencional Keynesiana de que a queda do consumo leva à queda de produção que conduz à
queda de expectativas e assim à queda de investimento e cujo ciclo vicioso só poderá ser quebrado
por despesa do estado, já que não explica como poderá alguma vez uma recessão ou depressão ter
alguma vez sido ultrapassada sem as modernas prescrições por parte de bancos centrais (onde em
muitos casos nem existiam) e despesa do governo, agravado este argumento, adicionalmente com a
ocorrência típica de falências de bancos e indústria, queda da massa monetária, deflações de preços
e salários. Mas isso era o que tipicamente se passava até ao advento da “nova economia” de Keynes
e dos modernos bancos centrais.
Será essa a razão por que não se ouve falar da crise nos EUA de 1920-21? Por corresponder a
uma antítese do que o pensamento económico convencional hoje tem como certo: que a ausência
de intervencionismo e estímulos monetários e orçamentais conduzirá inevitavelmente a economia
ao tal círculo vicioso de prolongada recessão ou mesmo depressão deflacionista?
3. Keynes
Citando uma caracterização de Clifford F. Thies num texto que abarca a temática do paradoxo da
poupança:
25
A economia de guerra da Primeira Guerra Mundial já tinha entretanto também preparado essa aceitação – “war is the
health of the State” dizia na altura o jornalista Randolph Borne.
26
“Paul Douglas e A.C. Pigou, como já apontei noutra ocasião, de forma independente, antes do aparecimento da Teoria
Geral, tentaram uma resposta estatística a esta pergunta, e chegaram a um acordo surpreendente com a conclusão de que
a elasticidade da procura por trabalho é de cerca de -3. Isto significa que um por cento de redução nos salários pode
significar um aumento de três por cento no emprego, se os salários estavam anteriormente acima da produtividade
marginal do trabalho, ou, inversamente, que um por cento de aumento nos salários pode significar três por cento de
redução do emprego, se os salários estão acima da produtividade marginal do trabalho. (...) Os estudos estatísticos de
Douglas e Pigou parecem levantar pelo menos uma presunção a favor de uma resposta (geralmente) de alta do emprego a
mudanças nos salarios.” The Failure of New Economics, Henry Hazlitt, [1959] 2007; página 269.
12
"A Teoria Geral é amplamente reconhecida por estar errada em muitas de suas afirmações
mais importantes, além de ser um livro desorganizado, confuso e auto-contraditório. Quanto à
interrogação de "como é que um livro tão cheio de obscuridades, contradições, confusões,
distorções foi saudado como uma das grandes obras do século XX", efectuada por Henry Hazlitt
(1960: 9-10) - um crítico de Keynes – este coloca-o sem rodeios: "como acontece com as obras de
Hegel e Marx, a mistificação acrescentou ao prestígio do livro. A inelegibilidade foi assumida
como uma prova de profundidade." Samuelson (1964: 316) - um admirador de Keynes - escreve:
É um livro mal escrito, mal organizado, qualquer leigo seduzido pela reputação anterior do
autor, pode sentir-se enganado nos seus cinco xelins. Ele não é adequado para o uso em salas
de aula. Ele é arrogante, mal-humorado, polémico e não excessivamente generosos em seus
agradecimentos. É rico em confusões... Em suma, é a obra de um génio.
Por A Teoria Geral ser um livro tão mal escrito, "há," de acordo com Axel Leijonhufvud
(1968: 35), "espaço... para diferentes interpretações de Keynes". Na verdade, Leijonhufvud
argumenta que, se a sua interpretação não é o que Keynes quis dizer, é "... o que ele deveria
ter dito." Samuelson (1964: 316) escreve que "há razão para acreditar que o próprio Keynes
não compreendia verdadeiramente a sua própria análise." 27
“Ao contrário de outros trabalhos de Keynes, esta obra á altamente obscura. Talvez se
assim não o fosse e os economistas não se teriam dedicado a discutir sobre os seus
significados e intenções e assim não se teria mostrado tão influente. Os Economistas reagem
bem à obscuridade e perplexidade associada.“28
27
The Paradox of Thrift: RIP , Clifford F. Thies, The Cato Journal, Vol. 19 Nº1, http://www.cato.org/pubs/journal/cj16n1-
7.html, 20-10-2014.
28
Retirado de Keynes Hayek The Clash That Defined Modern Economics, Nicholas Wapshott. Location 2637.
29
Década que testemunha o Presidente Americano Richard Nixon a afirmar “agora sou um economista Keynesiano” por
altura da sua decisão de acabar (seria mais correcto chamar-lhe default) com a última ligação do dólar ao ouro. Logo a
seguir, quando a inflação começa a operar aplicaria medidas de controlo de preço que conduziria aos problemas habituais
de disrupção da oferta.
30
A crise económica iniciada em 2008 distingue-se de outras anteriores pelo visível quase colapso do sistema bancário
global (sujeito a corridas a bancos, um tipo de evento do qual já se tinha apenas uma memória longínqua) evitado apenas
por intervenções directas por parte de vários Estados (apressando-se a produzir declarações de intenção sobre a garantia
13
também à repetição dos mesmos diagnósticos e prescrições. Disso mesmo revelador é o facto de um
conhecido académico de direito, e de direita, Richard A. Posner (University of Chicago Law School),
ter escrito em Setembro de 2009 “Porque me tornei Keynesiano”31.
O próprio Keynes está consciente do seu papel e do poder das ideias na ciência económica, e
para avaliarmos isso nada melhor que citar o próprio:
“As ideias de economistas e filósofos políticos, quer quando elas estão certas e quando estão
erradas, são mais poderosas do que é geralmente entendido. Na verdade o mundo é governado
por pouco mais. Homens práticos, que acreditam serem completamente isentos de qualquer
influência intelectual, geralmente são os escravos de algum economista defunto.”
O que se dá com a Teoria Geral de Keynes, é que parece ter desaparecido o papel tradicional do
economista como uma barreira de defesa intelectual contra falácias demagógicas, desde cedo uma
dos depósitos) e Bancos Centrais em Bancos na eminência de entrarem em incumprimento, quer pelas injecções de moeda
e reservas sem precedente (bem visível nos dados quantitativos da base monetária). Por último é de salientar que o grau
de grandeza dos subsequentes défices orçamentais, na ordem dos 10%, é cerca do dobro do défice máximo verificado na
Grande Depressão, em 1934 de 5,3% pela Administração de Roosevelt.
31
How I Became a Keynesian, Second thoughts in the middle of a crisis, Richard A. Posner, The New Republic, Setembro
2009 (ver http://www.tnr.com/article/how-i-became-keynesian?page=0,2, 20-10-2014).
32
A que me vou arriscar a caracterizar como de centralismo social-democrático de esquerda e direita, onde lentamente o
conjunto dos receptores dos Orçamentos de Estado (e de protecções directas ou indirectas legislativas ou via acção
executiva) se tornam a força de influência maioritária na sustentação do regime (o efeito não é directo como sabemos,
mas a validade desta inferência mantém-se) de proeminência do Estado Social e da despesa pública, tornando qualquer
mudança prudencial do sistema, de difícil ou impossível realização, dada a própria lógica dos regimes políticos. A
democracia ainda não gerou todos os mecanismos institucionais de defesa da sua própria sobrevivência a longo prazo.
33
Como bem o enunciou em tempos Richard M. Weaver, académico e promotor do conservadorismo tradicional, na sua
obra com o mesmo título, de 1948, onde analisa a história das ideias e a sua relação com o que vê como o decaimento do
Ocidente.
14
prática visível nos autores clássicos, que se debatiam por exemplo, com o pensamento mercantilista,
que de resto, Keynes recupera utilizando outras roupagens, como por exemplo, criando novas
terminologias para o já estava estabelecido como prática usual.
Se nas ciências naturais, o papel do espírito científico intranquilo assumiu o difícil papel de
contradizer ilusões e percepções imediatas, como a de a terra parecer plana ou constituir o centro
do universo, na disciplina económica, algo como a ilusão do benefício dos juros (artificialmente)
baixos - possível nominalmente, pelo menos temporariamente, via expansão monetária e/ou a
fixação administrativa de algum tipo de taxa de juro - permanece a regra. Ou seja, se antes o
economista tentava conter o ímpeto intervencionista do soberano ou poder político, esgrimindo
argumentos racionais e desmontando falácias, agora o economista passa a ser o potenciador da
imaginação sempre criativa do poder político para intervir e satisfazer demagogicamente uma nova
classe de acções a que por exemplo o multiplicador Keynesiano do rendimento operado pela
despesa pública, responde na perfeição, e no preciso momento em que em todos os restantes
domínios do conhecimento se procura impor uma razão, por vezes quem sabe até com um
optimismo exagerado quanto às suas possibilidades e capacidades, imune a idiossincrasias
intelectuais.
Entre as muitas curiosas reminiscências do Keynesianismo que emergem a cada crise podem ser
apontadas a caracterização do consumidor e investidor que subitamente padecem, cada um à sua
maneira, duma espécie de pessimismo depressivo que torna premente a intervenção de agentes
públicos e especialistas vários no sentido de conduzir novamente as suas “expectativas” para um
estágio de normalidade impondo-se então como necessária uma espécie de psicoterapia de massas
destinada à cura da sua súbita exagerada (depreende-se) preferência por liquidez que provoca uma
abstenção de consumo por uns e abstenção de investimento por outros (se bem que em Keynes a
acusação de tendência natural para o excesso de poupança seja estrutural) e que tem de ser
contrariada por políticas monetárias34 e fiscais35 activas. A despesa pública é então evocada para dar
34
A capacidade de expansão do crédito que uma moeda “elástica” estabelece, é justificada também em parte, como se
verá, por supostamente permitir escapar às restrições impostas pelos aforradores que de outra forma, condicionariam o
desenvolvimento económico exigindo uma taxa de juro demasiado alta (não se percebendo bem qual seria a adequada,
mas quem sabe, toda a que seja acima de 0%) para abdicar ou afastar-se da liquidez (isto na concepção Keynesiana que o
juro é um fenómeno puramente monetário, um prémio para abandonar a posse de moeda, conceito refutado no presente
ensaio miseseano de Hoppe). É relevante a contradição desta visão, com o facto de ser numa crise onde opera a tal
“armadilha de liquidez” de fuga para a posse de moeda, que as taxas de juro (o seu nível, digamos, geral) baixem
significativamente (ainda que os spreads de risco aumentem para muitos agentes percepcionados como contendo risco
acrescido de default). Mas não deveriam, segundo Keynes, as taxas de juro dispararem?
35
Um dos argumentos evocados para justificar o imposto progressivo sobre os rendimentos elevados, não passa apenas
pelo argumento redistributivo, mas também pela “transferência” de poder de compra para os rendimentos mais baixos
que o irão despender maioritariamente em consumo, o que será considerado positivo; por outro a despesa e investimento
público têm lugar para se substituir ao capitalista que pela sua própria natureza, só investe na condição de auferir de uma
elevada “eficiência marginal de capital”, para usar o termo da Teoria Geral. Note-se que, quer um quer o outro argumento,
reforçam a ideia que o jogo económico livre nunca poderá ser sustentável por si próprio, sendo vital uma acção esclarecida
para prevenir uma tendência natural sim, mas para a insuficiência da procura e o desemprego estrutural.
15
à economia o que lhe é negado pelas acções individuais – procura agregada - dado a relutância quer
em consumir quer em investir a níveis adequados, sendo os défices orçamentais e o crescimento da
dívida vistos como uma substituição e estímulo da procura agora supostamente desaparecida na
voragem da chamada fuga para a liquidez. A esta ideia soma-se o cardápio de estímulos, com uma
baixa agressiva de taxas de juro de referência pelos Bancos Centrais e injecção de novas quantidades
de moeda de modo a reactivar a “circulação” do crédito, influenciando-se assim também as
expectativas (o “espírito animal” evocado por Keynes) desse segundo agente económico
inerentemente sujeito a extremas flutuações psicológicas que são os investidores e empresários.
No fundo, ironizando, existe aqui um diagnóstico colectivo de agentes económicos bipolares (os
empresários e os consumidores) a precisarem da cuidadosa acção equilibradora do economista por
um lado, e o aborrecido e sempre previsível aforrador que se apressa a aumentar ainda mais a sua já
habitual poupança que retira consumo e portanto produção à economia.
Repare-se que hoje, as recomendações para uma suposta gestão científica da procura agregada
são já prescritas como políticas estruturais - a diferença é que perante uma crise (a qual, é de
sublinhar, aparece sempre após um período de aparente saúde económica) são como que ampliadas
em doses adicionais de expansão de crédito e moeda, mais despesa pública e défices orçamentais do
que o habitual.
Pessoalmente gosto de enfatizar que se age e pensa como se o crédito constituísse agora uma
função económica perfeitamente autónoma, com capacidade para estimular o investimento e a
despesa geral do estado, sem que tal implique a abstenção de consumo. É assim possível observar
no dia-a-dia, por parte de políticos, comentadores e economistas, se bem que na maior parte das
36
Tal espectro não considera o efeito do aumento do poder de compra (tanto maior quanto maior for a queda de preços)
do stock de saldos monetários, que em si, induz e incentiva a desacumulação de liquidez, dado cada unidade monetária ver
assim aumentado o seu poder de compra. Será caso para dizer, que a queda de preços cria a sua própria procura (uma
espécie de piada privada para os habituais críticos da chamada Lei de Say, mencionada mais à frente nesta introdução),
contrariando a tese do adiamento ad infinitum da despesa (de resto, observada nos produtos em ciclo de inovação
acelerada, onde os preços descem e a qualidade aumenta apesar da inflação de preços afectar os restantes produtos). Em
especial, também não será considerado que uma queda benigna de preços nominais é a consequência natural do
crescimento económico e aumento da produtividade num ambiente de estabilidade monetária.
37
Aparecendo sistematicamente o exemplo de Roosevelt como líder no “mundo livre”, que não mais faz, em muitos
aspectos, do que repetir políticas do fascismo europeu.
16
vezes em momentos diferentes resultando a incoerência menos visível, o estímulo simultâneo ao
consumo como quer ao crédito ao investimento e ainda à despesa do estado, como se o aumento de
um (por exemplo o consumo) não dependesse da diminuição da poupança disponível para
investimento, apontando, em vez disso, o que denominam de fuga para a liquidez38 como o culpado
pela queda de ambos, um acto classificado em parte, como saído da irracionalidade e inconstância
dos agentes económicos e uma causa em si mesmo da crise, em detrimento de se considerar tal
abstenção, uma consequência e ainda menos, como fazendo parte do processo dinâmico de
estabilização.
“Existe espaço, por conseguinte, para ambas as políticas, operarem em conjunto: para
promover o investimento e, ao mesmo tempo, promover o consumo…”.
Isso torna-se visível, mais uma vez, se seguirmos com atenção as sucessivas declarações por
economistas e políticos, que vão intercalando entre o enfoque no estímulo ao consumo umas vezes,
outras ao crédito ao investimento, e ainda outras à despesa pública, aceitando-se assim maiores
défices orçamentais e crescimento da dívida pública que o já habitual.
De resto, Keynes voa mais longe, talvez para o infinito e mais além, e afirma mesmo:
Em Keynes está assim sempre subjacente a ideia que a escassez de capital é um obstáculo
artificial que pode ser ultrapassado, quer porque é possível libertar a economia das exigências de
uma taxa de juro artificialmente alta exigida pelo capitalista e “rentiers”, como ainda melhor, será
possível acabar com a necessidade do investimento estar dependente de um acto de poupança
prévia, dado a abstenção de consumo ser prejudicial.
38
A detenção ou entesouramento de saldos monetários (o termo anglo-saxónico é “hoarding”) que deixam - diz-se
correntemente - de “circular” na economia, era algo a que Keynes era especialmente avesso; razão pelo qual combateu o
padrão-ouro que facilita a posse de moeda fora do sistema bancário.
39
Jean-Baptiste Say (1767-1832), economista clássico (outros dirão pré-escola-austríaca). A citação relevante no original
da sua obra A Treatise on Political Economy, Jean-Baptiste Say, 1832:
“It is worthwhile to remark, that a product is no sooner created, than it, from that instant, affords a market for
other products to the full extent of its own value. When the producer has put the finishing hand to his product, he
is most anxious to sell it immediately, lest its value should diminish in his hands. Nor is he less anxious to dispose of
the money he may get for it; for the value of money is also perishable. But the only way of getting rid of money is in
the purchase of some product or other. Thus, the mere circumstance of the creation of one product immediately
opens a vent for other products.
For this reason, a good harvest is favourable, not only to the agriculturist, but likewise to the dealers in all
commodities generally. The greater the crop, the larger are the purchases of the growers. A bad harvest, on the
contrary, hurts the sale of commodities at large. And so it is also with the products of manufacture and commerce.
17
Regra geral, existe o hábito, por parte de estudantes de economia, de apontar a ignorância da
velha Economia citando o que Keynes estabeleceu como tendo sido uma formulação de Say:
Ora, segundo Murray N. Rothbard, Say nunca usou tal expressão, tendo escrito que a síntese
correcta de Say deve ser expressa como:
Também o economista W.H.Hut em 1975 e 1979 procurou reabilitar Say, onde produz a seguinte
síntese:
“A procura de qualquer bem é uma função da oferta de outros bens não-concorrentes [com
esse bem].”40
E assim faz sentido que Say conclua (no mesmo capítulo de onde se pode inferir a sua lei) com
provável irritação do Keynesianismo:
“… o incentivo ao mero consumo não traz nenhum benefício para o comércio, pois a
dificuldade reside em fornecer os meios e não em estimular o desejo de consumo, e vimos que a
produção é o que fornece os meios. Assim, é o objectivo de um bom governo estimular a
produção, e a de mau governo encorajar o consumo”
De facto, ninguém produz algo a não ser para, com os produtos resultantes, proceder a uma
troca - procura - por outros bens. A procura nunca é insuficiente, no sentido, que ninguém passou a
desejar possuir e consumir menos do que mais.
“Sempre que a economia se deteriorava, o mercador comum tinha duas explicações à mão: o
infortúnio era causado por uma escassez de moeda ou por uma superprodução generalizada.
Adam Smith, numa famosa passagem no seu livro "A Riqueza das Nações", demoliu o primeiro
desses mitos. Say dedicou-se predominantemente a uma refutação meticulosa do segundo. (…)
As mercadorias, disse Say, são em última instância pagas não com moeda, mas com outras
mercadorias. A moeda é simplesmente o meio de troca mais comumente utilizado; a sua função
é apenas intermediar a transacção. No final, o que o vendedor quer receber em troca das suas
mercadorias vendidas são outras mercadorias.”41
The success of one branch of commerce supplies more ample means of purchase, and consequently opens a
market for the products of all the other branches; on the other hand, the stagnation of one channel of
manufacture, or of commerce, is felt in all the rest.”
40
Retirado do artigo Understanding Say's Law of Markets, STEVEN HORWITZ, na The Freeman,
http://www.fee.org/the_freeman/detail/understanding-says-law-of-markets/,20-10-2014.
41
Em português, via Instituto Ludwig von Mises Brasil (http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=159, 20-10-2014).
18
Não significa esta acepção que qualquer produção produzida a qualquer preço obterá procura,
pelo menos a um dado custo e preço de produção, já que o sistema de prejuízos que penaliza o erro
empresarial trata de eliminar a não-procura a um dado custo e preço. No entanto, esta lei de Say,
tem servido desde Keynes como meio de descrédito dos economistas clássicos: como os ter em
conta depois de, infantilmente (depreende-se de Keynes), partirem do pressuposto que toda e
qualquer produção encontrará sempre o seu consumidor?
Não é Say, ou ainda menos o conjunto dos economistas clássicos, que se esquece que aspectos
da realidade monetária (moeda, crédito e dívida, etc.) podem causar desequilíbrios, mas sim quem
analisa as crises que se esquece como pode a economia funcionar em primeiro lugar ainda antes
desses desequilíbrios surgirem. Mas será que os clássicos não analisaram a ocorrência de ciclos?
Segundo Steven Kates, autor do livro Say’s Law and the Keynesian Revolution, aqui citado numa
recensão por Mark Skousen:
"A teoria clássica explicou as recessões, mostrando como erros na produção podem ocorrer
durante os cíclicos de crescimento que fazem com que alguns bens permaneçam por vender a
preços que cubram os custos" O modelo clássico era uma "teoria altamente sofisticada da
recessão e do desemprego", que com uma vassourada pelo lustroso Keynes foi "apagado".
No seu livro com base ampla, Kates destaca outros economistas clássicos, incluindo David
Ricardo, James Mill, Robert Torrens, Henry Clay, Lavington Frederick, e Wilhelm Röpke, que
estenderam a Lei de Say. Muitos economistas clássicos focaram-se em como a inflação monetária
exacerbava os ciclos económicos. Eles foram precursores dos austríacos Ludwig von Mises e FA
Hayek.”42
Mais recentemente; num artigo simples denominado “A deturpação sistemática de Say”, Juan
Jamón Rallo43 cita cirurgicamente John Stuart Mill e Jean Baptiste Say provando sucintamente como
correcto era já o pensamento clássico, e como se torna evidente a tentativa do Keynesianismo de o
apresentar como algum exotismo de raciocínio:
“Os meios de pagamento com que as pessoas adquirem bens que outras pessoas produzem
são os bens que possuem. Todos os vendedores são inevitavelmente compradores. Se de repente
pudéssemos duplicar a capacidade produtiva do país, duplicaríamos a produção de mercadorias
em cada mercado; mas, ao mesmo tempo, estaríamos a aumentar para o dobro o nosso poder
aquisitivo. A procura de todos duplicaria juntamente com a oferta: todos seriam agora capazes de
comprar o dobro, porque todos teriam o dobro para oferecer em troca.”
E ainda:
42
Say's Law Is Back, MARK SKOUSEN, em http://www.fee.org/the_freeman/detail/says-law-is-back/, 20-10-2014.
43
Ver tradução do artigo para português em http://mises.org.pt/posts/artigos/a-deturpacao-sistematica-de-say-juan-
jamon-rallo/, 20-10-2014.
19
ou materializar esse novo poder aquisitivo na fabricação de novos produtos. Em qualquer caso, a
oferta tenderá a adaptar-se e o valor dos bens irá alinhar-se com o seu custo de produção.”
Ao mesmo tempo que mostra como Say reconhecia o problema da possibilidade do excesso
parcial da oferta, citando-o também:
“Uma sobreprodução de mercadorias específicas ocorre porque a oferta de tais bens superou
a procura devido a uma dessas duas causas: ou porque se produziu em excesso ou porque a
produção de outros bens é insuficiente.“
O que Keynes na verdade acabou por estabelecer são inversões de verdades económicas
fundamentais e retiradas de um contexto específico de crise.
Propõem-se assim como que 3 aforismos - e julgo ser a primeira ver que assim se tenta
caracterizar a meu ver, de forma até bastante fiel, o Keynesianismo - que respondem, nos seus
próprios termos, à caracterização distorcida dos autores clássicos como afirmando e depois
interpretando simplisticamente que “a produção cria a sua própria procura” no sentido de “toda a
produção tem procura por natureza”:
“…no estado normal das modernas comunidades industriais, o consumo limita a produção
e não a produção o consumo”.
“É tudo acerca da Procura. Porque é o desemprego tão alto e a produção tão baixa?
Porque nós – e por “nós” refiro-me a consumidores, empreendedores e governo – não
estamos a fazer despesa suficiente”.44
Acresce ainda que a polémica sobre o chamado paradoxo da poupança corrobora esta atitude
perante o consumo. Paul Krugman caracteriza aqui sucintamente a chamada armadilha da
liquidez e o paradoxo da poupança:
44
End this Depression now!, Paul Krugman, W.W.. Norton & Company,2012.
20
da poupança”…numa economia deprimida, o que acontece quando toda a gente tenta poupar
mais (e assim fazer menos despesa) é o rendimento diminuir e a economia contrair…as
empresas investem menos, não mais: numa tentativa de maior poupança pelos indivíduos, os
consumidores acabam a poupar menos de forma agregada”
Segundo Krugman, esse paradoxo da poupança vai conduzir a outros dois: o paradoxo da
desalavancagem: quando todos estão a tentar pagar dívidas, num mundo de rendimento
decrescente e menor valores dos activos, os problemas do endividamento pioram em vez de
melhorarem. E depois o paradoxo da flexibilidade: embora um indivíduo possa melhorar a sua
situação aceitando um emprego com menor salário, se corresponder a um movimento geral,
resultará em menores rendimentos mais o mesmo nível de dívida. E por isto mesmo, acrescenta,
é que alguém tem de fazer despesa e endividar-se enquanto outros poupam e diminuem o
endividamento. Outras posições mais heterodoxas começam e defender, não o aumento de
dívida mas sim a pura monetização dos défices.
“A noção de que a criação de crédito pelo sistema bancário permite que investimento
tenha lugar a que não corresponde ‘nenhuma poupança genuína” isto é, “a ideia que
poupança e investimento … podem diferir um do outro, será explicada, penso que, por uma
ilusão de óptica”.
O que esta frase-chave do seu tratado procura justificar é que na banca, o crédito pode ser
concedido pela criação de moeda, e o que Keynes procura justificar é que por definição, se o
investimento tem lugar, não é preciso indagar sobre que poupança está formada para a
sustentar. Simplesmente, o acto de investimento representará a própria poupança por
identidade, digamos, matemática.
45
The Theory of Economic Development: An Inquiry into profits, capital, credit, interest and the business cycle, Joseph A.
Schumpeter, Cambridge, MA: Harvard University Press, 1934.
46
Estabelecida em revista no Journal of Post Keynesian Economics em 1978 (ou post-Keynesianos, existe uma dissensão
sobre o uso ou não do hífen), críticos da chamada síntese neoclássica-Keynesiana (new-Keynesianos e neo-Keynesianos)
que se tornou a forma corrente dominante em Economia.
21
representante bastante activo actualmente é o economista australiano Steve Keen que assim faz
a citação no seu livro, Debunking Economics47:
E como tal:
47
Debunking Economics – Revised Expanded and Integrated Edition: The Naked Emperor Dethroned?, Steve Keen, 2011,
Zed Books Ltd.
48
Para uma muito interessante explicação e simultaneamente refutação de Schumpeter recomenda-se a leitura de um
ensaio de Murray Rothbard denominado “Breaking Out of the Walrasian Box: The Cases of Schumpeter and Hansen”
(Review of Austrian Economics, vol. 1, pp. 97-108) sobre o qual Peter Klein diz no original
(http://bastiat.mises.org/2012/08/schumpeter-and-equilibrium/, 10-06-2014):
“In Schumpeter’s version of general equilibrium (unlike Mises’s evenly rotating economy), interest rates and gross savings
are zero. Without any funds to maintain (let alone accumulate) capital, what can bring about economic change? The
innovating entrepreneur, financed by bank credit expansion, as deus ex machina. Notes Rothbard:
To admire Schumpeter, as many economists have done, for his alleged realistic insight into economic history in
seeing technological innovation as the source of development and the business cycle, is to miss the point
entirely. For this conclusion is not an empirical insight on Schumpeter’s part; it is logically the only way that he
can escape from the Walrasian (or neo-Walrasian) box of his own making; it is the only way for any economic
change to take place in his system.
The idea that only inflationary bank credit can finance Schumpeterian innovation, emphasized by Rothbard, is almost
entirely ignored in the vast neo-Schumpeterian literature. As Guido Hülsmann points out in Mises: Last Knight of Liberalism
(pp. 173-74), Böhm-Bawerk immediately recognized this odd general-equilibrium construction as a fatal flaw in
Schumpeter’s theory of economic development, writing that “Schumpeter commits a fateful mistake, which despite all the
qualifications that he makes is a true mercantilistic mistake of superficial reasoning: When it comes to determining the
possible scope of productive credit, he accords the essential role to money and means of payment, rather than to the
economy’s supplies of real goods.”
22
Este último aforismo decorre de todo o discurso sobre procura agregada insuficiente e os
benefícios do multiplicador do investimento ou até de qualquer despesa do estado,
independentemente de, ou até, em especial se, resultar um acréscimo do défice, para colmatar
essa insuficiência. No fundo pretende-se defender que, em situação de crise, um acréscimo de
despesa pode gerar o rendimento que a sustenta, assentando aqui boa parte da posição anti-
austeritária.
É Paul Krugman, na mesma obra, que melhor o resume de forma quase cândida quando
explicita o seu modelo de análise:
Seria mais correcto, nesta formulação, caracterizar um processo de troca real onde as duas
partes são ambos produtores e ambos consumidores. Mas o objectivo de Krugman não é esse, é
sim sugerir que numa economia monetária, se determinada despesa não é realizada ou deixa
incrementalmente de ser efectuada, há um rendimento algures que fica assim perdido. Pois, o
que sucede é que é precisamente uma economia monetária que impede que tal suceda, porque
ou existe poupança monetária adicional disponível para ser disputada por investimento à procura
de financiamento disposto e a oferecer um juro, ou em extremo, se a poupança é entesourada
opera uma descida de preços incremental que aumenta o poder de compra de todos os restantes
saldos monetários em circulação. Em segunda ordem, a baixa de preços que possa ser devida a
algum processo de entesouramento, não tem por si mesmo, de afectar o rendimento agregado
em termos reais, nem a sua divisão relativa entre consumo e investimento, definida pela taxa de
juro como preferência temporal.
Já para Paul Krugman, no contexto de uma crise, é tão determinante fazer alguma despesa
que substitua a perdida, e aparentemente seja qual for, que escreve:
“Enquanto a despesa militar crescia criava empregos e os rendimentos das famílias subiam
a despesa de consumo também aumentava (…). As empresas viam as suas vendas subirem e
respondiam subindo a sua despesa. (…) Fazia alguma diferença a despesa ser para defesa ou
para programas doméstico? Em termos económicos nenhuma (…) – razão pela qual em 2011
brinquei com a sugestão de que o que precisávamos agora era uma ameaça falsa de evasão
extraterrestre que gerasse uma despesa massiva em defesa anti-extraterrestre.”49 50
De resto, constitui um argumento repetido por outros Keynesianos, como o economista post-
Keynesiano, Hyman Minsky (1919-1996) e mais à frente referenciado:
49
End this Depression now!, Paul Krugman, W.W.. Norton & Company, 2012.
50
Ver também "Oh! What A Lovely War!", NYT, Paul Krugman: "A Segunda Guerra Mundial é a grande experiência natural
dos efeitos de grandes aumentos na despesa do Estado, e como tal sempre serviu como um exemplo importante e positivo
para aqueles de nós que preferem uma abordagem activista numa economia deprimida"
(http://krugman.blogs.nytimes.com/2011/08/15/oh-what-a-lovely-war/, 20-10-2014).
23
“O primeiro ponto de quebra em reacção ao aparente progresso tranquilo [pós-Segunda
Guerra Mundial] foi a crise de crédito [no original: “credit crunch”] de 1966. Aí, pela primeira
vez na história do pós-guerra, o FED surgiu como credor de último recurso para refinanciar
instituições – neste caso bancos – que estavam a enfrentar prejuízos para cumprirem
requisitos de liquidez … mas a expansão de Guerra do Vietname conduziu rapidamente a um
défice significativo que facilitou a recuperação…”51
Podemos propor em contrapartida esta redução ao absurdo que li algures num simples
comentário, mas que faz sentido neste contexto: organizar uma guerra com todas as vantagens
mas sem as suas desvantagens. Os EUA e a UE combinariam enfrentar-se numa grande guerra
naval no meio do Oceano Atlântico com uma superarmada, o que levaria ao aumento
significativo de despesa na sua construção, e em dia combinado, ambos afundariam a totalidade
dos navios mas sem o desconforto das vítimas numa guerra real. Poderiam então recomeçar no
dia seguinte.
Ou então construir grandes pirâmides sem qualquer uso. Ou ainda melhor: e porque não,
neste raciocínio, imprimir moeda e simplesmente dar dinheiro directamente às pessoas? 52
51
Citado em Debunking Economics – Revised Expanded and Integrated Edition: The Naked Emperor Dethroned?, Steve
Keen, 2011, Zed Books Ltd.
52
Para uma contestação actual dos argumentos de Krugman quanto à Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial ver
"The Myth of War time Prosperity", Robert P. Murphy. Texto na The American Conservative
(http://www.theamericanconservative.com/articles/the-myth-of-wartime-prosperity,20-10-2014): “Mesmo nos próprios
termos Keynesianos, o PIB privado, a parcela da economia dedicada a fins civis foi menor durante o auge da guerra do que
em 1933, o pior ano da Grande Depressão. (…) Suponhamos, então, que o governo de hoje faria exactamente o que Paul
Krugman recomenda, fazendo despesa governamental maciça comparável à da Segunda Guerra Mundial. No entanto, em
vez de construir tanques e bombardeiros, compraria coisas socialmente úteis (na visão de Krugman), tais como estradas,
pontes, parques, os serviços de polícia e bombeiros adicionais, etc. Se as coisas acontecessem hoje como durante os anos
de guerra, os americanos ficariam satisfeitos com o resultado? (…) Isso significaria que a produção económica privada iria
cair um total de 55 por cento entre agora e 2015, a uma taxa anualizada de cerca de 24 por cento ao ano. Será que a
família americana média agora desejaria sofrer uma queda anual de 24% no seu padrão de vida privada, por três anos
seguidos? Isto colocaria seu padrão de vida de volta a 1984. Sugiro que não e rejeitariam o acordo, mesmo nos próprios
termos de Krugman.” E para todos os efeitos, a economia privada só recuperou depois de a guerra ter acabado, que nessa
altura já decorria década e meia do início da depressão e após um forte corte da despesa pública. Krugman prefere a
versão de que foi a despesa efectuada durante o conflito que permitiu finalmente a recuperação.
53
Para economistas ou interessados, creio também ser de salientar desde já algumas concepções típicas da Escola
Austríaca da Economia e que são determinantes na sua análise:
- Falar de procura por moeda não é o mesmo que falar de procura por crédito. O efeito das variações na procura
por moeda (a maior ou menor procura por possuir moeda ou saldos monetários) materializa-se nos preços e não na
taxa de juro, o aumento da procura por moeda tem o efeito, ceteris paribus, de provocar a descida (deflação) de
preços, tal como a sua diminuição provoca a subida de preços (inflação de preços). Por outro, a deflação de preços
pode ser perfeitamente benigna dado que todo o crescimento económico, no seu sentido mais puro, significa a
24
E neste ponto temos de nos debruçar sobre a origem do termo “multiplicador” que por si só é
utilizado para suportar a ideia da despesa como geradora de rendimento, sendo utilizado
frequentemente na crítica às políticas económicas de austeridade.
É útil agora fazer uma citação alongada contida na já mencionada obra de Hazlitt que se
debruçou sobre a Teoria Geral de Keynes, no seu capítulo sobre o chamado multiplicador:
“Vamos tentar encontrar em linguagem mais simples o que é que Keynes procura dizer aqui.
Explica assim este na página seguinte:
redução de custos e preços unitários, sendo assim deflacionário em termos reais por natureza. A maior ou menor
estabilidade da oferta de moeda é que condiciona a evolução dos preços nominais, e como já referido em nota, num
dos períodos de maior crescimento registado nos EUA, de 1870 a 1890, o PIB real per capita cresceu no período 80%
enquanto os preços nominais caíram 31% (ver em http://www.measuringworth.com).
- O juro, na teoria da preferência temporal pura, é um fenómeno não monetário que expressa a preferência
temporal subjectiva onde se infere aprioristicamente, no pressuposto da possibilidade de estudo da acção humana - a
que contém ou persegue um propósito – que valorizamos o mesmo fim antes do que depois, tal como mais do que
menos. A preferência entre o antes determina o desconto aplicado ao que está depois, constituindo esse desconto um
rácio de preços. Como tal, o juro não está directamente relacionado com a produtividade física do capital, a qual afecta
sim os preços dos factores de produção empregues, assim como o valor de mercado do processo produtivo. Ou seja, se
um dado bem de capital, conjunto de bens de capital ou processo complexo beneficia de um aumento de
produtividade porque a natureza o dita (exemplo: descoberta de um nova fonte de petróleo adjacente ao actual, e
assim, sem custo adicional relevante), ou via inovação tecnológica significativa e/ou ainda porque a preferência dos
consumidores o determina, tal facto, por si só, não tem de influenciar a taxa de juro mas sim induzir à maior procura
por esses factores de produção, incrementando o seu preço e/ou aumentando o valor de mercado desse processo
produtivo, até que a avaliação da rentabilidade desse processo, dado esse novo valor de mercado, corresponda uma
taxa de lucro normal, resultado de actualizar os novos benefícios futuros à mesma exacta taxa de juro ou preferência
temporal. O juro, dito originário por Mises (no original, “originary interest”), manifesta-se depois no juro monetário
tendo em conta as condições de estrutura institucional específico do sistema monetário (ex.: incluindo a sua maior ou
menor propensão para inflação quantitativa e as expectativas concretas), e naturalmente, sendo hoje diferente
(moeda convencionada legislativamente, fiat money) do que era no período clássico, onde subsistia a ligação ao ouro e
prata. A taxa de juro monetária é assim um reflexo da taxa de juro originária saída da preferência temporal subjectiva
de cada pessoa, em obter os fins que escolhe, antes do que depois, e é essa preferência que vai acabar a determinar a
afectação económica sustentada entre produção de bens de consumo hoje e a produção de bens de capital que irão
aumentar a capacidade produtiva de bens de consumo no futuro, num dado prazo temporal. Se por absurdo, a taxa de
juro como preferência temporal originária fosse 0, tal significaria que as pessoas estariam dispostas a investir o seu
rendimento num prazo infinito, adiando para sempre o consumo. Por outro significaria que o cálculo do valor actual de
rendas futuras (valor do capital) seria infinito na medida em que rendas situadas muito longe no tempo manteriam
intactos os seus valores no momento presente, dando lugar a um somatório infinito de valores não nulos. De resto, não
é de admirar que num período de taxas baixas e talvez artificialmente baixas, a riqueza medida em valor de mercado,
das classes mais favorecidas, aumente significativamente. É precisamente por a taxa de juro ser diferente de 0 que o
capital tem um valor finito. O aforrador limita o valor do capital.
25
Se o investimento é observável estatisticamente como perfazendo um décimo do rendimento,
este será aumentado em 10 vezes o valor do investimento, etc. Ou seja, por um salto louco de
raciocínio, esta relação "funcional" e puramente formal ou terminológica é confundida com uma
relação causal. Em seguida, a relação causal permanece na sua cabeça e emerge a conclusão
surpreendente que quanto maior a proporção do rendimento gasto em consumo, e quanto
menor a fracção afecta a investimento, mais este investimento deve "multiplicar-se" para criar o
rendimento total! Admito que tudo isto soe como fantástico, mas eu estou em perda para
explicar a forma com que Keynes chegou à conclusão que uma tal relação matemática causal
possa existir.
Depois o "multiplicador" de Keynes transforma-se, sem aviso prévio, de "termos reais" para
termos monetários. Essa passagem é imediatamente seguida por esta frase:
"Se, por outro lado, consumirem todo a qualquer incremento do rendimento, não haverá
um ponto de estabilidade e os preços irão subir sem limite“ (itálico meu).
Repetindo a nossa questão (na p. 137), como é que os preços entraram agora neste processo?
Como é que saltamos de "rendimento real" para aumentos sem limite dos preços?
"A despesa com recurso a dívida", declara (p. 128), mesmo que "constitua um
desperdício", "pode, contudo, e como balanço final, enriquecer a comunidade."
"Muitas vezes, é conveniente usar o termo despesa com recursos a dívida para incluir tanto
o investimento público financiado por empréstimos de pessoas físicas e também qualquer
26
outra despesa corrente pública que é assim financiada... Assim, despesa com recurso a dívida
é uma expressão adequada para os empréstimos líquidos de autoridades públicas em todas as
contas, seja em contas de capital ou para atender a um défice orçamental ". (Itálico meu).
O conceito matemático exposto por Keynes é na verdade algo embaraçoso (não que alguém à
direita como Richard A. Posner se tenha abstido de o evocar com convicção no seu artigo já aqui
referenciado).
Rendimento * (1- 0.8) = Investimento -> Rendimento = Investimento / (1-0.8) -> Rendimento = 5
Investimento.
Desta forma, o absurdo torna-se mais visível. A relação puramente descritiva de que o
rendimento corresponde conceptualmente ao consumo e investimento, e que o primeiro, num dado
período representou ou tem representado em média 80% do rendimento é transformada numa
expressão matemática com termos independentes manipuláveis, e assim numa relação causal e
determinística. Sendo que resultaria um multiplicador infinito quanto mais a propensão para o
consumo corresponder a totalidade do rendimento.
Isto descreve bem um erro em que uma boa parte da doutrina económica incorre
sistematicamente do ponto vista epistemológico. Que tal coisa possa ter sido interpretada e mantida
persistentemente com credibilidade diz alguma coisa sobre o estado da ciência económica.
54
The Failure of New Economics, Henry Hazlitt, [1959] 2007.
55
Nota biográfica em Biography of Murray N. Rothbard (1926-1995), David Gordon
(http://mises.org/page/1469/Biography-of-Murray-N-Rothbard-19261995, 20-10-2014).
56
Ver no Capítulo 17. Further Fallacies of the Keynesian System
(http://mises.org/rothbard/mes/chap11e.asp#17._Further_Fallacies, 20-10-2014).
27
ou rendição em relação a quem, no meio da voragem do consenso académico da “nova economia”,
sempre se bateu contra tal conceito. Ainda assim, a tentativa de evocar o multiplicador como
mecanismo válido continua a surgir aqui e ali.
Em parte, aparente espécie de transubstanciação das leis económicas operada pela “nova
economia” de Keynes – e das novas teorias monetárias como a relativamente recente Modern
Monetary Theory (MMT)57 - em relação ao período clássico operando sob uma moeda-reserva-
mercadoria, reside no facto do sector público ter passado a ser o emissor de moeda-papel com uma
presença significativa na produção total da economia, conferindo um novo significado ao circuito
constituído pelo pagamento de impostos na própria moeda que emite contra e emissão de dívida
pública e assim indirectamente a despesa do Estado. Se antes a produção da moeda base dependia
da margem entre o custo marginal de produção e o seu valor ou poder de compra (purchasing-
power), agora as reservas ou moeda-base (notas, moedas e reservas no banco central) passam a ser
produzidas a custo marginal zero sendo a emissão controlada por objectivos traçados pela teoria
monetária com limites traçados pelos efeitos secundários sentidos - a inflação de preços no
consumidor.
E são estas mesmas reservas que passam a servir de moeda-base (quando antes era o ouro e
prata físico) que suportam a criação de depósitos pelos bancos para a concessão de crédito privado
e público, e que se tornam exigíveis apenas quando um pedido de levantamento ou transferência.
Existe assim uma acção endógena - os bancos reagem à procura de crédito solicitando mais reservas
ao banco central; assim como exógena, os bancos centrais injectam reservas para induzir essa
mesma expansão de crédito se assim considerado desejável.
Com este processo, a moeda parece adquirir novas propriedades e qualidades que afectam as
próprias regras económicas, e estando intimamente ligadas à acção agregada do Estado e Banco
Central, como emissor de moeda e agente que produz despesa e colecta impostos. Reivindica-se
assim que a economia monetária passa a obedecer a leis que a economia de troca directa não
continha. Em si, uma acepção verdadeira dado o carácter acrescido de centralização na produção de
moeda e crédito que condiciona o jogo económico. Por outro, será que as leis económicas
fundamentais relacionadas essencialmente com a escassez de recursos e do tempo sofreram
alteração nas economias marxistas?
Terá sido alterada a necessidade de abstenção adicional de consumo sempre que se pretende
incrementar o peso da produção de bens de capital? Partindo da definição natural do acto de
empréstimo como o de uma transferência temporária de um bem escasso, podemos reconstruir a
natureza do crédito porque a emissão de moeda não está agora sujeita a um custo marginal?
57
Ver em: MMT Primer, http://neweconomicperspectives.org/modern-monetary-theory-primer.html, 20-10-2014.
28
Dado que os recursos escassos não são alterados pela criação monetária, o poder aquisitivo (o
purchasing power) transferido para um devedor, terá de alguma forma, ainda que de forma diluída e
não identificável, de ser equilibrado pela sua perda em algum ponto do sistema económico. Assim,
ceteris paribus, é impossível refutar, sem cair em contradição lógica, que se a quantidade de um
meio de troca aumenta, algum preço ou conjunto de preços (expressos em unidades desse meio de
troca) será maior do que seria se esse aumento não tivesse tido lugar. Assim, a capacidade nominal
de criar poder aquisitivo não modifica a acepção que o seu receptor está a mobilizar recursos reais
existentes, mas com isso, retirando poder aquisitivo dos mesmos saldos monetários de terceiros
sobre outros recursos reais.
Esse passo tinha de ser convenientemente justificado e Steve Keen, como post-Keynesiano, na
tentativa de construir uma teoria completa sente necessidade de o referir:
“Para um progresso analítico significativo ser conseguido, requeria-se uma abordagem clara
de modo a aproximar-se da acepção de Keynes de que a moeda “entra na economia de uma
forma essencialmente peculiar” … e isso foi fornecido pela escola europeia do “Circuito
Monetário” [no original” “Monetary Circuit”] e especificamente pelo economista Italiano Augusto
Graziani. Graziani argumentou que, se a moeda for tratada como qualquer outra mercadoria
sujeita a leis de oferta e procura, então a economia estará ainda a funcionar nas condições de
uma economia de troca directa: tudo o que ocorre é que uma nova mercadoria foi adicionada ao
mix, ou escolhida como a mercadoria contra o qual toda as trocas têm de ocorrer.
(…) A descoberta brilhante de Graziani foi a de que, para uma economia monetária se
distinguir claramente de uma economia de troca directa, essa economia monetária não poderá
usar uma mercadoria como moeda. (…) Isto por sua vez conduz a um simples mas profundo
princípio: “Uma verdadeira economia monetária tem que usar uma moeda convencional: a qual
hoje em dia é a actual moeda-papel” (Graziani 1989: 3).” Location 8672.
Juntando estas palavras às anteriormente expostas de Schumpeter nas quais se define o crédito
como a criação de poder aquisitivo concedido ao devedor - em vez do acto de crédito com a
transferência - eventualmente intermediada por um agente especializado - de poder aquisitivo
previamente existente, entre o aforrador e o devedor - fechamos o círculo intelectual que procura
justificar o investimento e mesmo a despesa do estado realizado à custa de crédito como resultado
da pura expansão de moeda, em vez da alocação de poupança monetária prévia. Schumpeter ajuda
Keynes, embora não o tivesse em grande conta, e Keynes é ajudado por nunca se ter expresso
claramente.
Mas o facto é que mesmo depois do período clássico do padrão-ouro ter sido abolido, e assim as
amarras que supostamente este impunha para a gestão monetária científica e o combate às
recessões, os ciclos de bolhas e crises económicas e bancárias continuaram a suceder-se, assim
como os períodos de inflação e hiperinflação. Adicionalmente a discussão académica tornou-se algo
29
difusa e isso deve-se, a meu ver, a se ter introduzido um nevoeiro de complexidade que dificulta a
reflexão sobre até aos mais básicos conceitos, sendo hoje possível assistir ao espectáculo de uma
classe não ser sequer capaz de formar um consenso sobre pedras basilares da sua própria ciência
económica, em especial, fazendo eclodir a tal dicotomia economia real versus monetária, criando
discursos que não comunicam ou mesmo incompatíveis entre si.
Foi Alan Greenspan que na sua ida habitual ao Congresso, e num momento singular disse “O
problema que temos … é como definir o que é moeda”58 no contexto de dificuldade do próprio FED
construir e retirar um uso útil das várias medidas quantitativas de moeda que se tornam hoje
possíveis dados as formas assumirem diferentes estatutos económico-contratuais-regulamentares-
operativos: reservas dos bancos no banco central, notas e moedas, depósitos à ordem e que estão
sujeitos a emissão monetária pela banca comercial, depósitos a prazo, aplicações com acordos de
resgate antecipado imediato ao seu valor nominal, com regate condicional, etc.
“Antes de julgarmos sermos capazes de explicar porque as pessoas cometem erros devemos
primeiro conseguir explicar sequer como podem alguma vez estar correctas“. Hayek.59
Qual é o fenómeno económico mais determinante e como pode ser analisado isolando-o de uma
complexidade de factores que dificultam a identificação de causas e efeitos? O crescimento
económico no seu sentido mais restrito: crescimento numa economia fechada, sem acesso a novos
mercados externos e onde existe pleno emprego.
Não existindo aumento de procura externa nem interna por outras vias (por exemplo: o aumento
da população activa), o crescimento económico terá sempre de resultar da libertação de recursos
(ex.: horas-homem) empregues na produção corrente que torna assim possível a produção adicional
do mesmo bem ou um qualquer outro bem.
Tal só pode suceder pela introdução de melhores ferramentas (bens de capital e/ou técnicas de
gestão) que aumentam a produtividade por hora-homem, ou seja, diminuindo o número de horas-
homem necessárias para a mesma quantidade de produção.
Mas a produção de novas ferramentas (novos bens de capital) implica que previamente certa
quantidade de horas-homem abandone a produção actual durante um determinado período de
tempo, o que obriga a que a sustentação (no mínimo, alimentos) dessa mão-de-obra esteja
assegurada pelo período da construção dessas ferramentas (produção de bens de capital).
58
Ver as palavras conferidas nesse testemunho por exemplo aqui (minuto 1:44)
http://www.youtube.com/watch?v=opphgi7tAOs, 20-10-2014.
59
“Economics and Knowledge”, discurso de Friedrich Hayek perante o London Economic Club; Novembro de 1936
(http://mises.org/page/1411).
30
Só um acto deliberado de poupança (ex.: de alimentos) torna possível o seu consumo posterior
na sustentação desses recursos (ex.: mão-de-obra) que passam a dedicar-se a actividades que não
geram nenhum dos bens de consumo (ex.: alimentos) correntes, mas sim ferramentas (bens de
capital) que permitirão, num dado horizonte temporal, que um menor número de horas-homem seja
depois necessário para a mesma produção (aumento da produtividade).
Estes princípios são universais e aplicam-se a uma economia, por hipótese, sem moeda ou
propriedade. Até uma sociedade de escravatura teria que produzir pelo menos os alimentos
necessários a sustentar, por hipótese, os escravos utilizados na produção de ferramentas e não de
alimentos.
Imaginemos, para concretizar, que numa economia fechada (de resto, como o planeta o é – uma
economia fechada) e 100% dedicada à produção de alimentos, subitamente 10% dessas pessoas são
deslocadas para produzir novas ferramentas (bens de capital) que naturalmente, só num dado prazo
de tempo, resultarão em novos processos mais produtivos (menos horas-homem necessárias para a
mesma produção que anteriormente).
Para tal ser possível será necessária a produção e armazenamento de alimentos para sustentar os
10% de pessoas que deixaram de contribuir para a sua própria produção de alimentos. Este processo
de poupança (os alimentos não consumidos e o seu armazenamento) e consequente investimento (a
utilização desse armazenamento para alimentar esta força de trabalho desafectada da produção de
alimentos) resultará, espera-se, em ferramentas capazes de operar um aumento de produtividade
na produção de alimentos, o que fará com que menos pessoas passarão a ser necessárias para
produzir a mesma quantidade de alimentos que anteriormente. Agora, com as novas ferramentas,
por hipótese, 90% das pessoas, serão agora capazes de produzir a mesma quantidade de alimentos
necessária para alimentar a totalidade da população.
E agora, 10% de pessoas deixam de ser necessárias na produção de alimentos e poderão dedicar-
se a produzir outros produtos, como a tecelagem, que irão trocar pelos alimentos – o excesso de
10% não necessários para si próprias produzido pelos restantes 90% da população.
Todos são agora economicamente mais ricos no sentido de terem agora acesso, empregando o
mesmo número de horas-homem, a um maior número de bens: a mesma quantidade de alimentos
necessários à totalidade de população e uma quantidade até aí inexistente de produtos de
tecelagem e bens de capital: as ferramentas.
Repare-se que aquilo que uns chamam de aumento da procura resulta do facto de pessoas serem
realmente capazes de produzir mais com a mesma quantidade de horas-homem empregues. O
aumento da procura por novos produtos está sustentado na capacidade acrescida de produção
(pelos 90% da população dedicada a produzir a totalidade de alimentos) cujo excesso para as suas
necessidades vai trocar pela produção de tecelagem produzida pelos 10% da população que deixou a
produção de alimentação.
31
4.2. Onde um segundo passo é caracterizar o crescimento económico em termos
monetários – o papel do capital (poupança prévia) e a sua relação com os salários
Fazendo a analogia com o exemplo real e não-monetário anterior, é o capital monetário que
permitir adiantar os salários monetários aos trabalhadores enquanto esta actividade não gera as
receitas monetárias suficientes e não, como pode parecer, para aquisição de bens de capital – estes,
por hipótese abstracta, poderiam ser adquiridos na sua totalidade como rendas mensais (em leasing,
algo similar a pagar salários).
O que passa então a restar de fluxos monetários neste modelo, são os pagamentos mensais de
custos constituídos por rendas e salários para os quais as receitas monetárias são deficitárias
durante um certo período de tempo e para o qual esta diferença, só o capital, como poupança
monetária prévia, pode equilibrar, para evitar o seu encerramento por impossibilidade de pagar os
custos mensais (a soma de salários e rendas em cada mês) até, se a avaliação empresarial estiver
correcta, as receitas mensais começarem a ser superiores e finalmente auto-sustentarem a
actividade produtiva e deixando assim de requerer a poupança monetária adicional (capital
monetário). A partir desse ponto, o excesso de cash-flow, após pagamento de todos os custos
monetários, poderá começar a contribuir para remunerar a poupança monetária e o seu custo
temporal (e que corresponderá ao juro originário derivado das preferência temporal adicionado de
componentes várias, como o risco) que foi mobilizada e utilizada para cobrir os saldos monetários
negativos durante a maturação do novo investimento e o risco inerente.
Este papel do adiantamento monetário de salários, para o qual precisamente se torna necessária
a poupança monetária prévia, é a expressão monetária do processo real em que poupança prévia de
meios de subsistência são pelo menos necessários (no exemplo, alimentos) para suportar a mão-de-
obra utilizada em linhas de produção que estão afastados da produção de bens de consumo (a
construção de ferramentas), no exemplo dado acima.
A poupança monetária para ter lugar, implica a abstenção de consumo por uns, permitindo então
sustentar o consumo de outros, ou seja, de quem se dedica a produzir bens de capital.
É claro que, na realidade, não é possível determinar se um dado produto resultante de um novo
investimento vai apenas substituir outros por mudança de preferências dos consumidores ou se
contém um elemento libertador de recursos para produção adicional. O processo é iterativo e
sujeito a tentativa e erro e pode conter uma mistura complexa de ambas ou várias as componentes.
Mas aqui vemos também como o aumento de produtividade pelo uso de mais máquinas não
causa desemprego em si mesmo, cria sim a capacidade de as horas-homem libertadas se dedicarem
a produção adicional e onde o mesmo inalterado valor de remuneração de cada hora-homem vê
aumentado o seu poder de compra devido ao efeito da redução do custo e preço de um dado
produto.
32
O crescimento económico constitui assim um processo dinâmico de tentativa-erro por parte da
função empresarial na inclusão contínua de inovação e mais bens de capital sustentada pela
poupança necessária a construi-los e manter. Refira-se que a mera manutenção de um dado nível de
produtividade e actividade económica requer a substituição periódica dos mesmos exactos bens de
capital, daí que quem esteja afecto a produzir bens de consumo os tenha de produzir em excesso e
assim sustentar quem se dedica a essa “mera” actividade de substituição das ferramentas ou bens
de capital actualmente presentes.
Mas se a quantidade de moeda for fixa - um exercício mental útil para melhor identificar causas e
efeitos independentes- ou pelo menos de oferta estável, de que forma é que se manifesta o
crescimento económico?
Pela deflação de custos e preços nominais cuja queda faz aumentar o poder de compra dos
mesmos salários nominais. É o facto de menos horas-homem serem agora necessário para a mesma
produção que torna possível a redução do custo e preço real da mesma produção. O que em
estabilidade monetária, se sentirá na redução nominal de preços.
Esta deflação benigna não representa nenhum problema em termos dos salários nominais ou do
serviço de dívida. Um determinado produto A, se desce de preço porque o seu custo unitário
diminuiu, não deve essa descida à redução de qualquer salário nominal por hora-homem mas sim à
descida do total de horas-homem empregues, e assim o custo da massa salarial total envolvida na
mesma produção anterior. O que se passa é a redução do total de horas-homem para a mesma
produção anterior será aproveitada para o aumento de produção do mesmo ou outros produtos.
Sendo certo que os salários reais (para os consumidores desses produtos) estão a aumentar, não
encarecem por esse facto os salários reais das outras linhas de produção. E por aqui transparece
também o problema do uso de um índice de preços que tem o efeito de fazer parecer que de alguma
forma, os salários nominais teriam de descer para assim não prejudicar “a competitividade” em
outas linhas de produção. Chavões ainda hoje comuns na análise económica.
É assim a poupança nominal, possível pela redução de preços, que conduz ao aumento da
procura por produção adicional a ser efectuada pelos recursos libertados (as horas-homem do
exemplo real), ainda que auferindo o mesmo exacto rendimento nominal que anteriormente.
33
Coloca-se ainda a questão se uma descida de preços provocada pelo aumento de produtividade
dificultará o serviço de dívida. A mesma dívida nominal será agora servida por um aumento da
produção e receitas em termos reais. Quando uma empresa se endivida para investir, com sucesso,
no aumento de produtividade, este tem como efeito reduzir o custo total da mesma produção, e
assim, ou a sua produção aumenta mantendo a mesma receita nominal ou aumentam os lucros.
Claro que o processo é iterativo e complexo, contando com a função empresarial de descoberta e de
avanços e recuos, reorganização, desenho, adaptação ou substituição. Mas o que se pretende aqui é
intuir as relações básicas presentes.
Assim, num processo de crescimento benigno, é a descida de custos e preços reais que
materializa o aumento da produtividade e assim a produção total. É assim adequado adoptar a
terminologia de deflação benigna.
Assim, e por curiosidade histórica, e até para satisfazer considerações empiristas, de 1870 a 1890,
nos EUA, o PIB real per capita cresceu no período 79.8% enquanto os preços nominais caíram
30.3%60. Também é possível observar que os salários não caíram, medindo pelos dados da
compensação horária, mantendo-se estável até 1883 e subindo depois. De resto, Milton Friedman
reconhece, talvez até num tom relutante, isso mesmo, a coincidência de enorme crescimento
económico e a queda de preços na sua obra sobre a história monetária americana, A Monetary
History of the United States, 1867-1960, Milton Friedman e Anna Jacobson Schwartz.
O professor de economia George Selgin refere-o também no seu ensaio Less Than Zero,The Case
for a Falling Price Level in a Growing Economy61 do qual faço uma citação longa dada a sua
importância:
Contudo “Já em 1877 Robert Giffen (1904, p. 108) contrariou a “impressão generalizada" que
uma depressão de gravidade sem precedentes estava em andamento. "A impressão comum",
Giffen insistiu, "está errada, e os factos indicam inteiramente o contrário." Apesar de uma queda
no comércio exterior na Grã-Bretanha e uma série de más colheitas, que foram graves, "a
comunidade como um todo", argumentou Giffen (ibid., p. 109), não estava "realmente mais
pobre”. Em apoio ao seu revisionismo, Giffen apresentou estatísticas que mostram a ausência de
60
Ver em http://www.measuringworth.com. Consultar “Real GDP per capita”, “U.S. Consumer Price Index” seleccionando
os respectivos anos de início e fim.
61
Ver pdf em http://mises.org/document/5301/Less-than-Zero-The-Case-for-a-Falling-Price-Level-in-a-Growing-Economy,
20-10-2014.
34
qualquer declínio típico de uma era de Depressão no rendimento nominal ou salários per capita
(ibid., pp 178-9, comparar Bowley, 1920, pp 9ff). (…) Friedman e dados mais recentes de Schwartz
(1982, Tabela 4.9), apresentadas na Tabela 1, contam uma história semelhante.”
Ora consultando a mencionada tabela de Friedman e Schwartz de 1982 (pág. 52) observa-se que
os rendimentos reais per capita em 1870 eram de 53.5£, em 1890 de 67.89£ e em 1899 de 79.00£.
QED?
Uma outra referência académica sobre a história monetária dos EUA pode ser lida num ensaio
empírico: The postbellum deflation and its lessons for today, David Beckworth62, e que suporta e
valida o processo de deflação benigna, podendo lerna conclusão:
“Este ensaio mostrou que o período de deflação pós-guerra civil foi um de crescimento
económico robusto, crescente intermediação financeira, onde as taxas de juro nunca atingiram o
limite de 0 nem estados de rigidez inescapáveis com consequências económicas reais.”
Um outro ensaio posterior, “Deflation and Depression: Is There an Empirical Link?” de 2004, dos
economistas da Reserva Federal, Andrew Atkeson e Patrick Kehoe diz que em 90% dos casos,
deflação não significa depressão. No original:
“..the only episode in which we find evidence of a link between deflation and depression is the
Great Depression (1929-1934). We find virtually no evidence of such a link in any other period.
What is striking is that nearly 90% of the episodes with deflation did not have depression. In a
broad historical context, beyond the Great Depression, the notion that deflation and depression
are linked virtually disappears.”
Para uma ilustração gráfica da evolução dos preços nominais americanos durante o século 19
disponível num artigo online no Mises Daily, “Deflating the Deflation Myth”, Chris Casey:
De referir que os dois picos aqui observados de inflação substancial correspondem a dois
períodos de inflacionismo de guerra nos EUA.
62
The postbellum deflation and its lessons for today, David Beckworth. Department of Accounting, Economics, and
Finance, Andrews University, Berrien Springs, MI 49104, United States. Ver em pdf em
http://linkis.com/people.wku.edu/david/fBEka. 20-10-2014.
35
4.4. O papel do sistema monetário e o juro como coordenador da alocação entre
consumo e investimento e as preferências temporais
Podemos agora arriscar a afirmar que um sistema monetário terá tão boa qualidade quanto o seu
funcionamento se conjugue perfeitamente com o sistema de preços coordenadores da economia,
incluindo a taxa de juro que como manifestação da preferência temporal subjectiva das pessoas que
advém da valorização pela acção humana do “antes” do que “depois” (tal como quantitativamente o
“mais” do que “menos”)63 e equilibrando a afectação entre consumo (e a sua produção) hoje versus
o abdicar desse consumo hoje, investindo com a expectativa de uma maior capacidade de consumo
amanhã, sustentando assim, com a poupança efectuada e investida, na produção de bens de capital
geradores de aumento de produção por horas-homem.
A taxa de juro coordena a preferência das pessoas entre o consumo presente e a poupança na
expectativa de aumento do poder de compra mais tarde concretizada na capacidade dos
empreendedores em operar esse aumento de produtividade com o recurso a novos bens de capital.
Se a taxa de juro tem esse papel, a sua manipulação interferirá como fonte de erros de
expectativas e cálculo.
Recorrendo ao exemplo de economia real pura inicial, se em vez de “apenas” 10% pessoas
afectas a construir ferramentas, passarem a estar 15%, acelerando assim a meta de atingir uma
maior produção mais cedo, será necessária uma maior taxa de poupança pelos restantes 85% de
pessoas dedicadas à produção de bens essenciais. Numa economia monetária, caberá à taxa de juro
coordenar a acções dos diversos agentes, tal como qualquer preço.
63
Repetindo a formulação do conceito de preferência temporal: valorizamos um mesmo fim, como um objecto desejado,
só disponível daqui a um ano de forma inferior ao mesmo fim, esse mesmo objecto, se imediatamente disponível agora
para ser usufruído, constituindo o desconto entre um em relação ao outro, um rácio correspondendo à chamada taxa de
juro originária referida por Mises.
36
"A questão que tem corrido ao longo dos séculos e que terá de ser resolvida, mais cedo ou
mais tarde, é a do povo versus os bancos." Lord Acton.
É preciso ter presente que a estrutura eminentemente estatista do actual sistema monetário64
resultou historicamente da nacionalização e proibição65 do uso do ouro (ou prata e outros)66 como
meio de troca com curso legal e meio de pagamento de impostos.
Foi nesse processo substituído pelo moeda por decreto existindo hoje sobretudo na forma de
depósitos bancários à ordem, com uma cobertura muito parcial de reservas ou moeda base
efectivamente detida pelos bancos, resultado do legislador-regulador ter como que “liberalizado”
(esta forma de “liberalização” nunca é mencionada) o coeficiente de reservas67, a única componente
monetária que está efectivamente livre de risco de crédito, relativamente ao total de depósitos,
para responder a pedidos de levantamentos e transferências, tendo hoje um papel marginal.
O colateral dos depósitos à ordem deixou assim de ser verdadeira moeda (aquela que está livre
de qualquer ónus e assim livre de risco de crédito) - como um bem-mercadoria escasso como o ouro,
não perecível e onerado por um dado custo marginal para ser produzido, mas em última análise, o
próprio crédito que lhe deu origem. Ou antes, passam a existir dois tipos de moeda, aquela em
reserva no activo dos bancos e ainda as notas s moedas físicas (no calão monetário: a base
monetária ou MO), e aquela que os bancos assumem como constando nas contas de depósitos
(passivo dos bancos) e que constituem “apenas” uma promessa de pagamento ou entrega da moeda
base (reservas, notas ou moedas físicas). A moeda de uns (os depósitos) é financiamento em risco, a
favor dos bancos.
64
O termo socialismo (e fascismo, dado a rede de interesses privada e púbica em que assenta) monetário parece
adequado, os bancos podem ser privados, mas a moeda e o crédito, são grandezas criadas, geridas, por direcção pública,
justificado por tais deturpações históricas como o afirmar que o sistema de padrão-ouro terá acabado, como que de morte
natural, porque “não funcionava”, em vez de se assumir que uma moeda elástica responde sim à conveniência pública do
financiamento dos défices orçamentais sem a respectiva cobrança de impostos; e responde também à falácia da
conveniência da expansão do crédito.
65
Processo histórico descrito mais à frente.
66
Ou outra matéria-prima ou mercadoria escassa; a intemporal e universal utilização do ouro (e prata) como meio de
troca, e provavelmente a ser repetida na história futura assim desapareçam os obstáculos legislativos, regulamentares e
fiscais ao seu uso como moeda, dever-se-á à realidade objectiva, ainda que apenas percepcionada pela experiência
acumulada, de ser a sua quantidade total disponível acima do solo – quer pelo baixo peso da sua produção anual quer pelo
seu baixo consumo para outros fins – a mais constante que se conhece num elemento quimicamente estável, maleável e
divisível, com a prata em segundo lugar.
67
Ver em Jesus Huerta de Soto, Money, Bank Credit, and Economic Cycles, [2006] 2009; uma exposição da história do
direito e da economia de como o actual sistema de depósitos com reservas fraccionárias nasce, em última análise, da
manipulação do contrato original de depósito civil. Esta obra monumental abarca também toda a teoria austríaca dos
ciclos económicos, passando por Hayek e Mises e defende explicitamente o padrão-ouro com 100% de reservas.
Recentemente Huerta de Soto discursou na London School of Economics (onde Hayek leccionou convidado por Lionel
Robbins, um caso curioso de defecção posterior para o Keynesianismo, mencionado aqui no ensaio de Rothbard) na Hayek
Lecture 2010, disponível em “Economic Recessions, Banking Reform, and the Future of Capitalism” (ver em
http://mises.org/daily/4817, 20-10-2014). Para uma outra versão em espanhol, ver a sua conferência “Crisis financiera,
reforma bancaria y el futuro del capitalismo” proferido na Fundación Rafael del Pino, http://youtu.be/X1fR3ZhFDkQ, 20-
10-2014.
37
Esta característica dual, na prática, resulta de registar-se no activo do Banco, o crédito concedido
por contrapartida no passivo de um novo depósito à ordem mediante simples operação
contabilística em que se credita na conta do devedor o valor correspondente, para cuja existência
nenhuma poupança monetária prévia foi mobilizada e transferida – sendo esta acepção verdadeira
em cada expansão adicional do volume de crédito e depósitos.
1. Passivo do Banco: valor de 100 € criados por simples registo contabilístico na conta de depósitos à
ordem do Sr. X.
2. Activo do Banco: nova operação de crédito ao Sr. X no valor de 100 €.
Nesta operação, nenhuma poupança monetária (depósito) anterior foi mobilizada. O Banco limitou-
se a registar que o Sr. X passa a ter disponível um valor de 100€ na sua conta corrente (conta de
depósito-à-ordem).
Se esta mesma operação de crédito tiver de ser efectuada pela mobilização de moeda, por exemplo,
concedida a crédito ao próprio Banco por outros clientes, teremos:
1. Passivo do Banco: Sr. Y. realiza um depósito a prazo (concede crédito ao Banco) no valor de 100 €.
2. Passivo do Banco: crédito de 100€ na conta de depósitos à ordem do Sr. X pela operação de crédito
solicitada.
3. Activo do Banco: operação de crédito ao Sr. X no valor de 100 €.
4. Activo do Banco: cofre com 100 €.
Para uma descrição alternativa simples mas pormenorizada deste processo ver artigo traduzido para
68
português “A esquisitice do sistema bancário de reservas fraccionárias”, Robert P. Murphy.
Neste último exemplo, em termos práticos, existiu uma transferência temporária de moeda do
Sr. Y para o Sr. X onde o Sr. Y recebe uma dada taxa de juro pelo seu depósito a prazo e o Sr. X
pagará uma outra taxa mais elevada pela moeda recebida fruto do seu contrato de crédito,
actuando assim o Banco no seu papel de pura intermediação financeira, onde transfere moeda (em
vez de criar depósitos) e auferindo por isso uma margem bruta entre uma taxa de juro e a outra. O
Banco detém responsabilidades sobre 100 € de contas correntes, e detém imediatamente
disponíveis 100 € no seu cofre. Na prática, num sistema assim a operar, uma operação não estaria
dependente da outra em simultâneo. O banco terá N formas de financiamento que incluem tanto os
depósitos a prazo como outras fontes mais estáveis (capital próprio e alheio de longo prazo), e fará
operações de crédito de tal forma que as maturidades sejam o mais coincidente possível.
No primeiro exemplo, o montante de depósitos à ordem subiu no valor de 100 € mas o montante
de moeda efectivamente detida e guardada num cofre manteve-se inalterado. Se o Sr. X pedir a
transferência dos 100 € para outro banco, este vai ter de diminuir as reservas de moeda (moeda
realmente detida no cofre) que estavam a garantir a totalidade dos depósitos à ordem e anteriores a
este novo depósito criado na operação de crédito, diminuindo assim o rácio de reservas (similar a
68
Via Instituto Ludwig von Mises Brasil (http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=705, 20-10-2014).
38
moeda efectivamente detida no tal cofre) para a totalidade dos depósitos. Assim, o balanço de um
banco a operar desta forma poderá ser descrito da seguinte forma:
Numa corrida aos balcões clássico em que os clientes com contas de depósitos à ordem,
efectuam o levantamento dos seus saldos, os bancos entram rapidamente em incumprimento (no
exemplo, bastaria o pedido de transferência de 100+1 €) dado o baixo rácio de reservas
efectivamente possuído (montante de moeda realmente detida em cofre, os 100€), sendo previsível
então um pedido de ajuda ao Banco Central que poderá ou não emitir (criar) mais moeda para
injectar como reservas adicionais nesse banco impedindo a suspensão de levantamentos ou o seu
colapso. Com o tempo, passou até ser considerado normal os Bancos pedirem ao Banco Central o
empréstimo de reservas financiando assim outros créditos detidos no balanço, mas com o tempo,
essa margem de manobra passa também a estar esgotada e o novo ponto de quebra passa a ser um
determinado banco esgotar os activos passíveis de servir de colateral contra a injecção de reservas.
É nesse ponto que uma intervenção por parte das autoridades monetárias, ou do próprio Estado,
passa a ser necessária para evitar o default.
De resto, desde sempre, que é esta a motivação primeira para a presença de Bancos Centrais: por
um lado permitir ao sistema bancário a criação de moeda na forma de depósitos para conceder
crédito, por outro impedir o colapso bancário pela possibilidade da emissão de reservas adicionais
quando os bancos ficam sujeitos a corridas a pedidos de levantamentos e transferências.
A base do problema da instabilidade bancária, apenas tornado visível a cada crise económica, é
que a qualidade da moeda (na sua forma de depósitos à ordem) está agora especialmente sujeita a
súbitas deteriorações do crédito bancário (em vez de permanecer como bem real não onerado com
risco de crédito), o que potencia, consequentemente, que a cada crise, após a percepção pelo
público em geral (mas em especial dos agentes mais sofisticados) de perdas elevadas pelo sistema
bancário e/ou de potencial diminuição de reservas de moeda que cubram os depósitos, tenham
39
lugar as modernas corridas aos bancos por simples pedidos de transferência, hoje em dia, até por
simples pedidos electrónicos, para outros bancos.
Fala-se de “reservas de 100%” para mencionar um sistema pelo qual os depósitos à ordem
configuram um autêntico contrato de depósito civil ou de guarda de valores. Só os chamados
depósitos a prazo constituiriam um acto de crédito ao banco permitindo a este utilizar esses
montantes (e outras formas de financiamento) para conceder crédito a terceiros. Assim sendo, todo
o acto de crédito pressupõe por natureza a poupança deliberada e voluntária de um agente.
Qual a origem da banca moderna e a institucionalização legal das reservas fraccionárias? Nos
primeiros tempos do negócio bancário, este lidava com ouro e prata físicos e onde os depósitos
eram efectuados, no mínimo implicitamente, à luz do conceito civil de depósito (um contrato de
guarda de valores).
O historiador Niall Ferguson refere na sua obra sobre a história financeira69, como o Banco de
Amesterdão, nascido em 1609, permitiu, reconhece o próprio, um enorme incremento de
transacções comerciais, mantendo todos os depósitos cobertos por 100% de reservas de moeda em
metais preciosos.
Só muito mais tarde, (depois, digo eu, de esta obrigação fiduciária ser quebrada) e ainda em
1760, esse rácio atingia ainda 84% de cobertura de moeda física efectivamente detida pelo banco,
para os depósitos junto de si. Comparece-se com os actuais cerca de 3% a 5% de coeficiente de
reservas obrigatórios que os bancos detêm de moeda relativamente à totalidade dos seus depósitos.
“Isto [reservas de 100%] tornava o banco seguro, sem dúvida, mas impedia o banco de
cumprir a característica mais definitiva que define um banco - a criação de crédito”.
“Uma corrida ao banco era então virtualmente impossível, já que detinha moeda suficiente
para satisfazer quase todos os seus depositantes, caso, por algum acaso, todos eles quisessem
liquidar todos os seus depósitos.”
69
The Ascent of Money: A Financial History of the World, Niall Fergusson, the Penguin Press, New York, 2008.
40
Fica assim diagnosticado desde já esta ambivalência, que é frequente na literatura especializada
ou que de alguma forma trata da história da banca, entre o risco dos depositantes e o desejo de
incentivar a actividade de crédito, sem que aparentemente mereça reflectir sobre a natureza dos
contratos em causa e a sua eventual transfiguração jurídica e ainda menos, sobre a desejabilidade e
consequências económicas de a partir desse momento os bancos poderem expandir o crédito por
emissão, não coberta de reservas, de depósitos-à-ordem que conferem a possibilidade de reclamar
essas reservas a qualquer momento, por levantamento presencial ou por simples pedido de
transferência.
Logo a seguir o autor refere que é com o banco sueco Riskbank, fundado em 1656, que a barreira
das “reservas de 100%” é quebrada iniciando a prática do que mais tarde se viria a denominar de
“reservas fraccionárias”, e, aparentemente para o autor, para o bem de todos, dado começar a
conceder crédito mantendo apenas uma proporção de reservas de moeda para fazer face a
levantamentos, o que, depreende-se implicitamente, permite expandir mais facilmente o crédito – e
o que, parece estar implícito também, só pode ser útil e essencial. 70
O autor também não indica qual foi, mais tarde, o destino do Banco de Amesterdão depois de ter
conhecido a prosperidade como facilitador de pagamentos, relatado aqui por Doug Fench:
“No início [1609], o Banco de Amsterdão não executava nenhuma função de crédito, era
estritamente um banco de depósito, com todo o dinheiro do banco apoiado em 100 por cento
por moeda metálica. (…) Nos últimos anos, o banco também começou a fazer grandes
empréstimos para a Companhia Holandesa das Índias Orientais e do Município de Amesterdão.
Em 1790 tornou-se público que o banco procedia a empréstimos e o prémio sobre o dinheiro do
banco (geralmente de 4 por cento, mas às vezes tão alto quanto 6 e 1/4) desapareceu e caiu para
um desconto de 2 por cento. Até o final desse ano, o banco praticamente admitiu a insolvência
através da emissão de um aviso de que a prata seria vendida aos detentores de dinheiro do
banco com um desconto de 10 por cento. A cidade de Amsterdão assumiu o banco em 1791 e,
finalmente, fechou-o, em Dezembro de 1819 (Conant 1969, p. 289).”71
70
Repetindo o argumento. Não se comenta ou não se acha necessário reflectir neste ponto, sobre se, no momento em
que um banco decide “praticar” reservas fraccionárias quando antes não o praticava, não estará a quebrar nenhum dever
fiduciário ou norma geral do direito civil ou de costume, com os depositantes que mantêm depósitos à ordem junto de si, e
não depósitos a prazo, com a perspectiva que estarão, em quaisquer circunstâncias, sempre disponíveis para
levantamento.
Não é também referido que o banco, decidido a praticar reservas fraccionárias, quando antes não o fazia, nem sequer tem,
para o concretizar, de iniciar o empréstimo da moeda física dos actuais clientes detidos no seu cofre, na verdade, apenas
tem de iniciar a actividade de creditar na conta corrente de novos credores, por registo contabilístico, por contrapartida no
activo, dos novos créditos concedidos. Cada um destes novos credores, poderá dispor deste montante para novas
transacções. O banco só terá de provar dispor da moeda efectivamente detida na forma de reservas, quando e se
solicitado o seu levantamento físico ou por pedido de transferência para outro banco. De notar que quanto maior a quota
de mercado de um dado banco comercial, maior a probabilidade de este valor circular nas suas próprias contas correntes
entre diferentes clientes, minimizando a probabilidade de ficar sujeito a transferências para fora do seu balanço,
diminuindo efectivamente o rácio de reservas para a totalidade de depósitos detidos Daí o interesse pela dimensão e a
tendência natural para os bancos assimilarem outros, paradoxalmente, muitas vezes, estimulada ou pelo menos
apadrinhada em situação de crises bancárias, pelas autoridades monetárias.
71
The Truth About Tulipmania, Doug French, http://mises.org/daily/2564,20-10-2014.
41
Niall Ferguson não se coíbe no entanto de referir mais à frente, ainda que muito ao de leve72 à
discussão encetada durante o séc. XIX sobre o estatuto e efeitos na economia dessa moeda assim
criada. E relata a posição mais ortodoxa do Primeiro-ministro Robert Peel que desagua numa crucial
peça legislativa denominada de Bank Charter Act de 184473 que dispôs que a emissão de notas teria
de estar necessariamente coberta na sua totalidade por reservas de moeda metálica. Mais à frente
cita, da época, o Barão Overstone, para relatar, no seu julgamento, de um certo fascínio vitoriano
pela moeda metálica:
“Só a Moeda Metálica é moeda. O papel-moeda é moeda porque representa Moeda Metálica.
Se assim não for será falsa. Um depositante poderá receber moeda metálica mas não todos,
assim sendo os depósitos não são moeda.”
O comentário que Niall Ferguson faz a seguir define de uma assentada a posição dominante
caracterizada pela fobia à estabilidade quantitativa:
Niall Fergusson não elabora a sua opinião que reflecte a visão mais comum, mas a validade desta
afirmação é negada pela “Escola Austríaca” assim como por observações empíricas. O efeito de um
crescimento conjugado com estabilidade monetária é por natureza um de deflação benigna de
custos e preços reais, como se viu mais acima. A maior ou menor estabilidade da oferta de moeda é
que condiciona a evolução dos preços nominais, e como já referido em nota, num dos períodos de
maior crescimento da história dos EUA, que vai de 1870 a 1890, o PIB real per capita cresceu 80%
enquanto os preços nominais caíram 31%.74
72
Dada esta polémica, no Reino Unido, conter muitas personagens e argumentos ao longo desde o séc. 18. Existiam duas
posições dominantes, como referenciado à frente, a Currency School e a Banking School. Um tratamento detalhado das
personagens e argumentos esgrimidos de forma personificada é feito por Murray N. Rothbard na sua obra sobre a história
do pensamento económico.
73
Percy L. Greaves Jr.no seu glossário “Mises Made Easier” na sua entrada descreve assim (no original): Peel's Act of l844.
The British Bank Charter Act, baptizado pelo nome do seu patrocinador e líder político da Currency School (q.v.), o primeiro
lorde do tesouro e primeiro-ministro, Sir Robert Peel (1788-1850). A lei regulamentou o funcionamento do Banco de
Inglaterra, então privado, até à Primeira Guerra Mundial. O Banco foi dividido em dois departamentos separados, um para
emissão de notas e outra para operações bancárias de depósitos. Novos aumentos na emissão de notas foram limitados
aos depósitos de ouro. Esta disposição, que impediu a emissão de meios fiduciários na forma de notas, foi suspensa três
vezes (1847, 1857 e 1866), antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Os requisitos de ouro não se aplicavam ao
Departamento Bancário que expandiu seus depósitos sobre empréstimos bancários e, assim, frustrou os esforços da
Currency School para evitar a expansão do crédito. (q.v.).HA. 571-72; M. 368-73 (http://mises.org/easier/P.asp,20-10-
2014).
74
Consultar estatísticas em http://www.measuringworth.com. De resto, foi a experiência desta deflação de custos e
preços que levou a que esta década de 70 seja sistematicamente referenciada como a “Longa Depressão”. Mas como os
dados sobre o aumento de produtividade e do valor real do poder de compra dos salários se tornaram evidentes, já não é
hoje em dia o caso. Murray N. Rothbard fez essa anotação no seu livro sobre a história monetária dos EUA:
“Deve ficar claro, então, que a "grande depressão" da década dos 1870 é apenas um mito, um mito provocado por
má interpretação do facto de que os preços em geral caíram acentuadamente durante este período. Na verdade,
42
O autor também não elabora sobre as motivações de Robert Peel, que não se reduziam ao
problema da inflação de preços - receio da consequência nos preços da emissão de notas sem
cobertura por reservas equivalentes de moeda física - mas sim abrangiam a temática da recorrência
de bolhas económicas seguidas de crises bancárias. A sua acção representou o culminar da posição -
da chamada “Currency School”75 a qual via na expansão do crédito por via a emissão de notas a
origem dos ciclos, contra a corrente “Banking School”76 que negava sequer a possibilidade da sua
expansão ocorrer sequer.
eles caíram desde o fim da Guerra Civil até 1879. Friedman e Schwartz estimaram que os preços em geral caíram
no período de 1869 a 1879 no valor de 3,8 por cento ao ano. Infelizmente, a maioria dos historiadores e
economistas estão condicionados a acreditar que uma queda de preços prolongada e acentuada tem de resultar
numa depressão: daí o seu espanto diante da óbvia prosperidade e crescimento económico durante esta época.”
E mas recentemente um ensaio académico “austríaco” analisou esse período, tendo merecido o prémio de 2012 para o
Carl Menger Essay Contest, e afirma no seu sumário:
“Este artigo mostra como a legislação política permitiu que se tivesse desenvolvido uma inflação monetária e uma
bolha, especificamente em ferrovias e outros processos de produção a longo prazo. Contudo, uma vez que o
governo federal seguiu uma política de laissez-faire na década de 1870, a economia recuperou com sucesso.
Consequentemente, não existiu uma Grande Depressão nessa década.” The Long Depression of 1873-1879: An
Austrian Examination, Patrick Newman, Rutgers University.
75
Recorrendo a Percy L. Greaves Jr. no seu glossário “Mises Made Easier”: “Currency School. Este grupo britânico nasce a
partir dos escritos de David Ricardo (1772-1823) em oposição à Banking School (q.v.). A Currency School defendeu a
"doutrina da moeda" na controvérsia do século XIX sobre as leis que devem reger o Banco da Inglaterra e formam a base
do sistema monetário britânico. A "doutrina da moeda" sustentava que todas as alterações na quantidade da moeda
deviam corresponder exactamente às alterações na posse de metal monetário (após 1853, apenas ouro) no país. Em geral,
a Currency School opunha-se aos princípios do free-banking e à sanção legal para quaisquer aumentos ou diminuição
discricionária na quantidade de moeda do país, o que, na sua opinião, incluía as notas mas não os depósitos à ordem
sujeitos a transferência ou retirada por cheque. Em suma, a Currency School opunha-se à prática de emissão de notas
fiduciárias contra o papel comercial e títulos do governo e pediram a proibição legal da emissão de quaisquer novas notas
excepto contra reservas de ouro de 100%. A Currency School foi bem-sucedida em incorporar suas ideias no Peel's Act of
l844 (q.v.). No entanto, esta lei, embora proibindo a emissão fiduciária de notas, permitiu uma grande expansão do crédito
de circulação (q.v.) na forma de depósitos à ordem. Consequentemente, a lei não limitou o aumento de meios fiduciários
como a Currency School tinha antecipado.
Porque não existe uma definição curta plenamente satisfatória, o leitor é convidado a ler as referências. HA. 438-44,571-
72; M. 343-45, 367-73; PF. 67. See also J. Laurence Laughlin's The Principles of Money (N.Y.: Chas. Scribner's Sons,
1903/1926), pp. 238-81; and Lloyd W. Mints' A History of Banking Theory, in Great Britain and the United States (Univ. of
Chicago Press, 1945), pp. 74-124. “ Ver em http://mises.org/easier/C.asp, 20-10-2014.
76
Recorrendo a Percy L. Greaves Jr.no seu glossário “Mises Made Easier”: “Banking School. Esse grupo opôs-se à Currency
School (q.v.) na controvérsia do século XIX sobre as leis que deviam reger o Banco da Inglaterra e formaram a base do
sistema monetário britânico. Com base nos escritos de Adam Smith (1723-1790), a Banking School adoptou o que se
tornou conhecido como o "Princípio da Banca" ou "Princípio de Fullarton". Este princípio diz que, enquanto um banco
mantiver a convertibilidade das suas notas em espécie (ouro), para a qual tem de manter reservas "adequadas", é
impossível a emissão excessiva de notas contra papel comercial de qualidade num período curto (90 dias ou menos) de
vencimentos. A Banking School fundamentou que, nestas condições, a emissão de tais notas era útil para a actividade
empresarial, não aumentava os preços, e a quantidade emitida seria independentemente determinada e limitada às
necessidades do comércio, em vez dos desejos de emissão pelos bancos. Afirmaram também que os detentores de notas
iriam prontamente apresentar a resgate todas as notas emitidas em excesso das necessidades do comércio sob a chamada
"lei do refluxo". Alguns sustentaram que o "princípio bancário" era válido mesmo que a convertibilidade não fosse
mantida. Os adeptos da Banking School não conseguiram perceber que os bancos eram livres de aumentar a procura pelas
43
Ludwig von Mises (1881-1973)77 elaborou sobre este tema no seu tratado Human Action78, nos
capítulos XVII e XX, e simultaneamente deu conta de uma falha grave e crucial cometida pela
Currency School que teria um impacto determinante. Apesar da sua intenção de limitar os efeitos
cíclicos via limitação da emissão de notas não reconheceu contudo que o exactamente o mesmo
efeito ocorre com a emissão e expansão sobre a forma de depósitos.
E Murray N. Rohbard comenta assim, num seu capítulo sobre as origens dos bancos centrais:
“Em 1844, Sir Robert Peel, um liberal clássico que serviu como primeiro-ministro da Grã-
Bretanha, apresentou uma reforma fundamental do sistema bancário Inglês (seguida no ano
seguinte, da imposição da mesma reforma na Escócia). A Lei de Peel é um exemplo fascinante das
ironias e armadilhas de até mesmo das mais bem-intencionadas reformas político-económica.
(…) A Currency School foi o primeiro grupo de economistas a mostrar como a expansão de
crédito bancário e notas de banco gerava inflação e bolhas, formando ciclos económicos, abrindo
assim o caminho para a contracção e o inevitável colapso de empresas e bancos. Além disso, a
Currency School mostrou claramente como o Banco Central, no caso da Inglaterra, o Banco da
Inglaterra, tinha gerado e perpetrado estas inflações e contracções...
(…) os Peelites ignoraram uma contribuição importante para a teoria monetária por
economistas americanos tais como Daniel Raymond e M. William Gouge: que os depósitos à
ordem constituem tanto uma parte plena da oferta de moeda ou massa monetária como as notas
de banco. A Currency School britânica insistiu teimosamente que os depósitos à ordem eram
simplesmente crédito não monetário, e, portanto, olhou com complacência para este aspecto. O
sistema de reservas fraccionárias, de acordo com estes teóricos, só era pernicioso para as notas;
os depósitos à vista não eram inflacionários e não faziam parte da massa monetária.
(…) O resultado deste trágico erro sobre os depósitos bancários significava que o sistema
bancário de reservas fraccionárias não terminou em Inglaterra depois de 1844, mas
simplesmente mudou de foco para os depósitos à ordem, em vez de notas. Na verdade, o
pernicioso sistema moderno entrava agora a operar em pleno.
suas notas fiduciárias, reduzindo a taxa de juros cobrada em empréstimos bancários. O British Bank (Peels) Act de 1844
proibiu a emissão de notas adicionais pelo Banco da Inglaterra contra qualquer coisa, excepto reservas de ouro de 100%.
No entanto, a lei permitiu a expansão dos depósitos à ordem sujeitos à transferência ou retirada por cheque contra o papel
comercial de curto prazo do tipo aprovado pelo "princípio bancário". Isso pavimentou o caminho para as teorias bancárias
populares actuais com base em reservas fraccionárias, "moeda elástica," crédito de circulação e a expansão do crédito
(q.v.). Para as consequências, consultar a "teoria monetária dos ciclos económicos.”
Porque não existe uma definição curta plenamente satisfatória, o leitor é convidado a ler as referências. HA.439-441, 444,
571; M. 305-12, 343-45, 368-70; also PLG. 175-93. Ver também J. Laurence Laughlin's The Principles of Money (N.Y.: Chas.
Scribner's Sons, 1903/1926), pp. 238-81; and Lloyd W. Mints' A History of Banking Theory, in Great Britain and the United
States (Univ. of Chicago Press, 1945), pp. 74-124.” Ver em http://mises.org/easier/B.asp, 20-10-2014.
77
Nota biográfica em Biography of Ludwig von Mises (1881-1973), Murray N.Rothbard
(http://mises.org/page/1468/Biography-of-Ludwig-von-Mises-18811973, 20-10-2014).
78
Cuja edição original em inglês foi Human Action: A Treatise on Economics, New Haven: Yale University Press, 1949.
Actual versão publicada pelo Mises Institute disponível em http://mises.org/page/1470/Human_Action, 17-12-2102.
44
(…) Como resultado, as bolhas inflacionárias de crédito bancário ocorreram imediatamente
depois de 1844, levando ao colapso final da Currency School. Assim que as crises surgiram
quando cidadãos nacionais e estrangeiros solicitavam aos bancos o pedido de resgate das suas
notas, o Banco da Inglaterra foi capaz de obter do Parlamento a "suspensão" da Lei de Peel,
permitindo ao Banco emitir a quantidade suficiente de notas de reserva fraccionária com curso
legal para resolver problemas a todos o sistema bancário. A Lei de Peel exigindo 100 por cento de
reservas para novas emissões de notas do Banco de Inglaterra foi suspensa periodicamente: em
1847, 1857, 1866, e, finalmente, em 1914, quando todo o velho sistema de padrão ouro foi posto
de lado.”79
Niall Fergusson também se refere a estas crises, embora retirando diferentes conclusões,
escrevendo:
“Repetidas crises (em 1847,1857 e 1866) tornaram claro que que isto era demasiado rígido,
contudo, em cada caso, a Lei teve de ser temporariamente suspensa para evitar o completo
colapso de liquidez. Foi apenas depois destas crises, que testemunhou o espectacular colapso do
bank of Overend Gurney, que o editor da revista Economist, Walter Bagehot, reformulou o papel
no Banco de Inglaterra numa crise como de “credor de último recurso” concedendo crédito
livremente, ainda que a uma taxa penalizadora, para combater as crises de liquidez.”
E é assim que, para um miseseano, a própria causa das crises bancárias - o crédito e moeda
elástica – se transforma para outros na solução para o problema – mais crédito e a moeda elástica –
concedendo aos bancos centrais o papel de “credor de último recurso”. O termo parece incorrecto
porque os bancos centrais serão sim o banco emissor de moeda de último recurso.
“A necessidade crítica… era de instituições que atraíssem aforradores criando uma base de
expansão para mais crédito bancário no outro lado do balanço.”
Para percebermos sucintamente como foi a deturpação do estatuto legal do depósito que
desaguou na percepção errada da actividade de crédito bancário como expandindo a partir de uma
base natural dos depósitos e procedendo depois à sua criação pura, podemos agora recorrer a
Huerta de Soto que escreve no seu livro “Moeda, Crédito Bancário, e Ciclos Económicos” no seu
capítulo 280 em que analisa a evolução histórica das práticas bancárias quanto aos depósitos e
crédito:
“Vamos agora examinar três casos particulares que, juntos, ilustram o desenvolvimento da
banca medieval: os bancos Florentinos do século XIV; Banco de Barcelona de Depósitos, o Taula
de Canvi, no século XV e mais tarde, e o Banco Medici. Esses bancos, como todos os bancos mais
importantes do final da Idade Média, mostram consistentemente o padrão que vimos na Grécia e
79
The Mistery of Banking 2nd edition, Murray N. Rothbard, Ludwig von Mises Institute, [1983] 2008. Capítulo XII The
Origins of Central Banking. Ver em http://mises.org/Books/mysteryofbanking.pdf, 20-10-2014.
80
Money, Bank Credit, and Economic Cycles, Jesús Huerta de Soto, 3rd edition Ludwig von Mises Institute [2006] 2012.
Capítulo 2 - HISTORICAL VIOLATIONS OF THE LEGAL PRINCIPLES GOVERNING THE MONETARY IRREGULAR-DEPOSIT
CONTRACT.
45
em Roma: bancos que inicialmente respeitavam os princípios legais tradicionais encontrados no
Corpus Juris Civilis, ou seja, operando com 100 por cento de reservas, rácio que garantia a guarda
do tantundem e a sua constante disponibilidade ao depositante. Então, gradualmente, devido à
ganância dos banqueiros e cumplicidade dos governantes, esses princípios começaram a ser
violados, e os banqueiros começaram a emprestar dinheiro dos depósitos à ordem, muitas vezes,
de facto, aos próprios governantes. Isso deu origem à reserva fraccionária e à expansão artificial
do crédito, que na primeira etapa parecia estimular fortemente o crescimento económico. Todo
o processo terminava numa crise económica geral e na falha de bancos que não podiam devolver
os depósitos quando a recessão aparecia e perdiam a confiança do público. Sempre que os
empréstimos eram sistematicamente efectuados a partir de depósitos à ordem, é uma constante
histórica a falha no sector bancário. Além disso, as falências bancárias eram acompanhadas por
uma forte contracção na oferta de moeda (especificamente, a escassez de empréstimos e
depósitos) e pela recessão económica assim inevitável. Como veremos nos capítulos seguintes,
foram necessários quase cinco séculos aos estudiosos económicos para compreender as causas
teóricas de todos estes processos.”
E assim passou a subsistir a tendência para a emissão de mais notas (certificados de coisa
depositada) e registos contabilísticos em conta corrente ou depósitos à ordem, num valor
representativo de uma quantidade de ouro ou prata superior ao efectivamente detido pelo banco.
Isso permitia expandir o crédito sem a captação e transferência efectiva do título de propriedade de
uma dada quantidade de ouro ou prata para o tomador do crédito, o que para todos os efeitos,
numa análise objectiva conforma uma fraude se tivermos como válida a premissa que o título
emitido agora entregue ao tomador do crédito, não representa a posse de qualquer quantidade de
ouro ou prata depositado, mas apenas a promessa da sua entrega se assim for solicitado, estando
assim sujeito a risco de crédito. A função de intermediação entre aforrador e o tomador de crédito é
assim substituída pela pura emissão de títulos de propriedade de coisa inexistente (ou quando
muito, de título de coisa “prometida entregar”, em vez de certificado de coisa “ à guarda”, ou seja,
propriedade plena) e em seguida dada como crédito em conta corrente ou sob a forma de notas ao
tomador do crédito que em seguida os vai utilizar como meio de troca e assim fazer circular na
economia.
Estes novos certificados (notas) e depósitos passam a ser assim em substância “promessas de
pagamento” dado não corresponderem à coisa depositada mas à promessa de entrega com risco de
incumprimento) que circulam indiferenciadamente como se representassem certificados plenos de
coisa guardada. Essa aparente homogeneidade entre propriedade e “mera” promessa de pagamento
permitia naturalmente a expansão do negócio bancário (incluindo o volume de crédito ao soberano -
hoje Estado, razão pelo qual a conveniência era e é mútua), mas isso, ciclicamente, induzia uma
expansão económica temporária não sustentada (aspecto tratado mais à frente), desaguando
recorrentemente em crises económicas e bancárias com corridas aos bancos por parte dos
depositantes para exigirem a troca das suas notas ou depósitos por moeda física (ouro ou prata) e
assim ocorrendo falências bancárias, evento frequente na história, mas ele próprio disciplinador da
acção dos bancos.
46
Esta é de resto a tese defendida por alguns81 economistas da Escola Austríaca denominada por
Free Banking: num ambiente de concorrência de liberdade de emissão de moeda em reservas
fraccionárias, e na ausência de ajuda aos bancos (muitas vezes concedida quando as autoridades
permitiam a suspensão da conversão em ouro), os bancos tendem a restringir a oferta de notas e
depósitos não cobertos dado o espectro de corridas aos depósitos quando a capacidade de
conversão em ouro físico é posto em causa pelo público, e de facto as experiências históricas mais
próximas desse arranjo institucional parecem indicar nesse sentido.82
O processo histórico particular ocorrido em cada Nação foi diverso e difuso (mas em geral
relacionado com o inflacionismo operado no financiamento da despesa na Grande Guerra, por
expansão de notas e depósitos em vez da mais visível cobrança de impostos) mas o caso americano
é claro. A 5 de Abril de 1933, Roosevelt emite a Ordem Executiva 6102 obrigando à entrega do ouro
(em moeda, barra ou sob a forma de certificado) físico detido pela população, sob pena de uma
multa até 10 000 dólares ou prisão, ou ambos. A prata sofreu o mesmo destino em 1934. Pelo ouro
entregue a população recebeu dólares agora não remíveis, ao preço oficial de 20,67 dólares a onça,
tendo logo em seguida tal rácio oficial sido desvalorizado em 40%. Por curiosidade, os termos
exactos do contrato que estava estampado em cada nota de dólar era (numa série de 1922): “Isto
certifica que aqui foi depositado no Tesouro dos Estados Unidos 100 dólares em moedas de ouro
remíveis ao portador a pedido”.
Que primeiro se tenha expandido tais certificados (as notas) e depósitos bancários sem a
existência real de reservas em ouro, e que depois perante a inevitável impossibilidade de os redimir
quando a confiança que sustentou tal expansão é quebrada, se diga, que o padrão-ouro “não
funciona”, é uma amarga e doce contradição que não parece incomodar a história económica onde
mais ou menos se deixa a ideia vaga que se o padrão-ouro acabou se deveu a “não funcionar”, e
todas as acções tomadas nesse sentido, ainda que com carácter compulsório e violento (nunca
mencionadas com claridade) foram necessárias e inevitáveis, e em última análise para o próprio bem
público. Talvez se deva reservar um pequeno espaço para considerar o interesse próprio do “bem”
particular das elites políticas e financeiras que ficaria em causa assim o direito civil e comercial fosse
cumprido em toda sua extensão (um incumprimento dá lugar à falência e subsequente liquidação de
activos para distribuição pelos credores), e como ficaria bem dizer, na plena assunção de um Estado
81
É um debate interno, por vezes aceso, que opõe a defesa rothbardiana, e seguida por Hoppe e Huerta de Soto, de
reservas de 100% como imperativo de direito civil versus liberdade de reservas fraccionárias. Para uma crítica num ensaio
ver Free Banking and the Free Bankers, Jorg Guido Hulsmann (http://mises.org/journals/rae/pdf/RAE9_1_1.pdf, 20-10-
2014).
82
Muitos dos seus principais proponentes académicos reúnem-se actualmente no blog http://www.freebanking.org/ que
contém uma exposição realizada no Congresso numa iniciativa do subcomité sobre política monetária, presidida por Ron
Paul: “Hearing, June 28 2012, Fractional Reserve Banking”, Lawrence H. White, Professor of Economics, George Mason
University, before the House Subcommittee on Domestic Monetary Policy and Technology, United States House of
Representatives”, http://www.freebanking.org/2012/07/02/testimony-on-fractional-reserve-banking/, 20-10-2014.
47
de Direito. Claro que existe sempre uma boa desculpa formal, Roosevelt evocou uma lei de
emergência do tempo da Grande Guerra que conferia determinados poderes no tratamento do ouro
e prata amoedado. Um exemplo como muitos outros, da tendência para a legislação de emergências
ter uma grande longevidade e latitude na sua aplicabilidade.
A questão do modelo institucional do sistema monetário tem sido polémica na própria Escola
Austríaca, dividindo-se entre o “Free Banking” (liberdade da prática de reservas fraccionárias) e a
exigência legal de reservas de 100%.
A minha posição neste debate é a de que para tal sistema (liberdade monetária em convivência
com reservas fraccionárias) ser transparente e honesto, no sentido de evitar a ambiguidade jurídica,
existe a necessidade legal de identificar e assim diferenciar ambas formas monetárias que para
todos os fins representam contratos não fungíveis: ou seja, um representa uma “promessa de
pagamento ou entrega” (a nota ou o registo em conta corrente confere direito a uma promessa de
pagamento em espécie, ou seja, a entrega da coisa subjacente), e outro representa verdadeiramente
um título representativo de um depósito civil (e assim a sua posse plena). Com isto em mente,
conclui-se que o próprio registo contabilístico tem de ser diferenciado, tal como uma conta corrente
denominada em euros não é fungível com uma conta denominada em dólares.
Adicionalmente pode-se agora especular que se assim for, ambos os contratos deixam de ser
homogéneos e fungíveis, surgindo naturalmente um rácio de troca que poderá realizar-se abaixo do
par (dado um conter risco de crédito no cumprimento da promessa de entrega e o outro não) e
sendo provável que a boa moeda acabará a afastar a má moeda, o contrário da chamada Lei de
Greshman que tem lugar quando legislativamente se força o valor de uma má moeda atribuindo-lhe
um valor sobrevalorizado83, mas, especula-se aqui, não sendo assim, o mercado tratará de afastar a
má moeda (neste caso, a promessa de pagamento versus o certificado de posse plena) que circula ao
valor que lhe quiserem atribuir, e portanto não artificialmente sobrevalorizada.
Atente-se que a origem das muito citadas crises bancárias do período clássico (após habituais
bolhas de crédito e actividade económica, como o foi por exemplo, a de construção de caminhos-de-
ferro ou a promessa de elevados ganhos na exploração económica dos recursos nas colónias) está na
emissão de “notas” e “depósitos” que não correspondem a coisa (ouro ou prata) depositada, e não
83
Um exemplo simples (mas real na história da moeda) desta lei: quando num sistema de curso legal bimetal de prata e
ouro é fixada legalmente e de forma sobrevalorizada a cotação relativa da prata, isso induz que todos os pagamentos
sejam feitos com a prata (a má moeda) e as pessoas guardem o ouro para si (a boa moeda). O mesmo se pode aplicar a
moeda física com conteúdo cada vez inferior de ouro ou prata (a forma original de inflação) tentando-se legislativamente
que o seu valor de circulação se mantenha. Essa moeda (a má) passa a ser racionalmente utilizada para os pagamentos e
liquidação de dívidas e impostos, enquanto a boa é guardada (as anteriores com maior pureza), desaparecendo de
circulação. Essa de resto é a história conhecida do declínio do Império Romano - a sucessivamente menor quantidade de
prata de 97% para 2% (ver a sua evolução em http://www.tulane.edu/~august/handouts/601cprin.htm 20-10-2014), cujos
efeitos posteriores de tentativa de controlo administrativo dos preços de mercado, já que estes se ajustavam em subida,
ajudou a operar a desagregação económica de Roma.
48
na capacidade dos depositantes reclamarem receber o que os seus títulos de propriedade dizem
representar (uma dada quantidade física de ouro ou prata), acto então frequentemente e
convenientemente caracterizado como de pânico irracional para justificar a protecção dos bancos
pelo poder político permitindo-lhes por legislação avulsa poder suspender a conversão em moeda
física e assim concedendo protecção de falência. Estamos sim perante uma (interesseira?) deficiente
análise jurídica da relação contratual entre emissor de títulos de “promessa de entrega” e emissor
de “certificados plenos de coisa à guarda”.
A confusão, ou antes, a sua não distinção entre ambos, por um lado era conveniente a
banqueiros e soberanos, e pelo menos temporariamente (em especial na fase ascendente de cada
bolha económica) para todos os tomadores de crédito agora capazes de efectuar investimentos a
uma taxa de juro artificialmente baixa e adquirindo bens reais a preços que não reflectem ainda a
circulação de quantidades adicionais de notas e depósitos (criadas no próprio acto de concessão do
crédito) numa relação agora desvalorizada entre a sua quantidade total (de títulos correspondentes
a direitos de troca por ouro e prata física) versus coisa realmente depositada.
A não abordagem da não fungibilidade dos tipos de contrato em presença, em teoria, ambos
potencialmente honestos, creio estar em falta na polémica entre autores genericamente associados
à escola austríaca.
5.4. O papel dos Bancos Centrais como agentes que suportam e incentivam as reservas
fraccionárias
Toda a história da formação dos Bancos Centrais84 está relacionada com a tentativa de impedir
que uma expansão de crédito e moeda, sob a forma de notas e depósitos não colateralizados por
moeda física em ouro ou prata, desaguasse numa crise bancária de incumprimento de pedidos
conversão via as célebres corridas aos bancos, culminando no início do século XX - em larga medida
como consequência da emissão de moeda sob a forma de notas e depósitos não colateralizados por
reservas em ouro, operada na Primeira Guerra Mundial pelos Estados para a financiar - com o fim
compulsivo do padrão-ouro amoedado. Agora a emissão da moeda passa a ter apenas o valor da
imposição legal85 tendo como limite apenas a auto-restrição de não conduzir a moeda até à hiper-
inflação e colapso monetário (ocorrido inúmeras vezes na história) dado que no domínio das
hipóteses, toda e qualquer quantidade de moeda pode agora ser emitida a custo marginal nulo ou
perto disso.
Hoje, os bancos beneficiam da possibilidade dos Bancos Centrais poderem a qualquer momento
acorrer com toda a injecção de reservas necessária necessária aos bancos poderem cumprir com
84
Ver o caso americano em Origins of the Federal Reserve, Murray N. Rothbard, Quarterly Journal of Austrian Economics,
Vol. 2, No. 3 (Fall 1999), pp. 3–51 (http://mises.org/daily/3823, 20-10-2014).
85
Daí a expressão fiat-money ou seja, moeda-fiat, sendo fiat a palavra em latim aqui usada no sentido de moeda tornada
curso legal e de último meio de liquidação de obrigações em regime de monopólio por força legislativa.
49
pedidos de transferência e levantamentos impedindo assim um incumprimento formal nominal86 na
sequência de uma “corrida ao banco”. Tal acção será sempre justificada pelo “carácter único e
sistémico desta crise.
Mas a crise de 2008 pareceu pôr em causa até essa capacidade, já que as corridas aos bancos
acabaram por ocorrer de forma semelhante a outras na história, e dada a velocidade dos
acontecimentos e a surpresa das próprias autoridades políticas e monetárias. O receio por parte,
primeiro dos investidores mais sofisticados, depois do público em geral, ou de um default, ou de
uma reestruturação que obrigue à participação dos depósitos, ou da mera suspensão temporária do
acesso às contas, leva à decisão perfeitamente racional, da busca pelo risco nulo.
Uma reflexão ainda é devida quanto à própria percepção dos banqueiros e reguladores sobre o
sistema bancário e monetário com que lidam e, digamos, doutrinariamente defendem. Esta
interrogação deriva da capacidade dos bancos em aumentar o seu capital financiando os accionistas
com operações de crédito onde a criação do depósito correspondente será a contrapartida para a
realização do capital, o que deturpa toda e qualquer verdade económica na formação de capital. É
um aspecto prático em particular intrigante que me leva a questionar a clareza da percepção dos
principais agentes sobre o próprio sistema com que lidam e eventualmente defendem (banqueiros e
reguladores):
Momento 1 (situação inicial): Balanço inicial do Banco -> Activo 100; Passivo 90; Capital Social
10.
Momento 2 (operação de crédito): registo da operação de crédito no activo do banco por 10;
registo no passivo do banco via depósito à ordem dos clientes-futuros-accionistas de 10.
Resultado no Balanço -> Activo 110; Passivo 100; Capital Social 10. Repare-se no factor criação
monetária sem mobilização da poupança monetária prévia no acto de registo do crédito de
10.
Momento 3 (aumento capital): registo do aumento de capital por débito das contas à ordem.
Resultado no Balanço do Banco -> Activo 110; Passivo 90; Capital Social 20. O aumento de
86
Utiliza-se aqui o termo nominal porque este processo é obviamente inflacionário dada a emissão adicional de moeda a
que obriga. Assim, o depósito é nominalmente garantido mas o seu valor real não. Antecipando uma observação possível
de que a inflação neste tipo de acontecimentos tende a ser modesta, inexistente e até negativo como o era no período do
padrão-ouro, a verdade é que, seja qual for a inflação medida pelos Índices, é correcto a expressão de que algum conjunto
de preços será sempre mais alto do que seria na ausência de tal emissão monetária. Se a inflação de preços resulta num
valor de 0, quando poderia estar a descer 2% na ausência de um dado aumento quantitativo da moeda, esse é o impacto e
a perda de poder de compra que os detentores de moeda, mais conservadores durante o período da bolha perdem,
quando seria natural que dele auferissem. No fundo, o aforrador conservador perde quando se abstém de participar da
bolha do crédito, e depois perde quando o poder político socorre aqueles que mais beneficiaram do processo de expansão
de crédito. Um tal sistema de incentivo só pode ser classificado de degenerativo da ordem social.
50
capital melhorou os rácios de solvabilidade (agora de 20/110 relativamente ao anterior valor
de 10/100) pelo simples acto de criação monetária para efeitos do seu próprio aumento de
capital tendo o coeficiente de reservas do Banco mantido inalterado porque o total de
depósitos manteve-se inalterado em relação à situação inicial.
Fica claro que nesta operação é tido como capital social, um valor que tem como contrapartida
apenas a futura poupança do devedor accionista (com o inerente risco de crédito). Isto representa a
total subversão do conceito de capital, que deve constituir, sim, poupança monetária prévia
precisamente para servir de capital mobilizável a qualquer momento para fazer face a perdas
potenciais em operações de crédito.
6.1. O ano de 2008 - o reaparecimento das velhas corridas aos bancos… e aos Estados
“Não há meio de evitar o colapso final de uma bolha provocado pela expansão do crédito. A
alternativa é apenas se a crise deve chegar mais cedo como o resultado de um abandono
voluntário de mais expansão de crédito, ou mais tarde, como uma catástrofe final e total do
sistema monetário envolvido.”87 Mises (1949).
No que respeita à corrente crise, no seu livro This Time is Different, Carmen M. Reinhart e
Kenneth Rogoff estimaram que o preço das casas nos EUA subiu em termos reais 92% entre 1996 e
2006, mais de 3 vezes os 27% de subida registada entre 1890 e 1996 e por curiosidade, ou mais do
que isso, indo consultar a estatística de massa monetária medida pela chamada MZM Money Stock
elaborada pelo St. Louis FED90 esta subiu nesse período mais de 133%. Quem pretende defender que
este tipo de bolhas pode ter lugar sem que a expansão de crédito e moeda tenha lugar tem uma
tarefa difícil para explicar como poderiam as taxas de juro fomentar essa expansão se a procura por
87
Traduzido do capítulo do seu tratado “A Acção Humana” em XX. INTEREST, CREDIT EXPANSION, AND THE TRADE CYCLE 8.
The Monetary or Circulation Credit Theory of the Trade Cycle (http://mises.org/humanaction/chap20sec8.asp,20-10-2014).
88
Manias, Panics and Crashes: A History of Financial Crises, Charles P. Kindleberger. Palgrave Macmillan; 6 edition (August
9, 2011).
89
Robert J. Barro and José F. Ursua, “Macroeconomics crises since 1870”, Brookings papers on economic activity.
90
http://research.stlouisfed.org/fred2/graph/?id=MZM, 20-10-2014.
51
crédito para estes fins, tivesse de competir com poupança monetária genuína e assim uma
quantidade estável de moeda.
Uma das peculiaridades da crise iniciada em 2008 foi assistir ao que se julgava já desaparecido,
em particular a visão de pessoas em fila para solicitarem levantamentos e transferências de
depósitos bem visível no conhecido caso ocorrido no Northern Bank no Reino Unido, o qual teve de
ser suportado com uma garantia sobre a totalidade dos depósitos e isto apesar da legislação
aplicável atribuir essa garantia apenas a um dado valor-limite.
O problema, talvez novo, é que os remédios clássicos exigem agora montantes impensáveis até
há uns anos onde os apoios concedidos ao sistema bancário põem em risco a própria solvabilidade
dos Estados, visível na evolução das notações de ratings e do preço de mercado do risco de
incumprimento inferido pelos instrumentos de credit default swaps (cds) que de uns e outros.
A endogamia sistémica ficou assim como que bem evidenciada. Como é bem sabido, o activo dos
bancos centrais é maioritariamente constituído por dívida pública, que suporta a sua emissão de
reservas e está registado no seu passivo, tal como os bancos detêm dívida pública no seu activo
financiada também em parte pelos bancos centrais, constando no seu passivo. O mecanismo circular
constituído pela dívida-pública-expectativa-da-capacidade-de-cobrar-impostos-futura como
colateral da moeda emitida pelos bancos centrais (moeda base ou reservas) e que por sua vez é
alavancada pelos bancos comerciais via emissão de depósitos à ordem no acto de concessão de
crédito - mecanismo multiplicador das reservas91 - fica debilitado quando é posta em causa a
capacidade de emitir e colocar dívida pública adicional e assim colocando em risco a capacidade de
refinanciamento (rollover) do stock actual que se aproxima da maturidade aumentando assim a
expectativa de um incumprimento, e assim curto-circuitando o sistema financeiro, já que, ao mesmo
tempo que os bancos sentem já grandes dificuldades com o aumento do incumprimento na sua
carteira de crédito e da desvalorização do colateral associado, vêm também o seu risco aumentado
dado o peso da dívida pública no seu balanço. Estados e Bancos deixam de poder financiar-se
mutuamente.
De salientar que no decorrer nesta crise, a carteira de crédito imobiliário passou agora também a
constituir uma parte importante deste circuito – onde antes só a dívida pública tinha expressão -
dado que os bancos centrais passaram a comprar e assim monetizar igualmente este tipo de activos
agora privados, tal como financiando em mais larga escala a sua posse pelos bancos comerciais. Em
que isso poderá resultar numa futura crise só nos poderá suscitar os piores receios.
Parece também válido afirmar que foi a crescente capacidade operativa de transferências
interbancária, pedidas e executadas imediatamente dentro da zona euro, que conduziu à imediata
garantia explícita de todos os depósitos por uma boa parte dos governos da União Europeia -
passando-se por cima de legislação nacional específica que limitava essa garantia a montantes
máximos - numa interessante demonstração da teoria dos jogos: no início da crise e pico da
incerteza sistémica depois de um dos Estados, porventura com o sistema bancário mais debilitado
(no caso, a Irlanda), estipular tal garantia sobre a totalidade dos depósitos bancários aí sediados, os
91
Pese embora o inverso também seja verdade, a emissão de depósitos pela banca comercial como reposta à procura de
crédito, conduz a que o banco central reaja com a injecção de reservas adicionais.
52
depositantes em bancos de outros Estados apressaram-se a pedir transferências para esse primeiro
forçando os restantes Estados a efectuar a mesma promessa de modo a não terem, eles próprios, de
se confrontar com volumes de transferências bancárias que poriam em risco o seu sistema bancário.
Isto foi válido enquanto a própria solvabilidade dos Estados que acorreram a ajudar o seu sistema
bancário não começou a ser vigiada de perto, momento a partir do qual as dívidas públicas nacionais
se começaram a diferenciar e divergir de forma acentuada até surgir a crise de dívidas soberanas na
zona Euro que por sua vez contribuíam para a deterioração adicional dos balanços dos bancos.
Constituirão assim estes acontecimentos, que se iniciaram apesar de tudo nos EUA, uma
especificidade da zona Euro? Sim, mas apenas na componente do arranjo institucional específico do
Banco Central Europeu, onde várias dívidas soberanas passaram a ser objecto de monetização por
um mesmo emissor de moeda, não sendo totalmente claro o critério com que uma particular dívida
soberana possa ser objecto de compra ou financiamento indirecto pelo Banco Central relativamente
a outra (potencialmente tal critério ou ausência de critério será, creio, objecto futuro de tensão
institucional entre diferentes países). Esta integração obriga também a que ajustamentos relativos
incluam preços nominais nomeadamente via salários, o que em si mesmo, sendo impopular, é mais
transparente e provocando menos distorções adicionais que recorrer a tentativas de baixa uniforme
de salários reais por via inflacionista e de baixa de poder de compra em relação ao exterior via
desvalorização cambial – perda de capacidade de compra acerca da qual uma boa parte dos
economistas estão sempre prontos a expressar saudosismo, quando não sugerem mesmo a saída do
Euro, sem a consciência (aparente) de que essa mera hipótese conduzirá à fuga, legítima e
compreensível, de depósitos do sistema bancário nacional.
É mais fácil entrar num espaço monetário do que sair. De resto, uma moeda autónoma numa
economia pequena ou mesmo média, não está isenta da disciplina na manutenção de reservas
externas a níveis adequados, em especial, porque o recurso a dívida externa, por privados e pelo
próprio estado, se torna necessária. Ou seja, se não existe uma crise de dívida soberana interna
como na zona euro, existirá sempre o espectro de uma crise da balança de pagamentos, como
muitas no passado não muito distante em Portugal. De resto, tem sido desde sempre o papel do
FMI, actuar sobre países com crises sérias decorrentes da insuficiência de reservas externas. Só
praticamente os EUA, como emissor de uma reserva aceite globalmente, consegue retirar em pleno
os benefícios proclamados na defesa de uma moeda própria, ficando a dúvida se os seus limites não
estarão para ser testados.
Para os mais ortodoxos defensores da moeda, como os autores aqui presentes, o equilíbrio
visivelmente precário do sistema monetário internacional é uma consequência directa da facilidade
com que ocorre a expansão de crédito agravado pelo sistema de reservas fraccionárias onde a
regulação determina que as reservas de moeda disponível para fazer face a levantamentos possam
corresponder a apenas uma pequena parte do total de depósitos. Esta circunstância pode
transformar um banco dito solvente num incumpridor caso se ponham em marcha um número
anormal de pedidos de levantamento ou transferência. Nestas situações o remédio aplicado tem
sido, por norma, a intervenção imediata e directa do Estado92 para garantir os depósitos desse banco
92
Dois tipos de intervenções são distintas na sua visibilidade e na sua cadeia de decisão e controle: Por um lado, as
injecções de capital por um Estado são necessariamente orçamentadas e os beneficiários identificados, por outro, a
injecção de reservas pelo Banco Central tem beneficiários não divulgados, escapa ao escrutínio do público e do sistema
político e não consta nas contas públicas já que constitui pura inflação da base monetária. Este ponto tem sido levantado
53
ou conjunto de bancos. Este modelo de intervenção cria o incentivo sistémico à imprudência, daí o
termo “moral hazard” ser evocado com frequência. Neste momento, nem será bem claro o status de
tal promessa, efectuada mais por canais políticos do que legislativos e regulamentares, se bem que
tal seja irrelevante – essa garantia existe agora implicitamente na percepção de todos os agentes
económicos e ainda que se procure formalizar a ameaça do limite de garantia sobre depósitos e de
procedimentos de actuação uniformes dentro da chamada união bancária na União Europeia.
O que se assiste na prática é a uma concentração crescente do sector bancário fomentado pelas
próprias autoridades ao patrocinar a fusão ou aquisição de entidades debilitadas por outras com
menos problemas, o que representa uma fuga para a frente e um factor adicional para aproximar
todo o sistema de um ponto de “too big to bail out” - demasiado grande para ser ajudado –
conduzindo a um cenário cada vez mais provável de algures no tempo podermos vir a assistir a uma
reforma monetária repressiva com carácter internacional, uma espécie de bail in sistémico global. A
história monetária tem exemplos disso mesmo.
O fim da história de tal sistema monetário foi defendido por Keynes: uma moeda mundial (o
“bancor”) e um Banco Central mundial. Desta forma, a capacidade de expandir o crédito e moeda
sem ser punido por movimentos cambiais e fugas de capitais de um sistema monetário - conjunto de
bancos operando sobre a mesma moeda - para outro passaria a ser absoluta. O tema vai já surgindo
aqui e ali.
O que será claro concluir é que o tão apregoado e evocado “risco sistémico” justificativo do
intervencionismo monetário é inerente à própria arquitectura do actual sistema monetário, à qual
deve ser colocada a interrogação sobre como são os excessos económicos e financeiros sequer
possíveis em primeiro lugar.
Wall Street "apanhou uma bebedeira e agora está com uma ressaca”, Presidente Bush, 22 de
Julho de 2008.
nos EUA pelo Congressista Republicano Ron Paul (da área política conservative-libertarian, na área económica influenciado
pela Escola Austríaca), resultando numa proposta reguladora denominada “Audit the FED” (auditoria ao FED) sem que
tenha escondido, pelo contrário, a sua tónica de longo prazo “End the FED” (acabar com o FED) ainda que a sua proposta
seja a de simplesmente deixar o ouro e prata circularem com valor de moeda, a par do actual dólar.
54
“Todas as bolhas têm um dia de chegar ao fim”, Mises (1928).
Em geral, existe o reconhecimento que algumas formas de excessos têm lugar em certos
períodos. E adicionalmente, até se reconhece ou é intuído que estes períodos estão ligados a
períodos de recurso excessivo ao crédito.
Mas como pode sequer ter lugar a expressão “excesso” de crédito sem o correspondente
“excesso” de poupança?
Cabe aqui referir que a maior quebra facilmente identificável numa crise é a da componente de
investimento, em especial na produção de bens de capital - onde retracções fortes são sempre
observáveis - e não tanto na produção de bens de consumo, o que pronuncia algum tipo de excesso
de um em relação ao outro. Como diz Mark Skousen num seu artigo já referido sobre Say:
“Say tem um ponto válido. De acordo com as estatísticas dos ciclos, quando uma crise
começa, a produção é que cai primeiro, à frente do consumo. E quando a economia começa a
recuperar, é porque a produção se inicia, seguido pelo consumo. O crescimento económico
começa com um aumento de produtividade, novos produtos e novos mercados. Assim, a despesa
na produção está sempre à frente da despesa em consumo.”
Mas vamos observar como os vários autores andam à volta desse tema e Paul Krugman pode
servir de introdução a autores que procuraram analisar:
“… um menor número de economistas que o que seria desejável, têm aumentado a sua
apreciação pelas ideias de economistas do passado. Um desses, claro, é John Maynard Keynes (…)
mas dois outros economistas já falecidos entretanto tiveram um regresso justificado: um
contemporâneo de Keynes, o economista americano Irving Fisher e o mais recente, Hyman
Minsky.”
Irving Fischer (1867-1947), reconhecido economista que funda o monetarismo93 foi a nível
pessoal fortemente afectado pela Grande Depressão. Fisher tinha produzido duas afirmações, que
93
Monetarismo o qual tende a desconsiderar, para além dos males inerentes à inflação de preços no consumidor, os
outros males associados à expansão da crédito e por sua vez a recomendar a reflação como instrumento de cura das crises,
55
expressam bem o estado de espírito de uma bolha, imediatamente anteriores ao crash bolsista de
24 de Outubro de 1929:
“Pode haver uma recessão nos preços das acções mas nada da natureza de um crash.” New
York Times, 5 de Setembro de 1929. "Os preços das acções atingiram o que parece ser um
permanente alto patamar ". 17 Outubro de 1929.
Como resultado perdeu a fortuna da sua mulher investida no mercado de capitais e parte da sua
reputação académica. Mas a verdade é que viria a contribuir com ensaios de valor, como este
datado de 1933, reflexivo sobre os grandes ciclos económicos passando a enfatizar o problema do
excesso de dívida que cria posteriormente a pressão para a deflação subsequente e a subalternizar
as teses de:
o que partilham com os Keynesianos. Foi considerado por Milton Friedman como talvez o maior economista americano de
sempre. Para uma breve síntese sobre Fisher à luz do contexto ver The Great Depression: Mises vs. Fisher, Mark Thornton,
Quart J Austrian Eeon (2008) 11 :230-241, http://mises.org/journals/qjae/pdf/qjae11_3_5.pdf, 20-10-2014. Citando no
original: “Irving Fisher criou a economia neoclássica, que se materializa na economia mainstream modema. Esta
abordagem consagra uma abordagem não-realística à teoria económica e os profissionais são muitas vezes defensores de
políticas económicas intervencionistas e social. Mises e a Escola Austríaca assumem uma abordagem realista e livre de
valores para a teoria económica e são campeões do laissez-faire na política económica. Como vimos no caso da Grande
Depressão, Mises bate o mainstream no seu próprio jogo. A partir desta perspectiva muito clara eu acredito que podemos
ter uma grande esperança de que as contribuições de Mises para a ciência económica, um dia, serão reconhecidas pela sua
exactidão e utilidade como marcos de política económica racional."
94
The Debt-Deflation Theory of Great Depressions, inserido na Econometrica, Vol. 1, No. 4 (Oct., 1933), pp. 337-357,The
Econometric Society, no original: “Theoretically there may be-in fact, at most times there must be over- or under-
production, over- or under-consumption, over- or underspending, over- or under-saving, over- or under-investment, and
over or under everything else. It is as absurd to assume that, for any long period of time, the variables in the economic
organization, or any part of them, will "stay put," in perfect equilibrium, as to assume that the Atlantic Ocean can ever be
without a wave. (…) I venture the opinion, subject to correction on submission of future evidence, that, in the great booms
and depressions, each of the above-named factors has played a subordinate role as compared with two dominant factors,
namely over-indebtedness to start with and deflation following soon after; also that where any of the other factors do
become conspicuous, they are often merely effects or symptoms of these two. In short, the big bad actors are debt
disturbances and price level disturbances. While quite ready to change my opinion, I have, at present, a strong conviction
that these two economic maladies, the debt disease and the price-level disease (or dollar disease), are, in the great booms
and depressions, more important causes than all others put together. Some of the other and usually minor factors often
derive some importance when combined with one or both of the two dominant factors. Thus over-investment and over-
speculation are often important; but they would have far less serious results were they not conducted with borrowed
money. That is, over-indebtedness may lend importance to over-investment or to over-speculation. The same is true as to
over-confidence. I fancy that over-confidence seldom does any great harm except when, as, and if, it beguiles its victims
into debt.”
56
contrair empréstimos, e investir ou especular com dinheiro emprestado. Esta foi a principal causa
que levou ao sobreendividamento de 1929. Invenções e melhorias tecnológicas criaram
oportunidades de investimento maravilhosas, e assim causaram grandes dívidas.”
Keynes publica depois a sua Teoria Geral em 1936. O título “Teoria Geral de Emprego, Juro e
Moeda” para a obra começa logo por ser enganador, já que se debruça mais sobre o caso particular
em que se observa uma crise e desemprego, e não uma tese de como o mecanismo da economia se
coordena nos seus princípios gerais antes de - alegadamente - deixar de funcionar.
É que, essencialmente, para além da sua acusação dos “mercados” serem bipolares não é
também apresentada propriamente uma teoria sobre as causas da crise, ainda que deixando no ar
que se propensão para consumir desce e isso só poderá levar a um mau funcionamento da
economia.
O caso de Keynes pode ser caracterizado como tentando demonstrar como a economia pode
atingir um estado de equilíbrio com uma taxa de desemprego relevante, argumentando que os
instrumentos de análise dos clássicos não se adequam.95 Por diversos motivos, entre os quais a
natureza instável do empresário e o espírito diligente aforrador da burguesia, observa-se
ciclicamente a coincidência na retracção de uns e aumento do aforro puramente monetário dos
outros, operando ambos uma fuga para a liquidez, cuja consequência é uma quebra da procura
agregada, provocando desemprego e queda do rendimento. Este retrocesso pode e deve ser
contrariado por uma baixa das taxas de juro e pela despesa do estado, que se substitui ao
subconsumo de uns e subinvestimento de outros (agora concentrados em “fugir para a liquidez”), e
cujo efeito multiplicador assegurará o restabelecimento do crescimento do rendimento. E como é
central ao keynesianismo contrariar a noção de que é a poupança prévia pré-condição necessária ao
investimento, a criação de crédito que uma baixa de taxa de juro decidida pelos bancos centrais,
permite incentivar, substitui a necessidade de poupança e abstenção de consumo, e assim o
aumento da despesa que induz o multiplicador a operar é realizado pela capacidade de criação de
moeda, que aliás pode ter a vantagem de reduzir os salários reais via inflação não-antecipada.
Mais tarde, observamos o ressurgimento dos chamados monetaristas com Milton Friedman
(1912 – 2006), que recupera Irving Fisher (na sua fase pré-grande depressão), e se preocuparam com
os efeitos da expansão quantitativa da moeda nos preços no consumidor e a sua relação com o nível
95
Uma passagem de Keynes relevante é esta, citado por Hazlitt, no original: “Thus Professor Pigou believes that in the long
run unemployment can be cured by wage adjustments; whereas I maintain that the real wage (subject only to a minimum
set by the marginal disutility of employment) is not primarily determined by "wage adjustments" (though these may have
repercussions) but by the other forces of the system, some of which in A. C. Pigou, The Theory of Unemployment, p. 252.
UNEMPLOYMENT AND WAGE-RATES 265 (in particular the relation between the schedule of the marginal efficiency of
capital and the rate of interest) Professor Pigou has failed, if I am right, to include in his formal scheme (pp. 277-278).” Ter
em conta que a análise de Keynes sobre “marginal efficiency of capital and the rate of interest” não é nada assegurador de
uma explicação em falta ter sido realizada, ver Hazlitt que começa assim “We have had frequent occasion to note the
ambiguities, inconsistencies, and contradictions that run through the General Theory; but in Chapter 11, "The Marginal
Efficiency of Capital," they reach an even higher level than in the chapters preceding. We shall see, as we go on, that
Keynes uses the phrase, "marginal efficiency of capital," in so many different senses that it becomes at last impossible to
keep track of them.”
57
geral de actividade económica.96 Essa análise é no entanto ainda insuficiente e incompleta. Os
economistas “austríacos” realçaram sempre que o efeito da expansão de crédito por criação
monetária não se manifesta necessariamente nos índices de preço no consumidor de forma
acentuada97, a não ser quanto muito, em estágios já avançados da fase reconhecida como de
“sobreaquecimento”, altura em que os bancos centrais se encontram já a subir as taxas de juro,
preferindo sim focar-se ao que se passa previamente na estrutura temporal da produção e na sua
consistente teoria do capital98 (ausente no monetarismo, na qual na verdade nem sequer é
reconhecido o papel da sua heterogeneidade) onde é inferido que a actividade económica é
especialmente estimulada nos sectores de produção de bens de capital e estágios mais afastados do
consumo, os mais sensíveis às taxas de juro, erroneamente sinalizados por uma baixa artificial da
taxa de juro que confere a aparência de rentabilidade e sustentabilidade a mais projectos de
investimento e a um maior prazo de retorno, do que resultaria se a procura de crédito tivesse de
competir por uma oferta de crédito não “elástica” constituída estritamente por poupança monetária
prévia, o que conduziria a um aumento da taxa de juro real.
96
E daí a sua crítica à chamada Curva de Phillips - suposto trade-off entre inflação e desemprego, algo desacreditado pela
estagflação dos anos 70 - e a subsequente tentativa de incorporar as expectativas sobre o nível geral de preços futuros.
97
A subida acentuada de preços no consumidor (como na década de 70 ou nos países onde se têm verificado altas taxas
de inflação) parece estar mais relacionada com a monetização mais directa de défices públicos, dado que as novas
quantidades de moeda entram na economia como potenciadoras de consumo imediato (aumentando assim o poder de
compra nominal) e não na forma de crédito ao investimento.
98
Hayek produziu um ensaio intitulado “A Mitologia do Capital” em 1936 para responder à crítica hostil do fundador da
chamada Escola de Chicago, Frank Knight, dessa componente crucial da Teoria da Escola Austríaca. Critica esta, note-se,
feito num prefácio a um livro de Hayek. Este tipo de tratamento a Hayek repete-se quando este se desloca para a
Universidade de Chicago, onde foi recusada uma cadeira pelo corpo docente incluindo Milton Friedman e outros, devido às
objecções ao apriorismo da Escola Austríaca, dado a epistemologia radical empirista professada por aqueles. Hayek não
seria remunerado pela Universidade mas por apoios exteriores a esta.
58
não provocando nenhum alerta especial aos economistas, e em especial aos responsáveis pela
política monetária.
Assim foi nos anos 192099 que precederam a Grande Depressão, e assim foi na primeira década
deste novo século100. O cerne da questão da distorção de preços dá-se na inflação experimentada
nos sectores de bens de capital, bens reais e mercadorias, e nos últimos estágios em bens
imobiliários e financeiros, sensíveis à capacidade de alavancagem via crédito criado pelo sistema
bancário.
O monetarismo está também associado a uma reacção meritória contra o Keynesianismo, mas o
conjunto da sua doutrina neoclássica e métodos empíricos e matemáticos está enferma de
elementos a que a própria Escola Austríaca crítica, e onde estas deficiência são depois aproveitadas
para por em causa princípios gerais de quem defende o mercado livre, em especial dos mercados
financeiros colocando o pensamento liberal numa posição incómoda, dado que essas falhas e
inconsistências teóricas, do ponto de vista da Escola Austríaca, são depois conotadas com falhas de
natureza dos próprios mercados. Regra geral, utilizam a modelização matemática e empírica e
armados de pressupostos, cuja utilidade pode ser defendida, mas cuja defesa como método de
descoberta de leis económicas universais se tornou com o tempo cada vez mais frágil.
Paul Krugman pode aqui ser citado num seu artigo de fundo no NYT que sumariza a sua evolução:
O contra-ataque de Friedman contra Keynes começou com uma doutrina conhecida como
monetarismo. Os monetaristas não discordam, em princípio, com a ideia de que uma economia
de mercado precisa de estabilização deliberada. "Somos todos Keynesianos agora", disse uma
vez, embora mais tarde tenha afirmado que tinha sido citado fora de contexto. Os Monetaristas
afirmaram, no entanto, que um número muito limitado e circunscrito de intervenções do
governo - ou seja, instruindo os bancos centrais para manter a oferta de moeda, a soma de
dinheiro em circulação e depósitos bancários, a crescer de uma forma estável - é tudo que é
necessário para evitar depressões.
99
Diz Irving Fisher no já referenciado The Debt-Deflation Theory of Great Depressions, 1933, p 348 sobre os anos 20:
“Invenções e melhorias tecnológicas criaram oportunidades de investimento maravilhosas, e assim causaram grandes
dívidas.” Pelo seu lado, Murray N Rothbard no seu estudo sobre a Grande Depressão dá nota da inflação de preços
extremamente moderada ocorrida durante esse mesmo período. Ver o seu capítulo 6 Theory and Inflation: Economists and
the Lure of a Stable Price Level.
100
O mesmo raciocínio pode ser aplicado em relação ao período de crise, onde mesmo após injecções de moeda, a inflação
no consumidor mostra ser aparentemente (pelo menos durante um certo período) modesta, mas esta poderia até ser
comparada com a queda de preços que operaria na ausência desses estímulos monetários.
59
(…) Na festa de aniversário dos 90 anos de Milton Friedman, Ben Bernanke, ex-professor em
Princeton e relativamente Novo- Keynesiano, então membro do conselho de administração do
FED, declarou sobre a Grande Depressão:
O Sr. está certo. Nós fizemos isso. Lamentamos muito. Mas graças a si, isso não vai
acontecer de novo." A mensagem clara era de que tudo o que era preciso para evitar
depressões era um FED mais inteligente.”
A partir de certa altura é a própria noção de bolha e crise que começa a desvanecer, e Krugman
no mesmo artigo diz:
Tomemos, por exemplo, a queda precipitada dos preços das casas. Alguns economistas,
principalmente Robert Shiller, conseguiram identificar a bolha e alertaram para consequências
dolorosas. No entanto, os formuladores das políticas-chave não conseguiram ver o óbvio. Em
2004, Alan Greenspan rejeitou a hipótese de uma bolha imobiliária: uma distorção de preços
séria a nível nacional", declarou ele, era "muito improvável". A subida dos preços do imobiliário,
afirmou Ben Bernanke em 2005, "em grande parte reflexo de fundamentais económicos fortes".
Entretanto, na sequência e como reacção ao que passou a ser dominante, Hyman Minsky (1919 –
1996) professor de economia na Universidade Washington, e ainda dentro do paradigma de Keynes
e juntando a influência de Irving Fisher, desenvolve por seu lado a tese de uma instabilidade inata
dos mercados denominada “Hipótese da Instabilidade Financeira” que se contrapõe à tese da
“Hipótese da Eficiência dos Mercados”, reconhecendo a dinâmica das bolhas, excessos e crises,
interpretando-as como sendo uma ciclo inevitável e inerente ao sistema financeiro que justificará a
acção reguladora do governo e bancos centrais. Ou seja, reconhece-se e aceita-se as manifestações
e consequências dos ciclos como intrínseco ao processo capitalista (o que lembra qualquer coisa…)
que só uma mão controladora pode evitar ou depois curar. É a tese perfeita para o regulador. Não
põe em causa o sistema em si, aceita e declara as suas doenças como naturais, justifica sim a
necessidade imperiosa de acção regulatória sobre o sistema que as pode evitar. E é com a crise de
2008 que se começou a popularizar na imprensa especializada o termo “momento Minsky”.
O autor e profissional do mercado de capitais, George Cooper, publica o seu The Original of
Financial Crises em 2008101, e resume-o assim:
101
The Origin of Financial Crises, George Cooper, 2010, Harriman House Ltd.
60
“ A diferença chave entre a Hipótese da Eficiência dos Mercados a Hipótese da Instabilidade
Financeira de Minsky resume-se à questão do que faz mover os preços nos mercados financeiros.
Como discutido, a teoria da eficiência dos mercados diz que os mercados movem-se
naturalmente em direcção ao equilíbrio, e depois de ter atingido o equilíbrio eles permanecem
neste estado quiescente até ser influenciado por um novo evento externo inesperado. A ênfase
aqui é na natureza externa das causas que movem os mercados financeiros. Por contraste, a
Hipótese da Instabilidade de Minsky argumenta que os mercados financeiros conseguem gerar as
suas próprias forças internas, causando ondas de expansão de crédito e inflação nos activos reais
seguidas por ondas de contracção de crédito e deflação dos activos reais.”
Paul Krugman pelo seu lado assumiu o papel de liderar a recuperação de Keynes na sequência da
crise de 2008: numa crise económica e financeira pronunciada o efeito da descida de taxas de juro (a
prescrição tradicional) já não opera quando não é possível fixar uma taxa de juro nominal negativa102
e só o aumento da despesa do estado pode agora sim, introduzir o estímulo necessário, já que,
como já vimos, para o Keynesianismo a despesa criará o seu próprio rendimento, tal como o
consumo a sua própria produção.
“Se falamos de erro por parte dos bancos, temos de apontar para o que fizeram de errado ao
incentivar a bolha. A culpa não está na política de aumento das taxas de juros, mas apenas no
facto de terem sido aumentadas muito tarde”, (Mises, 1928).
Vale a pena notar como se tenta dissecar os problemas pelos seus efeitos sem por em causa a
estrutura do sistema monetário e quanto muito apontando para males comportamentais como a
instabilidade do empresário, do consumidor, do especulador financeiro, que se materializam em
movimentos de expansão e contracção de crédito, mas sem nunca questionar esse capacidade
providenciada pelo sistema monetário. E para reforçar ainda mais esta caracterização da percepção
actual peguemos nas obras já citadas.
102
Caso em que curiosamente que a ter lugar por alguma forma compulsória ria operar uma deflação quantitativa da
moeda, dado o juro negativo significar a diminuição da quantidade nominal.
61
do economista Paul McCulley dos fundos de obrigações Pimco. (…) Uma vez que o nível de dívida
é suficientemente alto, qualquer coisa pode despoletar o momento Minsky”.103
“Qual é o papel dos bancos centrais nas bolhas e quedas dos mercados de acções?”
“A moeda vale apenas o que outra pessoa está disposta a dar por ela. Um aumento da sua
oferta não tornará a sociedade mais rica, mas poderá enriquecer o governo que monopolize a
produção de moeda. Se tudo o resto for constante, a expansão de moeda apenas tornará os
preços mais elevados.”
“Isto [reservas de 100%] tornava o banco seguro, sem dúvida, mas impedia o banco de
cumprir a característica mais definitiva que define um banco - a criação de crédito.”
“Finalmente, e muito importante, sem a criação fácil de crédito não pode ocorrer uma
verdadeira bolha. E essa é a razão por que tantas bolhas têm a sua origem nos pecados por
omissão ou comissão de bancos centrais.”
“A única razão porque mais bancos não entram em falência… é porque estão, explicitamente
ou implicitamente, protegidos do colapso pelos governos.”.
“Uma velha questão que ressurgiu com a crise em 2007 é até que ponto, as garantias
implícitas para protegerem os bancos de colapsos criam um problema de risco moral [moral
hazard], encorajando o excesso de risco no pressuposto que o estado intervirá para suprir
problemas de liquidez e mesmo de insolvência no caso de instituições consideradas como
demasiado grandes para se deixarem cair [too big to fail].”
103
É relevante mencionar neste ponto, e na análise desta crise, a prática política que incentivou, por vários mecanismos, o
acesso barato e não discriminatório ao crédito à habitação, não se coibindo os mesmos, depois, de formular acusações
pelo facto de a banca providenciar crédito barato a quem não o podia pagar. Para além disso, transferem-se também
culpas para a inovação financeira que em larga medida também respondeu à necessidade de distribuir o risco por
diferentes tipos de investidores, como a titularização em segmentos de risco, alargando a base de financiamento de longo
prazo, característica fundamental do crédito à habitação. Menciona-se ainda a deficiente avaliação do risco de crédito por
parte de agências de rating. Mas como deixa a entender Krugman, a economia parece, nesses momentos, saudável. Ora, se
está comprovada a deficiente avaliação do ponto em que estaria o ciclo da economia americana e europeia, verdade se
diga que nessa falha de avaliação participaram a generalidade dos agentes económicos públicos e privados (investidores
privados, empresários, agentes políticos, bancos centrais, bancos comerciais e de investimento, entre outros), algo que é
recorrente em cada expansão e bolha. Mas é precisamente tal erro sistemático por parte de um conjunto generalizado de
agentes ou mesmo da economia no seu todo, que deve ser inquirido detalhadamente.
62
E remata finalmente num intrigante:
“Eu estou cada vez mais convencido que até compreendermos em pleno a origem da espécie
financeira, nunca seremos capazes de compreender a natureza fundamental da moeda.”
E analisando o livro This Time is Different, de Carmen M. Reinhart e Kenneth Rogoff que faz uma
análise quantitativa das crises ao longo da história, utiliza a palavra bolha [“bubble”] por 30 vezes.
Observa-se igualmente uma tentativa de dissecar sinais empíricos dos males sem que causas
estruturais sejam dissecadas.
Aqui utiliza-se uma única vez o termo bolha de crédito [“credit bubble”] e é no período final do
seu livro:
“É encorajador que a história aponta de facto para sinais de aviso para os quais os fazedores
de políticas podem olhar para avaliar o risco – desde que não fiquem demasiado embriagados
com a sua própria bolha de crédito indutora de sucesso e dizer, como os seus predecessores por
séculos – “Desta vez é diferente.”.”
“As bolhas são, de longe, mais perigosas quando são induzidas por dívida, como no caso da
explosão nos preços das casas no início da década de 2000.”
Utiliza uma única vez o termo criação de crédito [“credit creation”] e no meio de uma sentença
que fala do período de crise:
“As falhas dos bancos, por sua vez, conduzem a um decréscimo na criação de crédito.”
Existe sim em ambos casos o uso do termo “excesso” de qualquer coisa (de dívida, de crédito, de
capacidade instalada, etc.) que é utilizado 22 vezes no primeiro caso e 19 vezes no segundo.
E podemos adicionar ainda a ambivalência de Minsky o qual é citado e analisado pelo economista
post-Keynesiano Steve Keen104:
“… argumenta que os mercados financeiros conseguem gerar as suas próprias forças internas,
causando ondas de expansão de crédito e inflação nos activos reais seguidas por ondas de
contracção de crédito e deflação dos activos reais.”
Mas será que Minsky vê a expansão de crédito como elemento a ser analisado estruturalmente
no contexto das causas?
“Ele [Minsky] nota que como há um comprador para cada vendedor, e como a contabilidade
obriga que as despesas sejam iguais às receitas, e no entanto o crescimento ocorre ao longo do
tempo, então o crédito e a dívida têm de preencher a diferença. O crédito e a dívida são assim
essenciais ao capitalismo:
104
Debunking Economics – Revised Expanded and Integrated Edition: The Naked Emperor Dethroned?, Steve Keen,
2011, Zed Books Ltd.
63
(…) É necessário que os planos de despesa corrente, somado para todos os sectores, seja
maior que as receitas correntes recebidas e que alguma técnica de mercado exista pela qual a
despesa agregada em excesso do rendimento agregado antecipado possa ser financiada…
(Minsky 1982 [1963: 6]…)
O relevante aqui aponta para o ponto fulcral que conduz a que economistas neoclássicos e
austríacos acreditem na Lei de Say e de Walras: falham em compreender o papel do crédito numa
economia capitalista.
De notar, o que pode não ser claro, mas é a única forma de fazer sentido, que quando se fala aqui
na variação de dívida, se estará a referir à criação de crédito. Tal fica mais claro aqui ao recorrermos
a Schumpeter que tem aqui um papel extremamente pernicioso:
“Mas o crédito que não está baseado em bens já existentes é parte importante de uma
economia em expansão, como Schumpeter explica mais claramente que Minsky ou Marx.(…) O
empreendedor precisa assim de se endividar para ser capaz de adquirir os bens e trabalho em
ordem a transformar a sua ideia num produto final. O dinheiro emprestado, por um banco,
adiciona à procura por bens e serviços existentes gerada pela venda desses bens e serviços.(…)
(…) Disto se conclui assim que na vida real o crédito total tem de ser maior do que seria se
fosse coberto. Schumpeter 1936: 95, 101.”
E para continuar esta dança noutro ponto da obra de Steve Keen diz:
“… o crescimento do endividamento cria capacidade produtiva adicional, que pode depois ser
usada para servir essa dívida.(…)”
É assim acertado diagnosticar uma certa bipolaridade no que respeita a como as crises surgem, e
à sua origem em elevados níveis de dívida, apesar de que a sua criação (por emissão de moeda) ser
considerada essencial ao processo de crescimento, remetendo-se então a questão a uma acepção de
“excesso”. Mas como medir o “excesso” se o cujo preço (taxa de juro) é determinado sem restrição
quantitativa (deixa de existir a noção de poupança monetária prévia) já que toda a procura por
crédito (a uma taxa de juro fixada apenas tendo em conta apenas a preocupação de manter
controlada a inflação de preços nos consumidores) pode ser satisfeita sem restrições de quantidade?
64
6.4. A Escola Austríaca e a Teoria dos Ciclos Económicos
“Uma teoria das crises nunca pode ser uma investigação sobre apenas um único aspecto dos
fenómenos económicos. Se é para ser mais que um absurdo amadorismo, essa investigação deve
constituir o último capítulo, ou próximo, de todo um sistema económico, escrito ou não escrito.
Em outras palavras, é o fruto final do conhecimento de todos os eventos económicos e das suas
interconexões.” Böhm-Bawerk citado por Mises.105
“A crise que estamos hoje a sofrer é o resultado da expansão do crédito”, Mises (1931).106
Cabe assim determinar se existem causas que não se interpretem como que inerentes ao jogo
natural da interacção humana, uma espécie de visão de desequilíbrio inerente à liberdade no
sentido em que os mercados “naturalmente” livres são “naturalmente” instáveis porque
“naturalmente” geram excessos a partir de um mecanismo de “criação de crédito” suportado num
sistema monetário que dificilmente pode ser classificado de mecanismo de mercado (bancos
centrais com o monopólio da emissão de moeda a custo marginal zero).
Para os economistas da chamada Escola Austríaca, que se inicia em Viena com a teoria marginal
subjectivista de Carl Menger [1840-1921]107, os ciclos económicos108 resultam do erro geral induzido
no sistema económico pela já referida expansão de crédito e moeda, que necessariamente interfere
com a taxa de juro puxando-a nominalmente para baixo ao que sucederia se tal expansão de crédito
se desse sem que igual expansão de moeda não tivesse lugar109, fornecendo um falso sinal de
105
The causes of the economic crisis and other essays before and after the Great Depression, Ludwig von Mises, p 56.
106
Contido em The causes of the economic crisis and other essays before and after the Great Depression, Ludwig von
Mises, editado por Percy L. Greaves, Jr, The Ludwig von Mises Institute (http://mises.org/document/3361, 20-10-2014).
107
Antes de ser académico começa por ser jornalista financeiro no Império Austro-Húngaro e tendo sido perceptor do
Príncipe herdeiro. Menguer foi depois seguido por Böhm-Bawerk, professor de Ludwig von Mises. Este, já depois de se
estabelecer como produtor de teoria económica, desloca-se para a Suíça, evitando a anexação por Hitler da Áustria, antes
de definitivamente residir nos Estados Unidos - terá pelo caminho passado por Lisboa – e onde apresenta o seu seminário
privado à margem de qualquer relevância académica, a que assistem muitos futuros autores como Henry Hazlitt, Murray N.
Rothbard e George Reisman, (autor do relativamente recente monumental tratado de economia, Capitalism: A Treatise on
Economics, Jameson Books, 1998). Pelo seu lado Friedrich A. Hayek sai de Viena para leccionar em Londres na London
School Of Economics convidado por Lionel Robbins que tinha assistido ao seminário de Mises em Viena e onde produz a
maior parte dos seus textos em economia pura, pelo qual receberá o seu Prémio Nobel em1973, e entra em debate com
Keynes.
108
Para uma introdução, recomenda-se The Austrian Theory of the Trade Cycle and Other Essays, uma pequena colectânea
de ensaios editada por Richard M. Ebeling, contendo textos de Ludwig von Mises, Gottfried Haberler, Friedrich A. Hayek,
Roger W. Garrison, com reedição recente em 2009 (http://mises.org/tradcycl.asp, 20-10-2014). Para uma abordagem mais
próxima da tradicional análise macroeconómica mas agora do ponto vista “austríaco”, Time and Money: The
Macroeconomics of Capital Structure, Roger Garrison, 2000. Para uma aplicação actual, em modo de divulgação, ver
Meltdown: A Free-Market Look at Why the Stock Market Collapsed, the Economy Tanked, and Government Bailouts Will
Make Things Worse, Thomas E. Woods Jr., 2009.
109
Para um valor inferior ao determinado pela preferência temporal das pessoas reflectido na taxa de juro natural, que
determina o desconto exigido a bens futuros, constituindo esta preferência uma categoria da acção humana (prefiro hoje
do que amanhã assim exijo um desconto ao que só tenho amanhã) e não um fenómeno puramente monetário tal como
descrito pelo keynesianismo - o juro como prémio para se afastar da liquidez ou pelas teorias do juro como inferidas da
produtividade do capital.
65
sustentabilidade e rentabilidade a projectos de investimento e ainda de avaliação de activos reais e
financeiros.
Mises enunciou pela primeira vez os princípios gerais da chamada Teoria Austríaca dos Ciclos
Económicos em 1912 no seu tratado (ainda hoje, na sua totalidade, válido e definitivo em muitos
aspectos) sobre Moeda e Crédito110, elaborando sobre o debate que já tinha existido no séc. XIX que
tinha desaguado legislativamente em Reino Unido no denominado Peel Act de 1844111 mas
construindo uma teoria da moeda consistente com o subjectivismo enunciado por Carl Menger;
Hayek desenvolveu o tema nos seus trabalhos de 1929 a 1937, reunidos agora numa nova edição em
“Preços e Produção”112.
“De acordo com Mises, Hayek e Rothbard, o actual sistema bancário desencadeia o já familiar
ciclo de expansão e recessão económica quando inunda o mercado de crédito com moeda "em
excesso". Suponha-se que a economia está originalmente em equilíbrio, em que a taxa de juros
reflecte a quantia de poupança genuína que os indivíduos se abstêm de consumir.
Repentinamente, os bancos decidem conceder novos empréstimos, mesmo que esse novo
crédito não advenha da poupança extra de ninguém. (Descrevo esse processo aqui)113. Por causa
dessa maior oferta de crédito, as taxas de juros de mercado caem. Esse "sinal falso" leva os
empreendedores a contrair mais empréstimos e a iniciarem projectos mais longos do que
empreenderiam caso os juros não tivessem caído. Consequentemente, uma expansão
económica insustentável é iniciada, dando à maioria das pessoas uma sensação ilusória de
prosperidade.”114
Para uma fonte original de Mises e disponível em português ver em “A teoria austríaca dos ciclos
económicos”.115 Para uma visão académica actualizada que incluí o debate sob a aplicabilidade do
conceito de taxa de juro originária ver “Multiple Interest Rates and Austrian Business Cycle Theory”,
Robert P. Murphy116 mas especialmente o recente ensaio A Reformulation of Austrian Business Cycle
110
Edição original em alemão, Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel, Ludwig von Mises, 1912; revisto e aumentado na
edição inglesa em 1953 como The Theory of Money and Credit, 2009.
111
O qual inferiu correctamente dos males económicos introduzidos pela emissão de notas sem cobertura de ouro
efectivamente detido – proibindo-o - mas deixando de fora os mesmos males operados com a criação de depósitos à
ordem.
112
Prices and Production and Other Works On Money, the Business Cycle, and the Gold Standard, colectânea de ensaios de
F.A. Hayek, editado e com introdução por Joseph T. Salerno, 2008.
113
Novamente, o já mencionado “A esquisitice do sistema bancário de reservas fraccionárias”, Robert P. Murphy, 15 Junho
2010.Via Instituto Ludwig von Mises Brasil (http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=705, 20-10-2014).
114
Retirado de “Pode o ouro provocar ciclos económicos?”, Robert P. Murphy, 30 de Junho de 2010. Via Instituto Ludwig
von Mises Brasil (http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=718, 20-10-2014).
115
Instituto Ludwig von Mises Brasil (http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=149,20-10-2014).
116
http://consultingbyrpm.com/uploads/Multiple%20Interest%20Rates%20and%20ABCT.pdf, 20-10-2014.
66
Theory in Light of the Financial Crisis de Joseph T. Salerno publicado no The Quarterly Journal of
Austrian Economics, Spring 2012117.
Este círculo temporariamente virtuoso, onde a baixa artificial (aqui assim considerada) da taxa de
juro induz a um aumento de investimentos erróneos, transforma-se numa profecia auto-sustentável
de disfunção económica. Desde logo, se aceitarmos o conceito de taxa de juro artificialmente baixa,
temos de retirar a consequência de que, por exemplo, mais projectos de investimento do que antes,
passam a ter um Valor Actual Líquido positivo.
Regressando ao exemplo real analisado no ponto 4.1, é como se em vez de 10% das pessoas
dedicadas à produção de ferramentas passasse essa tarefa a mobilizar 20% de pessoas para os quais
contudo, não existe um fundo de subsistência acumulado suficiente nem um excesso de produção
corrente que sustente um tão elevado número de pessoas ausentes na produção dos bens
necessários à sobrevivência (ou, numa economia moderna, aos bens desejados pelos consumidores).
E porquê este erro? Porque a estimativa sobre esse fundo de subsistência e excesso de produção
estava errada. Numa economia de troca, a correcta contagem de stocks de reserva poderá ser
suficiente, numa economia de mercado, são os preços que contêm informação que permitem, ainda
que num processo iterativo e dinâmico de pequenos sucessos e falhanços, coordenar o investimento
e a poupança, constituindo como é óbvio a taxa de juro uma componente determinante. Existindo
um problema de cálculo, a consequência será mais tarde ou mais cedo, ter uma parte da produção
de ferramentas de ser abandonada regressando-se a um estágio anterior, o que será o mesmo que
afirmar que uma crise económica tem início, sendo certo que o regresso de parte das pessoas à
produção de bens essenciais leva tempo e não tem resultados imediatos.
117
Ver em http://mises.org/journals/qjae/pdf/qjae15_1_1.pdf, 20-10-2014.
118
Poupança monetária esta que corresponde em termos reais à abstenção de consumo e assim também dos recursos
reais afectos à produção de bens de consumo, permitindo que esses recursos reais sejam sim mobilizados para a
sustentação de novos investimentos, cuja maturação, por definição, ainda está longe no tempo.
67
6.5. A bolha pós-Crise 2001, pré-Crise 2008
No desenvolvimento desta crise tornou-se possível comparar afirmações públicas entre Peter
Schiff, um comentador do campo dos aficionados da Escola Austríaca, que avisou a tempo sobre a
crise de 2008 e as de Ben Bernanke, presidente da Reserva Federal desde Julho de 2005. Ficou
famoso, pelo menos em alguns círculos a tenacidade com que Peter Schiff, antecipou a crise iniciada
em 2008 em sucessivas aparições nos programas do canal de televisão especializado em mercados
da CNBC. Ver um apanhado dessas intervenções no famoso “Peter Schiff Was Right 2006 - 2007 (2nd
Edition)”, para contraste existe também disponível uma compilação breve dos comentários de Bem
Bernanke em “Bern Bernanke Was Wrong”. Ou ainda “Bernanke was wrong while Peter Schiff was
right” no youtube.119
E na ressaca da chamada bolha da internet em 2001, assistimos a apelos sucessivos por Paul
Krugman, a uma baixa das taxas de juro120 para sustentar o mercado imobiliário (a que podemos
adicionar todo o incentivo político e fiscal à compra de casa própria). Em 2002, na sua coluna no NYT
diz mesmo:
“Para combater esta recessão o FED … precisa de subir a despesa das famílias para compensar
a estagnação do investimento das empresas. E para fazer isso, como Paul McCulley da Pimco o
coloca, Alan Greenspan precisa de criar uma bolha imobiliária para substituir a bolha da
Nasdaq.”121
Estas afirmações foram mais tarde evidenciadas desencadeando uma polémica onde Krugman
tenta justificar-se. Para uma resposta ver em “Krugman Did Cause the Housing Bubble”122 um
conjunto de citações adicional organizado no tempo por Mark Thornton. Também em espanhol um
artigo123 de Juan Ramón Rallo organiza essas citações. Para crédito de Paul Krugman este
119
Sucessivamente, https://www.youtube.com/watch?v=v1YhJRXqnXI; http://www.youtube.com/watch?v=INmqvibv4UU;
http://www.youtube.com/watch?v=V5sDKwMP6Pc, 20-10-2014.
120
A política monetária visivelmente tende hoje a tornar-se bipolar, indo de um extremo (baixa taxa de juro para
combater uma recessão) a outro rapidamente (subida da taxa de juro para prevenir a subida de inflação e/ou continuação
de uma bolha) e isso parece caracterizar a política monetária entre o pânico da deflação e o sempre menor pânico que é
accionado quando esta começa decisivamente a subir.
121
http://www.nytimes.com/2002/08/02/opinion/dubya-s-double-dip.html, 20-10-2014.
122
http://archive.mises.org/10153/krugman-did-cause-the-housing-bubble/,20-10-2014.
123
“Las burbujas y las mentiras de Krugman”, Juan Ramón Rallo (http://revista.libertaddigital.com/las-burbujas-y-las-
mentiras-de-krugman-1276237651.html, 20-10-2014). A mesma revista online descreve assim a resposta de Krugman (no
original): “Preguntado por Libre Mercado sobre sus recomendaciones de política monetaria durante la última década,
Krugman negó haber pedido a la Reserva Federal de EEUU (FED) que alimentase una burbuja inmobiliaria. Y es que, en
2001, el Nobel recomendó al entonces presidente de la FED Alan Greenspan crear una gran burbuja inmobiliaria para salir
de la crisis que habría generado el estallido de las puntocom. Si bien la hemeroteca documenta que repitió estos reclamos
en diversas ocasiones, el profesor de Princeton despreció la pregunta afirmando simplemente que "estaba bromeando". A
continuación, Krugman negó que el Gobierno de Estados Unidos promoviese activamente la burbuja inmobiliaria a través
de entes como Fannie Mae y Freddie Mac. "Ésa es la gran mentira de esta crisis", afirmó sin inmutarse.” Ver em
http://www.libremercado.com/2012-07-04/krugman-bromeaba-cuando-pedi-que-se-crease-una-burbuja-inmobiliaria-
1276463004/, 20-10-2014.
68
reconheceu mais tarde (2006) que havia de facto uma bolha imobiliária a nível nacional e que isso
podia ser um problema124. Mas o que dirá isso da sua consistência? Não a tinha advogado
anteriormente? E para neste contexto ler uma análise específica sobre a bolha do imobiliário por
este ver "The Economics of Housing Bubbles, In America’s Housing Crisis: A Case of Government
Failure", Dr. Mark Thornton, Senior Fellow no Ludwig von Mises Institute.125
“Como todas as bolhas criadas artificialmente, o boom nos preços das casas não pode durar
para sempre. Quando os preços dos imóveis caírem, os proprietários vão entrar em dificuldade
assim o seu valor líquido da dívida desapareça. Além disso, os titulares de dívida hipotecária
também sofrerão uma perda. Essas perdas serão maiores do que seriam assim não se tivesse
activamente encorajado o sobreinvestimento em habitação"
É quando a crise se instala que começa a correcção de excessos, e isso inclui a deflação
necessária a repor as condições de estabilidade de preços, o que passa pela abstenção de despesa
quer pela incerteza, quer pela percepção que muitos preços ainda estarão inflacionados quer pela
simples objectiva verdade que esses saldos poderão ser necessários. E assim perfazendo a chamada
armadilha de liquidez que Paul Krugman caracteriza sucintamente recorrendo também ao paradoxo
da poupança:
“ A combinação da armadilha de liquidez – mesmo uma taxa de juro de zero não é suficiente
para restaurar o pleno emprego – e o peso do excesso de endividamento faz com que aterremos
num mundo de paradoxos, um mundo onde a virtude é vício e a prudência uma loucura, e onde a
maior parte das coisas que as pessoas sérias recomendam que façamos na realidade tornam as
coisas piores. Quais sãos os paradoxos de que falo? Um é o “paradoxo da poupança”…numa
economia deprimida, o que acontece quando toda a gente tenta poupar mais (e assim fazer
menos despesa) é o rendimento diminuir e a economia contrair…as empresas investem menos,
não mais: numa tentativa de maior poupança pelos indivíduos, os consumidores acabam a
poupar menos de forma agregada”
Segundo Krugman, esse paradoxo da poupança vai conduzir a outros dois: o paradoxo da
desalavancagem: quando todos estão a tentar pagar dívidas, num mundo de rendimento
decrescente e menor valores dos activos, os problemas do endividamento pioram em vez de
melhorarem. E depois o paradoxo da flexibilidade: embora um indivíduo possa melhorar a sua
situação aceitando um emprego com menor salário, se corresponder a um movimento geral,
resultará em menores rendimentos mais o mesmo nível de dívida.
E por isto mesmo, acrescenta, é que alguém tem de fazer despesa e endividar-se enquanto
outros poupam e diminuem o endividamento.
124
Krugman on the US housing bubble, entrevista, https://www.youtube.com/watch?v=qo4ExWEAl_k, 20-10-2014.
125
http://mises.org/journals/scholar/Thornton13.pdf, 20-10-2014.
69
6.6. As Crises no pensamento Miseseano
Com Mises, a crise poderá ser vista como o penoso mas necessário e inevitável processo de cura,
que poderá ser despoletada pela mera desaceleração da expansão monetária126, onde investimentos
têm de ser abandonados e liquidados (dado não gerarem procura ao preço praticado), recursos
humanos e físicos transferidos para outras actividades, provocando descidas de preços de activos
imobiliários (que hoje têm um peso considerável como colateral no volume do crédito bancário),
reais e financeiros, e determinando a deterioração da qualidade do próprio colateral (o crédito
concedido pelos bancos comerciais) dos depósitos bancários. 127
“A expansão do crédito é a ferramenta mais importante dos governos na sua relação com a
economia de mercado. Nas suas mãos é a varinha de condão projectada para esconjurar a
escassez de bens de capital, para diminuir a taxa de juro ou de aboli-la totalmente, para financiar
os generosos gastos do governo, para expropriar os capitalistas, realizar as expansões
económicas sem fim, e levar a todos a prosperidade. (...) É um facto que as medidas destinadas a
reduzir hoje a taxa de juro são geralmente consideradas altamente desejáveis e que a expansão
do crédito é vista como o meio eficaz para a prossecução deste fim.
Mas aqueles que não negam que a expansão do crédito induz bolhas e que constituem a
condição indispensável para se dar uma depressão, discordam com sua própria doutrina de luta
contra as propostas para conter a expansão do crédito. Ambos os porta-vozes dos governos e de
poderosos grupos de pressão e ainda os campeões da "heterodoxia" dogmático que domina os
departamentos universitários de economia, concordam que se deve tentar evitar a recorrência
de depressões e que a realização deste fim requer a prevenção de bolhas. Eles não conseguem
126
Muitas vezes iniciada com a subida de taxas de juro de referência pelos bancos centrais que reagem já tarde a subidas
nos índices de preços dos consumidores, indicador que não tem em conta as subidas de preços verificadas em outros
pontos da economia (matérias-primas, bens de capital, imobiliário, activos financeiros, etc.) e assim fora do radar dos
estritos objectivos de controlo de inflação de preços no consumidor). Recentemente tornou-se mais frequente a discussão
na literatura não “austríaca” sobre se devem os bancos centrais detectar e prevenir as bolhas de activos (“asset bubbles) ”.
Mas é curioso ler as conclusões de um ensaio econométrico sobre o assunto por RS Gurkaynak, “Econometric Tests of Asset
Price Bubbles: Taking Stock”, publicado no Federal Reserve Board, Washington, D.C em 2005: “We have learned a lot about
asset pricing models from bubble detection tests, but we have not learned definitively whether bubbles exist or not.”
127
Assiste-se actualmente (e finalmente) a um debate comentado em variados fóruns abertos, preconizado entre Paul
Krugman (do lado Keynesiano) e Robert P. Murphy (do lado “austríaco”), e dada a sua actualidade e acessibilidade do
diálogo deixo aqui também a sua sequência: The Importance of Capital Theory, Robert P. Murphy, de 20 Outubro de 2008
(http://mises.org/daily/3155). Comentado muito mais tarde em Great Leaps Backward, Paul Krugman, de 19 Janeiro 2011.
(http://krugman.blogs.nytimes.com/2011/01/19/great-leaps-backward). A resposta aparece em My Reply to Krugman on
Austrian Business-Cycle Theory, Robert P. Murphy, a 24 Janeiro de 2011 (http://mises.org/daily/4993/My-Reply-to-
Krugman-on-Austrian-BusinessCycle-Theory, 20-10-2014). Alguns destes artigos de Murphy estão disponíveis em
português no Instituto Ludwig von Mises Brasil.
128
A Acção Humana” no seu “Capítulo 20. Juro, Expansão de Crédito, e o Ciclo Económico” publicado inicialmente em
1949 e que elabora a sua perspectiva pela primeira vez exposta em 1912 no seu Trado de Moeda e Crédito. A edição
original em inglês foi Human Action: A Treatise on Economics, New Haven: Yale University Press, 1949. Actual versão
publicada pelo Mises Institute disponível em http://mises.org/page/1470/Human_Action,20-10-2014.
70
avançar argumentos defensáveis contra as propostas de abstenção de políticas que incentivem a
expansão do crédito. Mas teimosamente recusam-se a ouvir a tal ideia. (…)
A solução sugerida mais comum é um programa contra cíclico de obras públicas e despesas de
empresas públicas. A ideia não é tão nova como os seus campeões nos querem fazer crer. Já
quando a depressão aparecia no passado, a opinião pública pedia sempre ao governo para
embarcar em obras públicas, a fim de criar empregos e [p. 799] parar a queda dos preços. Mas o
problema é como financiar essas obras públicas. Se o governo cobrar impostos aos cidadãos ou
lhes pede emprestado não acrescenta nada ao que os Keynesianos chamam de despesa
agregada. Irá assim restringir a capacidade do cidadão para consumir ou investir na mesma
medida em que aumenta a sua própria. Se, no entanto, os governos se viram para os métodos
inflacionários de financiamento, tornam as coisas piores, não melhores. Assim, pode até
prorrogar por um curto período de tempo a eclosão da crise. Mas quando o retorno inevitável
vem, a crise é mais pesada quanto mais o governo a adiar. (…)
O erro fundamental desses projectos consiste no fato de que eles ignoram a escassez de bens
de capital. Aos seus olhos a depressão é apenas causada por uma misteriosa falta de propensão
das pessoas, tanto para consumir como para investir. Enquanto o único problema real é produzir
mais e consumir menos, a fim de aumentar o stock de bens de capital disponíveis, os
intervencionistas querem aumentar o consumo e investimento. Eles querem que o governo
embarque em projectos não rentáveis precisamente porque os factores de produção [p. 800]
necessários para sua execução têm de ser retirados de outras linhas de produção em que
cumpriria a satisfação do que os consumidores consideram mais urgente. Eles não percebem que
essas obras públicas irão intensificar consideravelmente o mal real, a escassez de bens de
capital.”
Eu devo aqui acrescentar uma perspectiva sobre a questão do papel da poupança real e
monetária pelas empresas e famílias numa recessão e mesmo depressão onde o ajustamento dos
factores de produção entre (e intra) bens do consumo e bens de capital está a operar, por vezes de
forma violenta.
Lembremos que se a doença é o período onde a bolha se está a desenvolver, e a crise o processo
de cura, a poupança torna-se agora necessária para suportar o período inevitável de retrocesso
económico e de ajustamento das estruturas de produção (em geral, como a liquidação de produção
de bens afastados do consumo) e da estrutura de capital que a financia. Enquanto o
restabelecimento de algo parecido com o aproximar de um novo equilíbrio (como sabemos, nunca
atingido, é um processo dinâmico) se está a processar, é preciso estar na posse dos recursos reais e
monetários para suportar os prejuízos persistentes que representam consumo de capital que terá de
ser substituído.
A queda dos preços e custos para além de ser necessária em situações de contracção monetária,
tem no entanto, precisamente o efeito de aumentar o poder de comprar de todos os saldos
monetários (aumentando assim e crescentemente a atractividade de os utilizar) tal como a queda
dos salários contribui também para repor a sustentabilidade primeiro, e a rentabilidade normal
depois, das actividades produtivas - a condição necessária para se retomar o crescimento
sustentável - num provável nível anterior. Podemos chamar a isto, dar 3 ou 4 passos atrás para mais
tarde poder começar outra vez a dar passos à frente. Isto em vez de no primeiro passo atrás
71
procurar por todos os meios evitar o, sem dúvida penoso, segundo e terceiro passo atrás
prejudicando a capacidade de avançar novamente num prazo mais curto, ao prolongar a agonia de
processos moribundos, de sustentar estruturas de capital com dívida a mais e capital próprio a
menos, de estrutura de custos que apenas tiveram lugar devido à artificialidade criada pela
expansão de crédito.
A verdade inescapável é que quanto mais a defesa da totalidade dos salários de uns for
irredutivelmente defendida em especial por protecção legislativa, mais outros perderão a totalidade
dos seus salários ou outros terão dificuldade no acesso ao primeiro emprego. Todo o tema sobre a
análise sobre a maior ou menor rigidez dos salários e dos contratos de trabalho torna-se aqui crucial.
Será mais útil que a comunidade tente minimizar o sofrimento dos mais afectados do que
emanados de hubris procurar soluções que interferem com o mecanismo de coordenação
económica e, no caso, da correcção de uma interferência anterior: a bolha130. Ainda melhor seria
prevenir essas bolhas de actividade económica não sustentada. O fenómeno é recorrente em todos
os séculos e lugares da história que tiveram uma actividade económica onde a moeda e o crédito se
tornou preponderante. Só é preciso conectar os pontos e conter a ilusão monetária, visivelmente
mais persistente que a da terra ser plana.
7. Conclusão
Sendo hoje claro que teoria económica ao tempo de Keynes continha já bases de explicação dos
ciclos económicos por via das bolhas que antecedem as crises, na suas origens na moeda e crédito, é
129
Mises emprega com frequência o termo em inglês malinvestment. As actividades de investimento para o qual a baixa
artificial de taxas de juro dirigiu erroneamente os empreendedores e capital a ser mobilizado.
130
Sobre o argumento da interferência com recursos “inactivos” como o desemprego diz Murray N. Rothbard, na sua obra
America´s Great Depression, 2005, 5ª Edição, Ludwig von Mises Institute, Capítulo 1, The Cluster of Error, no original: “A
credit expansion may appear to render submarginal capital profitable once more, but this too will be malinvestment, and
the now greater error will be exposed when this boom is over. Thus, credit expansion generates the business cycle
regardless of the existence of unemployed factors. Credit expansion in the midst of unemployment will create more
distortions and malinvestments, delay recovery from the preceding boom, and make a more grueling recovery necessary in
the future. While it is true that the unemployed factors are not now diverted from more valuable uses as employed factors
would be (since they were speculatively idle or malinvested instead of employed), the other complementary factors will be
diverted into working with them, and these factors will be malinvested and wasted. Moreover, all the other distorting
effects of credit expansion will still follow, and a depression will be necessary to correct the new distortion. “
72
imperioso tentar compreender porque Keynes foi capaz de o ofuscar e conduzir à irrelevância toda a
produção intelectual anterior à sua (suposta) “nova economia”.
Também será interessante reflectir sobre o próprio processo social e histórico que conduziu elites
académicas e políticas a aderir - e outros até renegando o seu pensamento anterior, como Lionel
Robbins, que começou por ser um miseseano, responsável pela ida de Hayek para a London School
of Economics - à revolução Keynesiana131, fazendo esquecer refutações que já tinham sido
produzidas, e que foram só mais tarde ressuscitadas com a atribuição do Prémio Nobel da Economia
a Hayek em 1974, um ano depois de Mises ter falecido.
Este prémio Nobel foi atribuído pela sua produção no domínio da economia pura na década de
30, parte dela até elaborada enquanto procedia a um diálogo mas também disputa aberta com o
próprio Keynes. E marca o momento em que a Escola Austríaca começa novamente a interessar
alguns economistas académicos. A partir desta data surgiu uma nova geração de economistas
“austríacos” frontalmente críticos do Keynesianismo e das suas variantes ou pontos de contacto
como o pensamento neo-clássico e monetarista. A isso não será estranha a dissensão
epistemológica presente: os “austríacos” partem do apriorismo e refutam o empirismo ou o
positivismo lógico (muito marcado em Milton Friedman e a Escola de Chicago, mas comum ao
consenso e síntese Neoclássica-Keynesiana) como método válido para estabelecer leis económicas
universais, embora a validade da estatística e econometria para estudos aplicados e descritivos não
seja posta em causa.
Não é por acaso que a Escola Austríaca se encontrou isolada da comunidade académica: a defesa
da ortodoxia económica e monetária assim como a refutação do empirismo-matemático não
promete nenhuma carreira em bancos centrais, nos centros de estudos apoiados por estes, ou em
funções governativas directas. A Universidade que a acolher não beneficia da rede providenciada
pelos seus economistas colocados em cargos de intervencionismo monetário (típico no caso de
monetaristas) e económico (caso do keynesianismo).
Uma teoria dos ciclos económicos, dependente da clareza dos conceitos de moeda, poupança,
crédito e capital, é sem dúvida um tema crucial do ponto de vista prático-político quer académico,
mas é também no campo ideológico que é determinante: as crises são os momentos de
oportunidade para a desacreditação de uma sociedade livre que encontra os seus mecanismos de
regulação através da propriedade privada, e do sistema de preços que tem de incluir também a taxa
de juro. Nas crises económicas, tal como nas guerras, é evocada a emergência e o espectro do caos
para justificar acções que em tempos normais não seriam toleradas, por exemplo, uma boa parte
das medidas de Roosevelt podem ser consideradas inconstitucionais, mas o padrão de avaliação
crítica da sua constitucionalidade, quer pelo público em geral quer pelo Supremo - não esquecendo
a sua ameaça de aumento do número de juízes para o dobro - obviamente foi afectado. E assim a
acção política ganha força, e, ironicamente, os bancos centrais são vistos como salvadores de males
131
Que na verdade apenas retomou antigas falácias mercantilistas incluindo a proposta de sistemas que desincentivariam
e até penalizariam a simples posse de moeda porque esta faria falta ao crédito - é sempre esse o argumento base que aliás
ainda subsiste em estudos publicados por bancos centrais, cujo objectivo seria eliminar todas as notas e moedas em
circulação; desconfia-se que se o argumento económico não o estabelecer em definitivo, o dito combate à evasão fiscal e
temas como a do combate à fuga fiscal e as boas desculpas da guerra ao terrorismo e à droga, acabará por o conseguir;
toda a moeda a circular em contas bancárias e o fim de uma moeda com posse física e anónima.
73
maiores e a despesa pública como uma âncora para a procura agregada que a sociedade
voluntariamente “se recusa” a providenciar para se manter a oferta agregada anterior à crise que
sustentava o anterior nível de emprego (e sempre esquecido, a sua estrutura concreta com certos
sectores inflacionados), dado subitamente, diz-se, ocorrer uma fuga para a liquidez que desagua
numa inexorável armadilha de liquidez.
“A arte da economia consiste em olhar não apenas para o imediato mas para os efeitos mais
longínquos de qualquer acto ou política; consiste em traçar as consequências dessa política não
para um grupo, mas para todos os grupos”.
Keynes responderia com um comentário lacónico sobre o longo prazo e a morte - e de facto
Keynes já faleceu e nós vivemos as dificuldades do seu longo prazo. Este foco de Keynes no curto
prazo é devidamente analisado e enquadrado nestes dois ensaios, quer nas suas manifestações
teóricas, quer na sua filosofia de vida e política em geral. É preciso assim também inquirir sobre
Keynes, o homem, a sua vida, história concreta, e assim tentar construir uma abordagem coerente
das ideias e de como e porquê elas surgiram, e de como e porquê elas tiveram consequência. Não se
trata tanto de fazer um julgamento da vida pessoal de Keynes e do seu círculo social por si próprio,
mas sim de julgar as consequências das suas ideias à luz do enquadramento das motivações, da
caracterização da pessoa e de como essas características se transmitiram às suas ideias com
consequências concretas. Estes dois ensaios, com preocupações diferentes, completam-se. Ambos
os ensaios são frontais no seu estilo, num indisfarçável tom de “o rei vai nu”.132
A publicação deste texto e a tradução dos dois ensaios pretende, em primeiro lugar, expor em
língua portuguesa uma dissecação crítica frontal, ainda que sintética, de erros cometidos em pontos
fulcrais pela teoria económica Keynesiana - na aplicação dos conceitos de desemprego, de moeda,
132
Uma palavra para o estilo literário e argumentativo de Keynes enquanto mistura de variados males, muitos intencionais
outros reveladores, que em parte explica da pior forma, uma certa aura superior atribuída pelos seus admiradores e que
foi escalpelizada numa obra recente de 2009, publicada na mesma forma analítica que a de Hazlitt, denominada Where
Keynes Went Wrong: And Why World Governments Keep Creating Inflation, Bubbles, and Busts por Hunter Lewis (Retirado
e adaptado a partir de um comentário estruturado de um leitor da obra na respectiva página da livraria online Amazon e
que correspondem também à crítica de Hazlitt): Uso de linguagem obscura (e retórica difusa que podemos não ser capazes
de seguir, ou mesmo, que ninguém o será), uso indevido na aplicação de linguagem técnica (que não se detecta facilmente
numa leitura que não seja muito analítica); mudança das suas definições (usando a mesma palavra de maneiras diferentes
em locais do texto e contextos diferentes); uso indevido de termos comuns (espécie de um truque de mãos com
palavras);Inverte causa e efeito (afirmando que resultados são a causa do que aconteceu); usa determinismo falso (sugere
que algo imprevisível é na verdade previsível); mudança da frente para trás e de trás para a frente, entre categorias
mutuamente incompatíveis (compara maçãs com laranjas); utiliza sem suporte asserções e afirmações (sem nenhuma
justificação de apoio que prove que a sua declaração não seja mais que uma opinião pessoal); faz declarações inexactas
(por erro ou por intenção); extrapola de ilustrações a nível macro ou micro para "provar" algo na outra perspectiva; uso
indevido de “fórmulas” matemáticas para impressionar e confundir (X = Y + 1, como pode ser por vezes, mas se Y não é
mensurável de maneira alguma, o que podemos nós saber realmente com ela? Para não mencionar que se X = maçãs e Y =
laranjas, que pode a fórmula realmente significar?).
Toda esta caracterização tinha já sido dissecada ao pormenor, capítulo a capítulo, pela já mencionada obra The Failure
of New Economics de Henry Hazlitt, [1959] 2007. Fica a sua recomendação para quem o quiser comprovar em leitura
atenta (também existe em versão áudio-livro), dado talvez constituir a melhor fonte de crítica sistemática e completa à
Teoria Geral de Keynes, de resto citada pelos autores dos dois ensaios aqui traduzidos.
74
de juro e do crescimento económico - que se irradiaram em diferentes variantes da doutrina que se
tornou dominante; e, em segundo lugar, enquadrar a personalidade de Keynes no seu pensamento e
história concreta de sucesso, dado em boa verdade ter influenciado toda a doutrina económica e o
espectro político, da esquerda à direita (incluindo até os seus extremos), passando pelo centro. E
assim resulta a típica síntese anticrise de estímulos via despesa e injecção monetária133 que tudo faz
para conseguir a cura como que pelo prolongamento da doença.134 É tempo de redescobrir agora
novamente a sua crítica.
133
Devemos no entanto separar as intervenções dos bancos centrais para evitar a falência dos depósitos bancários com as
intervenções quantitativas com objectivos-macro monetários. O primeiro tipo de intervenção visa cumprir uma espécie de
promessa implícita do sistema de reservas fraccionárias de impedir um processo de deflação quantitativa via default sobre
os depósitos bancários. Já o segundo tem explicitamente o objectivo mais abstracto de produzir efeitos reais na economia.
134
A este propósito e para suporte deste parágrafo, mas também referência genérica para este texto ver Paper Money
Collapse: The Folly of Elastic Money and the Coming Monetary Breakdown, Detlev S. Schlichte, publicado pela Wiley. Em
especial o seu capítulo The Polítical Appeal of Maistream Macroeconomics e Monetarism as Monetary Interventionism.
135
Distinguished Fellow, Mises Institute; Professor Emeritus of Economics, University of Nevada, Las Vegas,
(http://mises.org/fellow/7, 17-12-2102).
136
Neste capítulo será útil mencionar que foi editor da revista LEFT AND RIGHT: A Journal of Libertarian Thought (1965-
1968), em seguida na The Libertarian Fórum (1969-1984), tendo contribuído também com um livro Manifesto com For a
New Liberty, the Libertarian Manifesto (1973) e um Tratado sobre Ética “libertarian”, The Ethics of Liberty, [1982] 1998. Foi
fundador do Cato Institute e do Libertarian Party dos quais se afastou mais tarde, participando depois na dinamização do
Ludwig von Mises Institute, criado em 1982, depois da autorização concedida pela viúva de Mises, Margit, a Llewellyn H.
Rockwell, Jr, o seu chairman desde então.
137
Man, Economy, and State with Power and Market (The Scholar's Edition), [1962] 2009.
138
The Mystery of Banking, [1983], 2008.
75
historiador (do pensamento económico139, do período colonial pré-revolucionário140, da história da
banca nos EUA141), produziu neste ensaio uma análise crítica da vida de Keynes enquadrando o seu
pensamento num tom eminentemente não neutro, um ensaio que se recusa a olhar para os factos
históricos como não estando ligados a características pessoais, interesses e ambições, e
enquadrados num tempo concreto.
139
Austrian Perspective on the History of Economic Thought (2 volume set), [1995] 2006.
140
Conceived in Liberty, [1973], 2000.
141
A History of Money and Banking in the United States: The Colonial Era to World War II, 2002; Panic of 1819 Reactions
and Policies, [1962] 2002.
76
O Caso Miseseano contra Keynes
Hans-Hermann Hoppe
Publicado originalmente em “Dissent on Keynes, A Critical Appraisal of Economics”. Editado por Mark Skousen. pp.199-
223. Publicado sob os auspícios de Ludwig von Mises Institute ©1992. Praeger, New York, Westport, Connecticut, London
(1992). Versão online em pdf: http://mises.org/etexts/hoppekeynes.pdf, 20-10-2014.
Traduzido para português por Carlos Novais Gonçalves. Parágrafos (que não constam do texto original) idênticos à edição
online no Ludwig von Mises Institute ( http://mises.org/daily/2492, 20-10-2014), fonte original para a tradução.
77
I. A Teoria Económica Clássica
I.1 O Emprego
I.2. A Moeda
I.3. O Juro
II.1. O Emprego
II.2. A Moeda
II.3. O Juro
78
O Caso Miseseano contra Keynes
De facto, a maioria delas eram parte e constituíam parcelas do que é agora chamado de economia
clássica, e era o reconhecimento da sua validade que distinguia de forma única o economista do
pseudo-economista. Mas foi a Escola Austríaca, em particular Ludwig von Mises e mais tarde Murray
N. Rothbard, que deu a forma mais clara e completa destas verdades (Mises [1949] 1966; Rothbard
[1962] 1970). Além disso, foi aquela Escola que as defendeu de modo mais rigoroso, mostrando
serem elas em última instância dedutíveis de proposições básicas, incontestáveis (tal como o
homem age e sabe o significado de agir) para as estabelecer como verdades cuja negação não só iria
ser factualmente incorrecta mas, muito mais decisivamente, seria ferida de contradições e absurdos
lógicos.142
I.1. O Emprego
"O desemprego no mercado não intervencionado é sempre voluntário " (Mises [1949] 1966: 599). O
homem trabalha porque prefere antecipadamente o seu resultado à desutilidade do trabalho e ao
ganho psíquico derivado do lazer. Ele "pára de trabalhar naquele ponto em que começa a valorizar
mais o lazer, a ausência da desutilidade do trabalho, que o incremento em satisfação esperada por
trabalhar mais" (ibid.: 611). Obviamente, então, Robinson Crusoe, o produtor auto-suficiente,
apenas pode estar voluntariamente desempregado porque prefere permanecer inactivo e consumir
bens já existentes em vez de dedicar trabalho adicional na produção de bens futuros.
142
Sobre os fundamentos da ciência económica, ver Mises (1978b, 1981, 1985), Rothbard (1979), e Hoppe
(1983, 1988). Quanto à visão alternativa da economia positivista de acordo com a qual as leis económicas são
hipóteses sujeitas a confirmação empírica ou falsificação (tal como as leis da física), ver Friedman (1953).
79
daqueles recursos que reconheceu como escassos e que apropriou para si (apropriação original) ao
misturar o seu trabalho com esses recursos antes de qualquer outro, assim como a propriedade de
todos os bens produzidos a partir deles. Nesta situação, não só o estabelecimento de rácios de troca
— preços — para a compra ou arrendamento de bens materiais se tornam possíveis, como também
o de preços (salários) pelo serviço de mão-de-obra.
O emprego irá ocorrer sempre que o salário oferecido for mais valorizado pelo trabalhador que a
satisfação providenciada pelo lazer ou que os benefícios do auto-emprego. Neste último caso, o
trabalhador enfrenta três escolhas. Ele poderá:
Uma pessoa não está empregada, isto é, não trabalha como um assalariado, ou porque ela prefere o
lazer ou porque é auto-empregada. Em qualquer caso a pessoa está voluntariamente sem emprego.
Mas não poderá ser verdade que, no mercado livre e não intervencionado, alguém seja
"desempregado " no sentido corrente, em que está à procura de trabalho e não o encontra? Mas tal
formulação levanta muitos problemas. Assim, eu posso estar à procura de uma posição como
presidente da Universidade de Harvard, e este empregador, por alguma razão obscura, pode recusar
contratar-me para aquela posição. Poderíamos dizer que estou "involuntariamente desempregado"
mas isso distorceria qualquer significado sensato do termo.
Em qualquer acordo salarial, como em qualquer troca no mercado livre, ambas as partes têm que
participar de boa vontade na troca, quer dizer, ambas devem participar voluntariamente. Se metade
da força de trabalho meter na cabeça que cada uma delas deveria ser contratada como presidente
de Harvard, e cada um insistir neste emprego e em mais nenhum outro, então realmente a metade
da força de trabalho menos uma pessoa estará permanentemente e "involuntariamente "
desempregada. Mas será isto, como Keynes o colocaria, um fracasso do mercado livre, ou será um
fracasso dos processos mentais e valores desses trabalhadores? E na medida em que este problema
é claramente um fracasso nascido dos próprios trabalhadores, nós teremos de concluir que tal
desemprego é "voluntário " no sentido realista que é a consequência dos processos internos mentais
e escolhas desses trabalhadores, ainda que cada um "voluntariamente" preferisse ser presidente de
Harvard em vez de estar sem trabalho.
143
Sobre preferência temporal, ver na secção 1.3, abaixo.
80
De forma semelhantemente, e indo ao encontro da realidade do desemprego durante depressões,
os trabalhadores poderão insistir em não se permitir serem contratados a um salário abaixo de um
certo nível, isto é, impondo a eles próprios um salário mínimo abaixo do qual eles não aceitarão ser
contratados. Normalmente, isto acontece durante as recessões cíclicas, quando, como a Teoria
Austríaca dos Ciclos Económicos nos diz, tem lugar uma súbita quebra da procura de trabalho pelos
empregadores, particularmente nas indústrias de bens de capital. Aquele declínio é um reflexo da
súbita revelação, no início de uma depressão, que os homens de negócios foram levados a, através
da expansão inflacionária de crédito e à consequente descida das taxas de juros abaixo do nível de
mercado livre, a fazer investimentos erróneos não sustentáveis. Tais investimentos licitaram salários
e outros custos demasiado alto, comparativamente à vontade genuína do mercado para comprar
esses bens de capital a um preço rentável.
O mercado de trabalho funciona como qualquer mercado de bens e serviços: um mínimo artificial
acima do preço de mercado de equilíbrio causa um excesso não vendido — neste caso, de trabalho
não empregue. Quanto mais rapidamente os trabalhadores deixarem os seus salários caírem, mais
depressa o desemprego desaparecerá.
Novamente, poderemos supor que irei ter com o meu empregador na universidade e insistir que não
trabalharei a menos que eles aumentem o meu salário para um milhão de dólares por ano. Eles irão
então desejar-me a melhor das sortes com um "tenha um resto de vida agradável ". Estarei eu então
"involuntariamente" desempregado? Sim, no sentido em que eu gostaria de estar empregado no
meu posto actual por um milhão dólares e o meu empregador se recusa a fazer tal contrato. Mas
não, no sentido em que eu estou a insistir obstinadamente em não continuar empregado por menos
de um milhão de dólares por ano e em preferir "voluntariamente " o ócio a um salário abaixo desse
montante. Novamente, embora eu possa não apreciar a ociosidade e preferisse o meu presente
trabalho com um milhão de dólares por ano, eu estou "voluntariamente" desempregado no sentido
certamente coerente do termo em que o meu desemprego é o resultado dos meus próprios
processos mentais internos.
81
“O desemprego é um fenómeno próprio de uma economia em mudança. O facto de que um
trabalhador despedido, por conta de mudanças que ocorrem nos processos de produção, não tire
proveito imediato de todas as oportunidades para conseguir outro emprego mas espere por uma
oportunidade mais propícia não é uma reacção automática às mudanças que ocorreram,
independente da vontade e escolhas de quem procura trabalho, mas o efeito das suas acções
intencionais. É especulativo, não friccional.144 (Mises [1949] 1966: 600) ”
Claro que isto não significa que todo o desemprego seja "voluntário", mas apenas que o será num
mercado livre e não intervencionado. Quando o mercado está sujeito à coerção de uma intervenção
externa, especificamente quando uma instituição coerciva externa, seja um sindicato ou um
governo, impõe salários acima do equilíbrio de mercado, então sim existirá "desemprego
involuntário", e aquele desemprego vai durar tanto tempo quanto o salário seja mantido acima da
produtividade marginal do trabalho naquela ocupação.
Uma via alternativa na qual o governo pode incentivar desemprego coercivamente é subsidiar o
desemprego pagando aos trabalhadores na medida em que estão desempregados. Isto pode ocorrer
ou como pagamentos governamentais directos ao desempregado (frequentemente isento de
impostos e assim mais elevados após impostos) ou como outros subsídios. Em qualquer caso, o
ganho psíquico líquido proporcionado com o emprego acima do lazer é reduzido acentuadamente
por tal subsídio, e o incentivo para aceitar o salário de mercado oferecido é reduzido pela mesma
medida. Mises refere-se perceptivamente a tal desemprego como "desemprego institucional".
Assim, o desemprego involuntário só é logicamente possível uma vez a economia de mercado livre
seja fundamentalmente alterada e uma pessoa ou instituição surja com a capacidade de exercer
com sucesso controlo sobre recursos de que não se apropriou originariamente ou tenha adquirido
por troca voluntária com proprietários originais. Tal instituição externa ao mercado, ao impor um
salário mínimo mais alto que a produtividade marginal do trabalho, pode efectivamente proibir uma
troca entre um fornecedor de mão-de-obra e um capitalista, uma troca que seria preferida por
ambos se ambos tivessem controlo irrestrito sobre a sua propriedade originariamente adquirida. O
trabalhador que pretenderia emprego fica então involuntariamente desempregado, e o que
pretenderia ser empregador é forçado a deslocar factores complementares de produção de usos
mais produtivos para menos produtivos.
De facto, uma instituição exterior ao mercado pode em princípio criar qualquer quantidade de
desemprego involuntário. Um salário mínimo de, digamos, um milhão de dólares por hora iria, se
realmente imposto, desempregar involuntariamente praticamente toda a população e iria, ao longo
deste caminho para o auto-emprego forçado, condenar a maioria da população à morte por fome.
Na ausência de qualquer instituição isenta de regras de mercado livre, o desemprego involuntário é
logicamente impossível e a prosperidade, ao invés de empobrecimento, resultará.
144
"O indivíduo acredita que encontrará mais tarde um trabalho remunerado a uma dada base salarial e numa
ocupação de que ele gosta mais e para o qual ele foi treinado. Ele procura evitar a despesa e outras
desvantagens envolvidas na mudança de uma ocupação para outra. Poderão existir condições especiais que
aumentem estes custos... Em todos estes casos o indivíduo escolhe o desemprego temporário porque ele
acredita que esta escolha é a melhor no longo prazo" (Mises [1949] 1966: 598-99).
82
I.2. A Moeda
O homem participa numa economia de troca (em vez de permanecer em isolamento auto-
suficiente), na medida em que ele é capaz de reconhecer a maior produtividade de um sistema de
divisão de trabalho e prefere mais bens do que menos. Da sua participação no mercado surge, por
sua vez, o seu desejo por um meio de troca, nomeadamente, moeda. Realmente, só se formos
assumir o humanamente impossível — quer dizer, que o homem tenha uma previsão perfeita
relativamente ao futuro — e não haveria razão alguma para ele possuir moeda. Porque então, com
todas as incertezas removidas, na terra-do-nunca do equilíbrio económico, nós saberíamos com
exactidão as condições, momentos, e localizações de todas as trocas futuras; e tudo poderia assim
ser pré-arranjado e tomaria a forma de troca directa, em vez de indirecta (Mises [1949] 1966: 244-
50).145
Debaixo da inescapável condição humana da incerteza, porém, quando todos estes termos não são
conhecidos e a acção deve por natureza ser especulativa, o homem começará a exigir bens, não mais
exclusivamente por causa do seu valor de uso, mas também por causa do seu valor como meio de
troca. Ele também vai considerar negociar sempre que os bens a serem adquiridos sejam mais
comerciáveis do que aqueles a serem trocados, de modo a que a sua posse facilite então a aquisição
de bens e serviços directamente úteis em datas futuras ainda desconhecidas.
Além disso, dado que é mesmo função de um meio de troca facilitar aquisições futuras de bens
directamente úteis, o homem preferirá naturalmente a aquisição de um meio de troca mais
comerciável, ou mesmo universalmente comerciável, a um menos ou não universalmente
comerciável. Então, "haverá uma tendência inevitável para os menos comerciáveis da série de bens
utilizados como meio de troca a serem rejeitados um por um até um único permanecer, e que será
universalmente utilizado como um meio de troca; numa palavra, moeda" (Mises 1971: 32-33;
Menger 1981). E no caminho para este objectivo último, ao seleccionar potenciais moedas que são
cada vez mais amplamente usadas, a divisão de trabalho é estendida e a produtividade aumentada.
Porém, uma vez que um bem tenha sido estabelecido como um meio de troca universal e os preços
de todos os bens de troca directamente úteis sejam expressos em termos de unidades desta moeda
(enquanto o preço unitário da moeda é o seu poder para adquirir um conjunto de bens não
monetários), a moeda deixa de exercer qualquer influência sistemática na divisão de trabalho,
emprego e rendimento produzido. Uma vez uma moeda esteja estabelecida, qualquer quantidade
de moeda é compatível com qualquer quantidade de emprego e rendimento real. Nunca há
qualquer necessidade de mais moeda já que qualquer quantidade providenciará a mesma máxima
extensão de utilização necessária como moeda: isto é, providenciar um meio genérico de troca e um
meio de cálculo económico para empreendedores.146
145
“Num sistema sem mudanças no qual não existe qualquer incerteza quanto ao futuro, ninguém precisa de
possuir moeda. Qualquer pessoa sabe exactamente que quantia de moeda precisará em qualquer data futura.
Ele está então na posição de emprestar todos os fundos que receber de tal modo que os empréstimos vençam
na data em que irá precisar deles" (Mises [1949] 1966: 249; ver também Rothbard [1962] 1970: 280).
146
Ver Rothbard ([1962] 1970: 669-71). " Os bens são úteis e escassos, e qualquer incremento na quantidade
de bens é um benefício social. Mas a moeda não tem utilidade directa, mas apenas em trocas… Quando há
menos moeda, o valor de troca da unidade monetária aumenta; quando há mais moeda, o valor de troca da
83
Mas isto significa que qualquer quantidade de moeda é óptima e, nesse sentido, que a oferta de
moeda é indiferente ou "neutra" aos processos reais da economia. Mas, infelizmente, alterações na
oferta de moeda podem ter efeitos problemáticos e até mesmo devastadores nos processos de
produção reais.
Assim, suponha-se que a oferta de moeda aumenta. Os preços e salários vão em geral subir e o
poder aquisitivo unitário da moeda baixar. Na medida em que a oferta de moeda seja maior e o seu
poder aquisitivo tenha caído sem restrições, a nova oferta de moeda não terá nenhum efeito na
economia real. Mas, por outro lado, a oferta de moeda é injectada em um ou mais pontos
específicos na economia e não aumenta proporcionalmente e instantaneamente mas transmite-se
pelo tempo e pelo mercado, dos primeiros receptores para os seguintes. Consequentemente, no
mundo real, aumentos da oferta da moeda provocam sempre alterações nos preços relativos e
alteram a distribuição do rendimento e riqueza. Por conseguinte, o processo de alterações na oferta
de moeda necessariamente altera preços relativos e a sua distribuição, assim não pode ser neutral
para estes processos reais.
Além disso, se os incrementos de moeda ocorrem pela expansão e monetização de crédito bancário,
então a Teoria Austríaca dos Ciclos Económicos demonstra que, inevitavelmente, tais alterações na
moeda necessariamente dão lugar a investimentos erróneos e à volatilidade do ciclo de expansão e
recessão. E tais aumentos inflacionários podem provocar ainda mais devastação na economia real ao
distorcer e falsificar o cálculo económico de tal forma que as empresas não terão ideia real dos seus
custos nem conseguirão prever correctamente preços relativos quer lucros quer prejuízos.
Mas embora alterações na oferta de moeda não sejam neutrais para o sistema de preços ou para a
distribuição de rendimento ou riqueza, e a inflação no crédito bancário provoque investimentos
erróneos, falhas no cálculo económico, e um ciclo económico, ainda assim não tem necessariamente
de existir desemprego no mercado. Mesmo uma baixa súbita de salários numa depressão, como já
vimos, pode ainda equilibrar todos os mercados a cada dia e plenamente. Um decréscimo na curva
de procura monetária de bens ou recursos não tem de criar um excesso não vendido se os preços
puderem cair livremente para o preço de equilíbrio de mercado.
Da mesma forma, um decréscimo na curva de procura monetária de trabalho não tem de causar
desemprego desde que os trabalhadores estejam dispostos a aceitar salários que equilibrem o
mercado e que assegurem que todos que desejam trabalhar tenham um trabalho. Mas se os
trabalhadores não estão assim dispostos e decidem insistir num salário mínimo à espera de uma
subida mais cedo dos seus salários, o seu consequente desemprego num mercado não
intervencionado tem de ser considerado " voluntário ". Como vimos, porém, se sindicatos ou
governos interferirem para sustentarem salários acima do nível de equilíbrio de mercado, então, o
problema do desemprego involuntário será adicionado aos problemas derivados do investimento
erróneo nos ciclos económicos.
unidade de moeda desce. Nós concluímos que não há tal coisa como 'demasiado pouca' ou 'demasiada'
moeda, e que, qualquer que seja a quantidade de moeda na sociedade, os benefícios da moeda são sempre
utilizados na sua máxima extensão " (Rothbard [1962] 1970: 670; ver também Rothbard 1983).
84
Alterações na procura de moeda têm efeitos similares a mudanças na oferta, excepto que: (a) não
têm a capacidade de gerar um ciclo económico, e (b) não têm a capacidade, como no caso do papel-
moeda-por-fiat do governo de crédito bancário inflacionário, de aumento sem limite ou, em vez
disso, de aumento até ao limite de uma bolha e inflação galopante.
Assim, um aumento na procura de moeda, quer dizer, um valor relativo mais alto associado ao
dinheiro comparativamente a outros bens, mudaria certamente os preços relativos e rendimentos,
dado que o aumento na procura não seria uniforme para cada pessoa e os efeitos seriam
transmitidos através do tempo pela economia de mercado. Para uma determinada quantidade de
moeda o incremento na procura diminuiria os preços e salários e aumentaria o poder aquisitivo da
unidade monetária, mutatis mutandis. Mas o emprego e o rendimento real não têm de ser
afectados.
I.3. O Juro
A posse de moeda é o resultado da incerteza sistémica da acção humana. Por outro lado, as taxas de
juros são o resultado da preferência temporal que é tão essencial para acção como a incerteza. Ao
agir, um actor procura não só invariavelmente substituir um estado menos satisfatório por outro
estado de coisas mais satisfatório e assim demonstrando uma preferência por mais em vez de
menos bens; ele também tem que considerar invariavelmente quando no futuro as suas metas serão
alcançadas (i.e., o tempo necessário para as realizar) como também a duração da usabilidade dos
bens; assim toda a acção demonstra também uma preferência universal por bens mais cedo do que
mais tarde e para bens mais duráveis do que menos. Toda a acção requer algum tempo para atingir
o seu objectivo; e já que o homem tem que consumir algo em algum momento e não pode nunca
deixar de consumir completamente, o tempo é sempre escasso. Assim, ceteris paribus, bens
existentes ou mais próximos de o serem, são e invariavelmente devem ser, mais valorizados que
bens futuros ou mais distantes.147
Assim, restringido pela preferência temporal, o homem só trocará um bem presente por um futuro
se antecipar que assim aumentará a quantidade de bens futuros. A taxa de preferência temporal que
pode ser diferente de pessoa para pessoa e de um ponto no tempo para outro, mas que nunca pode
ser outra coisa que positivo para todos, determina simultaneamente o valor do prémio que os bens
147
Sobre a teoria da preferência temporal da taxa de juro, ver W. S. Jevons (1965), E. von Bohm-Bawerk
(1959), R. Strigl (1934), F.A. Fettter (1977), e R. B. Garrison (1979, 1988).
85
presentes têm sobre os bens futuros como também o montante de poupança e investimento. A taxa
de juro de mercado é a soma agregada de todas as taxas de preferência temporal individuais,
reflectindo, a taxa social de preferência temporal que equilibra, como que, a poupança social (i.e., a
oferta de bens presentes oferecidos para troca por bens futuros) e investimento social (i.e., a
procura por bens presentes capazes de gerar retornos futuros).
Nenhuma oferta de fundos para crédito pode existir sem poupança prévia, quer dizer, sem a possível
abstenção de algum consumo de bens presentes (um excesso de produção actual acima do consumo
corrente). E nenhuma procura de fundos para crédito existiria se ninguém encontrasse uma
oportunidade para aplicar esses fundos, quer dizer, para os investir de modo a conseguir uma
produção futura que excederia o input corrente. Realmente, se todos os bens presentes fossem
consumidos e nenhum investido em processos que consomem tempo, não existiria juro ou taxa de
preferência temporal. Ou antes, a taxa de juro seria infinitamente alta, a qual, em qualquer lugar
fora do Jardim de Éden, seria equivalente a caminhar para uma existência meramente animal, quer
dizer, de passar a uma subsistência primitiva enfrentando a realidade com nada mais do que as suas
mãos vazias e apenas um desejo para satisfação instantânea.
A oferta de e a procura por fundos para crédito só emerge — e esta é a condição humana — uma
vez que é reconhecido que processos mais indirectos, mais extensos, mais longos de produção
podem render uma produção maior ou melhor por input que os mais directos e mais curtos;148 e é
possível, através de poupanças, acumular o número de bens presentes necessários a providenciar
todos esses desejos cuja satisfação durante o tempo prolongado de espera é julgado mais urgente
que o incremento em bem estar futuro esperado pela adopção de um processo de produção que
consome mais tempo (Mises [1949] 1966: 490 ff.).
Enquanto assim seja o caso, a formação e acumulação de capital vai ter início e prosseguir. Em vez
de serem suportados por e ocupados em processos de produção imediatamente gratificantes, a
terra e o trabalho, os factores originais de produção, são suportados por um excesso de produção
acima do consumo e empregue na produção de bens de capital, quer dizer, na produção de factores
de produção. Estes bens não têm valor excepto como produtos intermédios no processo de obter
bens (de consumo) finais mais tarde. A produção de produtos finais com a ajuda destes bens é mais
“produtiva”. Ou, o que leva ao mesmo, aquele que possui, e pode produzir com a ajuda de bens de
capital está mais próximo no tempo da conclusão do seu último projecto do que estaria sem eles.
O excesso em valor (preço) de um bem de capital sobre a soma despendida nos factores originais
complementares requeridos para sua produção deve-se a esta diferença de tempo e ao facto
universal da preferência temporal. Este excesso é o preço pago pela compra de tempo: para nos
aproximarmos para mais perto da conclusão do nosso último objectivo pessoal em vez de termos de
começar pelo próprio princípio. E pela mesma razão da preferência temporal, o valor da produção
final tem que exceder a soma gasta nos seus factores de produção, quer dizer, o preço pago pelos
bens de capital e todos os serviços complementares de mão-de-obra.
148
É certo que nem todos os processos mais longos de produção são mais produtivos que os menores; mas na
suposição que o homem, constrangido pela preferência temporal, vai invariavelmente e em qualquer
momento seleccionar o mais curto método concebível de produzir determinada produção, qualquer aumento
na produção só pode ser — praxeologicamente — alcançado se a estrutura de produção for prolongada.
86
Quanto mais baixa a taxa de preferência temporal, então, mais cedo o processo de formação de
capital se iniciará e mais rapidamente prolongará a extensão da estrutura de produção. Qualquer
aumento na acumulação de bens de capital e da extensão da estrutura da produção, aumentará, por
sua vez, a produtividade marginal do trabalho. Isto conduz a um emprego e/ou salários aumentados
e, em todo caso (até mesmo se a curva da oferta de trabalho se inclinar para trás com salários
aumentados), a um total de salários mais elevado (ver Rothbard [1962] 1970: 663ff.). Na presença
de um número crescente de bens de capital, uma população de assalariados mais bem paga
produzirá agora um produto social futuro aumentado elevando por fim, depois do rendimento dos
empregados, o rendimento real dos donos de capital e terra.
Enquanto a taxa de juro (preferência temporal) tem assim uma relação praxeológica directa com o
emprego e o rendimento social, não tem nenhuma relação com a moeda. É certo que uma economia
de moeda também inclui uma expressão monetária para a taxa social de preferência temporal. Mas
isto não muda o facto de que a taxa de juro e a moeda são sistematicamente independentes e não
relacionados e que o juro é essencialmente um fenómeno " real," e não um fenómeno monetário.
A preferência temporal e o juro, em contraste com a moeda, não poderão ser concebidos como
desaparecendo até mesmo no estado geral de equilíbrio final. Porque até mesmo em equilíbrio a
estrutura de capital existente precisa de ser constantemente mantida ao longo do tempo (para
impedir que seja gradualmente consumida no decurso de um padrão eterno de repetição de
operações produtivas). Não pode existir tal manutenção, porém, sem poupança e reinvestimento
contínuo, e não pode existir tal coisa sem a expectativa de uma taxa de juro positiva. Realmente, se
a taxa de juro paga fosse zero, resultaria em consumo de capital e sairia assim do equilíbrio (ver
Mises [1949] 1966: 530-32; Rothbard [1962] 1970: 385-86).
As coisas ficam mais complexas sob condições de incerteza, quando a moeda está realmente em
uso, mas a independência praxeológica da moeda e o juro permanece intacta. Debaixo destas
condições, o homem tem invariavelmente três em vez de duas alternativas para alocar o seu
rendimento corrente. Ele não só tem que decidir o quanto alocar à compra de bens presentes e bens
futuros (i.e., quanto consumir e quanto investir), mas também o quanto manter em dinheiro. Não há
nenhumas outras alternativas.
Contudo, enquanto o homem terá sempre que fazer ajustamentos respeitantes a três margens de
uma vez só, o resultado é invariavelmente determinado por dois factores distintos e
praxeologicamente sem relação. A proporção consumo/investimento é determinada através de
preferência temporal. A fonte da procura de dinheiro, por outro lado, é a utilidade atribuída à
moeda (i.e., a sua utilidade em permitir a compra imediata de bens directamente úteis numa data
futura incerta). E ambos os factores podem variar independentemente um do outro.
Como com outros aspectos da economia real, o nível de quantidade de moeda não tem qualquer
efeito na taxa de juro, que é determinada através da preferência temporal. Mas alterações na
quantidade de moeda não só podem afectar os preços relativos e rendimentos como também
reduzir o rendimento real ao causar os ciclos económicos ou interferirem no processo de cálculo
económico.
Além disso, como as alterações na quantidade de moeda vão necessariamente afectar a distribuição
de rendimentos, a taxa social de preferência temporal será afectada pelas preferências temporais
87
dos primeiros a receber as novas quantidades de moeda comparativamente aos seguintes. Mas
dado que não há modo de prever se a preferência temporal social subirá ou descerá com uma
determinada variação na oferta de moeda, tais alterações poderão não ter efeito sistemático na taxa
de preferência temporal e consequentemente, na taxa de juro.
O mesmo é verdade quanto a alterações na procura de moeda e os seus efeitos nas preferências
temporais. Se por exemplo, o pesadelo Keynesiano de maior acumulação de moeda se tornar
realidade e os preços em geral caírem enquanto o poder aquisitivo da moeda sobe, isto não
exercerá nenhum efeito sistemático previsível quanto à proporção entre investimento/consumo na
sociedade. Esta proporção, e o programa de preferência temporal que a determina, mudará de
forma imprevisível e dependerá das preferências de quem acumula e não acumula moeda e em
como a alteração na procura de moeda comunicarão através da economia de mercado.
Numa economia não intervencionada, a taxa de juro é somente determinada pela taxa social de
preferência temporal (à qual é somado um prémio, dependendo da extensão de risco envolvido no
empréstimo em causa). Como a taxa de juro real tenderá a igualar esta taxa social de preferência
temporal, a inflação de preços esperada tenderá a ser somada pelo mercado à taxa de juro
monetária, para manter a taxa real igual à preferência temporal. A taxa de juro para empréstimos de
moeda tenderá a ser igual à taxa de retorno dos investimentos, sendo esta taxa determinada pela
taxa de preferência temporal mais o prémio de inflação. Mas se os bancos inflacionam o crédito, o
aumento da oferta de empréstimos baixará a taxa de juro do crédito abaixo da taxa de mercado e
assim gerando o ciclo inflacionário de expansão e recessão.
No entanto, para fazer isto terá que haver poupança prévia e investimento. Não é a disponibilidade
de recursos e conhecimento científico ou técnico que impõe limites ao avanço económico; em vez
disso, é a preferência temporal que impõe limites à exploração dos recursos disponíveis como
também à utilização de conhecimento existente (e para o caso também do progresso científico, na
medida em que também as actividades de investigação necessitem de estar suportadas por fundos
economizados).
Assim, o único caminho viável para o crescimento económico é através de poupança e investimento,
governados como estão pela preferência temporal. Em última instância, não há nenhum outro
caminho para a prosperidade excepto através de um aumento per capita do capital investido. Esta é
88
a única forma de aumentar a produtividade marginal do trabalho, e só se assim for feito poderá
então o rendimento futuro aumentar. Com os rendimentos reais a subirem, a taxa de preferência
temporal efectiva cai (sem, porém, assumir o valor de zero ou tornando-se negativa), adicionando
ainda mais doses aumentadas de investimento e iniciando-se desta forma um círculo virtuoso de
desenvolvimento económico.
Não há nenhuma razão para supor que este processo irá parar antes de chegar ao Jardim do Éden
onde toda a escassez desaparece — a menos que as pessoas deliberadamente escolham de forma
diferente e comecem a valorizar o lazer adicional mais que qualquer aumento adicional do
rendimento. Nem há qualquer razão para supor que o processo de desenvolvimento capitalista não
seja tranquilo, quer dizer, que a economia não irá não só ajustar-se a alterações monetárias mas
também a todas as alterações na taxa social de preferência temporal. Claro que, tanto quanto o
futuro seja incerto, existirão erros empresariais, perdas e falências. Mas não existe razão sistemática
para tal causar mais do que interrupções temporárias ou para estas excederem, ou flutuarem de
forma drástica à volta de uma "taxa natural" de falhanços empresariais (ver Rothbard 1983a: 12-17).
As coisas só ficam diferentes se uma instituição extra mercado como o governo for introduzida. Não
só torna o desemprego involuntário possível, como explicado acima, como a própria existência de
um agente que pode reclamar a propriedade sobre recursos de que não se apropriou
originariamente, produziu, nem adquiriu contratualmente também aumenta a taxa social de
preferência temporal de proprietários originais, produtores, e contratantes, criando assim
empobrecimento involuntário, estagnação, ou mesmo retrocesso. Só através do governo pode a
humanidade ser impedida no seu percurso natural para uma emancipação gradual da escassez
muito antes de alcançar voluntariamente o ponto de crescimento nulo.149 E só na presença de um
governo é que pode o processo capitalista ser levado a um padrão cíclico (em vez de uma evolução
suave) de recessões depois de expansões.
149
Quanto ao papel do governo como destrutivo da formação de riqueza, ver Rothbard (1977) e Hoppe (1989
d).
89
de crédito. Todos os bens que teriam sido criados sem a expansão de crédito ainda têm de ser
produzidos — mais aqueles que são agora adicionados. Porém, para isto ser possível é necessário
mais capital. O maior número de bens futuros só pode ser produzido com sucesso se poupanças
adicionais fornecerem meios suficientes de subsistência para conduzir e sustentar os trabalhadores
através de um tempo de espera mais longo. Mas por pressuposto, tal aumento de poupança não
teve lugar.
A taxa de juro inferior não é o resultado de uma maior oferta de bens de capital. A taxa social de
preferência temporal não se alterou. É apenas o resultado de moeda contrafeita a entrar na
economia pelo mercado de crédito. Segue logicamente que deve ser impossível completar todos os
investimentos projectados e agora em curso depois de uma expansão de crédito, devido a uma falta
sistemática de capital real. Projectos terão que ser liquidados para encurtar a estrutura de produção
global e reajustá-la a uma taxa social de preferência temporal inalterada e a correspondente
proporção de investimento/consumo real.150
Estes movimentos cíclicos não podem ser evitados por antecipação (ao contrário do mote "um ciclo
antecipado é um ciclo evitado"): eles são a necessária consequência praxeológica de crédito
contrafeito adicional ser colocado com sucesso. Uma vez isto tenha ocorrido, e um ciclo económico
é inevitável, independentemente do que os actores acreditem correctamente ou incorrectamente
ou esperem. O ciclo é induzido por uma alteração monetária, mas entra em efeito no reino dos
fenómenos “reais” e será um ciclo "real" não importa quais as convicções que as pessoas possam
ter.151
Nem pode ser esperado realisticamente que os inevitáveis movimentos cíclicos, como resultado de
uma expansão de crédito, irão alguma vez desaparecer. Contanto que uma instituição extra-
mercado como o governo esteja em controlo da moeda, uma série permanente de movimentos
cíclicos marcará o processo de desenvolvimento económico; porque pela criação de crédito
fraudulento, um governo pode gerar um apreciável rendimento e redistribuição de riqueza a seu
próprio favor. Não há razão (a menos de pressupostos idealistas) para supor que um governo irá
alguma vez deliberadamente deixar de usar esta varinha mágica somente porque a expansão de
crédito tem o "desafortunado” efeito colateral de ciclos económicos.
150
Sobre a teoria dos ciclos económicos, ver a contribuição original de Mises (Mises 1971); a sua primeira
versão elaborada está em Mises (1928 1978a). Ver também Hayek (1939b, [1935] 1967c). Os trabalhos de
Hayek foram primeiro publicados em 1929, resp. 1931; é interessante notar que Hayek, que recebeu o Prémio
Nobel em 1974, um ano depois do falecimento de Mises, pelas suas contribuições para a teoria de
Mises/Hayek do ciclo económico, de forma óbvia representou deficientemente as realizações de Mises no seu
contributo para o desenvolvimento desta teoria. No seu Preços e Produção de 1931, a primeira apresentação
da teoria austríaca de ciclos económicos a aparecer em inglês, Hayek reconhece a reivindicação anterior de
Mises por essa fama. E ainda embora cite o trabalho de 1928 de Mises (citado acima), ele reivindica
erradamente que as contribuições de Mises para a teoria limitaram-se essencialmente a algumas observações
no seu trabalho original de 1912; Ver Strigl (1934), Robbins (1971), Rothbard (1983a), Mises, Haberler,
Rothbard, e Hayek (1983), Hoppe (1983), Garrison (1986, 1988).
151
Ver também R. Garrison 1988b. Ver também a crítica a teorias psicológicas (em vez de praxeológicas) dos
ciclos económicos, em baixo.
90
II – Teoria Económica Keynesiana
II.1. O Desemprego
Keynes estabelece uma falsa teoria do emprego. Ao contrário da visão clássica, ele defende que
pode existir desemprego involuntário e, adicionalmente, que o mercado pode chegar a um estado
de equilíbrio com desemprego involuntário. Finalmente, ao reclamar que tais falhas de mercado são
possíveis, ele professa ter descoberto a racionalidade económica última para a interferência nas
operações do mercado por forças extra-mercado. Como o mercado livre é definido em termos de
apropriação original ou de produção de propriedade privada e as interacções de natureza voluntária
entre donos de propriedade privada, devia ser claro que o que Keynes reclama mostrar é
aproximadamente equivalente a uma quadratura do círculo.
Keynes começa com a falsa afirmação que a teoria clássica assumiu “que não existe tal coisa como
emprego involuntário no sentido restrito”( Keynes 1936: 21,6,15). De facto, não assumiu tal coisa. A
teoria clássica assumiu que o desemprego involuntário é logicamente/praxeologicamente
impossível, assim esteja em operação um mercado livre. Que o desemprego involuntário, na
verdade qualquer que seja a sua dimensão, possa existir na presença de uma instituição extra
mercado como as leis do salário mínimo, nunca foi seriamente posto em causa.
Depois de afirmar esta falsidade, Keynes depois prossegue dando a sua definição de desemprego
involuntário: “O homem está involuntariamente desempregado se, ao dar-se uma ligeira subida nos
preços de bens-salários [i.e., bens de consumo] relativamente aos salários monetários, ambas, a
oferta agregada de trabalho disposta a trabalhar ao salário monetário corrente e a sua procura
agregada a esse salário sejam maior que o volume existente de emprego” (ibid.:15).153 Traduzindo
para linguagem corrente, o que Keynes está a dizer é que o homem está desempregado
involuntariamente se uma subida dos preços relativamente aos salários conduz a mais emprego (ver
Hazlitt [1959] 1973: 30).
Contudo tal alteração nos preços relativos é logicamente equivalente a uma descida dos salários
reais; e uma queda dos salários reais pode ter lugar a qualquer momento num mercado não
intervencionado por assalariados que o queriam, simplesmente aceitando salários nominais mais
152
Para literatura pró-keynesiana, consultar S. Harris (1948a), A. Hansen (1953); para literatura anti-
Keynesiana, consultar H. Hazlitt ([1959] 1973, 1984).
153
Neste ponto Keynes promete uma definição alternativa a ser dada na página 26; de forma reveladora, tal
definição não aparece lá ou em qualquer outro lugar do livro!
91
baixos, e permanecendo inalterados os preços das matérias-primas. Se os trabalhadores decidirem
não o fazer, não há nada de involuntário na continuação do seu desemprego. Dada a sua procura
com reserva por emprego, eles escolhem oferecer a quantidade de trabalho que está actualmente a
ser oferecida. Nem pode a classificação desta situação como voluntária alterar-se minimamente se,
noutra altura, salários mais baixos derem lugar a aumento de emprego. Por virtude da lógica, tal
resultado pode dar-se apenas se, pelo caminho, os trabalhadores aumentarem a sua avaliação
relativa de um dado nível de salário versus a sua procura com reserva de emprego (de contrário, se
tal alteração não ocorrer, o emprego irá diminuir em vez de aumentar).
Contudo, o facto de cada um poder mudar a sua opinião ao longo do tempo dificilmente implicará
que a sua decisão anterior tenha sido involuntária, como Keynes o teria colocado. Claro que, cada
um pode definir os seus termos da forma que quiser e, de uma forma verdadeiramente Orwelliana,
podemos até decidir chamar voluntário a “involuntário” e a involuntário “voluntário”. Mas, através
deste método, toda e qualquer coisa debaixo do sol pode ser “provada”, quando de facto de
substantivo nada de todo é mostrado. A alegada prova de Keynes deixa inteiramente intacto o facto
de que no sentido usual do termo, o desemprego involuntário nunca poderá existir num mercado
não intervencionado.
E como se isto não fosse suficiente, Keynes coroa-o defendendo que o desemprego involuntário é
concebível em equilíbrio. De facto, ele critica o seu próprio Tratado da Moeda dizendo: “Eu não
percebia na altura que, em certas condições, o sistema poderá estar em equilíbrio com menos que o
pleno emprego” (Keynes 1936: 242-43, 28).
Mas o equilíbrio é definido como uma situação onde as alterações de valores, tecnologia, e recursos
deixam de ocorrer; onde todas as acções são completamente ajustadas a uma constelação final de
dados; e onde todos os factores de produção, incluindo trabalho, são empregues na sua máxima
extensão possível (para estes dados inalterados) e são repetidamente e indefinidamente empregues
no mesmo padrão de produção constante. Assim, como H. Hazlitt observou, a descoberta de um
equilíbrio com desemprego por Keynes, na sua Teoria Geral, é como a descoberta de um círculo
triangular — uma contradição nos termos (Hazlitt [1959] 1973: 52).
II.2. A Moeda
Tendo falhado no seu tratamento do emprego e desemprego, Keynes, na sua discussão sobre a
moeda, abandona então a racionalidade económica ao avançar a reivindicação de que a moeda e as
alterações monetárias (podem ter) têm um efeito sistemático e até positivo no emprego,
rendimento e juro. Dado o facto de o termo “moeda” surgir no título completo de A Teoria Geral, a
teoria positiva da moeda de Keynes é inesperadamente breve e não desenvolvida.
A brevidade, claro, pode ser uma virtude. No caso de Keynes, oferece a oportunidade para
facilmente apontar os seus erros elementares. Para Keynes, “a importância da moeda advém
essencialmente de ser um elo entre o presente e o futuro” (Keynes 1936: 293). “Moeda nos seus
atributos significativos é, acima de tudo, um instrumento subtil de ligar o presente e futuro” (ibid.:
294).
92
Que isto seja falso decorre do facto de que em equilíbrio nenhuma moeda existiria154, mas mesmo
sob as condições de equilíbrio ainda existiria um presente e um futuro, e ambos estariam ligados.
Em vez de funcionar como um elo para o futuro, a moeda serve como um meio de troca; um papel
que está inextrincavelmente ligado à incerteza do futuro.155
A acção, que invariavelmente começa no presente e ambiciona algum objectivo futuro mais ou
menos distante no tempo do início da acção, constitui o verdadeiro elo entre o presente e o futuro.
E é a preferência temporal como categoria universal da acção que fornece ao elo entre o presente e
o futuro a sua forma específica. A moeda, em contraste com o juro, não relaciona o presente com o
futuro mais que outros fenómenos económicos, tais como os bens não monetários. Também o seu
valor actual reflecte antecipações no que concerne ao futuro, nem mais nem menos que o faz a
moeda.
Desta primeira concepção errada respeitante à natureza da moeda, nascem automaticamente todas
as restantes concepções erradas. Sendo definida como um elo subtil entre presente e futuro, a
procura de moeda (para uma dada oferta), a que Keynes, em linha com a sua inclinação a, em geral,
interpretar erradamente, categorias lógico/praxeológicas como psicológicas, se refere como
“preferência pela liquidez” ou “propensão para a posse de moeda” (ibid.: 174), é tida como
funcionalmente relacionada com a taxa de juro (e vice-versa).156
O “juro”, escreve Keynes, “é o prémio pela não-posse de moeda” (ibid.: 167), “o prémio para
renunciar à liquidez” (ibid.: 167), o que por sua vez transforma a preferência pela liquidez na não
preferência a investir em activos que rendam um juro. Que isto seja falso torna-se óbvio mal
façamos a pergunta, “E, então, os preços?” A quantidade de cerveja, por exemplo, que pode ser
comprada por uma dada quantidade de moeda é obviamente não menos um prémio para renunciar
154
Explica Mises: "Vamos assumir que existe apenas moeda em ouro e apenas um banco central. Com o
sucessivo progresso em direcção a um estado de uma economia uniformemente rotativa, todos os indivíduos e
empresas restringem passo a passo a sua posse de dinheiro e as quantidades de ouro assim libertadas fluem
para uma utilização — industrial — não monetária. Quando o equilíbrio da economia uniformemente rotativa
é finalmente atingido, não há mais posse de dinheiro; o ouro deixa de ser usado para fins monetários. O
próprio crédito dos indivíduos e empresas sobre o banco central, a maturidade de cada parte corresponde
precisamente ao montante que será necessário nas respectivas datas para a liquidação das suas obrigações. O
banco central não precisa de quaisquer reservas, porque a soma total dos pagamentos diários pelos seus
clientes é exactamente igual à soma total dos levantamentos. Todas as transacções de facto podem efectuar-
se através de transferências nos livros do banco sem qualquer recurso a dinheiro. Assim, a 'moeda' deste
sistema não é um meio de troca; não é moeda de todo; é apenas um numeraire, uma etérea e indeterminada
unidade de contabilização desse vago e indefinível carácter que a imaginação de alguns economistas e os erros
do homem comum por engano atribuem à moeda"(Mises [1949] 1966: 249).
155
Keynes reconhece que a moeda também tem algo a ver com a incerteza. O erro fundamental na sua teoria
da moeda salientado aqui, no entanto, emerge novamente quando ele relaciona moeda não com a incerteza
como tal mas, mais especificamente, à incerteza das taxas de juro. "A condição necessária [para a existência de
moeda]," escreve, "é a existência de incerteza quanto à futura taxa de juro" (1936 Keynes: 168–69). Consultar
também a discussão seguinte.
156
Sobre as implicações absurdas da assunção de relações funcionais — em vez de causais, consultar a
discussão na secção II.3, abaixo.
93
à liquidez que a taxa de juro, fazendo assim a procura de moeda a não preferência a comprar cerveja
tanto quanto a não preferência a conceder crédito ou investir (ver Hazlitt [1959] 1973: 188ff).
Ou, formulando em termos gerais, a procura de moeda é a não preferência a comprar ou alugar
bens não monetários, incluindo activos rendendo juro (i.e., terra, trabalho, e/ou bens de capital, ou
bens futuros) e activos que não rendem juro (i.e. bens presentes ou de consumo). Mas reconhecer
isto é reconhecer que a procura de moeda não tem nada que ver nem com o investimento ou
consumo, nem com o rácio de despesas de investimento-para-consumo, nem com o rácio entre
preços de input e os preços de output, isto é, o desconto dos bens de mais alta ordem, ou futuros,
versus os de mais baixa ordem, ou bens presentes.
Aumentos ou diminuições na procura de moeda, sendo tudo o resto constante, diminui ou aumenta
o nível geral de preços, mas o consumo e investimento real assim como a proporção
consumo/investimento real permanecem sem ser afectados; e, assim seja o caso, também o
emprego e o rendimento social permanecem inalterados. A procura de moeda determina a
proporção do balanço despesa/dinheiro. A proporção investimento/consumo, ao ritmo de Keynes, é
um assunto inteiramente diferente e não relacionado. É apenas determinada pela preferência
temporal (ver Rothbard 1983: 40-41; Mises [1949] 1966: 256).
A mesma conclusão é alcançada se forem consideradas mudanças na oferta de moeda (para uma
dada preferência de liquidez). Keynes alega que um aumento na oferta de moeda, tudo o resto
constante, pode ter um efeito positivo sobre o emprego. Escreve ele: “Enquanto exista desemprego,
o emprego irá alterar-se na mesma proporção que a quantidade de moeda” (Keynes 1936: 296). No
entanto, esta é uma proclamação altamente curiosa porque assume a existência de recursos não
utilizados em vez de explicar porque é que tal coisa pode sequer ocorrer; porque, obviamente, um
recurso só pode não ser utilizado ou porque não é reconhecido sequer como escasso e assim não
tem qualquer valor ou porque o seu dono voluntariamente lhe estabelece um preço fora do
mercado e assim a sua não utilização não é um problema a necessitar de uma solução (ver Hutt
[1939] 1977).
Mesmo que renunciássemos a este criticismo, a afirmação de Keynes seria ainda falaciosa. Porque se
tudo o restante fosse de facto constante, então a oferta adicional de moeda iria simplesmente levar
a um aumento generalizado de preços e simultaneamente a aumentos proporcionais dos salários, e
nada mudaria de todo. Se, ao contrário disto, o emprego crescesse, poderia apenas assim acontecer
se os salários não aumentassem com, e na mesma extensão que, outros preços. Mas então não seria
mais possível dizer que tudo o resto se mantinha constante porque os salários reais seriam mais
baixos, e o emprego só pode aumentar enquanto os salários reais baixam se a avaliação relativa do
emprego versus auto-emprego (i.e., desemprego) é assumido como tendo mudado. Mas se isto foi
assumido como tendo mudado, nenhum aumento na oferta de moeda seria necessário. O mesmo
resultado, nomeadamente, de mais emprego, poderia ter sido também alcançado pela aceitação de
salários nominais mais baixos pelos trabalhadores.
II.3. O Juro
94
Na sua discussão sobre o fenómeno do juro, Keynes abandona por completo a razão e o senso
comum. De acordo com Keynes, dado que a moeda tem um impacto sistemático no emprego,
rendimento, e juro, então o próprio juro — para todos os efeitos, consistentemente — deve ser
concebido como um fenómeno puramente monetário (Keynes 1936: 173).157 Não preciso de explicar
a falácia elementar desta visão.
É suficiente dizer aqui outra vez que a moeda desapareceria em equilíbrio, mas o juro não, o que
sugere que o juro deve ser considerado um fenómeno real, e não monetário.
Além disso, Keynes, ao falar sobre “relações funcionais” e “determinações mútuas” de variáveis em
vez de relações causais unidireccionais, enreda-se em inescapáveis contradições quanto à sua teoria
do juro (ver Rothbard [1962 1970: 687 -89]. Como foi explicado acima, por um lado, Keynes pensa na
preferência pela liquidez (e a oferta de moeda) como determinando a taxa de juro, de tal forma que
o aumento na procura de moeda, por exemplo, irá subir a taxa de juro (e o aumento da oferta de
moeda, descê-la) e que isto irá então reduzir o investimento, “embora de uma baixa na taxa de juro
possa ser esperado, ceteris paribus, aumentar o volume de investimento” (Keynes 1936: 173).
Por outro lado, caracterizando a taxa de juro como "a recompensa por afastar-se da liquidez", ele
alega que a procura de moeda é determinada pela taxa de juro. Uma queda na taxa de juro, por
exemplo, aumentaria a nossa procura por dinheiro (e também, deve ser adicionado, a propensão de
cada um para consumir) e, portanto, conduziria a redução do investimento. Obviamente, no
entanto, uma taxa de juro mais baixa dificilmente poderá fazer as duas coisas, aumentando e
diminuindo ao mesmo tempo o investimento. Algo deve estar errado aqui.
Uma vez que o juro, de acordo com Keynes, é um fenómeno puramente monetário, é apenas natural
supor que ele possa ser manipulado à vontade através da política monetária (desde que,
naturalmente, não estejamos restringidos nesta política pela existência de um padrão moeda
mercadoria com reservas de 100 %, tal como o padrão ouro). "Não existe," escreve Keynes,
"nenhum mérito especial na taxa de juro pré-existente " (ibid.: 328).
De facto, se a oferta de moeda for suficientemente aumentada, a taxa de juro pode supostamente
ser baixada para zero. Keynes reconhece que isso implicaria uma superabundância de bens de
capital, e nós pensaríamos que a sua realização deveria dar-lhe um motivo para reconsiderar. Mas
não! Pelo contrário, com toda a seriedade ele diz-nos "que uma comunidade adequadamente gerida
equipada com recursos técnicos modernos, cuja população não está a aumentar rapidamente,
deverá ser capaz de reduzir a eficiência marginal do capital em equilíbrio aproximadamente para
zero no prazo de uma única geração" (ibid.: 220).
É "relativamente fácil fazer os bens de capital tão abundantes que a eficiência marginal do capital
seja zero (e) isso pode ser a forma mais sensata de, gradualmente, nos livrarmos de muitas
características questionáveis do capitalismo" (ibid.: 221). "Não há motivos intrínsecos para a
escassez de capital" (ibid.: 376). Em vez disso, é "possível que a poupança de uma comunidade
através da agência do Estado possa ser mantida a um nível onde deixe de ser escassa" (ibid.).
157
Ver também as observações elogiosas de Keynes sobre a economia mercantilista e em particular, S. Gesell,
como precursores deste ponto de vista (Keynes 1936: 341, 355).
95
Pouco importa que isso implique que nunca mais exista necessidade de manutenção ou substituição
de capital (porque se assim fosse o caso, os bens de capital ainda seriam escassos e,
consequentemente, teriam um preço) e que os bens de capital, em vez disso, teriam de ser "bens
livres" no mesmo sentido que o ar é usualmente "livre". Pouco importa que se os bens de capital já
não fossem escassos, então nem os bens de consumo seriam escassos (porque, se o fossem, os
meios utilizados para produzi-los teriam também de ser escassos). E pouco importa que, neste
Jardim do Éden, que Keynes promete estabelecer dentro de uma geração, já não haveria qualquer
utilização de moeda. Porque, como ele nos informa, "Estou impressionado com as grandes
vantagens sociais em aumentar o stock de capital até que este cesse de ser escasso" (ibid.: 325).
Quem ousaria discordar disto?158
Contudo mais está para vir — porque, tal como Keynes o vê, há alguns obstáculos no caminho para o
paraíso. Desde já, o padrão ouro atravessa-se no caminho porque torna a expansão do crédito
impossível (ou pelo menos difícil, porque uma expansão do crédito conduziria a uma saída de ouro e
uma subsequente contracção económica). Daí a repetida polémica de Keynes contra esta
instituição.159
Além disso, há o problema acabado de explicar da sua própria responsabilidade: isto é, uma taxa de
juro mais baixa supostamente aumenta e diminui simultaneamente o investimento. E é para sair
desta confusão lógica que Keynes surge com uma teoria da conspiração: porque, enquanto a taxa de
juro deva ser reduzida a zero com o fim de eliminar a escassez, como acabou de nos dizer, quanto
mais baixa a taxa de juro, mais baixa também a recompensa para se afastar da liquidez. Quanto
menor a taxa de juro, é o mesmo que dizer, menor o incentivo para os capitalistas investirem porque
os seus lucros serão reduzidos em conformidade. Assim, eles tentarão minar, e conspirar contra,
qualquer tentativa de ressuscitar o Jardim do Éden.
Orientados pelo "espírito animal" (ibid.: 161) e " instintos de jogador" (ibid.: 157) e "dependentes da
paixão por fazer dinheiro" (ibid.: 374), eles irão conspirar para assegurar "que o capital tenha de ser
mantido suficientemente escasso" (ibid.: 217). "A sagacidade e a particularidade dos nossos
problemas contemporâneos surge, portanto," escreve Keynes, "da possibilidade da taxa de juro
158
Ver também Hazlitt (1973 [1959]: 231–35). E quanto à objecção aparentemente óbvia de que a expansão
do crédito monetário, através do qual Keynes pretende obter a redução da taxa de juro para zero, não é mais
que uma expansão de papel e que o problema da escassez é uma questão de bens "reais" que só pode ser
superada através de "poupança genuína"? Para isto, ele dá a seguinte resposta engraçada: "A noção de que a
criação de crédito pelo sistema bancário permite que investimento tenha lugar a que não corresponde
'nenhuma poupança genuína' "(Keynes 1936: 82), isto é,"a ideia que poupança e investimento … podem diferir
um do outro, será explicada, penso que, por uma ilusão de óptica" (ibid.: 81). "As poupanças decorrentes
desta decisão são tão genuínas como qualquer outra poupança. Ninguém pode ser obrigado a possuir a moeda
adicional correspondente ao novo crédito bancário, a menos que ele deliberadamente prefira deter mais
moeda em vez de alguma outra forma de riqueza"(ibid.: 83). "A nova moeda não é 'imposta' a ninguém" (ibid.:
328). Como observa Henry Hazlitt, "com o mesmo raciocínio, podemos criar qualquer quantidade de nova
'poupança' que quisermos de um momento para o outro, simplesmente imprimindo esse novo montante de
papel-moeda, porque alguém necessariamente irá possuir esse novo papel-moeda" (Hazlitt [1959] 1973: 227).
159
Ver Keynes (1936: 129ff., 336ff., 348ff.). Sobre o papel que Keynes teve na destruição propriamente dita do
padrão ouro, consultar Hazlitt (1984).
96
média que permite um nível médio razoável de emprego [e do rendimento social] seja uma tão
inaceitável para os donos de riqueza que ela não possa ser facilmente estabelecida simplesmente
pela manipulação da quantidade de moeda" (ibid.: 308–9). Na verdade, "o elemento mais estável e
menos facilmente alterável, na nossa economia contemporânea tem sido até agora e pode revelar-
se no futuro, a taxa de juro mínima aceitável para a generalidade dos donos de riqueza" (ibid.:
309).160
Felizmente, somos informados, há uma maneira de sair desta situação: através "da eutanásia do
rentier e, consequentemente, a eutanásia do poder opressivo cumulativo do capitalismo em
explorar o valor de escassez de capital" (ibid.: 376, 221). Sem dúvida, eles merecem tal sorte. Porque
"o mundo de negócios" é governado por uma "psicologia incontrolável e desobediente" (ibid.: 317),
e os mercados de investimentos privados estão "sob a influência de compradores em grande parte
ignorantes do que estão a comprar e de especuladores que estão mais preocupados com a previsão
da próxima mudança de sentimento do mercado que com uma estimativa razoável do rendimento
futuro dos activos de capital" (ibid.: 316). Na verdade, não sabemos todos que "não há provas claras
da experiência que a política de investimento que é socialmente vantajosa coincide com a que é
mais rentável" (ibid.: 157); na verdade, que as decisões dos investidores privados dependem em
grande parte "dos nervos e histeria e mesmo das digestões e reacções ao estado do tempo" (ibid.:
162), em vez do cálculo racional?
Assim, conclui Keynes, "o dever de determinar o volume corrente de investimento não pode com
segurança ser deixado nas mãos de privados" (ibid.: 320). Em vez disso, para transformar a miséria
presente numa terra de leite e mel, "uma razoável socialização abrangente do investimento provar-
se-á como o único meio" (ibid.: 378). "O Estado, que está em posição de calcular a eficiência
marginal dos bens de capital numa visão de longo prazo na base do benefício social geral [terá de
assumir] uma responsabilidade cada vez maior na organização directa do investimento" (ibid.: 164).
Confio que nada disto requeira comentários adicionais. É demasiado evidente que estes são
excessos de entusiasmo de alguém que merece ser chamado de qualquer coisa excepto de
economista.
Tal veredicto encontra ainda mais suporte quando finalmente é considerada a teoria de Keynes do
processo capitalista. Que Keynes não era nenhum amigo do capitalismo ou capitalistas deve ser
óbvio das citações acima. Na verdade, ao advogar "uma socialização do investimento ele aparece
abertamente como socialista”.161 Para Keynes, o capitalismo significava crise.
160
Numa nota de rodapé acrescenta, "o ditado do século XIX, citado por Bagehot, que 'John Bull' pode
aguentar muitas coisas, mas não aguenta 2 por cento." Sobre a teoria da conspiração de Keynes, consultar
Hazlitt (1973 [1959]: 316–18).
161
O socialismo de Keynes, no entanto, não era uma versão proletária-igualitarista abraçada pelos
Bolcheviques. Por isto, Keynes não tinha senão desprezo. O seu socialismo era da variedade fascista ou nazi.
No prefácio para a edição alemã da sua Teoria Geral (que apareceu no final de 1936) escreveu: "Contudo, a
97
Ele deu essencialmente duas razões para isso. A primeira delas, a que Keynes atribuía a natureza
cíclica do processo de capitalista, já foi mencionada. Certamente que, enquanto o curso da
economia for, em grande medida, determinado por capitalistas que, foi-nos dito, "são em grande
parte ignorantes do que estão a comprar," e que conspiram "para manter as coisas escassas", esse
curso não pode ser tranquilo. Dependendo em grande parte de pessoas que baseiam as suas
decisões na sua "digestão e o estado do tempo," o processo capitalista tem de ser errático. Movido
pelo "apurar e atenuar" do optimismo e pessimismo empreendedor, que por sua vez são
determinados pela "psicologia incontrolável e desobediente do mundo dos negócios,"as expansões e
recessões são inevitáveis.
Os ciclos económicos — assim é a mensagem central do Capítulo 22 da Teoria Geral, "Notas sobre o
ciclo económico" — são fenómenos determinados psicologicamente. No entanto, isto é
seguramente incorrecto. Estritamente falando, uma explicação psicológica do ciclo económico é
impossível, e pensar nela como uma explicação envolve um erro de categoria: os ciclos económicos
são eventos obviamente reais vividos por indivíduos, mas vividos por eles como ocorrendo fora de si
próprios no mundo dos bens reais e riqueza real. Crenças, sentimentos, expectativas, optimismo e
pessimismo, por outro lado, são fenómenos psicológicos.
Podemos pensar de qualquer fenómeno psicológico como afectando ou influenciando qualquer um.
Mas é impossível conceber um fenómeno psicológico ou estado de sentimento como tendo
qualquer impacto directo nos resultados do mundo externo das coisas reais e bens. Só através de
acções pode o curso dos acontecimentos reais ser influenciado, e qualquer explicação sobre o ciclo
económico, deve então ser necessariamente praxeológica (em oposição a uma psicológica). A teoria
do ciclo económico psicológica de Keynes, na verdade, não consegue explicar porque alguma coisa
realmente acontece de todo.
No entanto, no mundo real, as pessoas têm de agir e têm continuamente de alocar e realocar
recursos escassos a fins valorizados. Não podemos no entanto agir arbitrariamente, tal como Keynes
o colocaria, porque agindo somos invariavelmente restringidos por uma escassez real que não pode
ser afectada de todo pela nossa psicologia. Nem a teoria de Keynes explica por que razão as
oscilações de humor empresarial resultariam em algum padrão particular de flutuações económicas
— tais como o ciclo de expansão-recessão que supostamente quer explicar — em vez de qualquer
outro padrão concebível das flutuações.
A segunda razão para a instabilidade do capitalismo e para a atracção de uma solução socialista, de
acordo com Keynes, é a inerente tendência à estagnação do capitalismo. A sua teoria de estagnação
centraliza-se na noção, que ele traz de Hobson e Mummery e subscreve, "que no estado normal das
modernas comunidades industriais, o consumo limita a produção e não a produção o consumo"
(Keynes 1936: 368).162 Com isto como um dos seus axiomas, apenas o nonsense pode seguir-se.
teoria do output como um todo, que é o que este livro se propõe a fornecer, é muito mais facilmente
adaptado às condições de um Estado totalitário, que a teoria da produção e distribuição de um dado output
produzido sob condições de livre concorrência e uma grande medida de laisser-faire".
162
Sobre a teoria Keynesiana da estagnação, consultar Hansen (1941); para a crítica, consultar G. Terborgh
(1945) e Rothbard (1987).
98
A estagnação deve-se a falta de consumo. "Até ao ponto onde o pleno emprego prevalece," escreve
Keynes, "o crescimento do capital não depende de todo de uma baixa propensão para o consumo
mas é, pelo contrário, travado por ele" (ibid.: 372–73). Combinado com esta tese subconsumista
está uma "lei psicológica fundamental, da qual estamos destinados a depender com grande
confiança tanto a priori do nosso conhecimento da natureza humana e de factos detalhados da
experiência, é que os homens estão dispostos, como regra e em média, a aumentar o seu consumo à
medida que o seu rendimento sobe, mas não tanto quanto o aumento do seu rendimento" (ibid.:
96). "Como regra, … uma maior percentagem do rendimento [será] poupado à medida que o
rendimento real aumenta" (ibid.: 97, 27ff).
Por si mesma, esta segunda lei, que é aqui aceite como plausível por razões de argumento (excepto
para adicionar que o consumo nunca poderá, naturalmente, cair para zero), não pareceria indicar
qualquer problema. E daí? Se a poupança aumenta desproporcionadamente com o aumento do
rendimento, tanto melhor para o produto social.163 Mas Keynes, caracteristicamente, junta esta lei à
tese de que a produção é limitada pelo consumo, e em seguida, ele não tem dificuldade em provar
tudo o que ele deseje.
Em qualquer caso, Keynes aceita estas conclusões como verdadeiras.164 E, consequentemente, ele
apresenta as suas recomendações sobre como sair da estagnação. Além de uma "socialização geral
do investimento," Keynes sugere medidas para estimular o consumo, em especial uma redistribuição
163
Na verdade, Keynes informa-nos que a poupança é, por definição, idêntica ao investimento (Keynes 1936:
63), "que o excesso de rendimento sobre consumo, a que chamamos de poupança, não pode diferir da adição
de bens de capital a que chamamos de investimento" (ibid.: 64). No entanto, em seguida, uma reduzida
proporção em despesa de consumo deve por definição, andar de mãos dadas com crescente investimento e
isto conduziria a aumento do rendimento futuro, para ainda mais consumo absoluto e ainda mais poupança e
investimento absoluta e relativa. Onde é que, na verdade, está o problema aqui?
164
Escreve Keynes, "Se numa comunidade potencialmente abastada a indução a investir é fraca, então, apesar
da sua riqueza potencial, o papel do princípio da procura efectiva irá obrigar a reduzir o seu output actual, até
que, apesar de sua riqueza potencial, ter-se-á tornado tão pobre que o seu excedente sobre o consumo é
suficientemente diminuído para corresponder à fraqueza da indução para investir" (Keynes 1936: 31). Ou:
"Quanto maior, além disso, o consumo que providenciamos em avanço, mais difícil é encontrar algo mais para
providenciar em avanço e maior, infelizmente, é a margem entre os nossos rendimentos e o nosso consumo.
Assim, na falta de algum novo expediente, não existe, como veremos, resposta para o enigma, excepto que
deve existir suficiente desemprego para nos manter tão pobres que o nosso consumo fica pouco aquém do
nosso rendimento por não mais do que o equivalente à provisão física para consumo futuro que paga produzir
hoje" (ibid.: 105).
99
do rendimento dos ricos (pessoas com uma baixa propensão para consumir) para os pobres (aqueles
com uma alta propensão para consumir):
Mas, como é que é possível conceber tal coisa que simultaneamente promove o investimento e o
consumo em ordem a aumentar o rendimento?
Na verdade, Keynes dá-nos as suas próprias definições formais dos termos envolvidos: "Rendimento
= consumo + investimento; poupança = rendimento - consumo; portanto, poupança = investimento"
(ibid.: 63).166 Sob estas definições, um aumento simultâneo no consumo e no investimento a partir
de um determinado rendimento é conceptualmente impossível!
Keynes, no entanto, não está muito perturbado com "detalhes" como estes. Para obter o que ele
quer, ele simplesmente muda, sem de todo ser notado, os significados dos seus termos. Ele
abandona as definições formais citadas acima, dado que estas impossibilitariam tal resultado, e
adopta um novo significado para o termo "poupança.” Em vez de rendimento não consumido,
"poupança" tranquilamente passa a significar "acumulação de moeda", isto é, o acto de não gastar
dinheiro nem em bens de consumo nem de capital (ver Hazlitt [1959] 1973: 120–33). Os resultados,
podem assim facilmente ser moldados de modo a saírem correctos. Porque agora a poupança já não
é igual ao investimento; e a poupança, sendo definida como o acto de não gastar, automaticamente,
adquire uma conotação negativa, enquanto o investimento e consumo assumem uma positiva.
Além disso, agora temos quase que estar preocupados naturalmente com a poupança ser superior
ao investimento, pelo menos assim parece, porque isto parecerá implicar que algo está a escapar da
economia e que o rendimento (definido como investimento + consumo) será de alguma forma
reduzido. Keynes certamente preocupa-se com esta possibilidade. Ele chama-lhe "a crónica
tendência ao longo da história humana para a propensão para a poupança ser mais forte do que o
incentivo para investir" (Keynes 1936: 367). E esta tendência crónica deve certamente ser
particularmente pronunciada nos rendimentos elevados, porque aí, como nos foi dito, a poupança
atinge uma particular alta proporção do rendimento.
165
Ou "o remédio estaria em diferentes medidas concebidas para aumentar a propensão para consumir pela
redistribuição dos rendimentos ou de outra forma" (Keynes 1936: 324).
166
É típico da filosofia da abundância de Keynes que obtenha as coisas da cabeça para baixo aqui também.
Porque as definições correctas são: produto produzido = rendimento; rendimento - consumo = poupança;
poupança = investimento. De onde vem o rendimento de Keynes?
100
Mas não desesperemos: onde algo pode escapar-se, também algo pode entrar. Se a poupança é
vista como moeda não despendida, em seguida então a poupança pode entrar em existência,
simplesmente, através da criação de moeda pelo governo para compensar a fuga, que tende a
aumentar com o aumento dos rendimentos. Há o perigo, naturalmente, que esta “poupança
comunitária" compensatória possa imediatamente escapar-se novamente ao ser adicionada à
acumulação de moeda pelo sector privado (porque, de acordo com Keynes, a poupança recém-
criada iria reduzir a taxa de juro, e isso por sua vez aumentaria preferência de liquidez dos
capitalistas, a fim de neutralizar essa tendência e artificialmente "manter o capital escasso"). Mas
isto pode ser solucionado pela "socialização do investimento," como sabemos, e por alguns
esquemas Gesellianos de moeda: "a ideia de moeda selada é sólida" (ibid.: 357).
E uma vez que a poupança e investimento são públicos — por agência do Estado, como Keynes diria
— e toda a moeda é despendida, já sem nenhuma motivação para manter-as- coisas-escassas, não
há de facto mais nenhum problema com o aumento simultâneo do consumo e investimento. Como a
poupança acabou a ser moeda não despendida, e a nova moeda e crédito recém-criada é tão
“genuína” como qualquer outra porque não é "imposta" a ninguém, a poupança pode ser criada
com o toque de uma caneta.167 E uma vez que o Estado, ao contrário dos capitalistas exploradores
da escassez, pode certificar-se de que esta poupança genuína é mesmo despendida (em vez de ser
acumulada), qualquer aumento da oferta de moeda e crédito através de contrafacção
governamental aumenta o consumo e investimento simultaneamente e promove então duplamente
o rendimento.
A inflação permanente é a cura de Keynes para tudo. Ajuda a superar a estagnação; e mais dela
superará as crises mais graves de estagnação das sociedades mais avançadas. Finalmente, uma vez a
estagnação seja derrotada, ainda mais inflação suprimirá a escassez dentro de uma geração.168
Ainda assim as maravilhas não acabaram. O que é esta fuga, este excedente de poupança em
relação ao investimento, que constitui todos esses perigos? Algo deve escapar de algum lugar para
outro lugar, e deve desempenhar algum papel aqui e ali. Keynes tenta desviar tais pensamentos,
pedindo-nos mais uma vez para não aplicar a lógica à economia. "O pensamento contemporâneo,"
escreve ele, "está ainda profundamente impregnado na noção de que se as pessoas não gastarem a
sua moeda de uma forma elas irão gastá-lo de outra" (ibid.: 20). Parece difícil imaginar como poderá
este pensamento contemporâneo alguma vez estar errado, mas Keynes acreditava que era falso.
Para ele, existe uma terceira alternativa. Algo, um bem económico, pensaríamos nós, simplesmente
deixa de existir, e isso significa problemas.
Um acto de poupança individual significa — por assim dizer — uma decisão de não jantar
hoje. Mas não necessita de uma decisão sobre jantar ou comprar um par de botas daqui a
167
A este respeito, ver nota 17.
168
No programa de Keynes de inflação permanente, ver também esta observação sobre o ciclo económico: "A
solução certa para o ciclo económico não é para ser encontrada na abolição dos booms e manter-nos
permanentemente numa meia-recessão; mas na supressão das recessões e assim manter-nos
permanentemente num quasi-boom" (Keynes 1936: 322). Isto é, a resposta à expansão do crédito é ainda mais
expansão de crédito.
101
uma semana ou um ano ou para consumir qualquer coisa específica numa qualquer data
específica. Assim, deprime o negócio de preparar o jantar do dia sem estimular o negócio de
tornar pronto algum acto futuro de consumo. Não é uma substituição de procura de
consumo futuro por procura de consumo presente, — é uma diminuição líquida de tal
procura. (Ibid.: 210)
Ainda assim, as falhas de estrutura de uma lógica de dois valores não desabam ainda. Como pode
existir a diminuição líquida de algo? O que não é despendido em bens de consumo ou bens de
capital deve ser gasto em qualquer outra coisa — nomeadamente, em dinheiro. Isto esgota todas as
possibilidades. Rendimento e riqueza podem e devem ser alocados entre consumo, investimento ou
dinheiro.
O rendimento nominal, isto é, o rendimento em termos de moeda, vai cair; mas o rendimento real e
a proporção de consumo/investimento real permanecerão inalterados. E as pessoas, ao longo do
tempo, obtêm o que desejam, ou seja, um aumento no valor real dos seus saldos de dinheiro e do
poder de compra da unidade monetária.
Não há nada em estagnação aqui, ou escapando ou fugindo e Keynes não ofereceu de todo
nenhuma teoria de estagnação (e com isto, naturalmente, também nenhuma teoria de como sair da
estagnação). Ele simplesmente deu a um fenómeno perfeitamente normal, como a de queda dos
preços (causada por uma maior procura de moeda ou por uma economia produtiva em expansão),
um nome incorrecto chamando-a "estagnação," ou "depressão" ou ao resultado da ausência de
procura efectiva, de forma a encontrar outra desculpa para o seu próprio regime inflacionista.170
169
Contrariamente aos medos fantasistas de Keynes, a procura de moeda nunca pode ser infinita porque
todos têm, obviamente, de consumir algumas vezes (e não podem adiar mais o consumo), e nesses pontos a
preferência de liquidez é definitivamente finita.
170
O segundo elemento da teoria da estagnação de Keynes é igualmente falso. Pode ser verdade que a
poupança ao igualar o investimento aumente mais que proporcionalmente com o aumento dos rendimentos
— embora nunca possa chegar a 100 por cento. Mas esta situação não deve certamente dar preocupação a
ninguém no que concerne ao rendimento social produzido. Não é, no entanto, verdadeiro que essa poupança,
no sentido de acumulação de moeda, aumente com o aumento dos rendimentos e que uma maior retirada
exista entre os ricos e em sociedades mais abastadas. O contrário é verdadeiro. Se o rendimento real aumenta
porque a economia, suportada por poupança adicional, está a expandir-se, então o poder de compra da
moeda aumenta (para uma dada quantidade de moeda). Mas a um maior poder de compra da unidade
monetária, o montante de dinheiro procurado na verdade cai (para um dado programa de procura de moeda).
Assim, se alguma coisa, o não-problema de fuga/estagnação deve na verdade diminuir, em vez de aumentar,
com o aumento do bem-estar.
102
Aqui temos então Keynes: o mais famoso "economista" do século XX. Tirando as teorias falsas de
emprego, moeda e juro, ele destilou uma teoria fantasticamente errada do capitalismo e a de um
paraíso socialista erguido a partir do papel-moeda.
103
Keynes, o Homem
por Murray N. Rothbard
Keynes, o Homem, por Murray N. Rothbard [publicado originalmente em Dissent on Keynes: A Critical
Appraisal of Keynesian Economics, editado por Mark Skousen. New York: Praeger (1992). Pp. 171–198.]
Traduzido para português por Carlos Novais Gonçalves. Parágrafos (que não constam do texto original)
idênticos à edição online no Ludwig von Mises Institute (http://mises.org/daily/3845, 20-10-2014).
104
Keynes, o Homem
por Murray N. Rothbard
John Maynard Keynes, o homem — o seu carácter, a sua escrita e as suas acções ao longo da vida —
era composto por três elementos orientadores e que interagem. O primeiro era o seu egotismo
arrogante, que lhe assegurava que poderia tratar todos os problemas intelectuais com rapidez e
precisão e que o levou ao desprezo de quaisquer princípios gerais que pudessem travar o seu ego
desmedido. O segundo era o seu forte sentido de que tinha nascido para fazer parte da elite
governante da Grã-Bretanha e destinado a ser um seu líder. Ambos esses traços levaram Keynes a
lidar com pessoas, bem como com nações, de uma posição consciente de si mesmo, de poder e
domínio. O terceiro elemento era o seu ódio profundo e desprezo pelos valores e virtudes da
burguesia, pela moralidade convencional, pela poupança e parcimónia e as instituições básicas da
vida familiar.
O Apóstolo de Cambridge
A mais procurada educação disponível para a elite inglesa estava assegurada para Maynard pelo
seu devotado pai. Primeiro, frequentou como bolseiro universitário o "Colégio" em Eton, o subsector
intelectual da escola pública mais influente de Inglaterra. Daí, Maynard foi para o King's College,
que, juntamente com a Trinity, era uma das duas escolas dominantes na Universidade de
Cambridge.
105
Muito cedo no King's College, Maynard foi sondado para a cobiçada adesão à sociedade secreta dos
Apóstolos, uma organização que rapidamente formou os seus valores e a sua vida. Keynes cresceu
para a maturidade intelectual e social dentro dos limites deste pequeno mundo incestuoso de
secretismo e superioridade. Os Apóstolos não eram simplesmente um clube social, à maneira das
fraternidades secretas da Ivy-League. Eles eram também uma elite intelectual consciente de si
própria, especialmente interessada na filosofia e nas suas aplicações à estética e à vida.
Os membros Apóstolos eram escolhidos quase exclusivamente a partir do King's e Trinity e reuniam-
se todas as noites de sábado atrás de portas fechadas para entregar e discutir ensaios.171 Durante o
resto da semana, os membros viviam praticamente nos quartos uns dos outros. Além disso, o
Apostolado não era simplesmente uma paixão de estudante universitário; era-se membro para a
vida e como tal era apreciado. Para o resto das suas vidas, os Apóstolos adultos (conhecidos como
"Anjos"), incluindo Keynes, regressavam com frequência a Cambridge para reuniões e para
participarem activamente no recrutamento de novos universitários.
Em Fevereiro de 1903, com a idade de 20 anos, John Maynard Keynes assumiu o seu lugar como
Apóstolo número 243 numa sequência que remontava à fundação da sociedade em 1820. Durante
os seguintes cinco ou seis anos formativos, Maynard passou quase toda sua vida em privado entre
os Apóstolos, sendo os seus valores e atitudes delineados em conformidade. Além disso, a maior
parte de sua vida adulta foi passada entre antigos e novos apóstolos, com os seus amigos ou das
suas relações.
Uma importante explicação para o potente efeito da Sociedade dos Apóstolos sobre os seus
membros era a sua atmosfera estimulante de secretismo. Como escreve o biógrafo de Keynes,
Robert Skidelsky,
Nunca devemos jamais subestimar o efeito do secretismo. Muito do que fazia parecer o resto do
mundo estranho advém deste simples facto. O secretismo era um elo que ampliava grandemente a
vida da Sociedade relativamente aos restantes interesses dos seus membros. É muito mais fácil,
afinal, passar o tempo com pessoas com quem não é preciso manter grandes segredos; e passando
muito tempo com eles reforça tudo o que quer que em primeiro lugar os tenha chamado a estar
juntos. (Skidelsky, 1983: p. 118; ver também Deacon 1986)
A extraordinária arrogância dos Apóstolos fica melhor resumida na meia piada Kantiana da
Sociedade: que só a Sociedade é "real", enquanto o resto do mundo é apenas "fenómeno". O
próprio Maynard remete para os não-Apóstolos como "fenómenos". Tudo isto significava que o
mundo exterior era considerado menos substancial, menos digno de atenção que a própria vida
colectiva da Sociedade.
Era uma piada com um aspecto sério (Skidelsky, 1983: p. 118). "Foi devido à existência da
Sociedade," escreveu o Apóstolo Bertrand Russell na sua Autobiografia, "que em breve acabei por
conhecer as pessoas que mais valia a pena conhecer." Na verdade, Russell observou que quando
171
Perguntando-se a si próprio porque razão o eminente historiador constitucional Frederic W. Maitland não
teve nenhuma influência sobre os Apóstolos nesta era, apesar de membro, Derek Crabtree responde que
Maitland era desafortunado o suficiente mantendo a sua cadeira no Downing College, uma das escolas
menores e não influentes em Cambridge (ver Crabtree 1980: 18–19).
106
Keynes adulto deixou Cambridge, viajou pelo mundo com um sentimento de que era o bispo de uma
seita em terras estrangeiras. " A verdadeira salvação para Keynes," comentou Russell
perceptivamente, "era em qualquer lugar, entre os fiéis a Cambridge" (Crabtree e 1980 Thirlwall: p.
102). Ou, como o próprio Maynard escreveu durante os seus dias na universidade numa carta ao seu
amigo e co-líder, Giles Lytton Strachey, "Será monomania — esta colossal superioridade moral que
sentimos? Tenho a sensação de que a maior parte das restantes [do mundo fora dos Apóstolos]
nunca vê nada de todo — ou demasiado estúpido ou demasiado esquisito "(1983 Skidelsky: p.
118).172
Duas atitudes básicas dominavam este grupo hermético sob a égide de Keynes e Strachey. A
primeira era a sua crença primordial na importância do amor e amizade pessoal, enquanto
desprezavam quaisquer regras gerais ou princípios que poderiam limitar os seus próprios egos; e o
segundo, a sua animosidade e desprezo pelos valores e moralidade da classe média. O confronto
Apostólico com os valores burgueses incluía o elogio pela ascética vanguardista, defendendo a
homossexualidade como moralmente superior (com a bissexualidade num distante segundo lugar173)
e o ódio pelos valores tradicionais da família, tais como a parcimónia ou qualquer ênfase no futuro
ou no longo prazo, em comparação com o presente. ("No longo prazo," como Keynes mais tarde
entoaria na sua famosa frase,"estamos todos mortos.")
Bloomsbury
Depois de terminarem o curso universitário em Cambridge, Keynes e muitos dos seus colegas
Apóstolos arranjaram alojamento em Bloomsbury numa zona fora de moda no Norte de Londres. Aí
formaram o agora famoso Grupo de Bloomsbury, o centro da estética e de avant-gardismo moral
que constituiu a mais influente força cultural e intelectual em Inglaterra durante a década de 1910 e
1920.
A formação do Grupo de Bloomsbury foi inspirada pela morte desse eminente filósofo Vitoriano e
liberal clássico, Sir Leslie Stephen, em 1904. Os jovens filhos Stephen, que se sentiram libertados
pela partida da severa presença moral do seu pai, prontamente arranjaram casa em Bloomsbury e
começaram a realizar serões nas quintas-feiras à noite. Thoby Stephen, embora não um Apóstolo,
era um amigo próximo na Trinity de Lytton Strachey. Strachey e outros Apóstolos, bem como outro
dos bons amigos de Strachey da Trinity, Clive Bell, seriam convidados regulares dos serões.
Depois da morte de Thoby em 1906, Vanessa Stephen casou com Bell e os encontros de Bloomsbury
dividiram-se em dois grupos. Uma vez que Clive era um crítico de arte daquele meio e Vanessa uma
pintora, estabeleceram os serões do Clube de sexta-feira, concentrando-se nas artes visuais.
172
Bertrand Russell, que era uma década mais velho que Keynes, não gostava do grupo de Keynes/Strachey
que dominou os membros estudantes universitários durante a primeira década do século XX, em grande parte
devido à convicção de ambos que a homossexualidade era moralmente superior à heterossexualidade.
173
Quando o filósofo John E. McTaggart, professor no Trinity que tinha sido um Apóstolo desde a década de
1880, casou tardiamente na vida, garantiu aos Apóstolos que a sua mulher era meramente "fenómeno"
(Skidelsky 1983: 118).
107
Entretanto, Virgínia e Adrian Stephen retomaram a tónica das quintas-feiras na literatura, filosofia e
cultura. Eventualmente, o Apóstolo de Trinity Leonard Woolf, contemporâneo e amigo de Keynes,
casou-se com Virginia Stephen. No final de 1909, Keynes mudou-se para uma casa de Bloomsbury
muito próximo da dos Stephens, compartilhando um apartamento com o artista Duncan Grant de
Bloomsbury, um primo dos Strachey.
Os valores e atitudes de Bloomsbury eram idênticos aos dos Apóstolos de Cambridge, ainda que
com um toque artístico. Com uma grande ênfase na rebelião contra os valores Vitorianos, não é de
admirar que Maynard Keynes fosse um distinto membro de Bloomsbury. Uma ênfase particular era
colocada no exercício da arte vanguardista e formalista — empurrado pelo crítico de arte e Apóstolo
de Cambridge Roger Fry, que mais tarde retornou a Cambridge como professor de arte. Virgínia
Stephen Woolf iria tornar-se num expoente proeminente da ficção formalista. E todos eles exerciam
energicamente um estilo de vida de bissexualidade promíscua, tal como foi trazido à luz na biografia
de Strachey por Michael Holroyd (1967).
O Flósofo Moorite
O maior impacto na vida e valores de Keynes, a grande experiência de conversão, teve lugar não
na economia, mas na filosofia. Poucos meses após a iniciação de Keynes nos Apóstolos, G.E. Moore,
um professor de filosofia na Trinity que se tinha tornado um Apóstolo uma década antes de Keynes,
publicou a sua magnum opus, Principia Ethica (1903). Tanto na altura como em reminiscências três
décadas mais tarde, Keynes confirmou o enorme impacto que o Principia teve sobre ele e os seus
colegas Apóstolos.
Numa carta no momento da sua publicação, ele escreveu que o livro "é um trabalho excelente e
persuasivo, o mais importante sobre o tema" [itálico de Keynes], e alguns anos mais tarde, escreveu
a Strachey, "é impossível exagerar a maravilha e a originalidade de Moore... Como é incrível pensar
que só nós sabemos os rudimentos de uma verdadeira teoria da ética." E, num ensaio de 1938 no
Grupo de Bloomsbury, intitulado "As minhas convicções", Keynes recorda o "efeito [do Principia]
sobre nós, o tema de conversa que precedia e se seguia, dominava e talvez ainda domine, tudo". Ele
acrescentou que o livro "era emocionante," divertido, o início de um novo Renascimento, o início de
um novo céu na terra (1983 Skidelsky: pp. 133–34; Keynes [1951] 1972: pp. 436–49). Palavras muito
fortes sobre um livro de técnica filosófica!
108
Qual a sua origem? Em primeiro, era o carisma pessoal que Moore exercia sobre os estudantes
em Cambridge. Mas além desse magnetismo pessoal, Keynes e os seus amigos foram atraídos não
tanto pela doutrina de Moore propriamente dita mas pela interpretação particular e distorcida que
eles próprios deram a essa doutrina. Apesar do seu entusiasmo, Keynes e seus amigos retiveram
apenas aquilo que eles pensaram ser a ética pessoal de Moore (ou seja, aquilo que eles chamaram
de "religião” de Moore), enquanto rejeitaram totalmente a sua ética social (ou seja, aquilo que eles
chamaram a sua "moral").
Keynes e os seus colegas Apóstolos abraçaram com entusiasmo a ideia de uma "religião"
composta por momentos de "contemplação apaixonada e comunhão" de e com objectos de amor
ou amizade. Eles repudiaram, no entanto, todos os costumes sociais ou regras gerais de conduta,
rejeitando totalmente o penúltimo capítulo de Moore sobre "Ética em relação à conduta". Como
Keynes afirma no seu ensaio de 1938,
Em nossa opinião, uma das maiores vantagens da sua religião [Moore] foi que ele tornou a moral
desnecessária... Nós repudiamos inteiramente uma responsabilidade pessoal para obedecer a regras
gerais. Nós alegamos o direito de julgar cada caso individual sobre os seus méritos próprios e a
sabedoria para o fazer assim com êxito. Esta foi uma parte muito importante da nossa fé, violenta e
agressivamente assumida, e para o mundo exterior, era a nossa característica mais óbvia e perigosa.
Nós repudiamos inteiramente o costume moral, as convenções e sabedoria tradicional. Nós éramos,
no sentido estrito do termo, imoralistas (Keynes [1951] 1972: pp. 142–43).
Surge então a pergunta, quanto é que deste imoralismo, dessa rejeição de regras gerais que
limitariam o ego, marcaria seriamente a vida adulta de Keynes? Sir Roy Harrod, um discípulo e
biógrafo hagiográfico, insiste em que o imoralismo, como com qualquer outro aspecto desagradável
da personalidade de Keynes, foi apenas uma fase adolescente, rapidamente superada pelo seu
herói.
Mas muitos outros aspectos da sua carreira e pensamento confirmam o imoralismo e desdém de
sempre de Keynes pela burguesia. Além disso, no seu ensaio de 1938, realizado com a idade de 55
anos, Keynes confirmou a sua contínua adesão às suas opiniões precoces, declarando que o
imoralismo é "ainda a minha religião sob a superfície... Continuo e permanecerei sempre um
imoralista"(Harrod 1951: pp. 76–81; Skidelsky de 1983: pp. 145–46; Welch 1986: p. 43).
Num notável contributo, Skidelsky demonstra que o primeiro livro académico importante de
Keynes, Tratado sobre Probabilidade (1921), não era indiferente às suas restantes preocupações.
Desenvolveu-se a partir da sua tentativa de lidar com a sua rejeição de regras gerais de moralidade
propostas por Moore. O começo do Tratado teve início num ensaio, que Keynes leu aos Apóstolos
em Janeiro de 1904, sobre o repelido capítulo de Moore, "Ética em relação com a conduta". Refutar
109
Moore sobre probabilidade ocupou os pensamentos académicos de Keynes desde o início de 1904
até 1914, quando o manuscrito do Tratado foi concluído.
Ele concluiu que Moore era capaz de impor regras gerais mediante acções concretas, utilizando uma
teoria da probabilidade empírica ou "frequentista", isto é, através da observação das frequências
empíricas poderíamos obter alguns conhecimentos sobre as probabilidades de classes de eventos.
Para destruir qualquer possibilidade de aplicar regras gerais a casos específicos, o Tratado de Keynes
defendeu a clássica teoria da probabilidade a priori, onde as probabilidades de fracções são
deduzidas puramente pela lógica e não têm nada a ver com a realidade empírica. Skidelsky elabora
bem o argumento:
O argumento de Keynes, então, pode ser interpretado como uma tentativa de libertar o indivíduo
de empreender o bem… por meio de acções egotistas, pois não é requisito ter o conhecimento
perfeito das prováveis consequências das suas acções para poder agir racionalmente. Faz parte, em
outras palavras, da sua contínua campanha contra a moralidade Cristã. Isso seria apreciado pela sua
audiência, embora a conexão não seja clara para o leitor moderno. Mais genericamente, Keynes liga
racionalidade às conveniências. As circunstâncias de uma acção tornam-se a consideração mais
importante nos julgamentos de provável mérito... Ao limitar a possibilidade de conhecimento
perfeito Keynes aumentou o âmbito para o julgamento intuitivo. (Skidelsky, 1983: 153 – 54)
Não podemos entrar aqui nas complexidades da teoria da probabilidade. Basta dizer que a teoria a
priori de Keynes foi demolida por Richard von Mises (1951) no seu trabalho de 1920, Probabilidade,
Estatística e Verdade, Mises demonstrou que a fracção de probabilidade apenas pode ser usada com
significado quando ela encarna uma lei empiricamente derivada de entidades que são homogéneas,
aleatórias e indefinidamente repetíveis.
Isto significa, obviamente, que essa teoria da probabilidade só pode ser aplicada a eventos que, na
vida humana, limitam-se àqueles como a lotaria ou a roleta. (Para obter uma comparação de Keynes
e Richard von Mises, consultar D.A. Gillies [1973: pp. 1–34].) Aliás, a teoria da probabilidade de
Richard von Mises foi adoptada pelo seu irmão Ludwig, embora tenham concordado em pouco mais
(l. von Mises [1949] 1966: pp. 106–15).
"Se Moore foi o herói na ética para Keynes, Burke pode ser solidamente considerado como tendo
sido o seu herói político," escreve Skidelsky (1983: p. 154). Edmund Burke? O que poderá esse
conservador admirador da tradição ter em comum com Keynes, o estatista e planeador central
racionalista? Mais uma vez, como com Moore, Keynes venerou o seu homem com uma distorção
Keynesiana, seleccionando os elementos que se adaptavam ao seu próprio carácter e
temperamento.
O que Keynes tirou de Burke é revelador. (Keynes apresentou as suas opiniões num premiado longo
ensaio universitário Inglês sobre "As Doutrinas Políticas de Edmund Burke.") Há, primeiro, a oposição
militante de Burke contra princípios gerais na política e, em particular, a sua defesa da expediência
contra direitos naturais abstractos. Em segundo lugar, Keynes concordou fortemente com a alta
preferência temporal de Burke, a menor importância dada ao futuro incerto versus o presente
110
existente. Keynes, portanto, concordava com o conservadorismo de Burke, no sentido em que ele
era hostil a "introduzir males presentes a bem de benefícios futuros".
Há também a aversão de direita da deprecação geral de Keynes do logo prazo, onde "estamos todos
mortos". Como Keynes o coloca, "é o dever fundamental dos governos e dos políticos proteger o
bem-estar da comunidade no âmbito do presente e não correr muitos riscos para o futuro" (ibid.:
pp. 155–56).
Em terceiro lugar, Keynes admirava o apreço de Burke pela elite "orgânica" governante da Grã-
Bretanha. Naturalmente, existiam divergências sobre políticas, mas Keynes aderia a Burke ao elogiar
o sistema de regras aristocráticas como sólido, enquanto o corpo governante fosse escolhido entre a
elite orgânica existente. Escrevendo sobre Burke, observou Keynes, "a própria máquina [o Estado
britânico] só poderia ser suficientemente sólida se assegurada a capacidade e a integridade das
pessoas encarregue dele" (IB., p. 156).
Além do seu desprezo neo-Burkeano por princípios, falta de preocupação com o futuro e
admiração pela classe britânica de governantes existente, Keynes estava igualmente certo que a
devoção à verdade era apenas uma questão de gosto, com pouco ou nenhum lugar em políticas.
Escreveu ele: "A preferência pela verdade ou sinceridade como um método pode ser um vício com
base em algum padrão estético ou pessoal, inconsistente, na política, com as boas práticas"
(Johnson, 1978: p. 24).
Na verdade Keynes manifestava um gosto positivo por mentir na política. Ele habitualmente
compunha estatísticas para se adequarem às suas propostas políticas, e agitaria pela inflação
monetária mundial com exagerada hipérbole mantendo que as "palavras deveriam ser um pouco
desvairadas — o assalto de pensamentos sobre o impensável." Mas, é suficientemente revelador
que Keynes tenha admitido que, uma vez alcançado o poder, tais hipérboles teriam de ser
abandonadas: "Quando forem atingidos os lugares de poder e autoridade, não deve existir mais
liberdade poética " (Johnson e Johnson de 1978: pp. 19–21).
A abordagem de Maynard Keynes em economia não era contrária à sua atitude na filosofia e vida
em geral. "Tenho medo de"princípios"," disse a uma Comissão parlamentar em 1930 (1969
Moggridge: p. 90). Os princípios só iriam limitar a sua capacidade de aproveitar a oportunidade do
momento e iria dificultar a sua vontade de poder. Assim, abandonaria as suas crenças anteriores
mudando facilmente de ideias, dependendo da situação.
A sua posição sobre o comércio livre serve como um exemplo gritante. Como bom Marshalliano, o
seu único princípio, aparentemente constante de economia política, ao longo da vida foi uma
aderência dedicada à liberdade de comércio. Em Cambridge escreveu a um bom amigo, "Sir, detesto
todos os sacerdotes e proteccionistas... Abaixo as taxas e tarifas." Nas três décadas seguintes, as
suas intervenções políticas preocupar-se-iam quase exclusivamente com a defesa do comércio livre
(Skidelsky, 1983: pp. 122, 227–29).
111
Então, de repente, na Primavera de 1931, Keynes defendeu de forma estridente o proteccionismo e
durante a década de 1930, comandou o desfile do nacionalismo económico e de políticas
francamente desenhadas para o “à custa do teu vizinho”. Mas durante a Segunda Guerra Mundial,
Keynes regressou à defesa do comércio livre. Nunca qualquer introspecção da alma, ou sequer
hesitação, pareceu dificultar as suas mudanças à velocidade da luz.
Keynes, no entanto, não se incomodava com acusações de incoerência, considerando sempre ter
razão. Foi particularmente fácil para Keynes adoptar esta convicção, pois ele não dava nada por
princípios. Por isso, estava sempre pronto a mudar de cavalo na prossecução da expansão do seu
ego através do poder político.
À medida que o tempo passava, escreveu Elizabeth Johnson, Keynes "formou uma ideia clara quanto
ao seu papel no mundo; ele… era o conselheiro chefe económico do mundo, do Chancellor of the
Exchequer do dia, do ministro Francês das Finanças, … do Presidente dos Estados Unidos da
América." O exercício do poder para si próprio e uma classe dirigente significava, naturalmente,
aumentar a adesão às ideias e instituições de uma economia administrada centralmente.
Entre os homens bons da elite orgânica regendo a nação, ele próprio se colocava no papel crucial do
académico-técnico, a versão do século XX do "filósofo-rei" ou, pelo menos, o filósofo guiando o rei.
Não é de admirar que Keynes tenha "aclamado o Presidente [Franklin D.] Roosevelt, como o
primeiro chefe de estado, a tomar conselhos teóricos como base para a acção em larga escala"
(Johnson e Johnson de 1978: pp. 17–18).
Acção é o que Keynes procurava obter do Governo, especialmente com Keynes ele próprio fazendo
os planos e estando no comando. Como escreve Johnson,
O seu oportunismo significava que ele reagia aos acontecimentos imediatamente e de forma
directa. Ele produziria uma resposta, escreveria um memorando, publicaria imediatamente, fosse
qual fosse o assunto,... No Tesouro na Segunda Guerra Mundial, quase levou alguns dos seus
colegas ao desespero com a sua propensão para manter um dedo em tudo. "Não fiques aí parado,
faz alguma coisa" teria sido o seu lema no presente. (Ibid.: p. 19)
Johnson observa que em Keynes a "atitude instintiva em qualquer nova situação, era presumir, em
primeiro lugar, que ninguém estava a fazer nada sobre ela e, em segundo lugar, que se o tivessem,
eles o estariam a fazer de forma errada. Era um hábito de mente de sempre baseado na convicção
de que ele estava armado de uma inteligência superior… e, Apóstolo de Cambridge, que ele estava
armado de sensibilidades superiores" (ibid.: p. 33).
112
Uma ilustração impressionante da arrogância injustificada de Maynard Keynes e irresponsabilidade
intelectual foi a sua reacção ao brilhante e pioneiro Tratado de Moeda e Crédito de Ludwig von
Mises, publicado em alemão em 1912. Keynes tinha sido recentemente nomeado o editor do jornal
económico e líder académico na Grã-Bretanha, Economic Journal da Universidade de Cambridge. Ele
fez a recensão do livro de Mises, dando-lhe pouca atenção. O livro, escreveu ele
condescendentemente, tinha "mérito considerável" e era "esclarecedor" e o seu autor era
definitivamente "profusamente conhecedor", mas Keynes expressou a sua decepção de que o livro
não era "construtivo" nem "original" (1914 Keynes). Esta reacção brusca conseguiu matar qualquer
interesse no livro de Mises na Grã-Bretanha, e o Moeda e Crédito permaneceu sem tradução por
duas fatídicas décadas.
O ponto peculiar acerca da recensão de Keynes é que o livro de Mises era altamente construtivo e
sistemático, bem como notavelmente original. Como poderia Keynes não ter reparado nisso? Este
puzzle foi resolvido uma década e meia mais tarde, quando, numa nota de rodapé ao seu próprio
Tratado sobre a Moeda, Keynes admitiu estranhamente que "em alemão, apenas consigo
compreender com claridade aquilo que já conheço — assim as novas ideias são aptas a enredarem-
se num véu pelas dificuldades da língua" (1930a Keynes: I, p. 199 n.2). Tal a frontal desfaçatez. Isto é
Keynes em estado puro: fazer a recensão de um livro num idioma onde é incapaz de apreender
novas ideias, e então atacar esse livro por não conter nada de novo, é o cúmulo da arrogância e
irresponsabilidade.174
Outro aspecto da autoconfiança arrogante de Keynes era a sua convicção de que muito do que
ele fazia era original e revolucionário. A sua carta para G.B. Shaw em 1935 é bem conhecida:
"considero estar a escrever um livro sobre a teoria económica que, em grande parte, vai
revolucionar… a forma como o mundo pensa sobre os problemas económicos. …Para mim, não
espero meramente aquilo que digo, na minha própria mente estou absolutamente certo"(Hession de
1984: p. 279). Mas esta crença na sua fanfarronice não estava limitada à Teoria Geral”.
Bernard Corry assinala que "desde cerca do início do seu trabalho em economia que ele alegou
estar a revolucionar o tema." Keynes estava tão imbuído de fé na sua própria criatividade que até
proclamou a grande originalidade dum ensaio sobre os ciclos económicos baseado no livro Estudo
das Flutuações Industriais de D.H. Robertson, logo após ter sido publicado em 1913. Corry atribui
esta atitude à ênfase insistente do Grupo de Bloomsbury na "originalidade" (que, naturalmente,
significava a deles próprios). Originalidade, recorda, era "uma das fixações do Grupo de Bloomsbury"
(Crabtree e Thirlwall de 1980: pp. 96–97; Corry 1986: pp. 214–15, 1978: pp. 3–34).
Keynes foi bastante auxiliado nas suas pretensões de originalidade pela tradição em ciência
económica que Alfred Marshall tinha conseguido estabelecer em Cambridge. Como um estudante de
Marshall e um jovem professor de Cambridge sob a égide de Marshall, Keynes facilmente absorveu a
tradição Marshalliana.
174
À luz da sua amizade com Keynes, a conta que Hayek faz deste episódio, caracteristicamente omite a
arrogância e descaramento de Keynes, tratando a história como se fosse apenas lamentável que Keynes não
tivesse um melhor alemão: "O mundo talvez tivesse sido poupado a muito sofrimento se o alemão de Lord
Keynes tivesse sido um pouco melhor" (Hayek [1956] 1984: 219; ver também Rothbard 1988: 28).
113
Não que o próprio Marshall alegasse extrema originalidade, embora ele tenha reclamado a invenção
independente da utilidade marginal, praticava o secretismo, e era ciumento dos estudantes que
poderiam roubar as suas ideias. Marshall desenvolveu a estratégia de manter um mundo
Marshalliano hermeticamente selado em Cambridge (e, consequentemente, na ciência económica
Britânica em geral). Ele criou o mito de que no seu magnum opus de 1890, Princípios de Economia,
tinha construído uma síntese superior, incorporando os aspectos válidos de todas as anteriores
teorias concorrentes e conflituantes (deductivismo e indutivismo, teoria e história, utilidade
marginal e custo real, curto prazo e longo prazo, Ricardo e Jevons).175 Na medida em que conseguiu
construir com sucesso este mito, ele também alimentou a visão universal de que "está tudo em
Marshall," e que, por isso, não havia necessidade de ler mais ninguém. Porque se Marshall tinha
harmonizado todas as visões económicas com pontos de vista particulares, já não havia qualquer
razão, excepto por um tique de alfarrabista, para o incómodo de lê-los. Como resultado, o típico
economista de Cambridge lia apenas Marshall, prologando-o ao máximo elaborando sobre
sentenças crípticas ou passagens do Grande Livro. O próprio Marshall passou o resto de sua vida a
reformular e elaborar O Texto, publicando não menos do que oito edições do Princípios até 1920.
Quanto ao resto, havia a lendária "tradição oral" de Cambridge na qual os estudantes e discípulos de
Marshall ficavam encantados a ouvir e a passar a outros as palavras do "Grande Homem", bem como
a ler os seus escritos seminais menores em manuscritos ou em comissões de audição, porque
Marshall manteve a maioria dos seus escritos mais curtos não publicados até perto do final de sua
vida. Assim, os Marshallianos de Cambridge puderam colocar neles próprios a aura de uma casta
sacerdotal, os únicos a privar com os mistérios dos escritos sagrados negados aos homens menores.
“O lubridiador”
175
Não há espaço aqui para elaborar a minha convicção de que isto era um mito falso e mesmo pernicioso, e
que o que Marshall realmente fez não foi sintetizar mas restabelecer o domínio de Ricardo e Mill e as suas
teorias de equilíbrio de longo prazo e do custo de produção, sobrepondo-lhes um fino verniz de análise de
utilidade marginal trivializada.
176
Assim, tão tarde quanto a Segunda Guerra Mundial e logo depois, o meu seminário de honra no Columbia
College consistia numa leitura e análise capítulo a capítulo dos Princípios de Marshall. E quando me estava a
preparar para o meu exame oral doutoral na história do pensamento, o venerável John de Maurice Clark disse-
me que não havia nenhuma necessidade real de ler Jevons porque "todas as suas contribuições estão em
Marshall".
114
O Keynes jovem não exibia qualquer interesse por economia; o seu interesse dominante era a
filosofia. De facto, ele completou o diploma universitário em Cambridge sem uma única disciplina de
economia. Não só nunca obteve nenhum grau académico nessa área, como a única cadeira de
economia que Keynes alguma vez fez foi uma disciplina de pós-graduação de um único termo com
Alfred Marshall.
No entanto, ele achou o feitiço da economia excitante, já que apelava quer aos seus interesses
teóricos quer à sua ânsia em abrir caminho pelo mundo real da acção. No Outono de 1905, ele
escreveu a Strachey, "Eu acho a economia cada vez mais satisfatória, e penso que sou bastante bom
nela. Eu quero gerir uma companhia de caminhos de ferro ou organizar um Trust ou, pelo menos,
triunfar sobre o público investidor"(1951 Harrod: p. 111).177
Keynes, na verdade, tinha recentemente embarcado a sua longa carreira de uma vida como
investidor e especulador. No entanto Harrod foi constrangido a negar vigorosamente que Keynes
teria começado a especular antes de 1919.
Afirmando que Keynes “não tinha capital" antes disso, Harrod explicou o motivo da sua insistência
numa recensão seis anos após a publicação da sua biografia: "é importante que isto seja claramente
entendido, pois existiam muitos mal-intencionados… que afirmaram que ele tirou proveito de
informação privilegiada enquanto no Tesouro (1915 – Junho 1919) com o fim de ser bem-sucedido
em operações de especulação " (Harrod 1957). Em carta dirigida a Clive Bell, autor do livro sob
revisão e um antigo Bloomsburyite e amigo de Keynes, Harrod insistiu no ponto ainda mais: "O
ponto é importante devido às histórias medonhas que estão muito difundidas… sobre como terá
feito dinheiro desonrosamente aproveitando-se da sua posição no Tesouro" (ibid.; cf. Skidelsky de
1983: pp. 286–88).
Não é claro nesta altura se os seus fundos foram utilizados para investimento ou para fins mais
especulativos, mas sabemos que o seu capital tinha aumentado mais do que três vezes. Se Keynes
usou informação privilegiada do Tesouro para tomar tais decisões de investimento está ainda por
provar, embora certamente permaneçam suspeitas (1983 Skidelsky: pp. 286–88).
Mesmo que não consigamos provar a acusação de desonestidade contra Keynes, temos de
considerar o seu comportamento à luz da sua própria amarga condenação dos mercados financeiros
como "jogo de casino" na Teoria Geral. Parece provável, portanto, que Keynes acreditasse que os
seus êxitos na especulação financeira tivessem ludibriado o público, embora não haja nenhuma
177
Como Skidelsky aponta, é típico da biografia branqueadora de Roy Harrod, o qual citando esta carta, deixa
de fora a observação do seu herói sobre "contornar o público investidor" (1983 Skidelsky: 165n).
115
razão para pensar que ele iria lamentar esse facto. Ele percebeu, no entanto, que o seu pai teria
desaprovado a sua actividade.178
Keynes e a Índia
Enquanto em Eton, o jovem Keynes (17 e 18 anos) testemunhou uma onda de sentimento anti-
imperialista na sequência da guerra da Grã-Bretanha contra os Boers na África do Sul. Contudo ele
nunca foi influenciado por esse sentimento. Como observa Skidelsky, "ao longo de sua vida ele
assumiu o Império como um facto da vida e nunca revelou o menor interesse em descartar-se dele...
Ele nunca se desviou muito do ponto de vista que, todas as coisas consideradas, era melhor ter o
homem inglês a governar o mundo que estrangeiros"(1983 Skidelsky: p. 91).
"Maynard," recorda Skidelsky,"sempre viu o Raj do ponto de vista de Whitehall; ele nunca
considerou as implicações morais e humanas da regra imperial ou se os Britânicos estariam a
explorar os Indianos". Na grande tradição imperialista de Mills e Thomas Macaulay da Inglaterra do
século XIX, além disso, Keynes nunca sentiu a necessidade de viajar para a Índia, para aprender
línguas indianas, ou ler qualquer livro na área excepto sobre como eles lidavam com as finanças
(ibid.: p. 176).
Apesar da sua subida aos níveis superiores da função pública, Keynes cedo se cansou da sua quasi
sinecura e tentou regressar a Cambridge através de um posto de ensino. Finalmente, na Primavera
de 1908, Marshall escreveu a Keynes, oferecendo-lhe uma cadeira em economia. Embora Marshall
estivesse no ponto de aposentação, ele convenceu facilmente o seu amigo, aluno favorito e sucessor
escolhido, Arthur C. Pigou, a seguir a prática de Marshall de pagar a posição do seu próprio salário;
Neville Keynes ofereceu-se prontamente a cobrir a dotação.
178
Numa carta para a sua mãe em 3 de Setembro de 1919, Keynes escreveu sobre a sua especulação em
operações cambiais, "o que vai chocar o pai mas do qual espero sair muito bem" (Harrod 1951: 288). Para uma
crítica penetrante da opinião de Keynes sobre a especulação como jogo, consultar Hazlitt (1973 [1959]: 179–
85).
116
escrevendo o seu primeiro grande artigo sobre a Índia para o Economic Journal em 1909; escrevendo
memorandos influentes dos quais nasceu o seu primeiro livro, a breve monografia sobre Moeda e
Finança Indiana em 1913; e um papel influente na Comissão Real sobre Finanças e Moeda Indiana,
posto distinto para o qual foi nomeado antes dos 30 anos.
O papel de Keynes nas finanças indianas foi não só importante, mas também, em última análise,
pernicioso, pressagiando o seu papel posterior nas finanças internacionais. Após converter a Índia de
um padrão-prata para um padrão-ouro em 1892, o Governo britânico adoptou um padrão-ouro de
troca, em vez do padrão de moeda-ouro pleno que tinha marcado a Grã-Bretanha e as outras
grandes nações do Ocidente. O ouro não era cunhado como moeda ou sequer disponível de outra
forma na Índia e as reservas de ouro das rupias indianas eram mantidas como saldos em esterlinas
em Londres, em vez de ouro per si.
Para a maioria dos funcionários do Governo, este arranjo era apenas uma medida de meio caminho
em direcção a um eventual pleno padrão-ouro; mas Keynes saudou o novo padrão-ouro de troca
como progressista, científico e indo na direcção de uma divisa ideal. Ecoando pontos de vista
inflacionistas de séculos de idade, ele opinou que as moedas de ouro “desperdiçavam” recursos, que
podiam ser "economizados" por papel e trocas cambiais.
117
O relatório incluiu o seu ponto de vista sobre um banco central num apêndice e Keynes também
lidou com o duro contra-interrogatório pró padrão-ouro em moeda e testemunhas anti-banco
central. Um apontamento interessante sobre o apêndice de Keynes sobre bancos centrais foi a
reacção do seu antigo professor, Alfred Marshall. Marshall escreveu a Keynes que ele estava
"fascinado por esse relatório como um prodígio de trabalho construtivo" (ibid.: p. 268).
No final de 1912, quando Montagu era Subsecretário de Estado para a Índia, desenvolveu-se um
escândalo nas finanças Indianas. O Governo Indiano, do qual Montagu era o segundo no comando,
tinha contratado secretamente com a empresa de serviços bancários de Samuel Montagu and
Company para a compra de prata. Isto revelou que o nepotismo tinha figurado fortemente neste
contrato. Lord Swaythling, um sócio sénior na empresa, era o pai do Subsecretário Edwin S.
Montagu; outro partner, Sir Samuel de Stuart, era o irmão de Herbert Samuel, responsável pelo
serviço postal do Governo Asquith (ver Skidelsky de 1983: p. 273).
A Teoria Geral de Keynes foi, pelo menos no curto prazo, um dos livros mais bem-sucedidos de
todos os tempos. Em poucos anos, a sua teoria "revolucionária" tinha conquistado a profissão de
economia e em breve tinha transformado a política pública, enquanto a economia à moda antiga foi
varrida, desonrada e abandonada, para o caixote do lixo da história.
Como é que este marco foi conseguido? Keynes e os seus seguidores responderiam evidentemente,
que a profissão simplesmente aceitou uma simples verdade auto-evidente. E ainda assim, a Teoria
Geral não era de todo verdadeiramente revolucionária, mas apenas antiga e de falácias
mercantilistas e inflacionistas já refutadas, vestida de novos e reluzentes termos acabados de
construir e largamente incompreensíveis. Como explicar então, o rápido sucesso?
Parte da razão, como Schumpeter salientou, é que os governos, bem como o clima intelectual da
década de l930 estavam maduros para tal conversão. Os governos estão sempre à procura de novas
fontes de receita e novas formas de gastar dinheiro, muitas vezes com algum desespero; mas a
ciência económica, por mais de um século, tinha advertido com determinação contra a inflação e o
défice, mesmo em tempos de recessão.
Mas havia também fortes razões internas para o sucesso da Teoria Geral. Ao rechear a sua nova
teoria de termos impenetráveis, Keynes criou uma atmosfera na qual apenas jovens economistas
corajosos poderiam possivelmente compreender a nova ciência; nenhum economista com mais de
trinta anos conseguia apreender a Nova Economia. Os economistas mais idosos, que,
compreensivelmente, sem paciência para as novas complexidades, tendiam a descartar a Teoria
Geral como um disparate recusaram-se a abordar o trabalho formidavelmente incompreensível. Por
outro lado, os economistas jovens e estudantes de pós-graduação, socialisticamente inclinados,
agarraram a nova oportunidade e dedicaram-se à gratificante tarefa de descobrir sobre o que
trataria mesmo a Teoria Geral.
Paul Samuelson escreveu sobre a alegria de ter menos de 30 anos, quando a Teoria Geral foi
publicada em 1936, exultando com Wordsworth, "Como é abençoado estar vivo neste amanhecer,
mas ser jovem era o céu." No entanto este mesmo Samuelson, que aceitou com entusiasmo a nova
revelação também admitiu que a Teoria Geral "é um livro mal escrito; mal organizado... Está repleto
de fontes de confusão... Penso que estou longe de estar a contar segredos quando eu solenemente
mantenho — na base de vívidas lembranças pessoais — que realmente mais ninguém em
Cambridge, Massachusetts, sabia realmente do que se tratava por alguns doze a dezoito meses após
a sua publicação "(Samuelson [1946] 1948: p. 145; Hodge 1986: pp. 21–22).
Também deve ser recordado que a agora familiar cruz de Keynes, os diagramas IS-LM, e o sistema
de equações não estavam disponíveis para aqueles que tentaram desesperadamente compreender a
Teoria Geral quando o livro foi publicado; na verdade, foram precisos 10 a 15 anos de incontáveis
horas de mão-de-obra para perceber o sistema de Keynes. Muitas vezes, como no caso de Ricardo e
Keynes, quanto mais obscurecido o conteúdo, mais bem-sucedido o livro, à medida que académicos
mais novos o adoptam, tornando-se acólitos.
Também importante para o sucesso de a Teoria Geral foi o facto de que, tal como uma grande
guerra cria um grande número de generais, também o fez a revolução Keynesiana e a sua rude
colocação aparte da geração mais antiga de economistas criando um maior número de vagas para
jovens Keynesianos tanto na profissão como no governo.
Outro factor crucial no sucesso repentino e esmagador da Teoria Geral foi a sua origem na
Universidade mais insular do centro nacional de economia mais dominante do mundo. Por um
século e meio, a Grã-Bretanha tinha-se arrogado o papel dominante na economia, com Smith,
Ricardo e Mill engrandecendo esta tradição. Já vimos como Marshall estabeleceu o seu domínio em
119
Cambridge e que a economia que desenvolveu era essencialmente um retorno à tradição clássica de
Ricardo/Mill.
Naqueles dias antes da Segunda Guerra Mundial, a Grã-Bretanha, não os Estados Unidos, era o
centro de mundo mais prestigiado do pensamento económico. Enquanto a economia austríaca tinha
florescido nos Estados Unidos antes da Primeira Guerra Mundial (nas obras de David Green, Frank A.
Fetter e Herbert J. Davenport), a década de 1920 a início da de 1930 foi largamente um período
árido para a teoria económica. Os Anti-teóricos Institucionalistas americanos dominaram a
economia durante este período, deixando um vazio que era fácil para Keynes preencher.
Também importante para seu sucesso foi a estatura enorme de Keynes como um líder intelectual
e politico económico no Reino Unido, incluindo o seu papel proeminente como um participante no
e, em seguida, crítico avesso de, o Tratado de Versalhes. Como um membro de Bloomsbury, ele era
também importante nos círculos culturais e artísticos britânicos.
Além disso, temos de ter consciência que, nos dias pré Grande Guerra, somente uma pequena
minoria em cada país ia para o Colégio e que o número de universidades era pequeno e
geograficamente concentradas na Grã-Bretanha. Como resultado, havia muito poucos economistas
britânicos ou professores de economia, e todos se conheciam uns aos outros. Isso criou um espaço
considerável para que a personalidade e carisma ajudassem a converter a profissão à doutrina
Keynesiana.
Adicionalmente, Hayek, numa série de artigos, tinha de forma brilhante demolido os primeiros
trabalhos de Keynes, o seu Tratado de dois volumes Tratado sobre a Moeda, e muitas das falácias
que Hayek expôs aplicavam-se igualmente bem à Teoria Geral (ver Hayek 1931a, 1931b, 1932). Em
relação aos estudantes e seguidores de Hayek, em seguida, é preciso dizer que eles tinham
obrigação de saber mais. Na esfera da teoria, eles já tinham sido inoculados contra a Teoria Geral. E
ainda assim, no final da década de 1930, cada um dos seguidores de Hayek saltou para o comboio de
Keynes, incluindo Lionel Robbins, John R. Hicks, Abba P. Lerner, Nicholas Kaldor, G.L.S. Shackle e
Kenneth E. Boulding.
Talvez a mais surpreendente conversão tenha sido a de Lionel Robbins. Não só tinha Robbins sido
um convertido à metodologia Misesiana, bem como à teoria monetária e dos ciclos económicos, mas
também tinha sido um grande activista pró Austríaco. Um convertido desde a sua participação no
privatseminar de Mises em Viena na década de 1920, Robbins, altamente influente no
120
departamento de economia da LSE, tinha conseguido levar Hayek para a LSE em 1931 e traduzir e
publicar obras de Hayek e de Mises.
Apesar de ser um crítico de longa data da doutrina de Keynes antes da Teoria Geral, a conversão de
Robbins ao Keynesianismo foi aparentemente solidificada quando serviu como colega de Keynes no
planeamento económico da guerra. Há no diário de Robbins uma nota de arrebatamento empolgado
que talvez explique a sua assombrosa auto-humilhação no repúdio do seu trabalho Misesiano A
Grande Depressão (1934).
O repúdio de Robbins foi publicado na sua Autobiografia de 1971: "eu irei sempre considerar este
aspecto da minha disputa com Keynes como o maior erro da minha carreira profissional e o livro, A
Grande Depressão, que, posteriormente escrevi, parcialmente para justificar esta atitude, como algo
que eu quereria muito ver esquecido. (Robbins 1971: p. 154). Registos no diário de Robbins sobre
Keynes durante a Segunda Guerra Mundial só podem ser considerados dum ponto de vista pessoal
absurdamente extasiado. Eis Robbins num rascunho da conferência pré Bretton Woods em Atlantic
City de Junho de 1944:
Keynes estava no seu humor mais lúcido e convincente: e o efeito foi irresistível… Keynes deve ser
um dos homens mais notáveis que alguma vez viveram — a lógica rápida, a visão ampla, acima de
tudo o sentido incomparável da aptidão da palavra, tudo combinava para fazer algo vários graus
para além do limite de realização humana normal. (Ibid.: p. 193)
Somente Churchill, continua Robbins, é de estatura comparável. Mas Keynes é maior, porque ele
usando o estilo clássico da nossa vida e a linguagem, é verdade, ela é disparada por meio de algo
que não é tradicional, uma qualidade única não terrena da qual podemos apenas afirmar que é puro
génio. Os Americanos sentaram-se fascinados enquanto o visitante divino cantava e a luz dourada
tudo resplandecia (Ibid.: p. 208–12 cf. Hession de 1984: 342 p.).
Este tipo de reverência só pode significar que Keynes possuía alguma espécie de forte magnetismo
pessoal ao qual foi sensível Robbins.179
179
Harry Johnson coloca a estratégia perceptivamente: "Neste processo, contribui muito dar a antigos
conceitos nomes novos e confusos… [A] nova teoria tinha que ter um grau apropriado de dificuldade para ser
entendida. Trata-se de um problema complexo na concepção de novas teorias. A nova teoria tinha de ser tão
difícil de entender que os colegas académicos seniores considerariam não ser fácil nem que valeria a pena
estudar, que eles gastariam os seus esforços sobre questões teóricas periféricas e assim oferecerem-se a si
próprios como um mercado e alvo fácil para críticas e refutação pelos seus colegas mais jovens e ambiciosos.
Ao mesmo tempo, a nova teoria tinha de parecer simultaneamente difícil quanto baste para desafiar o
interesse intelectual dos jovens colegas e estudantes, mas na verdade fácil o bastante para lhes conferir uma
mestria adequada com um investimento suficiente de esforço intelectual. Estes objectivos foram alcançados
pela Teoria Geral de Keynes: atirou com eficácia para os bastidores, académicos antigos e estabelecidos, como
Pigou e Robertson, habilitando os mais empreendedores de média ou mais baixa idade como Hansen, Hicks e
Joan Robinson a saltar para e a empurrar a carruagem e permitindo a uma geração inteira de estudantes…
escapar ao processo lento e intelectualmente destrutivo de adquirir sabedoria por osmose com os seus
anciãos e a literatura para um território no qual a juventude iconoclasta poderia ganhar rapidamente a sua
justa recompensa (aos seus próprios olhos, pelo menos) na demolição das pretensões intelectuais dos seus
académicos seniores e predecessores. A Economia, poderia ser com gosto reconstruída do zero a partir de um
121
Centrais à estratégia de Keynes para promover a Teoria Geral estavam duas reivindicações: em
primeiro lugar, que era revolucionária para a teoria económica, e em segundo lugar, que ele foi o
primeiro economista — para além de algumas personagens de "submundo", tais como Silvio Gesell
— para se concentrar no problema do desemprego. Todos os economistas anteriores, que ele juntou
e classificou como "clássicos", disse ele, pressupunham o pleno emprego e insistiram que a moeda,
era apenas um "véu" para os processos reais e, portanto, não constituía uma presença
verdadeiramente perturbadora na economia.
Um dos efeitos mais desafortunados de Keynes foi a sua errada concepção da história do
pensamento económico, pois a sua consagrada legião de seguidores aceitou as opiniões defeituosas
de Keynes na Teoria Geral como a última palavra sobre o assunto. Alguns dos erros altamente
influentes de Keynes podem ser atribuídos a ignorância, dado que ele era pouco versado no assunto
e lia sobretudo trabalhos dos seus colegas de Cambridge. Por exemplo, no seu sumário
grosseiramente distorcido da lei de Say ("a oferta cria a sua própria procura"), ele criou primeiro um
espantalho e depois ocupou-se a demoli-lo com facilidade (1936: p. 18).
Esta reformulação errónea e enganosa da lei de Say foi posteriormente repetida (sem citar Say ou
qualquer um dos outros campeões dessa lei) por Joseph Schumpeter, Mark Blaug, Axel Leijonhufvud,
Thomas Sowell e outros. Uma melhor formulação da lei é que “A oferta de um bem constitui a
procura de um ou mais bens” (ver Hutt 1974: p. 3).
Mas a ignorância não pode por si só explicar a alegação de Keynes que ele foi o primeiro
economista a tentar explicar o desemprego ou a ir além do pressuposto de que a moeda é
meramente um véu que não exerce qualquer influência significativa sobre o ciclo económico ou a
economia. Aqui nós devemos imputar a Keynes uma campanha deliberada de mendicidade e
artifício — o que seria agora chamado eufemísticamente de "desinformação".
Keynes sabia muito bem da existência das Escolas Austríaca e LSE, que tinham florescido em Londres
bem cedo na década de 1920 e mais obviamente desde 1931. Ele próprio tinha pessoalmente
debatido com Hayek, o Austríaco mor na LSE, nas páginas da Economica, o jornal da LSE. Os
Austríacos em Londres atribuíam o desemprego persistente e em grande escala a taxas salariais
mantidas acima do salário de mercado livre, pela acção combinada da acção de Sindicatos e Governo
(por exemplo, com o pagamento de um subsídio de desemprego extremamente generoso).
pouco de conhecimento Keynesiano e de um grande desprezo pela literatura existente — e, assim, foi " (1978:
pp. 188–89).
122
Bretanha, uma escola que nunca poderia ser interpretada como ignorando o impacto da expansão
monetária sobre o estado real da economia.180
Em ordem a conquistar o mundo da economia com a sua nova teoria, era crucial para Keynes
destruir os seus rivais de dentro de Cambridge propriamente dito. Na sua mente, quem controlava
Cambridge controlava o mundo. O seu rival mais perigoso era o sucessor que Marshall tinha
escolhido e antigo professor de Keynes, Arthur C. Pigou. Keynes começou a sua campanha
sistemática de destruição contra Pigou quando Pigou rejeitou a sua abordagem anterior no Tratado
sobre a Moeda, ponto em que Keynes também rompeu com o seu ex-aluno e amigo chegado, Dennis
H. Robertson, por se recusarem a aderir à linha contra Pigou.
A mais gritante inexactidão na Teoria Geral, e uma que os seus discípulos aceitaram sem a
questionar, é a escandalosa apresentação dos pontos de vista de Pigou sobre moeda e desemprego
na identificação de Keynes de Pigou como o grande economista "clássico" contemporâneo que
alegadamente acreditava que existiria sempre pleno emprego e que a moeda é meramente um véu
não causando disfunções na economia — isto sobre um homem que escreveu Flutuações Industriais
em 1927 e Teoria do Desemprego em 1933, onde discute longamente o problema do desemprego!
Além disso, no seu último livro, Pigou explicitamente repudiou a teoria da moeda-véu e sublinha a
centralidade crucial da moeda na actividade económica.
Assim, Keynes atacou Pigou por alegadamente ter a "convicção … de que a moeda não faz nenhuma
diferença real excepto friccional e que a teoria do desemprego pode ser trabalhada … como sendo
baseado em “trocas reais”. Um apêndice inteiro no capítulo 19 da Teoria Geral dedica-se a assaltar
Pigou, incluindo a alegação de que ele escreveu apenas em termos de trocas reais e salários reais, e
não salários monetários, e que assumiu apenas taxas salariais flexíveis (1936 Keynes: pp. 19–20, pp.
272–79).
Mas, como Andrew Rutten observa, Pigou conduziu uma análise “real” apenas na primeira parte
do seu livro; na segunda parte, ele não só traz a moeda, mas assinalou que qualquer abstracção da
moeda distorce a análise e que a moeda é crucial para qualquer análise do sistema de trocas. A
moeda, diz ele, não pode ser dissociada de e não pode agir de uma forma neutral, portanto, "a
tarefa presente deve ser determinar de que forma o factor monetário faz com que a quantidade
média de e a flutuação de, seja o emprego diferente do que de outra forma poderia ter sido ".
Por conseguinte, adicionou Pigou, "é ilegítimo abstrairmos de fora a moeda [e] deixar tudo o resto
na mesma. A abstracção proposta é do mesmo tipo do que envolveria pensar no oxigénio como
deixando de existir na terra e supor que a vida humana continuaria a existir"(Pigou de 1933: pp. 185,
212).181 Pigou analisou extensivamente a interacção da expansão monetária e das taxas de juro
180
O biógrafo de Robbis, D.P. O'Brien, esforçou-se arduamente para manter que, não obstante admitir a
"elaborada" e "exagerada contrição" de Robbins, este nunca realmente, lá no fundo, se terá convertido ao
Keynesianismo. Mas O'Brien é pouco convincente, mesmo depois de tentar mostrar como Robbins evitava
algumas questões. Além disso, O'Brien admite que Robbins rejeitou a sua abordagem macro Misesiana, e ele
não menciona o tratamento surpreendente de Keynes por Robbins como “divino" (O'Brien 1988: pp. 14–16,
117–20).
181
A única referência de Keynes a Mises na Teoria Geral não diz respeito à sua teoria dos ciclos económicos ou
análise monetária, que eram as mais relevantes para o livro, mas sim manifesta a surpresa de Keynes quanto à
123
juntamente com mudanças nas expectativas, e explicitamente discutiu o problema dos salários
monetários e a rigidez dos preços e salários.
Assim, é evidente que Keynes representou de forma seriamente errónea a posição de Pigou e
que esta deturpação foi deliberada, uma vez que, se Keynes lia cuidadosamente algum economista,
ele certamente lia os Cambridgeanos proeminentes como Pigou. Mas a verdade é que, como Rutten
escreve, "estas conclusões não devem constituir uma surpresa, pois há inúmeras provas que Keynes
e os seus seguidores representavam mal os seus antecessores" (1989 Rutten: p. 14). O facto de
Keynes exercer essa decepção sistemática e os seus seguidores continuarem a repetir o conto de
fadas sobre a cegueira classicista de Pigou mostra que existe uma razão mais profunda para a
popularidade desta lenda nos círculos Keynesianos. Como escreve Rutten,
Existe uma explicação plausível para a repetição da história de Keynes e os clássicos... Esta é que a
versão padrão é popular porque oferece simultaneamente uma explicação e uma justificação para o
sucesso de Keynes: sem a Teoria Geral, estaríamos ainda na escuridão económica. Por outras
palavras, a história de Keynes e os clássicos é uma evidência a favor da Teoria Geral. Na verdade, o
seu uso sugere que poderá ser a prova mais convincente disponível. Neste caso, a prova de que
Pigou não tinha a posição atribuída a ele… é uma evidência contra Keynes... [esta conclusão] levanta
a… grave questão do estatuto metodológico de uma teoria que depende fortemente de provas
falsificadas, Ibid.: p. 15).
Na sua recensão sobre a Teoria Geral, Pigou foi adequadamente desdenhoso do "macédoine de
imprecisões de Keynes" e ainda assim tal era o poder da maré de opinião (ou do carisma de Keynes)
que, em 1950, após a morte de Keynes, Pigou envolveu-se no mesmo tipo de retratação abjecta em
que Lionel Robbins tinha caído, e que Keynes tinha tentado conseguir dele (Pigou 1950; Johnson e
Johnson de 1978: p. 179; Corry 1978: p. 11–12).
Mas Keynes usou outras tácticas na promoção de A Teoria Geral para além do seu carisma e
artifícios sistemáticos. Ele ganhava o favor dos seus alunos elogiando-os extravagantemente, e
atirava-os deliberadamente contra os não-Keynesianos na faculdade de Cambridge ridicularizando
os seus colegas na frente destes estudantes e incentivando-os a incomodar os seus colegas
docentes. Por exemplo, Keynes instigou os seus alunos com especial malícia contra Dennis
Robertson, o seu antigo amigo próximo.
Como Keynes sabia mesmo muito bem, Robertson era dolorosa e extraordinariamente tímido, ao
ponto mesmo de se comunicar com o seu fiel secretário de longa data, cujo escritório era próximo
do seu, apenas por memorandos por escrito. As palestras de Robertson eram totalmente escritas
antecipadamente, e devido à sua timidez ele recusava-se a responder a qualquer pergunta ou a ter
qualquer discussão com os seus alunos ou colegas. E assim foi uma tortura particularmente diabólica
"peculiar” teoria do juro de Mises, que "confundiu" a "eficiência marginal do capital" (essencialmente o termo
de Keynes para a taxa de retorno sobre o investimento) com a relação entre os preços dos bens de capital e os
dos bens de consumo e a taxa de juro. Se Keynes conhecesse alguma coisa sobre teoria do capital, ele iria
reconhecer a posição de Mises como Böhm-Bawerkiana, semelhante a grande parte da teoria de capital do
século XIX, que se concentra na taxa de lucro de longo prazo como a taxa de juro. Uma das maiores falácias de
Keynes era a sua crença de que o juro era um fenómeno puramente monetário, fazendo da taxa de juro dos
empréstimos a única coisa importante (1936 Keynes: pp. 192–93; cf. Rothbard [1962] 1970: eu, pp. 454–55).
124
que os discípulos radicais de Keynes, liderados por Joan Robinson e Richard Kahn, tivessem
provocado e escarnecido de Robertson, perseguindo-o com perguntas mordazes e desafiando-o a
debater (Johnson e Johnson de 1978: p. 136ff.).
De facto, escreveu, as poupanças são um peso no sistema; elas "escapam" do fluxo de despesa,
causando assim recessão e desemprego. Daí que Keynes, como Mandeville no início do século XVIII,
ao ser capaz de condenar a poupança e a parcimónia; finalmente tinha conseguido a sua vingança
sobre a burguesia.
Uma vez que ele alegava que o juro era um fenómeno puramente monetário, Keynes podia
também então separar a existência de uma taxa de juro da escassez de capital. Na verdade, ele
acreditava que o capital não é realmente escasso de todo. Assim, Keynes declarou que a sua
sociedade preferida "significaria a eutanásia do rentier e consequentemente, a eutanásia do poder
opressivo cumulativo do capitalista para explorar o valor da escassez do capital."
125
Mas o capital não é realmente escasso: "O juro hoje não recompensa nenhum sacrifício verdadeiro,
não mais do que a renda de terras. O proprietário de capital pode obter um juro porque o capital é
escasso, tal como o proprietário de terra pode obter renda porque a terra é escassa. Mas embora
possam existir razões intrínsecas para a escassez da terra, não existem razões intrínsecas para a
escassez de capital". Portanto, "nós podemos ambicionar na prática… a um aumento no volume de
capital até que cesse de ser escasso, para que o investidor disfuncional [o rentier] deixe de receber
um bónus." Keynes deixou claro que ansiava por uma gradual aniquilação do rentier “disfuncional”
em vez de uma qualquer espécie de súbita sublevação (Keynes 1936: pp. 375-76; ver também Hazlitt
[1959] 1973: pp. 379-84).182
Em seguida, Keynes vai atrás da terceira classe económica, com quem ele estava um pouco mais
bem-disposto: os investidores. Em contraste com os consumidores passivos e robóticos, os
investidores não estão determinados por uma função matemática externa. Pelo contrário, eles
transbordam de livre arbítrio e dinamismo activo. Eles também não são um mal na máquina
económica, como são os aforradores. Eles são importantes contribuintes para o bem-estar de todos.
Mas eis que surge uma dificuldade. Embora dinâmicos e cheios de livre arbítrio, os investidores são
criaturas irregulares com os seus próprios caprichos e humor. Eles são, em suma, produtivos, mas
irracionais. Eles são orientados por humores psicológicos e "espírito animal". Quando os investidores
estão a sentir-se confiantes e o seu espírito animal está em cima, investem fortemente, mas
demasiado; demasiado optimistas, eles despendem demais e trazem a inflação. Mas Keynes,
especialmente na Teoria Geral, não estava realmente interessado na inflação; ele estava preocupado
com o desemprego e a recessão, causado, na sua opinião visivelmente superficial, pelo humor
pessimista, perda de espírito animal e, daí, o sub-investimento.
O sistema capitalista está, assim de acordo, num estado de inerente macro instabilidade. Talvez a
economia de mercado funcione suficientemente bem no nível micro da oferta e procura. Mas no
mundo macro, está a navegar sem leme; não há nenhum mecanismo interno para manter a despesa
agregada nem muito baixa nem muito alta, daí a recessão e desemprego ou inflação.
John Stuart Mill tinha sido um fiel Ricardiano excepto numa área crucial. Seguindo o seu pai, Mill
tinha adoptado a teoria causal da Banking school dos ciclos económicos, que então foi adoptada por
Marshall (1987 Trescott; Penman de 1989: pp. 88–89).
182
Ver igualmente o artigo esclarecedor de Andrew Rutten (1989). Estou grato ao Dr. Rutten por ter chamado
a minha atenção para este artigo.
126
Para desenvolver uma saída, Keynes apresentou uma quarta classe da sociedade. Ao contrário
dos consumidores robóticos e ignorantes, este grupo é descrito como cheio de livre arbítrio,
activismo e conhecimento de assuntos económicos. E ao contrário dos desafortunados investidores,
não são tipos irracionais, sujeitos às oscilações de humor e espírito animal; pelo contrário, eles são
supremamente racionais e conhecedores, capazes de planear o melhor para a sociedade no
presente, bem como quanto ao futuro.
Essa classe, este deus ex-machina externa ao mercado, é obviamente o aparelho de Estado, como
liderado pela sua elite governante natural e guiados pela versão moderna, científica, de platónicos
reis filósofos. Em suma, os líderes governamentais, guiados sabiamente e com firmeza por
economistas Keynesianos e cientistas sociais (naturalmente, liderados por ele próprio, o grande
homem), iriam salvar o dia. Na política e sociologia da Teoria Geral, todos os tópicos da vida e
pensamento de Keynes estão bem ligados.
E assim será o estado, liderado pelos seus mentores Keynesianos, a gerir a economia, para
controlar os consumidores ajustando impostos e reduzindo a taxa de juro em direcção a zero e, em
particular, a exercer "uma certa socialização abrangente do investimento". Keynes argumentou que
isso não significaria um estado de Socialismo total, salientando que
não é a propriedade dos instrumentos de produção que é o importante que o Estado assuma. Se o
Estado é capaz de determinar a quantidade agregada de recursos dedicados a aumentar os
instrumentos e a taxa base de recompensa para aqueles que os detêm, ele terá conseguido tudo o
que é necessário. (1936 Keynes: 378 p.)
Sim, deixe-se que o estado controle completamente o investimento, o seu montante e a taxa de
retorno para além da taxa de juro; e, em seguida, Keynes permitirá que os particulares retenham a
propriedade formal para que, dentro da matriz global de controlo estatal e domínio, eles ainda
possam reter "um vasto campo para o exercício de iniciativa privada e responsabilidade". Como
Hazlitt o coloca,
Havia um sistema que se tinha tornado proeminente e estava na moda na Europa durante a
década de 1920 e 1930 e que foi marcado precisamente por essa característica Keynesiana: a
propriedade privada, sujeita ao controlo e planeamento governamental abrangente. Isto era, claro
está, o fascismo.
Como é que Keynes encarava o pleno fascismo? Das informações dispersas agora disponíveis, não
deve constituir uma surpresa que Keynes foi um defensor entusiasta do " espírito empreendedor "
de Sir Oswald Mosley, fundador e líder do fascismo britânico, ao pedir um "plano económico
nacional" abrangente no final de 1930. Em 1933, Virginia Woolf escrevia a um amigo próximo que
127
ela temia que Keynes estivesse no processo de a converter a "alguma forma de fascismo". No
mesmo ano, ao defender a auto-suficiência nacional através do controlo do Estado, Keynes opinava
que "Mussolini, talvez esteja a adquirir molares de sabedoria " (1930b Keynes, 1933: 766 p.; Johnson
e Johnson de 1978: p. 22; sobre a relação entre Keynes e Mosley, consultar Skidelsky de 1975: pp.
241, 305–6; 1968 Mosley: pp. 178, 207, 237–38, 253; Cross 1963: pp. 35–36).
Mas a prova mais convincente da forte tendência fascista de Keynes foi o preâmbulo especial que
ele preparou para a edição alemã de a Teoria Geral. Esta tradução alemã, publicada no final de 1936,
incluiu uma introdução especial em benefício dos leitores alemães de Keynes e o regime Nazi sob o
qual ela foi publicada. Não surpreendentemente, a idolatria A Vida de Keynes de Harrod não faz
menção a esta introdução, embora fossem incluídas duas décadas mais tarde no sétimo volume da
Colectânea de Escritos junto com o preâmbulo para as edições Japonesa e Francesa.
A introdução da edição Alemã, que praticamente não tinha recebido o benefício de comentários
extensos por exegetas Keynesianos, inclui as seguintes afirmações por Keynes: "Contudo a teoria de
output como um todo, que é o que o livro seguinte pretende fornecer, está muito mais facilmente
adaptado às condições de um Estado totalitário, que a teoria da produção e distribuição de um
determinado output produzido em condições de livre concorrência e de uma razoável dose de
laissez-faire." (1973 Keynes [1936]: p. xxvi. Cf. Martin 1971: pp. 200–5; Hazlitt [1959] 1973: p. 277;
1987 Brunner: p. 38ff.; Hayek 1967: p. 346)
Quanto ao comunismo, Keynes era menos entusiasta. Por um lado, ele admirava os jovens,
intelectuais, comunistas ingleses dos finais da década de 1930 porque eles recordavam-lhe, por
estranho que pareça, os "típicos ingleses não-conformistas que… fizeram a Reforma, combateram a
Grande Rebelião, conquistaram as nossas liberdades civis e religiosas e humanizaram as classes
trabalhadoras no século passado." Por outro lado, ele criticou os jovens comunistas de Cambridge
pelo outro lado da moeda na Reforma/Grande Rebelião: eram puritanos. O anti-puritanismo de
longa data de Keynes emergiu na pergunta, Ficarão os universitários de Cambridge desiludidos
quando vão para a Rússia e a descobrem "terrivelmente desconfortável? Evidentemente que não.
Isso é o que eles procuram" (Hession de 1984: p. 265).
Keynes rejeitou firmemente o comunismo após sua visita à Rússia em 1925. Ele não gostou do
terror em massa e extermínio, causado em parte pela velocidade da transformação revolucionária e
em parte também, opinou Keynes, por "alguma bestialidade na natureza russa — ou na natureza
Judaica e Russa quando, como agora, eles estão aliados juntos." Ele também tinha fortes dúvidas
que o "comunismo russo" fosse capaz de "fazer os judeus menos avarentos" (1925 Keynes: pp. 37,
15). (Na verdade, Keynes há muito que era anti-semita.)183
Em Eton, Maynard escreveu um ensaio intitulado "As Diferenças entre o Leste e Oeste," no qual ele
condenou os judeus como um povo Oriental que, devido aos "instintos profundos que são
antagónicos e assim repugnantes para os europeus," não podem mais ser assimilados pela
civilização europeia do que os gatos podem ser forçados a gostar de cães (Skidelsky, 1986: p. 92).
183
Anteriormente, Keynes tinha clamado por uma "transformação da sociedade," que "poderia requerer uma
redução da taxa de juro em direcção ao ponto de desaparecer, dentro dos próximos trinta anos" (1933 Keynes:
p. 762).
128
Mais tarde, como oficial Britânico durante a conferência de paz de Paris, Keynes escreveu a sua
grande admiração pelo brutal ataque anti-semita de Lloyd George contra o Ministro das Finanças
Francês, Louis-Lucien Klotz, que tinha tentado conseguir dos alemães derrotados mais ouro em troca
do atenuar do bloqueio alimentar Aliado.
Em primeiro lugar, havia a descrição que Keynes fazia de Klotz: "um Judeu pequeno, de grande
bigode, bem cuidado, bem conservado, mas com um olhar instável e às voltas, e os seus ombros um
pouco curvados numa postura instintiva de desdém". Keynes descreveu então este momento
dramático:
Lloyd George tinha-o sempre odiado e desprezava-o; e agora num pestanejar percebeu que o
poderia atacar. Mulheres e crianças estavam a morrer de fome, gritou e aqui estava M. Klotz a pedir
e pedir o seu "ouro". Ele inclinou-se para a frente e com um gesto das suas mãos indicou a todos a
imagem de um judeu horrendo agarrando um saco de moeda. Os seus olhos e palavras saíram com
um desprezo tão violento que ele parecia quase estar a cuspir para ele. O anti-semitismo, não muito
abaixo da superfície em tal assembleia, estava agora bem presente no sentir de todos. Toda a gente
olhou para Klotz com um desprezo momentâneo e ódio; o pobre homem estava torto em cima do
seu assento, visivelmente acobardando-se. Praticamente não percebíamos o que dizia Lloyd George,
mas as palavras "ouro" e Klotz foram repetidas, e de cada vez com exagerado repudio.
Nesse ponto, Lloyd George chegou ao clímax da sua performance: virando-se para o Primeiro-
Ministro Francês, Clemenceau, avisou que a menos que os franceses acabassem com as suas tácticas
obstrutivas contra a alimentação dos alemães derrotados, e três nomes iriam ficar na história como
os arquitectos do bolchevismo na Europa: Lenine e Trotsky e… como escreveu Keynes, "O Primeiro-
Ministro parou. Em todo a sala poder-se-ia ver cada um sorrindo e sussurrando ao seu vizinho,
'Klotsky' "(1949 Keynes: p. 229; Skidelsky 1986: 360, 362).
O ponto é que Keynes, que nunca antes tinha gostado particularmente de Lloyd George, foi
conquistado pela exibição de feroz pirotécnica anti-semita de George. "Ele pode ser surpreendente
quando se concorda com ele," declarou Keynes. "Nunca admirei tanto os seus extraordinários
poderes" (1949: p. 225).184
Mas a razão principal para a rejeição do comunismo por Keynes era simplesmente que ele
dificilmente poderia identificar-se com o proletariado sebento. Como Keynes escreveu após sua
viagem à Rússia Soviética: "como poderei eu adoptar um tal credo que, preferindo a lama ao peixe,
exalta o proletariado enfadonho acima da burguesia e a inteligência que… são a qualidade na vida e
certamente carrega a semente de todo o avanço humano?" (Hession de 1984: p. 224).
Rejeitando o socialismo do proletariado do Partido Trabalhista Britânico, Keynes fez uma notória
observação semelhante: "É uma guerra de classes e a classe não é minha classe… A guerra de classes
184
Keynes era capaz de subir acima da sua genérica atitude anti-semita, especialmente quando um rico
banqueiro internacional, capaz de conferir favores, estava envolvido. Assim, vimos que Edwin Samuel
Montagu foi desde cedo o patrono político mais importante de Keynes; e Keynes também simpatizou com o
representante da Alemanha durante a Conferência de paz de Paris, o Dr. Carl Melchior: "De uma certa maneira
eu estava apaixonado por ele" (1949 Keynes: p. 222). O facto de Melchior ser um partner na proeminente
empresa bancária internacional M.M. Warburg and Company poderá ter alguma coisa com a atitude benigna
de Keynes.
129
iria encontrar-me ao lado da burguesia educada" (1987 Brunner: p. 28). John Maynard Keynes era
um membro de longa data da aristocracia Britânica, e não estava prestes a esquecê-la.
Sumarizando
Terá sido Keynes, como mantinha Hayek, um académico "brilhante"? "Académico" dificilmente,
dado que Keynes era pouco versado na literatura económica: ele era mais um aventureiro, tendo um
pouco de conhecimento e usando-o para infligir ideias falaciosas e a sua personalidade sobre o
mundo, com uma deriva continuamente alimentada por uma arrogância no limite do egocentrismo.
Mas Keynes teve a boa fortuna de nascer dentro da elite britânica, e de ter sido educado dentro dos
de topo em economia (Eton/Cambridge/Apóstolos) e ter sido especialmente escolhido pelo
poderoso Alfred Marshall.
"Brilhante" também dificilmente será uma palavra adequada. Claramente, Keynes era
suficientemente brilhante, mas as suas qualidades mais marcantes eram a sua arrogância, a sua
autoconfiança ilimitada, e a sua ávida vontade pelo poder, pela dominação, para ter a sua quota-
parte nas artes, ciências sociais e o mundo da política.
Além disso, dificilmente Keynes poderia ser um "revolucionário" em qualquer sentido real. Ele
possuía uma esperteza táctica para enfeitar antigas falácias estatistas e inflacionistas com termos
modernos e pseudo-científicos, fazendo-os parecer as mais recentes descobertas da ciência
económica. Keynes foi assim capaz de aproveitar a onda de estatismo e socialismo, de economia
planeada e administrada. Keynes eliminou a tradicional função da teoria económica como barreira
incómoda a esquemas inflacionistas e estatistas, conduzindo uma nova geração de economistas para
o poder académico e os espólios da política e privilégio.
Um termo mais ajustado a Keynes seria "carismático" — não no sentido de comandar a lealdade
de milhões, mas na capacidade de manipular e seduzir pessoas importantes — de patrocinadores a
políticos e estudantes e mesmo a economistas oponentes. Um homem que pensava e agia em
termos de poder e dominação brutal, que desprezava o conceito de princípio moral, que era sob
juramento um eterno inimigo da burguesia, dos credores e da frugal classe média, que era um
mentiroso sistemático, distorcendo a verdade para a ajustar aos seus próprios planos, que era um
fascista e um anti-semita, Keynes, ainda assim, foi capaz de persuadir os adversários e concorrentes.
Mesmo depois de ardilosamente ter colocado os seus alunos contra os seus colegas, ele foi ainda
capaz de lograr os mesmos colegas à rendição intelectual. Perseguindo e afastando injustamente
Pigou, Keynes foi ainda capaz de, finalmente e da sepultura, conseguir uma retratação abjecta do
seu antigo colega. Da mesma forma, ele inspirou o seu antigo inimigo Lionel Robbins a devanear
absurdamente no seu diário sobre o halo dourado à volta da sua cabeça divina. Ele foi capaz de
converter para o Keynesianismo vários Hayekianos e Misesianos que deviam saber — e certamente
sabiam — melhor: além de Abba Lerner, John Hicks, Kenneth Boulding, Nicholas Kaldor e G.L.S.
Shackle em Inglaterra, havia também Fritz Machlup e Gottfried Haberler de Viena, que
desembarcaram na Johns Hopkins e Harvard, respectivamente.
130
De todos os Misesianos do início da década de 1930, o único economista que não foi infectado
pela doutrina e personalidade Keynesiana foi o próprio Mises. E Mises, em Genebra e em seguida
durante anos em Nova Iorque sem uma posição no ensino, foi removido da cena influente
académica. E embora Hayek tenha permanecido anti-Keynesiano, também ele foi tocado pelo
carisma de Keynes. Apesar de tudo, Hayek tinha orgulho de chamar amigo a Keynes e promoveu, de
facto, a lenda de que Keynes, no final de sua vida, esteve prestes a converter-se do seu próprio
Keynesianismo.
A evidência de Hayek para a alegada conversão de última hora por Keynes é notavelmente ligeira
— com base em dois eventos nos últimos anos da vida de Keynes. Em primeiro lugar, em Junho de
1944, após ler “O Caminho da Servidão”, Keynes, agora, no máximo da sua carreira como planeador
do governo de guerra, escreveu uma nota a Hayek, descrevendo-o como "um grande livro…
encontro-me de acordo moral e filosoficamente com praticamente todo ele”. Mas por que razão
deve isto ser interpretado como algo mais do que uma nota educada para um amigo casual por
ocasião do seu primeiro livro popular?
Além disso, Keynes deixou claro que, apesar das suas palavras cordiais, ele nunca aceitou a tese
essencial da "tendência a degenerar" de Hayek, isto é, que o estatismo e o planeamento central
conduzem directamente ao totalitarismo. Pelo contrário, Keynes escreveu que o "planeamento
moderado será seguro se os que o fizerem forem orientados nas suas mentes e corações para a
questão moral”. Esta frase, naturalmente, soa a verdadeiro, já que Keynes sempre acreditou que a
colocação de homens bons, nomeadamente, dele próprio e dos técnicos e estadistas da sua classe
social, era a única salvaguarda necessária para vigiar os poderes dos dirigentes (Wilson 1982: p.
64ff.).
Hayek apresenta um outro ponto de prova frágil para a alegada retratação de Keynes, que ocorreu
durante o seu último encontro com Keynes em 1946, o último ano de vida de Keynes. Hayek reporta,
Certo ponto na conversa fez-me perguntar-lhe se ele estava ou não preocupado com o que alguns
dos seus discípulos estavam a fazer com as suas teorias. Após uma observação não muito elogiosa
sobre as pessoas em causa, em seguida ele tranquilizou-me: essas ideias tinham sido um mal
necessário no momento em que ele as tinha lançado. Mas não era preciso ficar alarmado: se algum
dia se tornassem perigosas eu poderia confiar que ele iria rapidamente mudar novamente a opinião
pública — indicando por um rápido movimento de sua mão a rapidez com que seria feito. Mas três
185
meses mais tarde, ele estava morto. (Hayek 1967b: p. 348)
Mas isto dificilmente era um Keynes à beira da retratação. Era sim, um Keynes vintage, um homem
que sempre achou o seu ego soberano superior a quaisquer princípios, superior a quaisquer meras
ideias, um homem que saboreava o poder que ocupava. Ele poderia e mudaria o mundo, voltaria a
colocá-lo direito com um estalar dos dedos, como ele presumia ter feito no passado.
185
Harry Johnson registou uma impressão semelhante na apresentação do ensaio de Keynes, publicado
postumamente, sobre a balança de pagamentos, no qual Johnson conclui que a referência de Keynes a
"quantas coisas modernistas, que correram mal e se tornaram amargas e tontas, estão agora a circular no
nosso sistema," se refere ao Keynesiano-de-esquerda, ou Marxo-Keynesiano, Joan Robinson (1978 Johnson: p.
159n).
131
Além disso, esta declaração também foi Keynes vintage em termos do seu ponto de vista de longa
data de como agir correctamente quando dentro ou fora do poder. Na década de 1930,
proeminente mas fora do poder, ele poderia falar e agir de forma "um pouco arrebatada"; mas
agora que ele desfrutava o trono elevado do poder, era tempo de baixar o tom da "licença poética".
Joan Robinson e os outros Marxo-Keynesianos estavam a cometer o erro, do ponto de vista de
Keynes, da não subordinação das suas estimadas ideias às exigências da sua prodigiosa posição de
poder.
E assim também Hayek, embora nunca cedendo às ideias de Keynes, caiu sob o seu feitiço
carismático. Além de ter criado a lenda da mudança de coração de Keynes, porque não terá Hayek
demolido a Teoria Geral como ele o tinha feito com o Tratado da Moeda de Keynes? Hayek admitiu
um erro estratégico, ele não se tinha incomodado a fazê-lo porque Keynes era famoso por alterar a
sua opinião, portanto, Hayek nunca pensou que a Teoria Geral perdurasse. Além disso, como Mark
Skousen observou no capítulo 1 deste volume, Hayek aparentemente suspendeu a sua crítica na
década de 1940 para evitar interferir no financiamento Keynesiano do esforço de guerra da Grã-
Bretanha — certamente um desafortunado exemplo da verdade sofrendo nas mãos de presumida
conveniência política.
No entanto, Keynes foi muito mais do que um Keynesiano. Acima de tudo, ele foi a figura
extraordinariamente perniciosa e maligna que analisámos neste capítulo: charmoso mas
maquiavélico, direccionado para o poder e estatismo, e que personificou algumas das mais
malévolas tendências e instituições do século XX.
132
Anexo
Alguns termos miseseanos retirados e traduzidos do glossário “Mises Made Easier” de autoria de Percy L.
186
Greaves Jr .
Acumulação de moeda. Um termo indefinido e assim não científico, para a posse de dinheiro em excesso
relativamente a uma quantidade considerada normal e adequada para as necessidades do seu detentor.
Cataláxia, s. cataláctico, adj. A teoria da economia de mercado, ou seja, de rácios de troca e preços. Analisa
todas as acções com base no cálculo monetário e segue a formação de preços de volta ao ponto onde o
homem agindo faz as suas escolhas. Explica os preços de mercado como eles são e não como deveriam ser. As
leis de cataláxia não são juízos de valor, mas são exactas, objectivas e de validade universal.
Ciclo económico. A periódica regularidade rítmica de contínuas e recorrentes alterações que se supõe ocorrer
na actividade económica agregada. As fases do ciclo económico são grosso modo: uma expansão efervescente
de prosperidade que termina numa crise aguda ou pânico; um período de liquidação, desemprego elevado e
um ajustamento conhecido popularmente como uma recessão ou depressão; e um período de reavivar ou
recuperação que inicia um ressurgimento que conduz a um nova expansão.
Karl Marx (1818-1883) está na origem da ideia que as crises recorrentes são inerentes à economia de mercado
(livre) não intervencionada. Mises demonstrou que "o ciclo económico é..., pelo contrário, o inevitável efeito
da manipulação no mercado da moeda." (Freeman, 24 de Setembro de 1951. 1(#26):829). Consultar a "Teoria
monetária do ciclo económico."
Crédito de circulação. Crédito bancário concedido sob a forma de depósitos à ordem criados especialmente
para esse fim; ao contrário de crédito concedido por empréstimo dos próprios fundos do banco, ou de fundos
depositados nele pelos seus clientes. A extensão do crédito de circulação disponibiliza aos mutuários, fundos
recém-criados que não diminuem ou restringem os fundos disponíveis para qualquer outra pessoa como no
caso do crédito mercadoria (q.v.). Ver também "Expansão creditícia" e "Teoria monetária do ciclo económico".
Desemprego, cataláctico. Desemprego devido à decisão voluntária dos que estão desempregados. Dada a
situação prevalecente no mercado e as situações pessoais dos desempregados, preferem não aceitar o
pagamento, local, tipo ou outras condições de trabalho abertas para eles. Eles permanecem desempregados
porque preferem o lazer ou porque eles acreditam que, esperando, eles poderão obter um emprego que
considerem mais satisfatório do que aquele que está à sua disposição de momento.
Desemprego, friccional. Termo às vezes usado para certas formas de "Desemprego, cataláctico" (q.v.). O
termo é usado por alguns quando se assume que o desemprego é o resultado de dificuldades na
correspondência entre as vagas de emprego e os candidatos devido a certos "atritos", como falta de
informação ou diferenças nas competências, formação ou locais geográficos. Mises não gostava de nenhum
desses termos metafóricos que têm falsamente implícito uma semelhança entre os movimentos automáticos
da mecânica e as escolhas individuais envolvidas em todas as acções humanas.
Desemprego, institucional. Desemprego devido a interferências com as condições de mercado livre, e não de
decisões voluntárias desses desempregados. Essas interferências incluem todas as tentativas de aumentar os
salários acima dos salários flexíveis que, num mercado livre, tendem a ajustar a oferta de qualquer tipo de
mão-de-obra à sua procura. Tais interferências são geralmente o resultado da chamada legislação "pró
laboral", embora também possam ser o resultado do costume, actividade sindical ou medo da violência.
Desemprego, tecnológico. Desemprego erradamente atribuído à introdução de melhores métodos de
produção, tais como a utilização de equipamentos de capital mais eficiente (ferramentas, máquinas,
"automação", etc.). Enquanto existem recursos naturais não utilizados, ou não plenamente utilizados, existem
sempre oportunidades para a sua utilização adicional numa economia de mercado não intervencionada.
Economia de mercado, livre ou não intervencionada. Uma economia de mercado pura ou não
intervencionada (i.e., livre) é uma construção imaginária que assume: (1) A propriedade privada (controlo) dos
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Via edição online http://mises.org/easier/easier.asp, 20-10-2014.
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meios de produção; (2) A divisão de trabalho e o consequente mercado de trocas de bens e serviços; (3)
Nenhuma interferência institucional com a operacionalidade dos processos de mercado que geram preços,
salários e taxas de juro que reflectem as condições actuais de oferta e procura para todos os bens e serviços;
(4) Um governo, como aparato social de coerção e compulsivo, que preserva os processos de mercado
enquanto protege os participantes pacíficos no mercado de invasões daqueles que poderão recorrer à ameaça
ou uso de força ou fraude.
Economia uniformemente rotativa. Uma economia imaginária na qual todas as transacções e condições físicas
são repetidas sem alteração em cada ciclo de tempo semelhante. Tudo é imaginado a continuar exactamente
como antes, incluindo todas as ideias humanas e metas. Em tais condições constantes repetitivas e fictícias,
não pode haver nenhuma alteração líquida em qualquer oferta ou procura e, por conseguinte, não pode haver
quaisquer alterações nos preços. A economia uniformemente rotativa é um dispositivo útil para estudar os
efeitos lógicos produzidos pela introdução de alterações individuais particulares.
Empírico. Dependendo da existência de uma regularidade na causalidade e sucessão de acontecimentos
naturais que permite a aquisição de conhecimento humano de experiências ou experiência porque idênticas
condições naturais ou físicas e eventos produzem sempre resultados idênticos ou consequências. As ciências
naturais são empíricas. As ciências sociais ou humanas não são.
Equilíbrio. Um estado ou uma condição onde forças opostas ou influências compensadoras são exactamente
iguais e, por conseguinte, em equilíbrio, isto é, um estado de repouso ou inacção. O equilíbrio pode existir
apenas enquanto não há nenhuns novos dados, forças ou influências capazes de mudar ou perturbar as
condições existentes. O equilíbrio é, portanto, um estado ou condição que é impossível de alcançar onde as
condições de mercado ou os processos são constantemente afectados pelo elemento perturbador de novas
acções humanas. Consultar "economia uniformemente rotativa" e "Economia matemática".
Expansão creditícia. Um aumento na quantidade de unidades monetárias criado por um aumento nos
empréstimos bancários acima do número de unidades monetárias disponibilizadas por aforradores aos bancos
para empréstimos a terceiros. Em resumo, empréstimos monetários acima da poupança monetária disponível
para crédito. A expansão creditícia só é possível num sistema bancário de reservas fraccionárias. Tudo o resto
permaneça constante, e cada expansão creditícia criará uma expansão ou uma aceleração da actividade
económica. Esta expansão só pode ser sustentada por uma contínua expansão do crédito e a um ritmo cada
vez mais acelerado suficiente para induzir uma repetição das mesmas actividades a preços mais elevados
resultante de anteriores expansões de crédito. Consultar "Crédito de circulação" e "Teoria monetária do ciclo
económico."
Investimento erróneo. Um investimento em linhas erradas de produção que conduz a perdas de capital. O
investimento erróneo resulta da inabilidade dos investidores em anteciparem correctamente, no momento do
investimento, quer (1) o padrão futuro da procura do consumo, como (2) a futura existência de formas mais
eficientes de satisfazer uma correcta antecipação da procura do consumo. Exemplos de (1): Investimento de
poupança disponível de tal forma que não consegue produzir tanta satisfação do consumidor como os mesmos
fundos poderiam produzir se investidos de forma diferente. Exemplo de (2): Investimento que, antes do fim
esperado da sua vida útil, se torna obsoleto devido à não antecipação do desenvolvimento de formas mais
eficientes de satisfazer a mesma procura do consumo. O investimento erróneo é sempre o resultado da
inabilidade dos seres humanos em anteciparem correctamente condições futuras. Contudo, tais erros
humanos e os consequentes investimentos erróneos são mais frequentemente potenciados pelas ilusões
criadas por inflação não detectada (q.v.) ou expansão do crédito (q.v.). Do ponto de vista de atingir o potencial
máximo de satisfação do consumidor, cada intervenção política, que não a necessária para a preservação de
uma sociedade de mercado, deverá conduzirá a investimento erróneo.
Métodos de produção extensos. Um termo concebido pelo economista austríaco, Eugen von Böhm-Bawerk
(1851-1914), para descrever o processo de produção capitalista através do qual bens de capital são primeiro
produzidos e, em seguida, com a ajuda desses bens de capital, produzidos os bens de consumo desejados.
Uma vez que "métodos extensos" implicam uma circularidade indirecta que é mais demorada que o necessário
para os fins procurados, Mises sublinha o facto de que o método capitalista de produção é o método
económico mais curto, mais rápido, mais directo, conhecido para atingir os fins de maior satisfação do
consumidor.
Teoria monetária do ciclo económico. A explicação de Mises do ciclo económico (q.v.) que mostra como a
expansão do crédito (q.v.) cria uma expansão que torna inevitável um período de reajustamento daí
decorrente. Este período de reajustamento é popularmente conhecido como uma "depressão" (q.v.). Ver
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“Human Action”, capítulo XX, pp. 538-86, particularmente, secções 8 e 9, pp. 571-86. Para uma análise mais
detalhada, consultar “The Theory of Money and Credit” de Mises e, “America's Great Depression” de Murray
N. Rothbard (Princeton, N.J.: Van Nostrand, 1963; Los Angeles: Nash Publishing, 1972) e PLG. 175-293.
Praxeologia, (do grego, praxis, acção, hábito ou práticas; logia, doutrina, teoria ou ciência). A ciência ou a
teoria geral da acção humana (consciente ou intencional). Mises define a acção como "a manifestação da
vontade do homem”. Assim, ele considera a utilização dos adjectivos "consciente ou intencional" como sendo
redundante. Praxeologia é uma manifestação da mente humana e refere-se às acções abertas para os homens
para a realização dos fins escolhidos. A praxeologia parte da categoria a priori da acção e, em seguida,
desenvolve todas as implicações de tal acção. A praxeologia visa o conhecimento válido para todas as
instâncias em que as condições correspondem exactamente às implícitas nos seus pressupostos e inferências.
As suas declarações e proposições não são derivadas de experiência, mas são antecedentes a qualquer
compreensão dos factos históricos.
Positivistas lógicos. Seguidores da variedade moderna britânica e americana de positivismo (q.v.). Esta escola
foi influenciada, em grande parte, pelos ensinamentos do chamado círculo de Viena fundado em 1924 por
Moritz Schlick (1882-1936). Os principais expoentes desta escola foram Otto Neurath (1882-1945) e Rudolf
Carnap (1891-1970). A importância dos positivistas lógicos para o estudo da acção humana de Mises reside no
facto de que a sua tese fundamental rejeita todos os métodos não experimentais de investigação e, portanto,
negam a existência de qualquer conhecimento a priori.
Positivismo. Uma doutrina ensinada por Auguste Comte (1798-1857). Defende que o conhecimento do
Homem sobre todas matérias passa por três fases (teológico, metafísico e positivo). O positivismo
contemporâneo procura aplicar os métodos experimentais das ciências naturais (q.v.) ao estudo dos
problemas da acção humana (q.v.). O lema dos positivistas é que ciência é medição.
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