estado como o de
conhecimento, não estamos
dando uma descrição empírica
daquele episódio ou estado. Nós
o estamos colocando no Espaço
Lógico das Razões, da
justificação e da capacidade de
justificar aquilo que se está
dizendo.” – Wilfrid Sellars
Introdução
A epistemologia é a área da filosofia que estuda
a natureza do conhecimento e sua justificação. Algo é
tradicionalmente tido como conhecimento se esse
algo for uma crença verdadeira e justificada
(pace Gettier). Todo conhecimento é crença pois é
impossível conhecer algo sem que ao mesmo tempo
se acredite na verdade e justificação desse algo.
(Imagine alguém são dizendo: “Eu sei que minha mão
tem cinco dedos, mas eu não acredito que a minha
mão tem cinco dedos”). Todo conhecimento
é crença, mas nem toda crença é conhecimento.
Para ser conhecimento, tal crença precisa ser
factualmente válida e devidamente justificada. Uma
pessoa Apode, em um determinado momento,
endossar a crença p cujo conteúdo é: “A Susana está
estudando em seu quarto agora” e achar que esta
crença é verdadeira (e, portanto, conhecimento) e ter
justificações para isso, como a justificação q de que
“A Susana me disse que estaria estudando em seu quarto
às 14:00hrs, já são 14:05, a Susana deve estar
estudando agora” e a justificação r de que “Eu fui no
quarto de Susana e a vi lendo um livro, ela deve estar
estudando agora” e mesmo a justificação s de que “O
irmão de Susana acabou de passar por aqui e disse que
viu Susana estudando em seu quarto agora”, etc. No
entanto, poderia muito bem ser o caso que Susana
não estivesse estudando naquele momento e isso
implicaria que a crença p de A não seria verdadeira
(mesmo que, para A, seja justificada por q, r e s) e,
por conseguinte, não se qualificaria como
conhecimento pois lembremos que, para que uma
crença conte como conhecimento, ela precisa
ser não só justificada, mas também verdadeira.
É preciso ter em mente que o exemplo que
acabamos de ver muito provavelmente abriu uma
caixa de pandora. Existe uma discussão vasta e
recorrente sobre o que de fato conta como verdade e
o que de fato conta como justificação. Existem
diferentes teorias da verdade (como a de que a
verdade é uma correspondência entre um enunciado
e uma suposta realidade factual, ou de que a verdade
é o acordo de uma crença com o conjunto de crenças
que já possuímos, ou mesmo que a verdade é
assertibilidade garantida ideal, dentre outras) e
diferentes teorias da justificação (coerentismo,
externismo, internismo, por exemplo). Não
precisamos nos preocupar com essas questões no
momento, precisamos apenas saber que elas
existem. Retornaremos à essa problemática
posteriormente. O que de fato importa agora é notar
cinco coisas:
• O conhecimento e tudo que se relaciona ao
mesmo é normativo. Normativo no sentido de que,
quando lidamos com correção, validade e
justificação, lidamos com crenças que podem estar
corretas ou incorretas e atribuímos a alguém,
quando dizemos que esse alguém sabe x, o status
normativo de estar correto em saber que x. Isso tudo
significa dizer que podemos
dar razões (justificações) para o que acreditamos
saber e que quando dizemos que alguém sabe x,
acreditamos que esse alguém é capaz de oferecer
razões (justificações) para x. Dado isso, a tudo que
está relacionado a crenças, justificações, razões,
normatividade e validade, no contexto da teoria do
conhecimento, chamamos de epistêmico e
distinguimos do não-epistêmico. Por exemplo, uma
proposição doxástica [doxástico é tudo que se
relaciona à crença, doxa = crença] é epistêmica, mas
uma árvore, uma bola ou irritações causadas por
estímulos sensoriais na superfície nervosa de nosso
corpo, sensações e afins são não-epistêmicos pois
são meros eventos físicos destituídos
de normatividade. Há quem negue a normatividade
do conhecimento ou que diga que a epistemologia
pode ser reduzida ou substituída pela psicologia ou
outra área semelhante. Essa é uma das formas
do Mito do Dado adotada por filósofos reducionistas
contemporâneos, como veremos.
1. Da Normatividade do Conhecimento
Um divisor de águas na história da
epistemologia foi a doutrina kantiana das faculdades.
Anteriormente a Kant, tanto os racionalistas
continentais (Descartes, Malebranche, Espinosa,
Leibniz e Wolff) quanto os empiristas britânicos
(Bacon, Hobbes, Locke, Berkeley e Hume) não
notavam a diferença crucial entre as sensações e o
que eles chamavam de ideias. Do lado empirista,
as sensações ou impressões sensíveis eram tidas
como no mesmo patamar epistêmico que a cognição
de ideias. As ideias eram abstraídas das impressões
sensíveis e se tornavam ideias. Ambos exemplos de
cognição ou pensamento. Para os racionalistas, as
sensações nada mais eram do que ideias
infinitamente complexas que deveriam ser
tornadas claras e distintas através do
método analítico pela razão.
Por sua vez, Kant divide as faculdades
cognitivas ligadas à experiência humana em
duas: sensibilidade e entendimento. A
sensibilidade é a faculdade responsável pela
recepção dos estímulos sensoriais externos e
internos produzindo intuições. A intuição é o que
nos é dado de forma aparentemente imediata e é
sempre de um particular. Por exemplo, no momento
você deve estar tendo a intuição sensível de um
computador ou celular na sua frente [dentre as várias
intuições sensíveis de outros objetos particulares ao
seu redor]. O entendimento é a faculdade
responsável pela espontaneidade dos conceitos. E
um conceito é uma representação (particularmente,
prefiro o uso do termo apresentação ou o
neologismo presentação para traduzir o termo
kantiano vorstellung, mas utilizarei o termo mais
comum para não causar confusão) mediata
de intuições. Um conceito [gato] seria um universal
que se aplica a várias intuições de particulares [os
gatos reais que observamos] subsumidas sob o
mesmo. Assim, o entendimento sendo uma faculdade
de conceitos, é também uma
faculdade discursiva ou linguística. Além disso, Kant
acreditava que conceitos serviam como regras para
a conexão de representações [intuições] em um
único ato cognitivo. Dessa forma, o entendimento
também seria uma faculdade normativa. Acima do
entendimento, nós temos a faculdade do juízo,
responsável pela formação de juízos[proposições] a
partir de conceitos. É nessa parte que entra a
formação das crenças [a partir de agora, deixarei de
falar sobre crenças verdadeiras justificadas e
passarei a falar apenas de conhecimento, já
sabemos que são a mesma coisa] ou conhecimento.
Para que exista conhecimento humano, é necessário
que várias sínteses ocorram e é o entendimento que
opera tais sínteses. Primeiro, o que Kant chama
de imaginação produtiva (que nada mais é do que o
próprio entendimento cumprindo um papel específico)
sintetiza o diverso dos fenômenos [os estímulos
físico-sensoriais externos] na forma de uma intuição
particular na sensibilidade. Depois, o entendimento
sintetiza tais intuições particulares na forma de um
conceito universal. E em seguida, a faculdade do
juízo sintetiza tais conceitos na forma de juízos [o
conhecimento proposicional de fatos que temos]. É
importante lembrar que para Kant, a divisão das
faculdades não corresponde a uma divisão ou
repartição ontológica da mente ou consciência
humana. As diferentes faculdades cognitivas
são capacidades ou funções de uma mesma coisa.
Visto que o entendimento é uma faculdade que
opera por meio de regras e que ele já está presente
na própria sensibilidade no momento em que
sintetiza o diverso dos fenômenos em
uma intuição particular, nos deparamos com a
ubiquidade da normatividade do conhecimento
humano. A intuição de um particular já é
conceitualmente estruturada. Quando nos deparamos
com a intuição particular de um objeto específico,
e.g., um copo, nós o vemos como um copo. Não o
vemos apenas como uma mescla de sensações de
cores cognitivamente amórficas. Quando nos
deparamos com um objeto nunca antes visto por nós,
nós o vemos como um objeto. Ou seja, nossa
percepção, pelo menos atencional (e aqui divirjo de
Sellars e McDowell), é sempre conceitual. Sendo ela
conceitual, ela é epistêmica. Sendo epistêmica, ela
é o tipo de objeto necessário para a formação
de proposições doxásticas [crenças] por intermédio
de conceitos e é o tipo de objeto adequado para
entrar em relações de justificação e inferência que
caracterizam o conhecimento humano.
No nosso exemplo, nós temos a proposição “A
Susana está estudando em seu quarto agora”
composta por alguns conceitos que correspondem
parcial ou totalmente a intuições. Temos conceitos
sincategoremáticos [que não podem servir como
sujeito ou predicado de um juízo] como
‘a’,’em’, ’agora’, conceitos lógico-relacionais que
adquirem significado através do seu papel-conceitual.
E conceitos que se relacionam a intuições sensíveis
como Susana, está, estudando e quarto. De todo modo,
são todos normativos e o juízo ou proposição que
resulta da síntese dos mesmos é igualmente
normativa.
O problema da epistemologia pré-kantiana,
assim como o de toda epistemologia que cai no Mito
do Dado, é a de que se acredita que as sensações ou
impressões imediatas meramente físicas e não-
epistêmicas são capazes de justificar conhecimento
(para ser mais exato, todos os racionalistas e
empiristas clássicos mencionados acima achavam
que tais impressões ou ideias complexas já
eram epistêmicas). Isso é
confundir causas e razões. Nossas crenças podem
ser físico-fisiologicamente causadas por sensações
ou irritações sensoriais na superfície do nosso
sistema nervoso aferente, mas tais
sensações não podem justificar o nosso
conhecimento (e, de fato, não justificam, por isso o
Dado é um Mito). Apenas o
conceitual/proposicional/normativo/epistêmico pode
justificar, ou seja, servir como razão para o
conceitual/proposicional/normativo/epistêmico.
Lembremo-nos de que a intuição kantiana é
apenas aparentemente imediata, pois ela já é
conceitualmente estruturada. É importante lembrar
que essa posição não é a mesma que o
conceitualismo esposado por John McDowell [de
que todo conteúdo experiencial humano
é sempre conceitual] e nem é o não-conceitualismo
de seus oponentes como Robert Hanna e Hubert
Dreyfus, mas um meio-termo. Existe
percepção latentemente não-conceitual, pois como
mencionei acima, apenas a percepção
atencional é sempre conceitualmente mediada. Os
detalhes da minha visão necessitarão de uma
exposição mais elaborada em um outro momento
[uma exposição das diferenças entre o (não-
)conceitualismo de estado e conteúdo].
2. Da Inferencialidade do Conhecimento
Para Kant, a faculdade responsável pela
operação de inferências é a Razão [Vernunft]. A
crença p “A Susana está estudando agora” dependia
de uma conexão inferencial com as crenças q, r e s.
Resta saber se é possível que exista
conhecimento realmente não-inferencial. Alguns
dadistas [adeptos do Dado Mítico] acreditam que
existem crenças imediatamente adquiridas através da
percepção efetivamente imediata de um fato. Por
exemplo, eu entro no quarto e vejo a Susana
realmente estudando um livro de biologia. Adquiro o
conhecimento do fato: “A Susana está estudando um
livro de Biologia”. Mas é esse
conhecimento realmente imediato e não-inferencial?
Bom, além de ter que saber o significado de todos os
conceitos presentes na crença, preciso saber o que
conta na prática como “estar estudando’’, preciso
saber o que é um livro e que ele pode ser de biologia,
preciso, além disso, saber que minhas capacidades
cognitivas são confiáveis naquele momento, que a luz
está apropriada para que eu enxergue realmente que
o livro é de biologia e que é Susana que o está
estudando. Além de tudo isso, preciso ter toda uma
teia de crenças de background que me permita
já entender a realidade e o que está acontecendo
[holismo epistemológico].
No entanto, o dadista pode retrucar dizendo
que de fato não são os fatos que são não-
inferenciais, mas o sentir os dados sensoriais
[estímulos distais] que compõem a realidade físico-
material que percebemos de forma imediata. No
entanto, já vemos ou interpretamos (muito cuidado
é pouco com o verbo “interpretar”, não confundir com
o adágio nietzschiano de que não existem fatos,
apenas interpretações) Susana como Susana
(pessoa, conhecida, irmã, etc.), já vemos a
configuração da realidade físico-material na qual ela
se encontra como um “estar estudando um livro de
biologia”. O dadista não tem para onde fugir, o
conhecimento racional humano
é conceitual,proposicional, normativo e inferencia
l.
3. Da Irredutibilidade Explicativa do
Conhecimento
Não é negado o fato de que toda a realidade é
física e que, de acordo com a teoria científica mais
corroborada que temos, a realidade a que temos
acesso hoje pode ser reduzida ontologicamente a
partículas subatômicas entendidas como ondas
vibracionais em campos de força físicos [há um
detalhe sobre o realismo estrutural epistêmico e o
construtivismo empirista do Bas Van Fraassen aqui, a
minha visão é mais complexa que isso]. O que se
nega é a redução explicativa da epistemologia à
psicologia. Uma forma de psicologismo [o tão
combatido por Frege e Husserl]. Há muita confusão
quanto às críticas que John McDowell faz ao
naturalismo careca (bald naturalismo) que seria uma
tentativa de reduzir o Espaço Lógico das Razões ao
Espaço Lógico Científico. Sellarsianos não negam a
fecundidade ou mesmo a necessidade da
investigação empírica psicológica, neurocientífica ou
neurobiológica da percepção e cognição humana.
Como já foi dito, os estímulos sensoriais
externos causam as nossas crenças, mas não
as justificam. É claro que existem mecanismos
puramente físicos e neurofisiológicos que formam o
substrato do que chamamos de normatividade e
existem muitas pesquisas e formas de tentativa de
redução teorética ou mesmo ontológica (ao meu ver,
falhas) da mesma por parte, inclusive, dos chamados
“sellarsianos de direita”, quineanos ou mesmo
neurobiólogos e neurocientistas que se mantém
aquém de tais considerações epistemológicas
(Churchland, Dretske, Millikan, etc). Tais empreitadas
são necessárias e essenciais para a maior
compreensão da percepção, conhecimento e
consciência humanas.
Contudo, quando se fala do Espaço Lógico das
Razões sui generis [Sellars] ou do Ideal Constitutivo
da Racionalidade [Davidson], falamos de
superveniência e de sistemas emergentes
complexos. É algo análogo à psicologia folk. Mesmo
que consigamos reduzir crença, representação, etc. a
um vocabulário mais fisicamente fundamental de
certa forma, tal vocabulário seria inútil na explicação
da racionalidade e do conhecimento humano
na prática. Mas não se trata apenas de uma
impossibilidade de redução explicativa apenas
nesses termos. A normatividade do conhecimento
humano, dentro de uma visão kantiana, está ligada a
co-constituição da linguagem e da racionalidade
humana. A epistemologia normativa permanecerá
autônoma enquanto continuarmos seres racionais.