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Gilberto Gil
O
tema políticas públicas de cultura A cultura que temos ainda é majoritariamente a
diz respeito diretamente ao tipo de das ações pontuais e a das reflexões empíricas.
Ministério da Cultura que estamos Quase tudo o que o Brasil apresenta, nesta
construindo. Desde o primeiro dia de traba- seara, ainda é muito recente, se pensarmos que
lho, a equipe que se encontra hoje à frente o país tem mais de 500 anos de história. Durante
das secretarias, assessorias, fundações e muito tempo, pensou-se que a atuação do Esta-
autarquias culturais do governo federal se do na cultura deveria resumir-se ao trato da me-
colocou o objetivo, e também o desafio, de mória, do patrimônio, da tradição e dos livros.
adotar e exercer, plenamente, no campo da Quando a Biblioteca Nacional, o Museu Nacio-
cultura, o conceito de política pública. Para- nal de Belas Artes e o IPHAN foram criados, esta
béns, portanto, aos organizadores, pela es- era uma noção contemporânea e progressista.
colha do tema e das perguntas que serão res- Mas o tempo se encarregou de mostrar que
pondidas pelos participantes. Vou aqui dar era necessário avançar. E os governantes que
algumas contribuições aos debates de vocês, sucederam os fundadores da Biblioteca Nacio-
e quero ter acesso aos desdobramentos. nal, do Museu Nacional de Belas Artes e do IPHAN
Se uso a palavra desafio, é porque ainda não tiveram, infelizmente, a mesma sagacidade.
estamos, de certo modo, na adolescência do Foi apenas no regime militar que a cultura voltou
Ministério da Cultura, na adolescência das po- a freqüentar novamente os salões do poder, não
líticas públicas de cultura, ou seja, na adoles- como enfeite, mas como território de uma inter-
cência do modo como os poderes públicos venção significativa do Estado.
pensam e tratam a cultura. O MinC completou O primeiro governo civil pós-regime mili-
20 anos há cerca de dois meses; a Constitui- tar teve o mérito de criar o MinC e a primeira
ção incorporou artigos específicos sobre o lei geral de financiamento público da cultu-
assunto apenas em 88; e as leis de incentivo ra. Mas o processo de evolução foi parcial-
ora em vigor foram criadas nos anos 90. mente interrompido no governo seguinte,
*
Conferência proferida pelo Ministro da Cultura em 9 de maio de 2005, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
com o desmonte das instituições federais de cul- Dentro do governo, procuramos destacar
tura. Era a política de redução do papel do Estado o caráter estratégico da cultura e das ativida-
aplicada à cultura. Depois, vieram as leis de incen- des de produção e difusão de bens e serviços
tivo e a recuperação lenta daquelas instituições. culturais, demonstrando seu impacto na ren-
O século XXI encontra um Ministério da Cultu- da, no emprego e na formação do capital hu-
ra em busca de programa, identidade e meios. mano da sociedade, seu potencial de instru-
Reduzido ao papel de gestor das leis de incentivo, mento de transformação coletiva e individual.
que apresentam limites e distorções evidentes. Tudo isso para mostrar que o investimento
público em cultura não é secundário, mas de
Assim, é preciso encarar os reflexos de zigueza-
primeira necessidade.
gues do passado: há mais servidores aposentados
do que na ativa; o orçamento é o menor da Finalmente, estabelecemos um diálogo com
Esplanada; instituições, instrumentos e vontades a comunidade de artistas, produtores e estudi-
estão desarticulados; os balcões atendem os “es- osos de cultura, e com a sociedade, no sentido
colhidos”. Como superar este quadro? de afirmar a importância da cultura, seu cará-
ter estratégico, e os valores com os quais passa-
Paradoxalmente, MinC e secretarias de cul-
mos a lidar: cultura enquanto produção sim-
tura de estados e municípios não desenvolve-
bólica, cidadania e economia; democratização
ram a cultura das políticas públicas, a cultura
do acesso à fruição e à produção, pluralidade,
do planejamento, a cultura das ações sistêmicas.
diversidade, identidade, convergência.
E acompanharam de modo desigual a evolu-
Isso tem a ver com uma visão de Brasil que
ção do próprio setor. Por outro lado, a política
incorpora a crença profunda no potencial des-
segue tratando a cultura secundariamente, o
te país e deste povo. Vou me deter um pouco
que se reflete em sua virtual ausência como
neste aspecto. O processo de formação do Bra-
tema de campanha e de governo.
sil e da sociedade brasileira tem como marca
Diante disso, passamos a atuar em três principal a mestiçagem, ou seja, a mistura e a
frentes, de modo articulado. Internamente, reciclagem permanente de valores, referênci-
ampliando o conceito de cultura; valorizan- as, sentimentos, signos e raças.
do os conceitos de política pública, planeja- Esta mestiçagem produziu aqui uma cul-
mento e ação sistêmica; mudando as diretri- tura tão intensa quanto diversa. E fez das múl-
zes e metas; e elevando a capacidade de tra- tiplas expressões culturais do nosso povo o
balho, para dar um sentido prático às novas principal fator de diferenciação e de valori-
visões e atitudes. Reconceituar o território e zação do país no mundo globalizado. Pode-
o objeto eram vitais para empreender o salto mos encontrar no Brasil um grau de diversi-
de qualidade que se desejava. dade comparável ao de poucos países.
Aqui há elementos, traços, temperos, de culturas percebida enquanto tal e aproveitada. O samba
de quase todo o planeta, do passado e do presen- do Rio, o Carnaval de Salvador e Recife, a festa
te, em estado de fusão. de Parintins, assim como o cinema, o teatro e
O instrumento básico da mestiçagem brasi- companhia, constituem economias de alto va-
leira tem sido, desde 1500, a antropofagia cul- lor agregado, elevado dinamismo e grande im-
tural, que pode ser definida como o processo pacto sobre renda e emprego.
pelo qual se absorve, se digere, se transforma e É preciso ver a cultura, portanto, como algo
se devolve ao mundo, na forma de novidade, o essencial, e não apenas como o vaso de flores
caldo cultural gerado pela tradição dos que que ornamenta o lazer da elite. Trata-se de um
formaram esta sociedade, e pelas influências propulsor do desenvolvimento do país; de um
culturais externas que ela sofreu ao longo dos fator de diferenciação e competição. Um instru-
vários séculos de sua existência. mento de transformação e compreensão do
No vasto universo real e simbólico da cultu- mundo o qual merece ser encarado como prio-
ra brasileira pulsa uma produção que vai do ridade governamental e individual, e como canal
erudito ao popular, do pré-histórico ao high- de diálogo vital entre pessoas e instituições.
tech, do clássico ao inovador. Que tem elemen- Muita gente no próprio governo federal,
tos africanos, asiáticos, europeus e indígenas. neste e nos anteriores, tem dificuldade de com-
Uma produção que nasce da criatividade do preender o papel da cultura, sua dimensão
povo brasileiro, se multiplica em sua miscige- estratégica. Não conseguem encaixar a cultura
nação racial, se aprofunda em sua sensibilida- nos rótulos com que trabalham. Não vêem a cul-
de e se potencializa em sua disposição para tura como política social de infra-estrutura, nem
superar as adversidades. industrial. Esta dificuldade tem uma explicação:
Na era da informação, em que o saber e o a cultura encarna tudo isso ao mesmo tempo: é
simbólico tornam-se os principais ativos de um social, é econômica, e é prazer também.
país, de uma empresa e de qualquer organiza- Neste mundo ainda marcado por injustiças e
ção ou comunidade, a vitalidade e a diversida- desigualdades, está provado também que a cultu-
de cultural são fatores decisivos. A cultura é um ra qualifica as relações sociais e reduz os focos de
tesouro, um ativo social e econômico em per- tensão e violência, elevando a auto-estima e o sen-
manente estado de transformação. Que não tido de pertencimento do indivíduo. Ela liga as
pára no tempo e no espaço, e que se revitaliza pessoas, estimula as trocas, aproxima, identifica,
no diálogo entre tradição e invenção. induz à superação, faz pensar, enfim, valoriza o
Pode-se dizer que a produção cultural, em que o ser humano tem de mais humano, para o
todas as suas formas e meios, constitui uma das bem e para o mal. Faz com que a gente seja mais e
principais economias do Brasil, que deve ser vá além, experimentando novos rumos.
Portanto, quando falamos de cultura, fala- música, pelo nosso futebol, pelo nosso cinema,
mos da essência da vida humana. De algo tão pela nossa literatura, pelas manifestações cole-
vital quanto o ar, quanto a natureza. Por isso, é tivas dos brasileiros. Há no Brasil um sentido
necessário conectar a cultura a todas as dimen- evidente de superação, de celebração da vida,
sões da existência, ao que faz o mundo funcionar, de intensidade emocional, de liberdade, que
sobretudo à economia e à política. Algo tão funda- comove quem nos vê, nos ouve, nos toca, nos
mental precisa de atenção, de cuidado, de interes- prova e nos cheira.
se. Precisa do investimento de todos: governos, Trata-se da perfeita antítese da guerra, da
empresas, organizações não-governamentais, ci- intolerância, da hegemonia, da segregação. Não
dadãos. Precisa de eventos como este. podemos perder isso. Não podemos nos cur-
A cada dia, cada viagem, cada conversa, var à barbárie. Não podemos deixar de acredi-
conheço um pouco mais, intuo mais, e vejo tar no sucesso do país. E mais… Além de reco-
que o horizonte se distancia, pois a descober- nhecer e cultivar o que há de bom, temos a
ta mostra que ainda há muito por descobrir. O obrigação de aproveitar o evidente potencial
trabalho como ministro tem sido uma experi- afetivo e econômico da cultura nacional. Deve-
ência de revelação e de encantamento com o mos incorporá-la, como protagonista, ao pro-
país, com o povo brasileiro. E quanto mais jeto de desenvolvimento do país. Não basta cres-
fazemos, mais surge para fazer. De fato, tão cer, não basta distribuir renda; é preciso de-
evidente quanto a riqueza da cultura brasilei- mocratizar o acesso à felicidade.
ra é o seu potencial não-realizado e a Assim como o homem não é apenas o ho-
incompreensão de seu papel. mem econômico, nem apenas o homem social,
Potencial de renda, de emprego, de qualifi- o homem cultural, mas o homem-homem, soma
cação das relações sociais, de auto-estima, de e multiplicação das várias dimensões de sua
soberania, de crescimento individual, de inclu- existência, e de seus encontros, trocas e de-
são social, de cidadania, de sensibilidade e de mais relações, também o processo de desen-
prazer. Faltam recursos, claro. Mas não falta volvimento da humanidade, do planeta e dos
empenho, não falta vontade. E não falta inspira- paises é, necessariamente, econômico, social e
ção. A cultura mestiça do Brasil é a grande con- cultural, tudo-ao-mesmo-tempo-agora, con-
quista deste povo e a sua principal contribui- forme a definição poética e afinada de Arnaldo
ção a um planeta ainda marcado pela guerra, Antunes.
pela intolerância, pela busca da hegemonia e Portanto, nada mais natural do que a incur-
pela segregação. são de um ministro da Cultura, e de um minis-
Não é por acaso que há tanta simpatia pelo tro-artista, por este território que já foi exclusi-
Brasil mundo afora, tanto apreço pela nossa vo de economistas. O território da conexão
direta entre cultura e desenvolvimento. Sinto- fim da Segunda Guerra Mundial, com os traba-
me à vontade para frisar que as políticas de lhos de reconstrução da Europa. Ao longo do
desenvolvimento humano de governos, blocos tempo, o conceito de desenvolvimento foi se
de governos e organismos multilaterais que não tornando mais e mais complexo, como o pró-
considerem a dimensão cultural, e que não se prio contexto, ou a noção que temos dele. No
culturalizem, das duas, uma: ou não visam efe- início, vingou a noção ingênua de que bastaria
tivamente ao desenvolvimento, ou não visam ao investir nas forças produtivas, nos agentes eco-
humano. E porque somos humanos, demasia- nômicos, pois o crescimento econômico resol-
do humanos, é que devemos falar em desen- veria tudo.
volvimento pleno, sem adjetivos. Das visões unidimensionais de desenvolvi-
Creio que um Ministério da Cultura preo- mento chegamos à visão multidimensional, que
cupado com o tema do desenvolvimento pode nos permite pensar o desenvolvimento (e seus
contribuir decididamente, ao se ocupar da di- indicadores) como o processo (e os sintomas)
mensão econômica da cultura e da dimensão de um acesso efetivo, pelo ser humano e pelas
cultural e social da economia. As economias sociedades humanas, ao conjunto dos direitos
criativas (e, portanto, “culturais”) são, entre as humanos, de três tipos: os direitos políticos, ou
atividades econômicas, as que mais se aproxi- seja, a cidadania, a participação e a democra-
mam do conceito de duplo win. Geram rique- cia; os direitos econômicos, sociais e culturais,
za e prazer; produzem bem-estar social e combinados; e os direitos difusos, como o di-
conectam pessoas; valem-se do saber humano reito à cidade, ao ambiente saudável, à igualda-
e o impulsionam. de de oportunidades.
As tecnologias digitais potencializam esta Visto de um ponto de vista cultural, o de-
vocação, ao reduzir os meios físicos de senvolvimento seria o processo negociado en-
armazenamento de conteúdos, elevar a diversi- tre os agentes sociais de apropriação crescente
dade, multiplicar os modos de produção e ace- e efetiva, por todos nós, dos direitos humanos
lerar a difusão desses conteúdos. Uma política fundamentais. E das riquezas e valores gerais.
pública de cultura contemporânea pode ser Quanto maior for a quantidade, a intensidade e a
não apenas compensatória ou inclusiva, no sen- qualidade das trocas entre as pessoas, maiores
tido tradicional, mas geradora de emprego, ren- serão as suas chances de felicidade, de bem-estar,
da e felicidade (e, portanto, de um desenvolvi- de inclusão. E maiores serão as chances de o
mento humano pleno, tendo o homem como desenvolvimento gerar mais desenvolvimento.
parâmetro e meta). Como este processo pode ser induzido?
A idéia de desenvolvimento tem pouco mais Penso que através de quatro políticas comple-
de meio século de existência. Ela começou no mentares. Primeiro, a política de universalização
programas na TV pública e jornais comunitári- repertório, sem que todo o governo abrace as
os, deve produzir uma revolução silenciosa no políticas públicas de cultura.
país, invertendo o fluxo dos processos históri- Se desejamos consagrar o movimento de
cos. Agora será da periferia à periferia, e depois mudança deflagrado pela eleição do presiden-
ao centro. E não mais do centro para a periferia. te Lula; se queremos que este movimento não
Em resumo, o programa é, sobretudo, uma seja superficial, mas profundo, capaz de mer-
política pública de mobilização e encantamen- gulhar no corpo e no espírito do país; então
to social. Uma tentativa de induzir culturalmente não basta elaborar e implementar programas
o processo de desenvolvimento da sociedade setoriais; deve-se cuidar da estruturação, da
brasileira. Uma pequena ilustração de tudo o dinamização e da regulação da economia da
que procurei falar anteriormente. Mais que cultura, na direção de uma auto-susten-
um conjunto de obras físicas e equipamentos, tabilidade inclusiva. Deve-se incorporar uma
ele envolve a potencialização das energias cri- visão estratégica e articulada de cada setor, com-
adoras do povo brasileiro. Não pode ser con- preender seu papel, as especificidades de suas
siderado um simples “deixar fazer”, porque dinâmicas e as contribuições possíveis à gera-
parte de uma instigação, uma emulação, que ção de renda e emprego, à afirmação da iden-
é o próprio do-in antropológico. Mas os ru- tidade nacional e grupal, a requalificação das
mos, as escolhas, as definições ao longo do relações sociais.
processo, são livres. E os resultados, imprevi- Tenho insistido na idéia de que este gover-
síveis e surpreendentes. no, seja na administração direta, seja na admi-
O que acontece quando se solta uma mola nistração indireta, nas empresas públicas e
comprimida? Quando se liberta um pássaro? agências, deve praticar diariamente a
Quando se abrem as comportas de uma repre- fotossíntese política, trabalhando sempre à luz
sa? Veremos... do dia, sem filtros ou anteparos de qualquer
Vocês sabem que tenho empreendido um natureza, de modo a estabelecer uma relação
esforço público para incluir a cultura entre os mutuamente sincera e estimulante com a socie-
itens prioritários da agenda do governo e da dade brasileira. Estamos exercendo este prin-
sociedade brasileira, reiterando diariamente cípio do MinC. Parto ainda de uma indignação
que ela merece tratamento de assunto de Esta- compartilhada por quem está plenamente cons-
do. Estou convencido de que não poderemos, ciente da grandeza deste país e desta socieda-
a despeito do empenho e da vontade política de. Como é possível que uma nação tão rica e
da minha equipe, realizar plenamente as metas plural em manifestações e valores culturais te-
do programa de governo, e as novas metas que nha um Estado tão omisso em sua visão da cul-
a experiência de 30 meses agrega ao nosso tura e das políticas culturais?