Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
O romance tem como protagonista Ricardo Reis, figura literária criada por Fernando Pessoa.
A partir dos dados biográficos do heterónimo pessoano, Saramago constrói a narrativa sobre um médico
exilado no Brasil desde 1919, por motivos políticos, e que regressa a Portugal, em dezembro de 1935.
No romance, Saramago imagina os cerca de nove meses passados por Ricardo Reis em Lisboa até à data
da sua morte, em setembro de 1936.
2.
2.1. o espaço da cidade – Representações do século XX, cidade envolta pela chuva, triste, cinzenta,
sem qualquer atrativo, deserta e imóvel. Metáfora do regime do Estado Novo, que cerca os seus
cidadãos, maioritariamente «súbditos, escravos, submissos, reprimidos, oprimidos», sem vontade
para lutar e para sair da situação em que se encontram.
espaço dominante – cidade de Lisboa;
é um espaço vivido: muitas das descrições e das referências que lhe são feitas dependem da
deambulação de Ricardo Reis pela cidade;
logo transforma-se, frequentemente, num espaço subjetivo – o olhar e as emoções do
protagonista influenciam as referências em paralelo com as que o narrador leva a cabo.
Por vezes, Lisboa é referida globalmente como cidade, sem se falar de locais concretos
“cidade cinzenta” (p.8); “cidade silenciosa” (p.9); “uma cidade interior cercada” (p.174);
Outras vezes, são lugares concretos – ruas, praças, bairros, - que são descritos ou
percorridos. Nestes casos é sobretudo o olhar subjetivo de Ricardo Reis que nos transmite
uma certa imagem da cidade.
Os lugares por onde ele deambula (às vezes como se estivesse apenas a sentir a cidade), tem
significados especiais para ele, que vão estabelecendo os grandes sentidos do romance.
o Cais do Sodré é o local da primeira instalação em Lisboa, logo que desembarca. O facto
de escolher um hotel junto ao Tejo e um quarto com vista para o rio mostra como o olhar
condiciona o reencontro com Lisboa. “Abriu uma das janelas, olhou para fora.” (p. 20) a
observação continua: os hóspedes, o gerente, os criados…
o O Chiado aparece no primeiro passeio de Ricardo Reis por Lisboa (cap.2). O poeta, na
Praça Luís de Camões, observa a estátua do poeta: “há uma claridade branca por trás de
Luís de Camões, um nimbo” (p.35). é um espaço e uma estátua que levam a reflexões
sobre o significado do poeta, da epopeia que ele representa, da história de Portugal e dos
seus mitos.
o Cemitério dos Prazeres é o local do reencontro com Pessoa já sepultado. Como se
tivesse chegado ao seu destino, o heterónimo está agora disponível para um diálogo com
o ortónimo.
o O alto de Santa Catarina é o espaço para onde Ricardo Reis se desloca, depois de viver
no Hotel Bragança. De novo a vista para o rio: “pensar que deste rio partiram, Que nau,
que armada, que frota pode encontrar o caminho” (p. 20). Com alguma ironia, sugere-se
que naquele espaço não podemos esquecer as descobertas portuguesas, o que e
reforçado pela presença de Adamastor, no momento que ali se encontra.
2
a situação histórica que Reis encontra quando chega a Lisboa 1935, resulta de transformações
políticas ocorridas em Portugal acontecidas desde 1926, com a revolução de 28 de maio, a que
se seguiu a formação do Estado Novo salazarista;
O tempo histórico corresponde, então, ao período entre as duas guerras mundiais. Nesse
tempo:
o O estado Novo impôs-se como regime político;
o Apoio do salazarismo aos revoltosos que iniciaram a guerra civil.
Fala-se de tudo isto n’O Ano da Morte de Ricardo Reis, através da ficção e de uma
personagem atenta ao mundo, mantendo-se passivo perante o seu tempo histórico, de acordo
com as epígrafes do próprio romance;
Estão sempre presentes a passividade, sem emoção nem entusiasmo expressos;
O narrador assume a responsabilidade de assumir uma posição critica, recorrendo a
comentários irónicos, chamando-se assim a atenção de quem lê para a gravidade das
mudanças históricas que atingem Portugal e a Europa;
O tempo histórico desdobra-se em dois planos:
o O plano nacional – reforço do salazarismo; um tempo português que quer dar a aparência
de ser pacífico e harmonioso;
o O plano internacional – preparação da guerra civil de Espanha e, sobretudo da Segunda
Guerra Mundial; destaque para as figuras de Hitler e Mussolini.
A indiferença de Ricardo Reis perante o “espetáculo do mundo” tem a ver com a sua maneira
de ser. (ver p. 100). A posição histórica da personagem é a de quem vive num tempo que não
é o nosso. Por isso podemos referir dois tempos históricos:
o O tempo histórico da personagem, que é o de quem está a viver os acontecimentos e a
tornar conhecimento do que dizem e fazem os protagonistas políticos de então;
o O tempo histórico do narrador, que é também o nosso, ou seja, o de quem sabe como a
história evoluiu, depois de 1936, o tal ano da morte de Ricardo Reis.
São frequentes as passagens que marcam o contraste entre o plano nacional “orgulhosamente
sós” e o internacional (p. 438)
o O que se passa em Portugal tem uma dimensão doméstica, popular e festiva;
o O que se passa na Europa tem uma dimensão conflituosa, anunciando a violência de uma
guerra que está próxima.
o A expressão “é lá com eles” confirma o alheamento do país, como se Portugal estivesse
separado do resto do mundo e desprezando o que nele se passava (orgulhosamente sós).
3. Deambulação geográfica
Ricardo Reis viaja, regressa a Portugal e deambula por Lisboa. A deambulação geográfica
está representada desde o início do romance.
o O romance começa com a chegada de um navio a Lisboa, onde vem Ricardo Reis. (p. 7);
a chegada a Lisboa marca o fim de uma deambulação e assume um duplo sentido:
do regresso
do reencontro
o a cidade a que regressa não é a mesma e o reencontro dá-se com uma cidade onde são
visíveis marcas negativas. Um espaço banal marcado por:
o dia chuvoso e escuro em que se dá a chegada (p. 9);
pouco movimento;
grandes charcos provocados pelo entupimento das sargetas; as tabernas;
as luzes viscosas;
a entrada para o labirinto (p.19)
o o sentido do regresso traz consigo alguns outros sentidos que lhe estão ligados:
implica um reencontro e desde logo uma comparação do que agora se vê com o que
antes se conhecia;
nesse movimento, o trabalho da memória é decisivo: é ela que orienta a comparação
entre o antes e o agora;
o regresso é também uma oportunidade para que o regressado avalie a sua
identidade, talvez afetada pela passagem do tempo e pela mudança das coisas.
o Depois de instalado, Ricardo Reis procura reconhecer a cidade e o país. Esse
reconhecimento é feito com uma identidade própria:
Revelada pela poesia que é citada;
Alguém que se abandona ao destino;
~indiferente a grandes emoções;
Limitando-se a comtemplar o «espetáculo do mundo»
Retirando da vida uma sabedoria de vida que lhe basta como felicidade possível.
o A deambulação de Reis está de acordo com esta atitude e do modo como se dá o seu
reencontro com Lisboa.
Deambular não é o mesmo que andar ou caminhar.
Quem caminha ou anda tem, normalmente, uma orientação ou desejo de
chegar.
Quem deambula desloca-se ao acaso sem um rumo determinado, o que
permite estabelecer uma relação com a imagem do labirinto.
Quem entra num labirinto procura uma saída que não encontra (que pode ser
o da sua própria identidade)
o No terceiro “capítulo” Reis vagueia pela cidade “como se estivesse num labirinto que o
conduz sempre ao mesmo lugar” (p77) como se procurasse alguma coisa ou alguém que
não encontra. Esse alguém pode ser a sua própria identidade.
É um percurso cheio de memórias;
Destaca-se o Chiado, espaço literário, em função das recordações que guardam –
Eça e Cesário;
o Diferente da deambulação por Lisboa é a viagem para Fátima:
A personagem tem um propósito, encontrar Marcenda;
Não existe a sensação de acaso e de abandono que domina a deambulação;
A memória continua ativa (p. 361)
A descrição depende do olhar de Reis que comtempla “o espetáculo do
mundo”;
A esse olhar associa-se a memória;
A memória leva a uma comparação com o olhar do presente- um espaço (e
um país) parado no tempo;
A viagem a Fátima permite uma visão do Portugal do interior diferente da capital;
A duplicidade de interesses (p. 372)
O fenómeno religioso perante o qual fica indiferente;
O da exploração comercial que aparentemente impressiona Reis – olhar
crítico.
4. Viagem literária
Fazem parte dessa viagem figuras e espaços importantes do romance, bem como a memória
de leituras do protagonista.
o A viagem literária resulta
em parte da deambulação física. Nela passa por lugares com memórias literárias
O Chiado;
As estátuas de escritores que representam ou acentuam a memória literária;
de leituras feitas por Reis
da escrita ou evocação de poemas de sua autoria.
da voz do narrador que também contribui para trazer ao relato citações literárias, por
vezes modificadas.
Isto significa que a expressão viagem literária tem aqui um significado simbólico e cultural:
viajamos literariamente porque participamos em trajetos em que é muito forte a presença da
literatura, num romance em que o protagonista é um poeta. As “paisagens” por onde passamos
evocam textos que têm um significado especial para a história contada n’O Ano da Morte de
Ricardo Reis.
No início, o narrador diz “Aqui o mar acaba e a terra principia”. Nas últimas palavras do
romance afirma-se “Aqui onde o mar acabou e a terra espera.”
N’Os Lusíadas diz-se “onde a terra se acaba e o mar começa” significando que Portugal está
situado no ponto mais ocidental da Europa.
No romance de Saramago inverte-se o sentido do verso. Agora o mar termina e a terra
principia. A viagem terminou e começa o reencontro com a terra portuguesa. É de um regresso
que se trata, mas um regresso que faz parte de uma viagem literária:
o A relação da epopeia mostra que ela se relaciona com um percurso de vida tocado pela
literatura em que se fala da partida, da ausência e do regresso. É isso que é vivido por
Ricardo Reis.
o Quem volta à pátria é um poeta. A sua viagem não é apenas a navegação pelo mar, mas
também por textos e por escritores que aparecem frequentemente no relevo no relato, a
começar por Pessoa.
Intertextualidade: José Saramago, leitor de Luís de Camões, Cesário Verde e Fernando Pessoa.
Um texto literário é dinâmico, constrói-se em diálogo com outros textos, que podem estar
presentes nele de várias formas.
Distingue-se do plágio, pois este é apropriação indevida de textos de outras pessoas.
Nesta obra é claro o contributo de outras obras para a construção do romance:
o Referência ao romance The God of the Labyrinth, autor e livro inventados, mas é através
desta obra literária que se sublinha a importância do sentido do labirinto sugerido por aquele
título. Reis desloca-se em Lisboa como se estivesse perdido e à procura de saber quem ele
mesmo é.
o Num certo momento da ação, Reis é estimulado a ler A Conspiração, de Tomé Vieira. Pela
leitura ficam mais claros os sentidos políticos de salazarismo, expressos no romance. (p.
284)
Há vários diálogos intertextuais que são importantes para o avanço da ação e para a
caracterização das personagens.
O facto de Reis ser um poeta criado por outro poeta torna mais intensa a presença, no texto do
romance de outros textos que nele são citados ou parafraseados.
o “Marcenda, estranho nome, nunca ouvido, parece um murmúrio, um eco, uma arcada de
violoncelo, les sanglots loings de l’automne…” (p 112) (os versos citados ou transformados
evocam, por intertextualidade, uma atmosfera musical suave, que está de acordo com
aquilo que existe de delicado na personagem Marcenda.
Saramago leitor de Camões, Cesário Verde e Pessoa e dos seus heterónimos, adquirindo uma
cultura literária que foi importante para a escrita do romance e para a prática da
intertextualidade.
o Leitor de Camões:
o O autor de Os Lusíadas preenche uma parte da viagem literária que na obra de Saramago
se leva a cabo (p. 208)
A presença de Camões é uma constante na cultura portuguesa e também nas
deambulações do protagonista;
A sua imagem, como personalidade histórica e literária, depende do olhar de quem o
vê (neste caso o olhar de Ricardo Reis)
A poesia Camoniana ocupa um lugar importante na memória de Reis: “braço às
armas feito e mente às musas dada” é uma citação adaptada de Os Lusíadas que
ilustra a dupla condição de combatente e de poeta.
No presente de Reis, Camões parece causar indiferença, mais do que admiração,
como se a epopeia estivesse esquecida (o livro cerrado).
o Os reflexos de um autor podem assumir duas formas:
A lembrança da imagem cultural desse autor como parte da nossa história;
Evocação explícita dos seus textos.
o Na abertura e no encerramento temos as paráfrases de um verso de Os Lusíadas – neste
caso a paráfrase realiza uma vulgarização da epopeia, retirando-lhe solenidade. A epopeia
deixou de fazer sentido.
o O narrador não valorizou os temas épicos valorizados pelo salazarismo (a expansão, o
heroísmo, a evangelização, etc.), dando atenção a outros aspetos da figura do poeta,
cujos versos frequentemente citou ((p. 67).
o Semelhante situação acontece com as estátuas de Camões (p. 77) e do Adamastor (p.
256; p.308).
Cultiva uma memória poética ativa. Ao deambular, vêm-lhe à cabeça poemas que
escreveu (p. 71)
Em episódios da vida pessoal a poesia é uma resposta a acontecimentos concretos
(p.157)
Referências às suas dificuldades na criação poética (p. 206)
Associação de situações concretas com odes escritas no passado (revolta dos
marinheiros p. 489)
o Enquanto Pessoa, como autor de uma ampla família literária:
Fernando Pessoa entra na vida de Reis como um fantasma, exercendo sobre ele
uma certa autoridade;
O facto de ser autor/criador de Reis e de já ter morrido assegura-lhe distanciamento
e independência de juízos.
A sua presença aparece de três formas:
Nos encontros com Pessoa, dando lugar a conversas de conteúdo diverso (pp-
132, 209, 175, 327, 331,
Nas citações da poesia de Pessoa, (p. 220);
Na referência ocasional aos heterónimos (Campos - p. 175; Caeiro – p. 372)
10
11
Personificação «[…] a chama, dividida em mil pequenas línguas azuis, murmurava sem parar.»
(p. 168).
Uso expressivo do adjetivo «[…] violento odor de cebola, era o agente Victor, reconheceu-o
logo, há cheiros que são assim, eloquentes, valem cada um por cem discursos […]» (p. 384).
Certos discursos das personagens são integrados no romance por citação, por resumo ou por
paráfrase.
As falas das personagens são um outro discurso, numa tentativa de autenticidade – os
diálogos
o Neste caso as personagens umas vezes são identificadas (com Lídia), outras vezes não
são;(p. 293);
Registo em discurso direto e indireto ou indireto livre. «[…] Salvador respondeu que não, que
sempre ouvia as badaladas da meia-noite em casa, era uma tradição da família, comiam doze
passas de uva, uma a cada badalada, ouvira dizer que dava sorte para o ano seguinte, no
estrangeiro usa-se muito, São países ricos, e a si, acha que lhe dá realmente sorte, Não sei,
não posso comparar […]» (p. 95).
12