E-ISSN: 2176-9575
revistaargumentum@yahoo.com.br
Universidade Federal do Espírito Santo
Brasil
ANTUNES, Ricardo
Trabalho uno ou omni: a dialética entre o trabalho concreto e o trabalho abstrato
Argumentum, vol. 2, núm. 2, julio-diciembre, 2010, pp. 09-15
Universidade Federal do Espírito Santo
Vitória, Brasil
Ricardo ANTUNES**
N
os últimos anos, ao mesmo que visualiza no fim do trabalho abstrato
tempo em que perdeu relevân- (e, por conseqüência, na eliminação do tra-
cia o debate em torno do fim do balho) o caminho necessário para a eman-
trabalho, dada sua monumental fragili- cipação, os interlocutores preferenciais
dade teórica e empírica, obteve certo que inspiram nosso contraponto crítico.
destaque um conjunto de formulações
que unilateralizam o trabalho, associando- I
o diretamente ao capitalismo e seu traba- É por demais conhecida a passagem de-
lho assalariado e abstrato, de tal modo que cisiva de O Capital, em que Marx apre-
qualquer esforço de emancipação huma- senta sua concepção de trabalho. Ao di-
na e societal somente poderia ser viven- ferenciar o pior arquiteto da melhor abe-
ciada a partir da negação do trabalho. lha, ele afirma que o arquiteto
Ainda que a linhagem de autores seja [...] obtém um resultado que já no início
ampla, poderíamos destacar aqui nossos deste existiu na imaginação do trabalha-
dor, e portanto idealmente. Ele não apenas
principais interlocutores. No entanto,
efetiva uma transformação da forma da
embora estes tenham sido tematizados matéria natural; realiza, ao mesmo tempo,
diretamente em vários outros textos, a- na matéria natural seu objeto, que ele sabe
qui não o faremos. Nosso diálogo tem que determina, como lei, espécie e o modo
Robert Kurz e sua crítica à subordinação de sua atividade e ao qual tem de subordi-
nar sua vontade (MARX, 1983, p. 149-150).
do trabalho à forma-mercadoria, André
Gorz e sua formulação mais recente da
E complementa:
imaterialidade do trabalho descompensan-
do a lei do valor e ainda John Holloway
*Esse artigo retoma idéias apresentadas nos livros abaixo mencionados, em particular Adeus ao Traba-
lho? e Os Sentidos do Trabalho, e foi recentemente publicado no exterior, com algumas alterações em:
ANTUNES, Ricardo. La dialética entre el trabajo concreto y el trabajo abstracto. Herramienta: debate y
critica marxista, Buenos Aires, n.44, 2010. Disponível em: <http://www.herramienta.com.ar/revista-
herramienta-n-44/la-dialectica-entre-el-trabajo-concreto-y-el-trabajo-abstracto>. Acesso em: ago. 2010.
tem para consumir, que quanto mais va- luntário, mas compulsório, trabalho for-
lores cria, tanto mais se torna sem valor e çado. Por conseguinte, não é a satisfação
sem dignidade, que tanto melhor forma- de uma necessidade, mas somente um
do o seu produto, tanto mais deformado meio para satisfazer necessidades fora
o trabalhador, que tanto mais civilizado dele (MARX, 1983, p. 153).
o seu objeto, tanto mais bárbaro o traba-
lhador, que quanto mais poderoso o tra- Seria útil recordar que, em seus Extratos
balho, tanto mais impotente se torna o de Leitura sobre J. Mill, no qual apresenta
trabalhador, que quanto mais rico de pela primeira vez sua concepção de tra-
espírito o trabalho, tanto mais o traba- balho e alienação, Marx já antecipava sua
lhador se torna pobre de espírito e servo formulação excepcional rica e dialética:
da natureza (MARX, 1983, p. 152).
Meu trabalho seria livre projeção exterior
O resultado do processo de trabalho, o de minha vida, portanto desfrute de vida.
Sob o pressuposto da propriedade privada
produto, aparece, então, como algo alheio (em troca) é estranhamento de minha vida,
e estranho ao produtor. Tem-se, então, que posto que trabalho para viver, para conse-
essa realização efetiva do trabalho apare- guir os meios de vida. Meu trabalho não é
ce como desefetivação do trabalhador vida. [...] Uma vez pressuposta a proprie-
(MARX, 1983, p. 149). Essa condição de dade privada, minha individualidade se
torna estranhada a tal ponto, que esta ati-
alienidade (que Marx também denomina
vidade se torna odiosa, um suplício e, mais
como estranhamento, dado que a ênfase é que atividade, aparência dela; por conse-
a pura negatividade) não se efetiva ape- qüência, é também uma atividade pura-
nas no resultado da produção, na perda mente imposta e o único que me obriga a
do objeto produzido, mas abrange tam- realizá-la é uma necessidade extrínseca e
acidental, não a necessidade interna e ne-
bém o próprio ato de produção, pois esta cessária (MARX, 1978, p. 293 e 299).
já se efetiva no espaço mesmo atividade
produtiva alienada. Desse modo a alienação, enquanto ex-
Em suas palavras: no estranhamento do pressão de uma relação social fundada
objeto do trabalho só se resume o estra- na propriedade privada, no dinheiro e
nhamento, a alienação na atividade no trabalho abstrato, apresenta-se como
mesma do trabalho (MARX, 1983, p. 152- "[...] abstração da natureza específica,
153). pessoal [...]" do ser social que "[...] atua
como homem que se perdeu a si mesmo,
O que significa dizer que, sob o capita- desumanizado [...]" (MARX, 1978, p.
lismo, o trabalhador não se reconhece, 278).
mas se nega no trabalho:
Alienado e estranhado frente ao produto
Daí que o trabalhador só se sinta junto a do seu trabalho e frente ao próprio ato de
si fora do trabalho e fora de si no traba- produção da vida material, o ser social
lho. Sente-se em casa quando não traba- torna-se um ser estranho frente a ele
lha e quando trabalha não se sente em mesmo: o homem estranha-se em relação
casa. O seu trabalho não é, portanto, vo-
11
ARGUMENTUM, Vitória, v. 2, n. 2, p. 09-15, jul./dez. 2010
Ricardo Antunes
ao próprio homem. Torna-se, portanto, homens que para eles aqui assume a
estranho em relação ao próprio gênero forma fantasmagórica de uma relação
humano (MARX, 1978, p. 158). entre coisas" (MARX, 1983, p. 71).
mensões sociais do próprio trabalho, tos (em inglês) para melhor caracterizar esta di-
mensão ampla do trabalho: work e labour. O pri-
mostrando-as como inerentes aos produ- meiro termo (work), dotado de positividade, mais
tos do trabalho. Mascaram-se as relações próximo da dimensão concreta do trabalho, que
sociais existentes entre os trabalhos indi- cria valores socialmente úteis e necessários. O
viduais e o trabalho total, apresentando- segundo termo (labour) expressa a dimensão co-
as como relações entre objetos coisifica- tidiana do trabalho sob a vigência do capitalismo,
mais aproximada à dimensão abstrata do traba-
dos: "[...] não é mais nada que determi- lho, ao trabalho alienado e desprovido de sentido
nada relação social entre os próprios humano e social. Ver a obra de Antunes (2010;
2010a).
ARGUMENTUM, Vitória, v. 2, n. 2, p. 09-15, jul./dez. 2010 12
Trabalho uno ou omni: a dialética entre o trabalho concreto e o trabalho abstrato
Do que foi indicado acima, depreende-se lho enquanto sinônimo de autoatividade, isto
que, não é só possível, mas absolutamen- é, atividade livre baseada no tempo disponí-
te necessário conceber uma forma de so- vel.
ciabilidade que recuse o trabalho abstra-
to e assalariado, resgatando o sentido Sabemos que, com o domínio da lógica
original do trabalho como atividade vi- do capital e seu sistema de metabolismo
tal. Por isso cremos que um desafio im- societal, a produção de valores de uso soci-
perioso de nosso tempo é construir um almente necessários subordinou-se ao seu
novo sistema de metabolismo social, um valor de troca. E, para tanto, as funções
novo modo de produção e da vida fundado produtivas e reprodutivas vitais, bem
na atividade livre, autônoma e auto determi- como o controle e o comando do seu pro-
nada, baseada no tempo disponível para cesso foram radicalmente separadas entre
produzir valores de uso socialmente necessá- aqueles que produzem e aqueles que con-
rios, contra a produção heterodeterminada trolam. Como disse Marx (1983), o capital
(baseada no tempo excedente para a operou a separação entre trabalhadores e
produção exclusiva de valores de troca meio de produção, entre o caracol e a sua
para o mercado e para a reprodução do concha, aprofundando-se a separação en-
capital). O trabalho abstrato não nasceu tre a produção voltada para o atendimen-
com o trabalho em sua forma primeva, to das necessidades humano-sociais e as
mas pela intercorrência e interposição da necessidades de auto-reprodução do ca-
“[...] segunda natureza [...]” (MARX, pital. Para mantermos a excelente metá-
1983), que introduziu a mediação do di- fora, a reunificação do caracol e sua con-
nheiro como capital em todas as ativida- cha, do trabalho e seu pleno controle e
des humanas e, em especial, no trabalho. autonomia no mundo da produção social,
Portanto, o primeiro desafio, em nosso é imperativo central.
entendimento, é eliminar o trabalho abs-
trato – criação pelas mediações oriundas da O segundo princípio societal vital, im-
introdução de “[...] segunda natureza [...]” prescindível para a instauração de uma
(MARX, 1983). outra forma de sociabilidade – o que
Marx denominou com associação livre dos
Para tanto, dois princípios vitais se im- trabalhadores ou dos trabalhadores livre-
põem: mente associados –, será dado pela conver-
1) o sentido societal dominante será voltado são do trabalho em atividade vital, livre,
para o atendimento das efetivas necessidades auto-atividade, fundada no tempo disponí-
humanas e sociais vitais, sejam elas materiais vel.
ou imateriais, sem nenhuma intercorrência
do capital, que deve ser eliminado; Isso, por sua vez, significa recusar a dis-
2) o exercício do trabalho, desprovido de suas junção interposta pelo capital, entre tem-
formas distintas de assalariamento e aliena- po de trabalho necessário para a reprodu-
ção – em suma, de trabalho abstrato –, so- ção social dos trabalhadores e tempo de
mente poderá efetivar-se através da recupera- trabalho excedente para a reprodução do
ção/recriação, em novos patamares, do traba- capital. A instauração do princípio livre e
13
ARGUMENTUM, Vitória, v. 2, n. 2, p. 09-15, jul./dez. 2010
Ricardo Antunes
novo sentido ao trabalho e à vida, ambas, ______. O Capital. São Paulo: Abril
então, dotadas de verdadeiro sentido. Cultural, 1983. v. 1, Livro Primeiro,
tomo 1, p. 149-150.
Uma vez que, durante o capitalismo, as
funções produtivas básicas bem como o
seu controle foram radicalmente separa-
dos dos trabalhadores, entre aqueles que
produzem e aqueles que controlam os mei-
os capitalistas de produção, recuperar a
unidade, hoje, entre o trabalho e a pro-
priedade efetiva dos meios de produção,
entre o caracol e sua concha conforme a
bela metáfora de Marx, é o maior desafio
da nossa sociedade. O que será um bom
começo para o socialismo no século XXI.
Referências
15
ARGUMENTUM, Vitória, v. 2, n. 2, p. 09-15, jul./dez. 2010