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Print version ISSN 0104-7183
https://doi.org/10.1590/S0104-71832014000200002
ARTIGOS
RESUMO
ABSTRACT
This article revisits the writings of Carolina Maria de Jesus, in particular her book,
Quarto de despejo [Child of the dark in the English edition]. It aims to reflect upon
her writing (and her very act of writing) as a mode of elaborating her social
condition of existence. The self-fashioning of her 'person' in her writing involves the
processual perception of her social suffering and the establishment of a heightened
conscience of her corporeality. Exploring the concept of social suffering, as an
experiential and cognitive process, the article analyses the role of her painfully
critical writing in grasping the world around her, in revealing her own self and in
expressing her revolt as she becomes conscious of her social condition. It outlines,
as well, the "embodiment of her social suffering" through the concept of a
'cosmography of hunger', which, in Carolina's writing, takes on a complex
elaboration of cartographies joining together body and space, urban territories of
deambulation and bodily organs. Her social suffering is fleshed out through writing
into the possibility of agency, revolt and response, which promotes the
transformation of her social condition of existence.
Nasce em 1914 e morre em 1977, aos 62 anos de idade. Passa sua infância em
Sacramento, interior de Minas Gerais, onde aprende a ler cursando até o segundo
ano primário. No tempo em que reside em Minas trabalha na roça com a mãe e
depois se emprega como doméstica. Em 1937, aos 23 anos, muda-se para São
Paulo. Trabalha como empregada doméstica habitando em cortiços na região
central da cidade. A partir das reformas urbanas da década de 1940 muda-se em
1948 para a favela do Canindé, às margens do rio Tietê (Silva, 2006, p. 9). A
atividade exercida por mais tempo em São Paulo é como catadora de papel pelas
ruas da cidade. Deambula pela cidade, produzindo circuitos, trajetos, catando
papéis que são convertidos em alimentos de seu corpo e de seu espírito. No mesmo
lixo onde cata os papéis para venda encontra os cadernos que se tornam "seus
diários", transformam-se em seu "ideal", no objetivo de sua vida. Em 1955 inicia a
escrita do que designa seu "estranho diário", onde relata as agruras de seu dia a
dia, suas reflexões sobre seu sofrimento, sua fome, sua ira contra os políticos, sua
obsessão em transformar sua vida através da escrita, o desejo de escrever um livro
e tornar-se escritora.5 Sua escrita é cotidiana, segue o ritmo dos dias que coincide
com a própria construção e elaboração de uma história de seu sofrimento no
cenário da favela. Em 1958 encontra, por acaso, na porta de sua casa um jovem
jornalista, Audálio Dantas, que faz uma reportagem sobre a expansão das favelas
nas margens do Tietê. Esse encontro revira sua vida e dá visibilidade à sua escrita.
A matéria do jornal passa a ser sobre os diários de Carolina. Em 1960, Audálio
compila seus diários e Carolina publica seu primeiro livro: Quarto de despejo. O
livro vende dez mil exemplares na primeira semana e ganha sucessivas tiragens
feitas pela Editora Livraria Francisco Alves, chegando a cem mil exemplares em seis
meses.
Carolina Maria de Jesus foi definida como "grafomaníaca" (Rufino, [s.d.]). Os 140
cadernos, as mais de 4500 páginas escritas, atestam sua compulsão para escrever.
A escrita não é escolha, mas destino. É o modo como se situa no mundo, fala da
vida, do sofrimento, dos seus maiores personagens: a favela e a fome. "Favela",
"fome", "sofrimento" são referências constantes em suas publicações e em seus
escritos. O seu "estranho diário", como nomeava seus cadernos, era o suporte
material pelo qual Carolina constituía sua "pessoa" pelo trinômio "mulher", "preta",
"pobre" atravessando relações de gênero, raça e classe social. Seu "estranho
diário" é um modo visceral de tomada de consciência de si e dos outros, de sua cor
da pele, do cenário em que vive e pelo qual deambula pelas ruas de São Paulo à
cata de papel: "Parece que eu vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a
felicidade." (QD, p. 72).8 Sua vida é literalmente a de "papeleira", feita de papéis
que vende e dos cadernos que escreve. O papel é um devir: meio para encontrar
comida e suporte para sua escrita. O papel produz seu corpo e seu espírito, é o que
a anima. Carolina tem "fome" de papel: cata e escreve. Sua literatura nasce do
lixo, é o seu "achado".9
Carolina constrói sua pessoa pela escrita, pela autobiografia que nomeia seu sofrer,
como sofre na condição do grapho,11 isto é, o modo como ela dá forma à sua vida.
Seu grapho não é uma construção de um mundo ficcional, mas um tornar-se seu
próprio mundo, seu mundo refeito, o da sua vida, o da favela. Parafraseando Das
(2006, p. 7): a escrita para Carolina revela mais sobre ela mesma do que tinha
consciência sobre si própria.
Olhemos mais de perto como sua escrita acontece no contexto de produção da sua
individualidade. Seus diários são o modo de situar o novo ambiente, de transformar
a favela (como exterioridade) em uma interioridade. Sua escrita não é apenas uma
expressão de sua subjetividade mas um modo de produção do sujeito, a condição
de sua própria experiência no mundo (Das, 1994, p. 53, 2006, p. 4).17 A construção
do personagem Carolina através da escrita como um modo de potencializar sua
agência se revela na atitude de Carolina frente aos seus escritos, vendo-os como
um modo de redenção, de acabar com seu sofrimento, de sair da favela, de ter
uma "casa de alvenaria". Se a escrita engendra o "quarto de despejo", localização
espacial de sua condição social na favela, pode, também, tornar possível a
emergência da "casa de alvenaria", outra espacialidade que nomina seu segundo
livro baseado em seus diários. O ato de escrever cria elos possíveis entre o mundo
da vida e o mundo da escrita. A escrita a faz reviver aquele seu mundo, mas o
revive no grapho. O sentido de grapho sintetiza bem o escrever de Carolina: não é
propriamente escrita ou letra, mas a força mesma de um traço que produz sua
inscrição no mundo.
Carolina tinha plena consciência de que sua escrita é mais do que sua revolta, mais
do que seu grito ou pedido de socorro. É, sobretudo, uma forma de dar-se conta de
sua própria existência, ressignificando seu cotidiano de catadora de papel como
evento extraordinário através da escrita. Sua escrita, ao reviver os acontecimentos
passados, seus infortúnios, suas peripécias, seus descontentamentos, suas
felicidades ganha forma catártica, ritualiza-se.
Cavell (2006, p. xiv) relaciona a noção de catarse, proposta por Aristóteles para
explicar os efeitos da tragédia, ao ato de testemunhar dando, assim, maior precisão
ao conceito de testemunho estabelecido por Das (2006): momento de purgação e
purificação das emoções cujo efeito é a produção de uma renovação e restauração.
Nada mais adequado para se pensar o sentido do diário de Carolina como ato de
testemunho que recria sua vida na escrita de forma sinestésica ao invocar
emoções, sensações, expressões (Alonso; Toniosso 2009, p. 3). O seu testemunho
é a "criatividade de sua vida", vivida nessa dimensão estética de seus escritos que
purgam e purificam as emoções a partir de uma relação estreita entre violência e
subjetividade (Das, 2006, p. 60, 78, 237). Esse estado catártico do escrever produz
clarões, lampejos de reflexão sobre sua condição de sujeito biográfico e social.
Subjetividade para Carolina é a condição mesma de sua escrita, um modo de falar
de si para falar da favela, para chegar ao mundo, à política, às injustiças sociais.
[...] contei para D. Angelina que eu havia sonhado que tinha comprado um terreno
muito bonito [...]. Ela disse-me que só mesmo no sonho é que podemos comprar
terrenos. A coisa mais linda é o sonho. Achei graça nas palavras da D. Angelina,
que disse-me a verdade. O povo brasileiro só é feliz quando está dormindo. (QD, p.
120).
Sua imaginação e seu sonho são, sobretudo, recriação dos espaços reais da cidade
em que habita ao estabelecer uma consistente oposição entre as margens e o
centro de São Paulo. Constrói uma favela como espaço fora da cidade, enquanto
recusa de cidade:
A "periferia" de São Paulo nos anos 1950 estava às margens do rio Tietê.
Um circuito é traçado pelos passos de Carolina em seu trajeto em busca de papel
para venda nos depósitos; percorrer esse espaço é o que garantia sua
sobrevivência.19 O circuito de suas deambulações faz coincidir regiões geográficas
com espaços de sofrimento e de felicidade. Assim, os escritos de Carolina são como
que cartografias do sofrimento inscritas em um determinado circuito da
precariedade urbana. Sua existência ganha a mesma dimensão de precariedade do
espaço que habita, sua vida é descrita do mesmo modo que a favela: "sucursal do
inferno ou o próprio inferno" (QD, p. 145).
Essa condição de revolta pelas agruras da vida ganha potência quando Carolina
escreve sobre os ensinamentos que recebe de Frei Luiz, que diz para as pessoas
que estas têm de ser humildes. Carolina revida pela escrita:
[...] se o Frei Luiz fosse casado e tivesse filhos e ganhasse salário mínimo, aí eu
queria ver se o Frei Luiz era humilde. Diz que Deus dá valor só aos que sofrem com
resignação. Se o Frei visse os seus filhos comendo gêneros deteriorados, comidos
pelos corvos e ratos, havia de revoltar-se, porque a revolta surge das agruras. (QD,
p. 76).
A escrita torna-se a razão de viver, sua defesa, seu ataque: o modo como constrói
sua pessoa modelando e sendo modelada pelo sofrimento que, para Carolina, se
resume no próprio ato de viver: "não há coisa pior na vida do que a própria vida"
(QD, p. 145).
Essa recusa do mundo pelo ato de escrever é o modo através do qual Carolina
expressa seu ideal, sua busca, seu projeto de vida e de transformação. Quando um
dos seus namorados, o "Senhor Manuel", a pede em casamento, ela o rejeita para
continuar sua escritura do mundo. Reflete: "[...] um homem não há de gostar de
uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita
com lápis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o
meu ideal." (QD, p. 44). Carolina assume a condição de "renunciante" em favor da
escrita (Dumont, 1985, p. 38), pois a escrita é o que lhe assegura uma alteridade
essencial com a favela, com sua vida, com seu sofrimento. Viver para escrever e
escrever para viver é o seu modo de renunciar ao mundo.
Esse seu estar fora-do-mundo pela escrita era percebido pelos moradores da favela
que entendiam seu ato de escrever como negação e distanciamento daquele
mundo. Sua escrita era condenada e, ao mesmo tempo, temida: "Sentei ao sol para
escrever. A filha da Silvia, uma menina de seis anos passava e dizia: Está
escrevendo, negra fedida! A mãe ouvia e não repreendia. São as mães que
instigam." (QD, p. 24). Carolina, em represália a essa ofensa, parte para o ataque,
transformando sua escrita em um modo de revide, assumindo a posição de estar
fora daquele mundo: "Vocês são incultas, não podem compreender. Vou escrever
um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês
me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradáveis me
fornecem os argumentos." (QD, p. 17). Em seguida diz que Silvia, mãe da menina
que a xingou pediu para "retirar o seu nome do meu livro" (QD, p. 17). O seu diário
era a prova de que Carolina tinha criado uma poderosa arma contra seu sofrimento,
um distanciamento necessário daqueles que no seu entender eram responsáveis
pelo seu sofrer: a favela e os favelados.
Carolina passa a manipular sua atividade de escrever como modo de produzir sua
própria estranheza e estranhamento: "As rascoas da favela estão vendo eu
escrever e sabem que é contra elas. Resolveram me deixar em paz." (QD, p. 18).
Muitas pessoas a incitavam a colocar todos que agiam incorretamente em seu
diário, outras tinham medo de entrar em "seu estranho diário": "Os homens
vagabundos querem tirar a bola das crianças. Os meninos jogam pedras nos
marmanjos. Eles querem bater nas crianças. Quando me veem ficam quietos
porque ninguém quer entrar no meu estranho diário." (QD, p. 54).
Seu sofrimento expresso pela escrita assume esta potência revolucionária de poder
transformar o mundo pelas palavras, de transformar sua vida e a dos outros. O
poder contagiante e denunciativo de sua escrita é atestado em uma passagem em
que conta que quando passava pela Avenida Tiradentes, alguns operários que
deixavam a fábrica disseram para Carolina: "Já que você gosta de escrever, instiga
o povo para adotar outro regime." (QD, p. 100). Em seguida o mesmo operário
explicita a condição de seu sofrimento, a fome, o que confirma que sua escrita é
percebida como um modo de dar conta de seu sofrimento. O operário lhe pergunta:
"É verdade que você come o que encontra no lixo?" Carolina responde: "O custo de
vida nos obriga a não ter nojo de nada. Temos que imitar os animais." (QD, p.
100).
Wittgenstein (1958, p. 49) recuperado por Das (2006, p. 39-40) propõe uma
figuração sobre dor e corporalidade:
Suponham que eu sinto uma dor que, dada unicamente a evidência da dor, por
exemplo, com os olhos fechados, eu chamaria uma dor na minha mão esquerda.
Alguém me pede para tocar o lugar doloroso com a minha mão direita. Faço-o e ao
olhar em volta apercebo-me de que estou a tocar na mão de uma pessoa que se
encontra perto de mim... a idéia de sentir dor no corpo de outra pessoa.23
Essa formulação sobre o sentir a dor de outro corpo parece ser uma possibilidade
de criar uma percepção cognitiva através da subjetividade e da experiência de
outrem. A escrita de Carolina realiza esta possibilidade de "sentirmos a dor no seu
corpo".
Seu corpo dói, tem fome, anda, se cansa, cata, transpira, sua, fede e escreve. Seu
corpo é produto e é produzido pelo entrelaçamento de suas práticas diárias.
Carolina é prisioneira de um vaivém infinito que nunca cessa: precisa de seu corpo
para catar papel que por sua vez é transformado em combustível (físico e mental)
para seu corpo. Seu corpo como máquina dá sinais de desgaste em suas
engrenagens, mas deve sempre continuar: deambular, andar, doer, produzir.
A comida para Carolina é uma literalidade, é combustível. Daí sua urgência em ter
o que comer, seu desespero em relação à fome. Em Quarto de despejo a fome é
figurada como cosmografia, o desenho uma região no mundo, a favela, e em seu
corpo, seu estômago. Carolina a remarca a cada duas páginas, escreve 70 vezes a
palavra "fome" produzindo múltiplas associações. Múltipla e única, reiterativa, ecoa
no leitor insistentemente: fome, fome, fome, fome... Seu reverso, "comida",
Carolina a faz, também, ecoar: "A frase comida ficou eclodindo dentro do meu
cérebro. Parece que o meu pensamento repetia: Comida! Comida! Comida!" (QD, p.
153).
A fome é impulso para viver e vontade de morrer. Carolina ao dizer que não desiste
da vida se pergunta: "Quero ver como é que eu vou morrer." E responde com a
linguagem fisiológica da fome: "Ninguém deve alimentar ideia de suicídio." (QD, p.
55, grifo meu). Dois dias depois retorna ao mesmo tema em seu diário: "Hoje não
temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei
meus filhos e fiquei com dó. Quem vive, precisa comer." (QD, p. 153). O tema do
suicídio é recorrente e a desistência de fazê-lo a impulsiona a justificar uma
redefinição de seu mundo quando passa a aceitar a ideia de comer lixo: "Quando
eu encontro algo no lixo que eu posso comer, eu como. Eu não tenho coragem de
suicidar-me. E não posso morrer de fome." (QD, p. 141).
Carolina insiste em afirmar que a fome não é seu lamento, é seu sofrimento no
sentido de que lhe ensina, "a fome é professora" (QD, p. 26), a fome é uma
"sinfonia" (QD, p. 56), "é preciso conhecer a fome para saber descrevê-la" (QD, p.
26). No dia 13 de maio de 1958, a fome é figurada em seu diário enquanto tomada
de consciência de sua condição social: "Luto contra a escravatura atual - a fome!"
(QD, p. 27).
A fome é sua droga: "A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do
álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer." (QD, p. 39). Uma
enfermidade que a faz cair, sentir dor, ver-se no espelho e se perceber magra, sem
dentes com medo de morrer (QD, p. 153). A fome é identificada no seu corpo, é
um sinal, conforme narra o episódio em que tropeça e cai na rua perto da banca de
jornal. Um homem que passava gritou: "É fome!" (QD, p. 88) e lhe dá uma esmola.
Suas pernas, pés, rins, peito doem, mas sabe que sua "enfermidade é física e
moral"27 (QD, p. 81). Carolina quando se refere à sua "fome moral" pensa nas
agressões proferidas por uma mulher da favela que diz que ela fede igual a
bacalhau: "O corpo humano não presta. Quem trabalha como eu tem que feder!"
(QD, p. 119). Pensa na rejeição que sofre dos donos de circo quando não aceitam
as peças que escreve alegando: "pena que você é preta". Carolina reage: "Eu adoro
a minha pele negra, e o meu cabelo rústico. Se é que existe reencarnação, eu
quero voltar sempre preta." (QD, p. 58). Quando um homem bem vestido a olha
com "repugnância" por estar descalça, suja e carregando um enorme saco de
papel, diz: "Já estou familiarizada com estes olhares. Não entristeço." (QD, p. 98).
Fui na livraria levar um pouco de terra para por na vitrine. Estava chovendo, fomos
de ônibus, quando chegamos na livraria vi o meu retrato na porta. Estou desenhada
em ponto grande. E a favela. O que está escrito no quadro? Esta favelada, Carolina
Maria de Jesus, escreveu um livro - Quarto de despejo. A livraria Francisco Alves
oferece ao povo... Que espetáculo deslumbrante! o povo e os carros paravam para
ver o meu retrato galgando. Eu tinha a impressão que era eu que subia para o céu.
(Jesus, 1961a, p. 35).
Trata-se de uma escrita operada pelo corpo enquanto "realidade concreta, vivência
prática, conhecimento espontâneo, biografia cotidiana e oralidade popular"
(Richard, 2002, p. 149 apud Carrijo; Santos, 2012, p. 416), em uma palavra: uma
escrita que afeta. Uma escrita fraturada: era da favela, porém queria dominar a
norma culta como forma de ascensão social pela literatura (Carrijo; Santos, 2012,
p. 420; Sousa, 2011, p. 97). Os erros gramaticais e ortográficos de Carolina são,
eles mesmos, fraturas expostas da corporificação de sua dor, índices indeléveis de
seu traço, de sua condição de existência que se converte em potência escrita ao
situar sua perspectiva sobre o mundo. Uma escrita desterritorializada
(linguisticamente e socialmente), constituída como "narrativa de resíduos", que
"cata", aqui e ali estilos poéticos e literários e experiências de vida (Fernandez,
2008, p. 144). Catando, Carolina "recria e revela" uma narrativa "reciclada,
rasurada" de sua existência (Andrade, 2008, p. 40; Fernandez, 2008, p. 139;
Sousa, 2004, p. 8).
Essa "montagem" de Carolina operada pelo seu "sofrimento social" produz choques,
curtos-circuitos, justaposições que têm a potência de revirar o sentido da língua e
do mundo social. A explosiva subjetividade de sua escrita produz seus efeitos no
mundo. Sua dor e seu sofrimento tornam-se literalmente sociais e vendem cem mil
exemplares, depois, um milhão.
Referências
CAVELL, S. Foreword. In: DAS, V. Life and words: violence and the descent into the
ordinary. Berkeley: University of California Press, 2006. p. ix-xiv. [ Links ]
DAS, V. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley:
University of California Press, 2006. [ Links ]
DAS NUVENS PRA BAIXO. Produção: Marco Antonio Gonçalves e Geandra Nobre.
Direção: Marco Antonio Gonçalves e Eliska Altmann. Rio de Janeiro: Osmose
Filmes: UFRJ: UFFRJ, 2014. 1 DVD (77 min). [ Links ]
JESUS, C. M. de. Quarto de despejo. São Paulo: RCA Victor, 1961b. 1 disco sonoro.
[ Links ]
LEITE LOPES, J. S. O vapor do diabo: o trabalho dos operários do açúcar. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978. [ Links ]