Você está na página 1de 13

Possibilidades e desafios em música e na formação musical:

a proposta de um giro decolonial1

Marcus Vinícius Medeiros Pereira2


Universidade Federal de Juiz de Fora
marcus.medeiros@ufjf.edu.br

Resumo: O texto aborda as possibilidades e desafios em música e em formação musical propondo


um giro decolonial. Tal giro, que também pode ser entendido neste caso específico como um “giro
deconservatorial”, propõe a desnaturalização da tradição musical, considerada como seletiva e
inventada (institucionalizada) pelos conservatórios de música. Contudo, ao propor uma postura
deconservatorial não se está assumindo a música erudita e o conservatório como essencialmente
negativos, mas, sim, sua naturalização como o único caminho possível para a formação de músicos
profissionais – no âmbito dos cursos técnicos de música e dos bacharelados, bem como de cidadãos
– no âmbito da educação básica e das licenciaturas em música.
Palavras-chave: Colonialidade; Habitus Conservatorial; Tradição; Giro Decolonial.

Possibilities and challenges in music and musical formation:


the proposal of a decolonial turn
Abstract: The text addresses the possibilities and challenges in music and music formation proposing
a decolonial turn. Such a shift, which can also be understood in this specific case as a
"deconservatorial turn", proposes the denaturalization of the musical tradition, considered as selective
and invented (institutionalized) by music conservatories. However, in proposing a deconservatorial
turn, classical music and the conservatory are not being taken as essentially negative, but rather their
naturalization as the only possible way for the formation of professional musicians - in the context of
technical courses in music and bachelors, as well as citizens - in the field of basic education and music
teaching programs.
Keywords: Coloniality; Conservatorial Habitus; Tradition; Decolonial Turn.

Posibilidades y desafíos en música y en la formación musical:


la propuesta de un giro decolonial
Resumen: El texto aborda las posibilidades y desafíos en música y en formación musical
proponiendo un giro decolonial. Tal giro, que también puede ser entendido en este caso específico
como un "giro deconservatorial", propone la desnaturalización de la tradición musical, considerada
como selectiva e inventada (institucionalizada) por los conservatorios de música. Sin embargo, al
proponer una postura deconservatorial no se está asumiendo la música erudita y el conservatorio
como esencialmente negativos, sino su naturalización como el único camino posible para la
formación de músicos profesionales - en el marco de los cursos técnicos de música y de los

1
Texto enviado em 18/09/2018 e aprovado em 07/11/2018.
2
Doutor em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Professor da Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Juiz de Fora, onde atua como docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação.
É pesquisador do Observatório de Cultura Escolar (UFMS), membro associado do LCT Centre for Knowledge-Building
(Universidade de Sidney) e o atual presidente da Associação Brasileira de Educação Musical. Endereço eletrônico:
marcus.medeiros@ufjf.edu.br.

10
Interlúdio - Ano 6, n. 10 - 2018
bachilleratos, así como de ciudadanos - en el ámbito de la educación básica y de las licenciaturas en
música.
Palabras-clave: Colonialidade; Habitus Conservatorial; Tradición; Giro Decolonial.

Notas introdutórias

O tema do quarto Encontro de Educação Musical do Colégio Pedro II, e do primeiro


Encontro Nacional de Cursos Técnicos em Música, “Música e Formação: Desafios e Possibilidades”,
dialoga diretamente com um de meus principais interesses de pesquisa: o desafio da desnaturalização
de tradições como possibilidade de transformação. Nada mais interessante e enriquecedor do que
tratar de tradições neste que é o mais tradicional colégio brasileiro, instituição que foi, e ainda se
esforça em ser, modelar para todo o Brasil.
É, portanto, da perspectiva da tradição que pretendo abordar o tema proposto: desenvolvendo
a ideia de que há uma tradição seletiva e inventada que incide sobre a formação de músicos (seja nos
bacharelados ou nos cursos técnicos) e de professores de música (nos cursos de licenciatura) que se
perpetua, certamente que não de maneira estática, mas muitas vezes de forma naturalizada, e vem
encontrando grandes desafios diante das necessidades apresentadas pela sociedade contemporânea.
Importa ressaltar que a tradição não é essencial e aprioristicamente vista como algo negativo
– como alguns insistem em afirmar. Ressalto que cada caso deve ser estudado a partir de seu contexto
histórico e social, evitando-se, assim, generalizações indevidas.
É no diálogo com Pierre Bourdieu que venho tentando compreender o mecanismo de
perpetuação de uma tradição de ensino musical: propus a noção típico-ideal de habitus
conservatorial, uma matriz disposicional que engendra modos de ação e percepção, bem como
crenças e critérios de valor, institucionalizados pelos Conservatórios de Música. Da mesma forma
que a tradição, tal habitus não deve ser tomado necessariamente como sinônimo de algo negativo.
Antes disso, precisa ser entendido como uma espécie de mecanismo social de (re)produção próprio
do campo artístico que, em alguns casos, e ao ser transposto a outros campos – como o educativo –
pode resultar em possíveis problemas.
O que quero propor baseia-se naquilo que Setton (2002, p. 61) enfatiza: habitus não é
destino. O primeiro passo para mudar – se este for o desejo – é desnaturalizar as tradições,
reconhecendo-as como inventadas. Se são inventadas, é possível, portanto, reinventá-las.

11
Interlúdio - Ano 6, n. 10 - 2018
Os desafios da tradição

De acordo com Williams (2003, p. 319), a palavra tradição chegou ao inglês no século XIV,
sendo proveniente de tradition, do francês antigo, e do latim traditionem, em que tradere significa
entregar ou transmitir. O substantivo latino teve, em inglês, os sentidos de (i) entrega, (ii) transmissão
de conhecimento, (iii) comunicação de uma doutrina, (iv) rendição ou traição. De acordo como autor
galês, tradição sobrevive no idioma inglês como descrição de um processo geral de transmissão, mas
há na palavra um sentido muito forte e muitas vezes predominante de respeito e obediência implícitos.
A noção de tradição seletiva, diante disso, envolveria

(...)um processo seletivo bastante drástico daquilo que foi, em uma determinada
ambiência social, definido como algo digno de ser perpetuado. Por motivos diversos,
que incluem relações de poder político, disponibilidade econômica e visibilidade
cultural, mas também a clivagem ideológica, determinadas orientações intelectuais
se fixam na cultura e definem o limite da circulação de ideias opostas ou contrárias,
no seu tempo. (TABORDA DE OLIVEIRA, 2014, p. 268)

A partir do campo do currículo, Michael Apple (1996, p. 59, grifos no original) afirma que
este é sempre “(...) parte de uma tradição seletiva, resultado da seleção de alguém, da visão de algum
grupo do que seja conhecimento legítimo”. E Goodson (2013), por sua vez, amplia esta questão,
propondo entendê-lo não só como uma tradição seletiva, mas, também, como uma tradição inventada.
Ao tratar da história do currículo, Goodson (2013) ressalta a importância de se considerar
uma sistemática “invenção de tradição” no currículo escolar, entendido como uma área de produção
e reprodução sociais onde as prioridades políticas e sociais são predominantes. A noção de tradição
inventada é baseada nas ideias de Hobsbawn (2008, p. 9), que “[...] inclui tanto tradições realmente
inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais
difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo – às vezes coisas de poucos anos
apenas – e se estabeleceram com enorme rapidez.” Este autor considera que a invenção de tradições
é essencialmente um processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado,
mesmo que apenas pela imposição da repetição (HOBSBAWN, 2008, p. 12).
No que diz respeito à seleção, observamos, em música, a legitimação da música erudita como
conhecimento específico a ser entregue, transmitido. E toda a teorização e sistematização realizada a
partir e para esta música, como a doutrina a ser seguida e aplicada a todas as práticas do universo
sonoro. Como afirma Lopes (1997, p. 101), como se “a cultura erudita fosse legitimada pela tradição
e pelo tempo – os grandes purificadores dos conhecimentos – e não possuísse nada de questionável”.
Esta seleção está ligada à crença produzida por uma ideologia musical que, como afirma
Green (1988, p. 5), “(...) baseia-se na suposição de que a música é uma criação atomizada e

12
Interlúdio - Ano 6, n. 10 - 2018
fragmentada de indivíduos isolados, e que alcança grandiosidade quando transcende sua aparente
singularidade e passa a pertencer ao universal, ao eterno, ao a-histórico”.
A invenção destra tradição seletiva musical estaria ligada à sua institucionalização pelo
conservatório, que uniu as práticas tradicionais de ensino de música das corporações de ofício
medievais à forma escolar: configuração escolar que se organiza, sobretudo, pela construção de um
espaço escolar e de um tempo escolar, estruturados pela linguagem e pela cultura do escrito – que se
impõe em detrimento à oralidade. De acordo com Vincent, Lahire e Thin (2001), a escola (neste caso
entendemos o conservatório como instituição escolar) passa a ocupar um espaço específico, distinto
do espaço ocupado para a realização de outras práticas sociais, e vai se estruturar em torno de um
projeto pedagógico onde os conhecimentos transmitidos são organizados em conteúdos, currículos,
disciplinas, métodos, materiais, produzindo um saber-fazer próprio.
Nesta institucionalização da formação do músico, o conservatório elege a música erudita
europeia (notada) como conhecimento legítimo e como parâmetro – de estruturação das disciplinas,
de seleção de métodos, de ordenação de conteúdos, e de valoração de práticas musicais.
O que pretendia, com a noção de habitus conservatorial, era desnaturalizar estas práticas
como o único caminho de escolarização da música: seja para a formação do músico, seja para a
formação do cidadão – de maneira mais ampla.
A existência de cursos técnicos e bacharelados que objetivam formar o músico erudito,
organizando-se a partir destes princípios inaugurados pelo conservatório, não é algo a ser combatido.
O que deve ser evitado são aspectos próprios de um ensino ruim, cujas metodologias: desconsideram
o sujeito – com suas capacidades e limitações, priorizam a técnica em detrimento da compreensão
musical, e sustentam uma pretensa superioridade da música erudita. E, além disso, deve ser
desnaturalizada a adoção deste perfil de profissional para todos os músicos, e deste tipo de música,
bem como sua teorização e sistematização (desenvolvida, em grande parte, devido a e através da sua
notação) como base de análise e valoração de todas as outras práticas do universo sonoro.
Observe o que diz o etnomusicólogo Samuel Araújo:

Outro problema central que permeia as discussões do campo desde há muito tempo,
diz respeito ao próprio objeto “música”, que, como dizia Alan Merriam em sua obra
seminal The antropology of music (1964), talvez não fosse tão universal quanto
ainda se pensava até então, mas, sim, de ocorrência relativamente mais restrita, em
termos de tempo e espaço, que os complexos fenômenos referidos ao universo
sonoro estudados por etnomusicólogos nos mais diversos contextos sociais mundo
afora, fenômenos esses enquadrados como objetos de pesquisa no domínio dito
“artístico”, mas que muitas vezes não permitem sua tradução como “arte” ou sua
separação em subdomínios como “música”, “artes cênicas”, “artes visuais”, etc. Ou
seja, “música”, termo que tantos utilizam até hoje como se universal fosse, seria tão
somente um termo criado em determinado contexto ocidental, porém de aplicação

13
Interlúdio - Ano 6, n. 10 - 2018
muitas vezes precária, impositiva e/ou mesmo violenta a outras práticas e saberes,
que quase sempre subvertem os domínios estanques do quadro kantiano das artes.
Assim, a aparentemente neutra categoria “música”, (...) tem levado à redução de
culturas tidas como subalternas ao termos de outras, que se impuseram às primeiras
como superiores, podendo redundar até mesmo no apagamento intelectual e físico-
material de quaisquer diferenças significativas de visões de mundo subalternas após
sua tradução àquelas pretensamente superiores (ARAÚJO, 2016, p. 8-9).

A que nos referimos quando falamos em “Música e Formação”, ou “Cursos Técnicos em


Música”, ou “Bacharelado e Licenciatura em Música”? Não estaremos assumindo a mesma
universalidade adotada em disciplinas como “História da Música”, que abrange apenas a história da
música erudita ocidental europeia masculina branca e cristã?
O senso prático que se nos impõe, neste contexto, não seria aquele institucionalizado pelos
conservatórios? Um senso prático que tem orientado as ações ligadas à educação musical, ou seja,
“(...) um sistema adquirido de preferências, de princípios de visão e de divisão (o que comumente
chamamos de gosto), de estruturas duradouras (que são frequentemente produto da incorporação de
estruturas objetivas) e de esquemas de ação que orientam a percepção da situação e a resposta
adequada” (BOURDIEU, 1996, p. 42).
De acordo com Bourdieu (1996), o habitus é esta espécie de senso prático do que se deve
fazer em cada situação. Ao senso prático em música, que tem orientado as preferências, os princípios
de visão e divisão (bem como os de seleção curricular), os esquemas de ação que orientam as respostas
adequadas às situações, temos dado o nome de habitus conservatorial (cf. PEREIRA, 2013).
E por que este senso prático poderia representar um problema se, como afirmamos
anteriormente, a existência de cursos técnicos e bacharelados que objetivam formar o músico erudito,
organizando-se a partir destes princípios inaugurados pelo conservatório, não é algo a ser combatido?
Porque temos assumido este como o único caminho, a única possibilidade; e à
sistematização feita pela e para a música erudita como a única possibilidade de se pensar os
fenômenos do universo sonoro. Mesmo no âmbito da formação do músico erudito, a fixação
curricular acaba por desconsiderar demandas apresentadas pelo mercado de trabalho contemporâneo,
que exigem que o músico seja, além de artista, seu próprio produtor. E, além disso, praticamente não
há espaço para a discussão em torno da formação do músico diletante, amador.
Como Young (2014, p. 201) nos alerta: não temos investigado em que medida os processos
de seleção, sequenciamento e progressão são limitados pela estrutura do conhecimento. Transferindo
para o contexto musical: não temos pensado se o que naturalizamos a chamar de música, com seu
conhecimento estruturado de uma maneira bastante específica, tem influenciado – e mesmo

14
Interlúdio - Ano 6, n. 10 - 2018
determinado – não somente o currículo musical, mas o que pode e o que não pode ser considerado
como música e, por conseguinte, como objeto de estudo.
Isto nos leva ao que Queiroz (2017) tem chamado de epistemicídios musicais:

Epistemicídios são assassinatos simbólicos que, promovidos pela imposição de uma


cultura à outra, naturalizam a morte de formas de pensar, de maneiras de ser, de
perspectivas de viver, subalternizando ou matando tudo o que é diferente da
tendência dominante (Santos; Menezes, 2010). Os epistemicídios musicais são
crimes cometidos contra um conjunto amplo de expressões culturais que, por
processos históricos de exclusão, foram expulsas dos lugares de destaque na
sociedade (Queiroz, 2017, p. 108). Tal exclusão se deu, e ainda hoje se dá, pela
associação dessas músicas a outros sistemas de organização sonora e outras formas
de expressão cultural, geralmente vinculadas a grupos subalternos ou a práticas que,
a partir de valores hegemônicos do hemisfério sul, são consideradas como
desprovidas de valor estético, simbólico e social. (QUEIROZ, 2017, p. 137)

Ao pensar no ingresso de uma parte seletiva do que se tem chamado de música popular nas
universidades e cursos técnicos, tenho refletido sobre o preço que tem sido pago por estas práticas
para ocupar este lugar. O quanto de seus processos característicos não têm sido silenciados, por terem
de submeter-se a uma lógica que não é a sua.
Por outro lado, os silenciamentos também podem ocorrer por incompatibilidades
epistemológicas. Na Colômbia, por exemplo, Delgado (2007, p. 5), ao refletir sobre o bambuco e os
saberes mestiços, denuncia que, mais além do que os prejuízos raciais envolvidos, a intenção de se
“branquear” uma tradição musical surgiu da impossibilidade colonial de aceder a epistemes que não
eram de todo europeias: as músicas mestiças, como o bambuco, encarnavam uma mescla de saberes
musicais europeus com outros indígenas e/ou africanos, e resultaram na produção de saberes que
simplesmente não se encaixavam dentro dos parâmetros reconhecidos como absolutos, objetivos e
científicos. Tal fato acabou por entorpecer, por décadas, um estudo sistemático e profundo do gênero
e de seu repertório.
Além disso, a autora afirma que, para além das bases econômicas da ideia de “raça”, esta é
uma “(...) categoria epistêmica e de controle de conhecimento e da intersubjetividade: a colonialidade
do poder não somente classifica os seres humanos em escala de inferior a superior de acordo com sua
raça, mas também ordena os conhecimentos e as maneiras de saber daqueles de quem classifica”
(DELGADO, 2007, p. 5).
É possível fazer um paralelo com as “outras” músicas e formas de conhecimento musical no
Brasil: o conhecimento que o homem branco produz é geralmente classificado como “científico”,
“objetivo” e “racional”, enquanto que aquele produzido por homens de cor (ou mulheres) é “mágico”,

15
Interlúdio - Ano 6, n. 10 - 2018
“subjetivo” e “irracional” (DELGADO, 2007, p. 5) e não é preciso muito esforço analítico para
descobrir qual deles é selecionado nos documentos curriculares.
Como ressalta Lopes (1997, p. 101), “(...) analisam-se as culturas dominadas da mesma
maneira etnocêntrica com que se definem as sociedades primitivas: em função do que lhes falta para
serem iguais às sociedades ocidentais e não em função do que têm”. Por isso:

(...) precisamos evitar análises que associem a cultura erudita ao conhecimento


racionalmente organizado, considerando a cultura popular como conhecimento
amorfo. Tal visão organiza uma indevida hierarquia axiológica entre culturas que
são diferentes – cultura erudita, dita cultivada, e cultura popular, dita não-cultivada.
Ou seja, parte-se do pressuposto de que, uma vez definida a diferença, ela deve
caracterizar obrigatoriamente uma hierarquia. Não se admite a possibilidade de
convivermos com diferenças não hierarquizáveis. Assim como, ao se estabelecer a
distinção elite-massa, busca-se justificar que a primeira detém o poder porque detém
o saber, invertendo a questão de que quem detém o saber só o faz porque detém o
poder de dizer o que é ou não o saber (LOPES, 1997, p. 101).

Em diversas oportunidades, tenho discutido como, no âmbito do ensino superior – pelo


menos no Brasil, observamos que os currículos trabalham arbitrariamente em um viés monocultural
(em especial a parte que trata especificamente do conhecimento específico musical).
Um exemplo que pode ser dado é a centralidade ocupada pela notação musical nos currículos
(de qualquer nível de ensino musical: na educação básica, no ensino técnico-profissional, ou no
ensino superior). Dela depende a maior parte das disciplinas dos currículos e, como criticado por
Penna (1995), o tratamento dos mecanismos de representação gráfica como um código abstrato que
se esgota em si mesmo acaba por fazer com que o referencial sonoro se perca. Desta forma, o
aprendizado musical torna-se mais visual do que auditivo. Isto sem contar que muitas práticas
musicais não se prestam à escrita, que não lhes reproduz com fidelidade deturpando-as, muitas das
vezes. Logo, se não são ou se não podem ser escritas, não figuram nos currículos e não são tomadas
como objetos de estudo.
No ensino superior, é comum, em aulas destinadas às práticas de ensino em música em
escolas de educação básica, ouvir as queixas dos licenciandos afirmando que o que lhes está sendo
exigido frente às múltiplas realidades escolares não é trabalhado ao longo de seus cursos.
Nos bacharelados e cursos técnicos, não se considera como possibilidade a formação não do
virtuose, mas do amador, aquele que escolhe estes cursos simplesmente por gostar de música.
De maneira semelhante, os estudos da CEPROM – Education of the Professional Musician
(comissão pertencente à International Society for Music Education) que tratam da formação
profissional dos músicos, têm tematizado as variadas exigências que têm sido apresentadas pela

16
Interlúdio - Ano 6, n. 10 - 2018
realidade do mundo do trabalho no século XXI. Os próprios temas dos seminários ajudam a
exemplificar a evolução das discussões da CEPROM3:
1996 – O papel dos músicos novos desafios
1998 – Os músicos em novos e variáveis contextos
2000 – O músico profissional em uma sociedade global
2002 – A preparação do músico como um profissional reflexivo
2004 – Preparando músicos fazendo novos mundos sonoros: novos músicos, novas músicas,
novos processos
2006 – Novos modelos para educar músicos profissionais do século XXI
2008 – Educando músicos para uma vida de aprendizagem
2010 – O músico nos espaços criativo e educacional do século 21
2012 – Educando músicos profissionais em um contexto global
2014 – Relevância e reforma na educação dos músicos profissionais
2016 – Uma contemplação multi-perspectiva da liderança para músicos do século XXI
Ao realizar uma revisão da literatura nos anais dos seminários da CEPROM, Pimentel (2018,
p. 53) pôde perceber que o conservatório foi instaurado na educação profissional do mundo inteiro,
provavelmente pela força da música erudita como a “melhor música”, aquela que merece ser
estudada, divulgada e perpetuada, num imperialismo cultural bastante visível. A pesquisadora destaca
que há uma pressão para que os conservatórios encontrem as necessidades de seus alunos:

Desde 1986, no entanto, a pesquisa, discussão e atividades da comissão têm


priorizado as interações entre conservatórios e a profissão, facetas tecnológicas e
econômicas de treinamento, o papel das competições musicais, o papel e o lugar dos
músicos num contexto global de mudanças, prática reflexiva, e conteúdo e objetivos
do curso (PIMENTEL, 2018, p. 54).

A revisão de literatura mostra que o conservatório é o principal alvo de crítica dos autores
que publicaram nos seminários da CEPROM nos últimos vinte anos. Segundo Pimentel (2018, p. 54),
os autores:
 consideram o conservatório engessado, mais teórico do que prático, focado na
formação do performer solista, insuficiente para a formação do músico do século XXI;
 consideram que a forma como a área lida com a música erudita, tal como um objeto
de adoração, a isola cada vez mais do cotidiano do público em geral e a faz perder
espaço na sociedade. Ainda assim, o principal foco da educação profissional é a
formação de músico erudito – o solista, para ser mais preciso;

3
Informações sistematizadas por Pimentel (2018).

17
Interlúdio - Ano 6, n. 10 - 2018
 concordam que o músico do século XXI não pode ser conhecedor de apenas uma
técnica ou um estilo, precisando, portanto, de desenvolver a habilidade de passar por
várias técnicas e estilos;
 afirmam que a formação do músico deve ir muito além da música;
 concordam que se o conservatório não mudar, ou se renovar, corre o risco de não
sobreviver;
 mostram que muitos conservatórios e universidades já apresentam mudanças em seus
currículos, na tentativa de melhorar a preparação dos músicos para sua vida
profissional, porém, ainda há um foco no treinamento musical, num momento em que
a maioria dos músicos atuam de forma muito mais ampla do que somente tocar ou
cantar, gerando discrepâncias entre as perspectivas institucionais e as perspectivas dos
alunos.

Ressalto, mais uma vez, que o problema não é a música erudita, ou o conservatório, que devem
ser combatidos ou vistos como um grande mal. O grande problema é que estes são naturalizados como
a única possibilidade, a maneira natural, e portanto óbvia, de se trabalhar com qualidade e seriedade
no campo da música.
É preciso abrir os olhos e os ouvidos, desnaturalizar este senso prático (esta tradição seletiva),
e se permitir enxergar e reconhecer outras práticas, outras possibilidades.

Por um giro decolonial

Nóvoa, em suas palestras, tem se utilizado de um excerto de Marcel Proust (1995, p. 238),
da obra “Em busca do tempo perdido”, em que este nos convida a reconstruir o olhar para realmente
ver (e podemos dizer o mesmo para o ouvir):

Asas, um outro aparelho respiratório, que nos permitissem atravessar a imensidade,


de nada nos serviriam, pois, se fôssemos a Marte e a Vênus conservando os mesmos
sentidos, eles revestiriam do mesmo aspecto que têm as coisas na Terra tudo o que
pudéssemos ver. A única verdadeira viagem de descoberta não é chegar a terras
estranhas, incógnitas, mas é sermos capazes de ver com outros olhos, de conhecer o
universo através dos olhos do outro, de centenas de outros, de conhecer as centenas
de universos que cada um deles conhece, que cada um deles é.

Assim, antes de impor a todas as músicas sistematizações e práticas próprias da música de


uma minoria, um sempre ideológico, artificial, arbitrário e seletivo “nós”, precisamos abrir os olhos
e ouvidos, e verdadeiramente procurar VER e OUVIR. Parafraseando Lulu Santos, em uma de suas
famosas canções: “Vamos nos permitir” olhar de novas formas para outras músicas e, assim, para
outras realidades.

18
Interlúdio - Ano 6, n. 10 - 2018
De uma maneira geral, tenho proposto que a educação musical na América Latina tem se
constituído na perspectiva da colonialidade, sendo esta sua doxa4, e o habitus conservatorial se
configura como modus operandi deste campo, perpetuando o pensamento colonial mesmo nas
tentativas de mudança.
Colonialidade, entendida com Maldonado-Torres (2007) como a hegemonia de
conhecimentos, saberes, comportamentos, valores e modos de atuar de determinadas culturas que, ao
serem impostos a outras, exercem um profundo poder de dominação. Logo, a colonialidade do saber,
proposta por Quijano (2007), que consolidou a repressão de outras formas de produção de
conhecimento não europeias, tendendo a negar o legado intelectual e histórico de outros povos, como
os indígenas e africanos, reduzindo-os a categorias vazias e preconceituosas, como primitivos e
irracionais, por pertencerem a “outra raça”. (QUEIROZ, 2017, p. 137) – como já denunciava Delgado
(2007).
Depreende-se, pois, que o conhecimento é também um instrumento de poder e de
colonização. Neste sentido, para Quijano (1992), em primeiro lugar é necessária a decolonização
epistemológica para, em seguida, ser possível uma comunicação intercultural, um intercâmbio de
experiências e de significações que formem a base de uma racionalidade nova. É Nelson Maldonado-
Torres (2008) que chamará de “giro decolonial” o movimento teórico e prático de resistência política
e epistemológica à lógica da modernidade/colonialidade.
Para este autor, tanto uma atitude como uma razão decoloniais são partes fundamentais deste
giro, que se refere, fundamentalmente, à percepção de que as formas de poder modernas têm
produzido tecnologias de silenciamento, ocultação e morte que têm afetado de forma significativa
diversos segmentos sociais ao longo do tempo. A partir daí, há que reconhecer que as formas de poder
coloniais são múltiplas e que tanto os conhecimentos como a experiência vivida dos sujeitos marcados
pela colonialidade são altamente relevantes para entender as formas modernas de poder e prover
alternativas a elas.
Como nos mostra Amaral (2017), o giro decolonial não diz respeito a uma gramática da
colonialidade, mas a coloca no centro do debate como componente constitutivo da modernidade e da
decolonização como projeto (MALDONADO-TORRES, 2008). Por derivação, se quisermos um giro
deconservatorial, precisamos colocar a gramática musical tida como universal no centro do debate,
refletindo sobre outras possibilidades, outras práticas, outras gramáticas. Para tanto, Amaral (2017)
afirma que:

4
Segundo Bourdieu (1996, p. 120), a doxa é um ponto de vista particular, o ponto de vista dos dominantes que se apresenta
e se impõe como ponto de vista universal. Um conjunto de crenças fundamentais que nem sequer precisam se afirmar sob
a forma de um dogma explícito e consciente de si mesmo.

19
Interlúdio - Ano 6, n. 10 - 2018
(...) há que se lançar mão de uma série de ferramentas conceituais e metodológicas,
um sem número de estratégias contestatórias que busquem uma mudança radical nas
formas hegemônicas atuais de poder e dominação, destacadamente na construção de
conhecimento, nas relações intersubjetivas e na configuração das instituições.
Assim, constituem o momento mais fundamental do giro decolonial, por um lado,
investigar as formas pelas quais as estruturas de poder continuam produzindo a
colonialidade e, por outro, fomentar a mudança de uma atitude racista, sexista ou
aristocrática para uma atitude decolonial.

Os estudos a partir da noção de habitus conservatorial têm contribuído para investigar as


formas pelas quais as estruturas de poder continuam produzindo a colonialidade do saber musical. É
preciso, agora, desnaturalizar nossa visão e audição, pois, para Maldonado-Torres, “A descolonização
não se pode levar a cabo sem uma mudança no sujeito5” (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 68,
tradução minha).
Portanto, se queremos contribuir para a formação de músicos e de cidadãos, precisamos
iniciar esse giro decolonial – ou deconservatorial em nossas práticas, crenças e percepções
individuais. Lembrando que este giro não implica em queimar como bruxas o conservatório e a
música erudita. Tenho recorrido sempre a Williams (2015, p. 23) para reforçar que o defeito não é o
que está sendo dado (e acrescentaria o como se está estruturando e sistematizando isto que está sendo
dado), mas o que é deixado de fora. Não se trata de negar ou excluir aquilo que vem sendo abordado
nos processos educativos. Trata-se de questionar essa tradição seletiva, que exclui os modos de vida
e a produção de sentidos daqueles que são considerados como “outros”, passando a considera-los
tanto no processo educativo quanto no de construção de uma cultura realmente comum.
Assim, a construção de novos habitus, que permitirá a adoção de novas posturas frente aos
conhecimentos, experiências e práticas musicais, bem como ao mercado de trabalho do músico
profissional, não exclui a música erudita. Como já afirmei anteriormente, apenas rompe com
hegemonias culturais arbitrárias, conduzindo a música erudita ao status de uma dentre várias
possibilidades de prática musical, de sistematização do conhecimento musical e da cotação do que
vale como música. E, desta maneira, passa a considerar o músico profissional também como agente
cultural que precisa construir possibilidades para si no cenário contemporâneo.
Neste cenário, o estudo e a valorização da música brasileira – seja ela a erudita ou as outras
músicas – precisa ganhar centralidade nas instituições brasileiras. A performance musical não pode
mais ser vista como a única maneira de se envolver diretamente com música, e como único objetivo
da formação musical.

5
“La descolonización no se puede llevar a cabo sin un cambio en el sujeto”.

20
Interlúdio - Ano 6, n. 10 - 2018
Que este encontro permita, portanto, discussões profícuas sobre a música, o músico e a
educação musical, na perspectiva de fomentar um giro decolonial – e deconservatorial – que contribua
não para condenações inquisitoriais, mas para a ampliação de possibilidades, o reconhecimento do
outro e de suas práticas, e para a inserção dos músicos não somente no mercado de trabalho, mas na
sociedade contemporânea.

Referências

AMARAL, João do. Arte decolonial. Pra começar a falar do assunto ou: aprendendo a andar pra
dançar, 2017. Disponível em: https://iberoamericasocial.com/arte-decolonial-pra-comecar-falar-do-
assunto-ou-aprendendo-andar-pra-dancar/. Acesso em: 10 set. 2018.
APPLE, Michael. A política do conhecimento oficial: faz sentido a idéia de um currículo nacional?
IN: MOREIRA, Antonio Flávio; SILVA, Tomaz Tadeu da (orgs). Currículo, cultura e sociedade.
São Paulo: Cortez Editora, 1996, pp. 59 – 91.
ARAÚJO, Samuel. O campo da etnomusicologia brasileira: formação, diálogos e comprometimento
político. In: LÜHNING, Angela; TUGNY, Rosângela Pereira de (Orgs.). Etnomusicologia no
Brasil. Salvador: EDUFBA, 2016, p. 7 – 18.
BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas. São Paulo : Papirus, 1996.
DELGADO, Carolina Santamaría. El bambuco, los saberes mestizos y la academia: Un análisis
histórico de la persistencia de la colonialidad en los estudios musicales latinoamericanos. Latin
American Music Review / Revista de Música Latinoamericana, Vol. 28, No. 1, pp. 1-23, 2007.
GOODSON, Ivor F. Currículo: teoria e história. Tradução de Attílio Brunetta; revisão da tradução:
Hamilton Francishetti; apresentação de Tomaz Tadeu da Silva. 14 ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
HOBSBAWN, Eric. Introdução: A invenção das tradições. IN: HOBSBAWN, Eric; RANGER,
Terence. A invenção das tradições. São Paulo: Praz e Terra, 2008, p. 9 – 24.
GREEN, Lucy. Music on deaf ears – Musical meaning, ideology and education. Manchester:
Manchester University Press, 1988.
LOPES, Alice Ribeiro Casimiro. Conhecimento escolar: processos de seleção cultural e de
mediação didática. Educação & Realidade, vol. 22, n. 1, p. 95 – 112, jan/jun. 1997.
MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un
concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (Org.) El giro decolonial: reflexiones
para uma diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-
Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del Hombre Editores, 2007. p. 127-167.
Disponível em: http://ram-wan.net/restrepo/ decolonial/17-maldonado-
colonialidad%20del%20ser.pdf. Acesso em: 08 set. 2018.
MALDONADO-TORRES, Nelson. La descolonización y el giro des-colonial. Tabula Rasa., n.9,
pp. 61-72, Bogotá, 2008.
PIMENTEL, Maria Odília de Quadros. Percurso de Inserção Profissional do Músico:
compreendendo as inter-relações da educação e formação ao longo da vida de egressos dos cursos
técnicos dos Conservatórios Estaduais de Música de Minas Gerais com seu trabalho/emprego. 2018.
122f. Relatório de Qualificação. (Doutorado em Música) – UFPB, João Pessoa, 2018.

21
Interlúdio - Ano 6, n. 10 - 2018
PENNA, Maura. Ensino de Música: para além das fronteiras do conservatório. In: PEREGRINO,
Yara Rosas (Org.). Da camiseta ao Museu – O ensino das artes na democratização da cultura. João
Pessoa, Editora UFPB, 1995.
PEREIRA, Marcus Vinícius Medeiros. Ensino Superior e as Licenciaturas em Música: Um retrato
do habitus conservatorial. Campo Grande: Editora UFMS, 2013.
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Vol. 5 (A Prisioneira). Rio de Janeiro: Globo,
1995.
QUEIROZ, Luis Ricardo Silva. Traços de colonialidade na educação superior em música do Brasil:
análises a partir de uma trajetória de epistemicídios musicais e exclusões. Revista da Abem,
Londrina, v.25, n.39, p. 132-159, jul.dez. 2017
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y modernidade/racionalidad. Perú Indígena, v. 13, n . 29, p. 11-
20, 1992. Disponível em: http://www.lavaca.org/wp-content/uploads/2016/04/quijano.pdf. Acesso
em: 09 set. 2018.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. In: CASTROGÓMEZ, S.;
GROSFOGUEL, R. (Org.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá
del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-
IESCO, Siglo del Hombre Editores, 2007. p. 93-126. Disponível em:
http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20140506032333/eje1-7.pdf. Acesso em: 08 set. 2018.
VINCENT, G.; LAHIRE, B.; THIN, D. Sobre a história e teoria da forma escolar. Educação em
Revista, Belo Horizonte, v. 1, n. 33, p. 7-48, jun. 2001.
SETTON, Maria das Graças Jacintho. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura
contemporânea. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n.20, p.60-70, 2002.
TABORDA DE OLIVEIRA, Marcus Aurelio. Pensando a História da Educação com Raymond
Williams. Educação & Realidade, Porto Alegre, UFRGS, vol. 39, n. 1, pp. 257 – 276, 2014.
WILLIAMS, Raymond. La Larga Revolución. Buenos Aires: Nueva Vision, 2003.
WILLIAMS, Raymond. Recursos da esperança: Cultura, democracia, socialismo. São Paulo:
Editora da UNESP, 2015.
YOUNG, M. Teoria do currículo: o que é e por que é importante. Cadernos de Pesquisa, São Paulo,
v. 44, n. 151, p. 190-202, 2014.

22
Interlúdio - Ano 6, n. 10 - 2018

Você também pode gostar