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Três Antonios e um Edilson
A bordo de um caminhão de lixo domiciliar, repórter percorre de perto a vida de quatro
homens que recolhem o lixo por ruas de São Paulo e descobre, no meio do caminho,
que tem mulher que encara essa rotina também com um sorriso estampado no rosto

Pedro Henrique Araújo | Fotos: Pablo de Sousa Fotografia 19/12/2013 12:58, atualizada às 23/12/2013 16:49

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Breve pausa a partir da esquerda, os coletores Antonio Marcos da silva, o Marquinhos, Agnaldo Antônio dos reis,
o Boquinha, e Antonio dos Santos, o Zoio. Edilson Oliveira, o Viadão, é o motorista. a equipe coleta o lixo
produzido em vias do Brás, da mooca e da vila graciosa, em São Paulo

A cantora Alcione canta baixinho… Mas tem que me prender (Tem). Tem que seduzir (Tem).
Só pra me deixar louca por você… na rádio FM de um dos 212 caminhões de lixo domiciliar da
LOGA, uma das empresas que fazem a remoção de detritos na cidade de São Paulo. A cantora
maranhense se enternece no samba corta­pulso, enquanto os funcionários falam dos mais
variados assuntos, sem dar muita importância à zaragata amorosa da Marrom. “O que é isso, uma
vela de macumba?”, pergunta Antônio dos Reis, aliás, Agnaldo Antônio dos Reis, que, segundo ele
próprio, “de rei não tem nada”, ao ver uma senhora atravessar a rua em um vestido longo
vermelho­sangue. Aos 33 anos, Boquinha, como é conhecido, trabalha há 18 na coleta de lixo,
uma dúzia deles na empresa em que está hoje. “Que discriminação farta é essa?”, recrimina, sem
juízo de valor, Antonio Marcos da Silva, 31, o Marquinhos. Com nove verões de profissão, é o
terceiro da família na empresa. A linhagem carrega o nome Simbora, graças à expressão usada
pelo pai, na hora da coleta. “Simbora, simbora.” 
A boleia desse caminhão é completada por outro Antonio, o dos Santos, 27, e por Edilson Oliveira,
31, o motorista. Todos moradores da Zona Leste paulistana. Essa equipe trabalha de segunda a
sábado. Diariamente, eles seguem recolhendo resíduos pelo Brás, bairro famoso pela indústria
têxtil na região central da cidade. Às terças, quintas e sábados, seguem também por algumas vias
da Mooca e às segundas, quartas e sextas, o trajeto inclui, além do Brás, a coleta na região da Vila
Graciosa, entre Sapopemba e Vila Ema, ambas na Zona Leste.

Em uma manhã de quinta­feira nublada de outubro,
acompanhei essa equipe. A primeira parte do trajeto
começou na Rua João Boemer e passou por várias outras
vias (Carlos de Campos, Rio Bonito, Santa Rita, Cachoeira,
Silva Teles, Mendes Junior, Xavantes e Bresser), em
disparada. A dinâmica do trabalho até dá para ser
comparada à de jogadores de futebol americano. O jogo é
rápido: avista o lixo, agacha, pega e arremessa na traseira
do veículo, que segue em constante apoio. E eles seguem
no meio do trânsito caótico do Brás.

O lado bom de pegar o lixo dessa região é que nela quase
não há restos de comida, papéis higiênicos usados e
outros dejetos nada nobres do cotidiano. O ruim é que
depois de uma chuva, o lixo pesa muito mais e um homem
só não dá conta de carregá­lo e precisa da colaboração do
colega.

Na cabine do caminhão, entre uma piada e outra, eles
comentam as dores e as delícias de ser lixeiro, ou melhor, coletor – lixeiro é quem produz o lixo.
Ao volante, está Edilson, que como a maioria dos funcionários, é conhecido pelo apelido. Sem um
fio de cabelo, uma fina barba desenhada e um sorriso canhestro, ele não liga de ser chamado de
Viadão. “Resumidamente, tinha uma menina de menor querendo ficar comigo, e eu não fiquei. Aí,
ela me chamou de viado. Aí os coletor que eu trabalhava era tudo tranqueira. Ouviram eu falar
viado, virou Viadão, e é Viadão até hoje.” Há 11 anos na empresa, Edilson passou três correndo
atrás do caminhão até ser promovido a motorista.

Morador de Cidade Tiradentes, demora diariamente um par de horas para chegar ao trabalho, por
volta das 7 horas. Dos dias de coletor, não guarda saudade. “É uma vida sofrida. Não é pra
qualquer um, não. Tiro o chapéu pra esses menino. Antigamente, quando eu coletava, via uns
gato morto no lixo. Pegava pelas perna, as perna saía na mão, pegava pelo rabo e o coro do gato
saía. É doído. Mas outra, o meu sonho era ser motorista.” Edilson dá seu veredicto sobre a
implicância dos motoristas de carros de passeio com o caminhão que pilota. “Do cheiro, todo dia
todo mundo reclama, eles não suportam ficar atrás de um caminhão de lixo.”
COMO DISPENSAR O LIXO

Muitos coletores se machucam diariamente por conta da falta de cuidado. na frota de
centenas de funcionários da loga, uma das empresas que fazem o serviço na capital
paulista, é praticamente impossível encontrar um gari que nunca tenha sido ferido por
objetos cortantes e pontiagudos.

Para evitar esses machucados perigosos, seguem dicas importantes para não colocar
em risco a saúde dos funcionários da limpeza

Pilhas, baterias, computadores, lâmpadas, celulares e outros eletrônicos

Esses itens podem ter substâncias tóxicas, como mercúrio e chumbo, entre
outros metais, que contaminam o solo e alcançam os lençóis freáticos. Esse
tipo de lixo deve ser levado a endereços recicladores de eletroeletrônicos.
existem agências bancárias, supermercados e casas de materiais de
construção que mantêm depósitos para alguns desses itens.

Óleo de cozinha

Depois de usado, leve­o a um posto de coleta. alguns supermercados
mantêm esse serviço. Jogado no ralo de pias, privadas ou ralos, essa
substância forma uma película que dificulta a drenagem do esgoto e encarece
seu tratamento. no solo, é responsável por um efeito impermeabilizante, que
prejudica o escoamento da chuva e pode impedir a oxigenação da água em
rios e lagos.

Papel higiênico, fralda descartável, absorvente, preservativos e outros
itens de higiene

Não devem ser jogados na coleta de objetos recicláveis. eles ficam
contaminados e seu manuseio pode causar infecções. devem ser descartados
junto com o lixo comum, mas cuidado para não deixá­los expostos.

Objetos cortantes

Embrulhe­os em várias camadas de jornal e feche o pacote com fita adesiva.
também é possível dispor os cacos ou outros elementos cortantes em uma
garrafa pet com tampa. ao jogar latas, dobre as tampas com as rebarbas para
dentro.
Medicamentos, frascos e seringas

Não descarte no lixo comum. leve­os a uma Unidade Básica de saúde (UBs)
ou a um posto de assistência médica ambulatorial (ama).

Animais

Quando o bichinho de estimação morre, é preciso levar o corpo a uma clínica
veterinária, que se encarregará da cremação. há também cemitérios para
animais. outra opção é levar o corpo diretamente à estação de transbordo
ponte pequena, mantida pela loga (avenida do estado, 300. funciona de
segunda a sábado, das 10h às 20h, e o serviço é gratuito), onde ele será
mantido sob refrigeração e, posteriormente, incinerado. não enterre seu pet
no terreno de casa nem em terrenos baldios. também não podem ser jogados
no lixo comum, mesmo se for um animal de porte bem pequeno. o corpo vai
gerar mau cheiro e atrair outros animais, como insetos e roedores.

Conhecimento

O mais calado dos quatro, Antonio dos Santos, o Zoio – os companheiros dizem que não sabem o
motivo do apelido, mas os olhos esverdeados que saltam à pele escura deixam evidente a alcunha
–, está há quase cinco anos na empresa. Com quatro filhos, ele carrega no braço esquerdo o
nome da mãe, Neuza, tatuado. No direito, ornado por algumas rosas sem cor, tem o nome da ex­
mulher: Carla. “É um negócio que eu preciso apagar.” No peito, escondido pelo uniforme está
escrita a palavra prosperidade. “Isso é algo que eu pus na minha vida através de muito trabalho.”

Desde os 7 anos, Antonio ajuda a colocar dinheiro em casa. “Só estudei até a 7ª série. Não por
motivos de não me esforçar e não querer. Eu venho de família pobre, nordestino, filho de
nordestino. Ou trabalha ou estuda, se eu pudesse eu teria estudado”, explica ele, que já trabalhou
em feira, vendeu enciclopédias e passou um longo período coletando o lixo na região da
Cracolândia. “Cara, eu vi muita coisa ali. Aprendi a respeitar, aprendi a dar valor às coisas mais
simples. Só de você acordar, de tá vivo. Aprendi a cuidar da família e dar valor à vida. Vi
advogado, vi dentista, médico, o que você imaginar eu vi ali. Ali aprendi que temos que ter controle
do nosso corpo, da nossa mente”, completa o gari, que tem um hábito nada usual entre seus
pares: a leitura. E fala de sua preferência ao papel. “Livro você mastiga. Internet é muito vago.”
Seu último alfarrábio foi Biologia: Linguagem e Mente.

Em dezembro de 2002, ele escapou apenas com a roupa do corpo de um incêndio na favela na
Avenida Zaki Narchi, na Zona Norte. Morador do Jardim Nossa Senhora do Carmo, em Artur Alvim,
ele planeja o futuro dos filhos. “Sabe o que eu quero deixar para eles? Conhecimento. Não penso
em deixar dinheiro. É lógico que eu quero que eles tenham conforto, mas quando eles crescerem
eu quero mostrar pra eles como é o mundo aqui fora.”

NOSSO REPÓRTER/COLETOR DE LIXO

Não pretendo aqui, neste espaço, me vangloriar dos meus feitos ou exagerar na sinceridade
sobre minhas dificuldades. Fato é que ser coletor de lixo não é bolinho. Pense: os caras
correm mais de 20 km por dia, pegam coisas que as pessoas jogaram fora, que, em geral,
têm nojo e o salário não é lá grande coisa. Definitivamente, não é para qualquer um. Isso sem
contar que é preciso se acostumar com o cheiro do lixo, um odor muito específico.

No dia 7 de novembro último, uma quinta­feira nublada, passei parte da manhã na companhia
dos três garis “Antonio” e do motorista Edilson. Não me contentei a carregar só minha caneta
e o meu caderninho. Vesti a camisa e o boné cor de laranja, ambos fosforescentes, a calça
preta e os calçados de borracha tamanho 44, que no final do dia me renderam quatro bolhas
consideráveis nos pés.

Dias antes, fui submetido a um treinamento. Aprendi que precisava subir e descer do
caminhão sempre pelo lado direito por dois motivos: um, porque geralmente é o lado da
calçada e, dois, para que meu colega de trabalho que estava ao volante pudesse me ver.
Aprendi também que não se deve carregar o lixo próximo ao corpo, nem pegar o saco por
baixo para evitar acidentes, aprendi quais as alavancas certas puxar e a tomar cuidado com o
lixo compactado, ele pode esguichar jatos de chorume, óleo usado e outros objetos
desagradáveis, pode também “cuspir” vidro. Então, todo cuidado é pouco. Aprendi, por fim,
que a profissão exigiria muito de meus atributos físicos. Não sou, digamos, um atleta. Meus
feitos esportivos foram esgotados há mais de uma década e, de lá para cá, me aventuro bem
menos do que a Organização Mundial de Saúde recomenda.

Na minha chegada ao escritório da empresa, também fui julgado com a promessa de que
depois de uma hora eu estaria pedindo para parar o trabalho, para desistir. Eles viram minha
barba, meus cem desengonçados quilos e atestaram, parafraseando Tropa de Elite: “Nunca
será”. Isso, confesso, mexeu com meu brio. Foi a provocação que eu precisava.

Devidamente paramentado, me apresentei à equipe no Brás. Dali para frente, desistiria da
carapaça de jornalista para encarar a vida de coletor. Uma característica da região é a grande
quantidade de tecidos e outras sobras da indústria têxtil. É um lixo com pouca porcaria, mas,
depois de uma manhã chuvosa, o tecido fica bem pesado.

O serviço de coletor não guarda muitos segredos. É simples, direto e precisa ser ágil. Pega o
lixo, joga na caçamba, corre, pega outro lixo, joga de novo na caçamba, corre mais pega
outro lixo e joga na caçamba. Sem frescura, sem massagem e sem moleza. E assim fomos.

Na Mooca, foi diferente. O lixo mudou drasticamente: pequenas e leves sacolinhas de
mercado amontoadas cheias de papel higiênico, restos de comida, bebida, dejetos de cães e
gatos e muito vidro, item que teima em sangrar as mãos de quem coleta, mesmo com a
grossa luva. Nesse ínterim, aprendi um dos segredos da profissão. Um dos coletores me
explicou que, na hora de jogar um lixo no caminhão, eu precisava girar o tronco todo, não só
os braços. Isso me ajudaria a erguer melhor o peso e também a não sofrer com as dores nas
costas no dia seguinte. Aprendi também que é praticamente impossível não encostar os
sacos, principalmente nos mais pesados, no corpo. Levantar, por exemplo, dois lixos de 10 kg
cada, abrindo os braços e afastando­os das pernas, é um movimento demorado e
desgastante, fora que nada natural. É inevitável que a sujeira tenha contato com nossas
pernas e, por isso, agradeci milhares de vezes por estar de calças compridas. Aprendi
também que para esta reportagem não tinha espaço para o nojo. Teve lixo nos meus
desprotegidos antebraços, sim. E, sim, fiquei com a sensação de estar cheirando mal ao
longo do dia. Natural.

Aprendi também que há muita cooperação. Quando um saco de lixo é muito pesado, um
companheiro ajuda. Aprendi que esses caras fazem isso com um sorriso no rosto porque a
vida já é dura demais para que fiquem reclamando das intempéries do trabalho. Aprendi que
eles têm sabedoria para enfrentar o preconceito e o desaforo da sociedade. Aprendi que a
farda de lixeiro não é muito bem­vinda em bares e restaurantes, que a roupa laranja pode
afastar bons clientes, mesmo que você esteja lá para consumir e pagar a conta como
qualquer pessoa. Aprendi que tem muita gente escrota e insensível com a categoria, mas que
também há muita gente bacana, como o são­paulino da Mooca.

Aprendi que tem gente que conhece os coletores pelo nome e que esses profissionais são
fundamentais para que a cidade seja menos suja. Aprendi que, sem eles, estaríamos cobertos
de ratos, baratas e outros animais pegajosos. Aprendi ainda que o lixo não some da minha
lixeira num passe de mágica. Para que isso aconteça, alguém aparece em nossas casas,
recolhe o lixo, coloca­o no caminhão, que o compacta. Ou seja, leva a minha sujeira até o
transbordo e a despeja com outras toneladas de porcarias. Depois, leva tudo para Caieiras,
onde parte do lixo da cidade é enterrado. Aprendi que o lixeiro sou eu, é você. E aprendi que
quatro bolhas não são nada diante de um trabalho tão nobre.

Perigos e carinhos

A segunda parte do trajeto segue por vias pequenas da Mooca, bairro residencial charmoso no
começo da Zona Leste, berço da colônia italiana e morada do time grená Juventus. O lixo aqui é
diferente: pequenas sacolas de mercado cheias de restos de comida e tudo o que puder imaginar,
inclusive objetos cortantes e vidros, os maiores vilões dos coletores e os principais causadores da
insalubridade do serviço, fator que acarreta em um aumento de R$ 271,20 ao salário de 1.046
mais benefícios, segundo o Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Prestação de Serviços
de Asseio e Conservação e Limpeza Urbana de São Paulo (SIEMACO).

Mesmo usando luvas grossas, os coletores correm riscos e, muitas vezes, se machucam. “Agora,
o ruim é quando o cara fura a mão com seringa. É seis meses de transa com a mulher com
camisinha. Tem que transar com camisinha porque não sabe o que pode contrair, né? E fazendo
exame e tudo. É doido”, diz Viadão. Boquinha já teve a mão perfurada por palitos de churrasco,
Marquinhos tem marcas nos braços e pernas, Zoio também. Sabe por que isso acontece? Porque
as pessoas, em sua maioria, não dão a devida atenção ao lixo.

Na Rua Arariboia, eles ganham atenção, carinho e um pouco de café, café com leite, água gelada
e até um pãozinho com manteiga. O benfeitor é o padeiro Alex, são­paulino inveterado, que
dispensa aos coletores uma gentileza incomum. Boquinha, a seu modo, explica o que sente na
pele. “Às vezes, tem preconceito. Pela farda, a pessoa chega te dando ordem, já vem pensando:
‘Você é um lixeiro, não sabe de nada’.” Ele conta que, frequentemente, recebe olhares tortos em
restaurantes, quando está com a farda de coletor de lixo. “Se pedir um marmitex, eles fazem
rapidinho. Agora, se você senta como outro cliente, eles não gosta muito, não.”

Morador de Guaianases, Boquinha gasta quase duas horas para chegar ao trabalho. Sobre o
transporte coletivo, ele faz uma reflexão para explicar a diferença das regiões da cidade e o
comportamento da população. “Por que a cavalaria que desce do trem é a mesma que entra no
metrô, mas já entra mais educada? Já não empurra tanto, já não chega daquele jeito? Por quê?
Eles acham que se você tá indo para um lugar pobre, você tem que se arrebentar. Mas, se você tá
indo para um lugar que já tem um dinheiro, você tem que ser educado. O pobre, entre eles, já tem
esse tipo de coisa.”

Filósofos das ruas, Boquinha e Marquinhos traduzem as
diferenças sociais do lixo de São Paulo. “No bairro nobre,
há uma consciência maior”, diz Boquinha, que valoriza o
zelo de alguns moradores com o lixo reciclável. “Vai
explicar a reciclagem na periferia. Eles já dizem. ‘Ah, não.
Eu tô sem tempo nem local de colocar meu lixo quanto
mais fazer reciclagem’. Enquanto você vai na Mooca, tem
tiazinha que lava a lata de ervilha, lava a lata de extrato de
tomate”, afirma Marquinhos. “Muitas vezes, o morador nos
esperou para avisar: ‘Olha moço, aqui tem um vidro, mas já
tá ensacado, tá guardadinho. No bairro pobre, você já vê
as coisas de qualquer jeito. É diferente”, atesta.

“Quando eu trabalhava na Penha – lá o pessoal é quase
educado, não é totalmente educado, mas tem uns que é
educado –, tinha um menino que todo dia saía para ver a
gente. O pai dele comprou um carrinho de empurrar. Ele foi
lá, tirou a alça traseira e descia o quintal dele correndo que
nem nós fazia no caminhão. E ficava lá desceeeendo. E o
pai dele e a mãe dele um dia chamou a gente assim: ‘Sábado vocês vêm aqui que eu vou fazer um
café da manhã pra vocês’. Eles iam viajar no Natal, e o menino ia ficar muito tempo sem ver a
gente. Quando a gente chegou na casa deles, parecia uma mesa de novela, tinha tudo. Suco,
café. Tiraram foto. Tá tudo até hoje na casa deles na Penha. Eles é advogado”, conta Marquinhos.

MULHER AO VOLANTE

Avenida Higienópolis, Ruas Albuquerque Lins e Veiga Filho e Avenida Pacaembu são com ela.
Se você costuma circular por essa região central da capital paulistana, dê uma olhadinha para
o caminhão do lixo e verá Kelly de Souza Nascimento, uma das sete motoristas da LOGA. No
resíduo domiciliar, há só ela e mais uma.

Kelly, há cinco anos na empresa, está no comando de uma equipe há quatro. “As pessoas
estranham uma mulher no volante. A gente é mais admirada pelas outras mulheres do que
pelos homens. Elas dizem: ‘Bota esses cara pra correr’”, diverte­se. Aos 46 anos, com três
filhos e duas netas, Kelly não se incomoda com a distância que percorre diariamente – de
Francisco Morato, onde mora, até o bairro onde faz a coleta são mais de 40 km – e as longas
horas de trabalho na madrugada. Com um sorriso no rosto, ela conta da admiração dos
pequenos pelo seu trabalho. “As crianças adoram o caminhão, teve um essa semana, acho
que ele tinha uns 3 anos. Eu parei, e ele passou junto com o pai para entrar no carro. Aí, ele
olhou pra mim e falou assim: ‘Nossa, que legal seu caminhão’.” Kelly chama o veículo
carinhosamente de Nenê. “Aí, olhei pra ele e disse obrigado. E ele falou: ‘Bom trabalho, tá?’. E
eu disse obrigado. E ele: ‘Eu também tenho um caminhão, mas não é tão legal quanto o seu’.
O pai dele ficou olhando pra ele assim babando.”

Por essas cenas, considera­se uma privilegiada. Emocionada, Kelly conta a sua chegada à
empresa. “Acabei caindo nisso aqui de paraquedas.” Desempregada perto do período de
festas, sem muitas perspectivas, ela decidiu apostar e mudar a categoria de sua carteira de
habilitação para poder dirigir veículos grandes. “Sabe aquele dinheirinho suado? Eu não
posso nem tomar pau, porque se eu não passar não terei dinheiro para outro exame.”
Dispensou R$ 480 dos R$ 500 que ainda tinha das economias do último emprego e se jogou
na incerteza. “Perto de entrar em dezembro. Pense na tristeza que eu tava! Eu que sustento
minha família. Nunca passei um Natal desempregada. Como que vai ser meu Natal este ano?
Sabe quando você olha assim pro nada e as lágrima dos olhos desce? O que vai ser de mim
esse ano? A LOGA me chamou, cara. Eu fiz teste e passei. Eu tive um Natal maravilhoso.
Fora que eu podia passar meu cartão de crédito que no mês seguinte eu tinha pagamento”,
esbalda­se na história.

Com menos entusiasmo, ela revela sua atual solteirice. “Eu era casada até esses dias, mas aí
teve uns problemas de gaia que eu levei. Aí separou, mas tô aí. A gente fica meia triste, mas
a vida continua. A gente fica meia chateada, meia triste, tem dia que você fica mais quebrada
que arroz de terceira, mas vai levando. Não tem muito o que fazer.” Mas com sabedoria
finaliza: “Tem coisas na vida que a gente pode dar jeito, outras não têm como”. Para as coisas
que não são remediáveis, como o ex­marido recente que trabalha na mesma empresa e no
mesmo turno, Kelly prega a paciência, a mesma ferramenta que conduz o seu caminhão. “Eu
ficar nervosa vai adiantar alguma coisa?”

E lá se vai o grupo pelas ruas tranquilas da Mooca. Por dia, eles são responsáveis por 30
toneladas das 11 mil recolhidas na cidade de São Paulo. Correm muito em uma jornada semanal
de 44 horas. Eles quase não param porque não paramos de produzir lixo. “Imagina se a gente
parar no final do ano? Chega janeiro e ninguém dá conta da quantidade de lixo na cidade. Vai ser
só rato pra tudo que é lado”, diz Boquinha, um dos 16 mil (3 mil só na coleta) bravos guerreiros
que recolhem, com sorriso no rosto, a nossa porcaria.

Portanto, pense melhor na hora de descartar o seu precioso lixo. Não deixe vidro ou objetos
cortantes, tente usar sacos pretos, evite volumes e, lembre­se: o lixo não some da cestinha em um
passe de mágica. Há muita gente trabalhando para que isso aconteça.

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Tags: cidadania (http://brasileiros.com.br/tag/cidadania­2/), trabalho
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