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Introdução Às Ciências Sociais

Vivemos em um mundo cada vez mais complexo, com


atores, demandas e desafios novos. Um mundo onde as

Introdução
mudanças ocorrem em velocidade acelerada. Temas como
crise, desenvolvimento econômico, tecnologia, problemas
ambientais e climáticos, desigualdade, novas identidades,
entre outros, pautam não só as discussões acadêmicas, mas
também a vida cotidiana de cada um de nós.
Para se orientar nesse emaranhado, algumas ferramentas
adicionais são importantes. Por isso, uma introdução a alguns

às Ciências
dos conceitos e ideias fundamentais das ciências sociais tem
sobretudo a função de fornecer aos estudantes instrumentos
que lhes permitam compreender melhor nossa realidade.
É com esse propósito que este livro foi concebido.
Hoje, com a internet, um mundo de conhecimento qualificado

Sociais
pode ser facilmente acessado. Desse modo, esta obra tem o
intuito de indicar os primeiros passos de um caminho que o
próprio estudante pode trilhar ao longo de sua vida. Trata-se,
portanto, antes de tudo, de um convite à reflexão. Pensar
que as coisas são sempre mais complexas do que parecem à
primeira vista e duvidar de nossas certezas são pré-requisitos
imprescindíveis ao pensamento crítico.

VILMA AGUIAR

Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-6641-4
VILMA AGUIAR
59416 9 788538 766414
Introdução às
ciências sociais

Vilma Aguiar

IESDE BRASIL
2020
© 2020 – IESDE BRASIL S/A.
É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do
detentor dos direitos autorais.
Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: supanut piyakanont/Shutterstock

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
A233i

Aguiar, Vilma
Introdução às ciências sociais / Vilma Aguiar. - 1. ed. - Curitiba [PR] :
IESDE, 2020.
108 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-6641-4

1. Ciências sociais. I. Título.


CDD: 300
20-63901
CDU: 3

Todos os direitos reservados.

IESDE BRASIL S/A.


Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Vilma Aguiar Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp). Mestre em Filosofia pela
Universidade de São Paulo (USP). Especialista em
Administração de Empresas pela Fundação Getúlio
Vargas (FGV-RJ). Graduada em Ciências Sociais pela
USP. Atuou na gestão de instituições de ensino superior
por mais de 15 anos, promovendo projetos inovadores
em educação. É idealizadora e presidente da Escola
da Política e avaliadora ad hoc do Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(INEP/MEC) para a educação superior. Autora de livros
publicados. Áreas de interesse: feminismo, teoria
política e políticas públicas.
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SUMÁRIO
1 Conhecendo as ciências sociais  9
1.1 O aparecimento da sociologia: contexto histórico   9
1.2 As formas de conhecimento e a ciência   12
1.3 Autores clássicos da sociologia   14

2 Abordagens sociológicas contemporâneas  29


2.1 Transformação político-econômica do capitalismo  30
2.2 Transformações recentes no trabalho e no mercado de trabalho  35
2.3 Terceirização e precarização  37
2.4 Desemprego e exclusão social  42
2.5 Capitalismo global  45

3 O Brasil no contexto da globalização   49


3.1 O Estado brasileiro no final do século XX  50
3.2 Desenvolvimentismo como política econômica  56
3.3 O neoliberalismo  61

4 A democracia contemporânea  67
4.1 Teorias da democracia  68
4.2 Poder político  78
4.3 Poder disciplinar e biopoder  81

5 Temas emergentes das ciências sociais   87


5.1 A desigualdade social  88
5.2 As redes sociais  95
5.3 As questões identitárias  99
5.4 O meio ambiente e a questão da sustentabilidade  103
APRESENTAÇÃO
Vivemos em um mundo cada vez mais complexo, com atores, demandas
e desafios novos. Um mundo onde as mudanças ocorrem em velocidade
acelerada. Temas como crise, desenvolvimento econômico, tecnologia,
problemas ambientais e climáticos, desigualdade, novas identidades, entre
outros, pautam não só as discussões acadêmicas, mas também a vida cotidiana
de cada um de nós. Para se orientar nesse emaranhado, algumas ferramentas
adicionais são importantes. Por isso, uma introdução a alguns dos conceitos e
ideias fundamentais das ciências sociais tem sobretudo a função de fornecer
aos estudantes instrumentos que lhes permitam compreender melhor nossa
realidade. É com esse propósito que este livro foi concebido.
No primeiro capítulo, apresentamos autores clássicos da sociologia, como
Durkheim, Weber e Marx, e as ideias principais contidas em suas obras.
Igualmente, são apresentados os fatos históricos que fertilizaram o solo sobre
o qual a sociologia foi criada. Para isso, trabalhamos as ideias e os fatos que
a Revolução Francesa e a Revolução Industrial trouxeram como contribuição.
Lançando mão de conceitos da sociologia, no segundo capítulo vamos
discutir as mudanças sofridas pelo capitalismo ao longo do século XX.
Para isso, apresentaremos o fordismo, o chamado capitalismo flexível e a
globalização, abordando igualmente os impactos das transformações no
mundo do trabalho e na concentração de renda, com a geração em massa
de trabalhadores precarizados e empobrecidos, excluídos do mundo do
consumo e da cidadania.
Na sequência, no terceiro capítulo, abordamos como o Estado brasileiro se
formou ao longo do século XX, discutindo seus modelos de desenvolvimento,
ou seja, desde o nacional-desenvolvimentismo varguista até chegarmos ao
Estado neoliberal da era FHC. Esse panorama nos permitirá compreender
suas principais características e os desafios atuais enfrentados por ele.
No quarto capítulo, utilizando conceitos da ciência política, vamos abordar
o conceito de democracia e algumas das correntes da teoria da democracia,
apresentando autores que pensaram a democracia representativa e a
participativa. Também serão abordados os conceitos de poder, poder
disciplinar e biopoder.
Finalmente, no quinto capítulo, trabalharemos alguns temas
contemporâneos abordados pela sociologia. Para isso, passaremos em revista
as desigualdades sociais, as questões identitárias, as redes sociais, a questão
ambiental e a sustentabilidade.
Nesse percurso, não tencionamos esgotar os temas importantes das
ciências sociais. Muitos outros poderiam também ter sido discutidos.
Entretanto, hoje, com a internet, um mundo de conhecimento qualificado
pode ser facilmente acessado. Desse modo, nosso intuito aqui foi indicar os
primeiros passos de um caminho que o próprio estudante pode trilhar ao
longo de sua vida. Trata-se, portanto, antes de tudo, de um convite à reflexão.
Pensar que as coisas são sempre mais complexas do que parecem à primeira
vista e duvidar de nossas certezas são pré-requisitos imprescindíveis ao
pensamento crítico. Desejamos, então, uma boa caminhada.
Bons estudos!
1
Conhecendo as ciências sociais
As ciências sociais nasceram no século XIX e são filhas da so-
ciedade que surgiu com a Revolução Francesa e com o desenvol-
vimento do capitalismo industrial. Foi uma época de acentuada
efervescência social, em que houve intenso entusiasmo pelo
progresso e pela ciência, além de profundas mudanças políticas.
O mundo começou a mudar em velocidade e intensidade jamais
vistas, fazendo com que a humanidade daquele tempo buscasse
compreender o novo mundo, que estava sendo gestado sobre
os escombros da sociedade do Antigo Regime, como ficaram co-
nhecidos o feudalismo e o absolutismo europeus.

Neste capítulo, vamos conhecer esse contexto de surgimen-


to das ciências sociais e as principais formas de conhecimento,
bem como aprender um pouco sobre os três autores considera-
dos fundadores das ciências sociais – o francês Émile Durkheim
e os alemães Max Weber e Karl Marx. Será uma apresentação
bastante panorâmica e, por isso, deixa de fora uma série de con-
ceitos e ideias importantes desses estudiosos e dos seus con-
temporâneos, com os quais eles dialogaram e debateram.

1.1 O aparecimento da sociologia:


Vídeo contexto histórico
Ao longo da história, muitos pensadores se dedicaram a compreen-
der a sociedade em que eles viviam e a desvendar suas leis e mecanis-
mos de funcionamento. Uma das obras mais antigas dessa tradição é A
Política, do filósofo grego Aristóteles, que viveu cerca de 300 anos antes
de Cristo. Entretanto, apesar da importância dessas obras, elas se ins-
crevem no terreno especulativo – ou seja, no da discussão de ideias –,
mais precisamente no terreno da filosofia.

Conhecendo as ciências sociais 9


Apenas no século XIX é que se reconhece o surgimento de uma ciência da sociedade.

A sociologia está diretamente ligada ao desenvolvimento da moder-


na sociedade ocidental. Foi por meio do culto à ciência e das profundas
1 1
transformações – trazidas pelo capitalismo industrial, para as cidades
Entre essas transformações, europeias e norte-americanas – que a sociologia e as demais ciências
podemos destacar aqui a intensa
urbanização, o surgimento das sociais se estabeleceram. Tanto as ciências quanto a sociedade moder-
primeiras favelas e dos cortiços, na são frutos diretos de duas revoluções que mudaram a face do mun-
entre outros. do em poucas décadas: a Revolução Industrial e a Revolução Francesa.

Para compreender melhor esse contexto histórico, é preciso salien-


tar que o capitalismo não nasceu com o processo de industrialização.
Antes do capitalismo industrial, houve o capitalismo mercantil, presen-
2 te desde a Renascença, no século XIV. Foi esse capitalismo, inclusive,
Uma das melhores descrições que criou a burguesia mercantil e a chamada acumulação primitiva, que
desse processo complexo pode
consistia em um fundo de poupança de capital que, séculos mais tarde,
ser encontrada no livro A Era das
Revoluções: Europa 1789-1848, financiou o desenvolvimento industrial. Essa mesma burguesia promo-
escrito pelo historiador britânico veu a Revolução Francesa – processo que durou décadas, sacudiu a
Eric Hobsbawm (1917-2012). 2
estrutura de vários países e criou o mundo moderno .

Iniciada na Inglaterra, a Revolução Industrial rapidamente se espa-


lhou pela Europa e pelos Estados Unidos. A partir daí e ao longo de
todo o século XIX, o capitalismo revolucionou o modo como os bens de
consumo passaram a ser produzidos, assim como a organização políti-
ca e social das nações em que ele chegou. Antes do advento das indús-
Curiosidade
trias, os produtos eram manufaturados (fabricados manualmente, um
Historicamente, o início da Revo-
a um), o que resultava em uma oferta bastante reduzida e com preços
lução Industrial ocorreu no fim do
século XVIII, quando o inventor altos. Mudaram, também, as formas de vida, com o início da grande
Edmund Cartwright (1743-1823) migração dos camponeses para as cidades e a transformação deles em
patenteou seu primeiro tear
mecânico, em 1785.
operários. Uma mudança dessa envergadura não poderia ocorrer sem
que ondas de miséria, de grandes epidemias e de intensa instabilidade
social ocorressem.

A Revolução Francesa, por sua vez, transcorreu entre 1789 e 1799 e


gerou uma instabilidade política que durou cerca de 60 anos, deixando
como herança o fim dos governos absolutistas – como o de Luís XVI, na
França, e outros na Europa –, a ascensão da burguesia como classe do-
minante, a criação da ideia de cidadania com a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão, entre outros legados.

10 Introdução às ciências sociais


Podemos perceber que, em pouquíssimas décadas, o mundo pas-
sou de uma sociedade de trabalho manual para a escala industrial, de
uma sociedade rural para uma urbana, de uma sociedade cujas mudan-
ças levaram séculos para se consumar para outra de rapidez extraor-
dinária, de uma sociedade fundada sobre crenças religiosas para outra
em que a ciência passou a ter papel dominante. Weber (1864-1920)
chamou este último processo de racionalização do mundo.

Para os homens do século XIX, tornou-se, então, imperativo com-


preender que sociedade era essa e como ela mudava. Ou seja, a pró-
pria sociedade tornou-se o “problema” ou o “sujeito” que deveria ser
estudado e compreendido, o que só seria possível mediante a criação
de uma nova ciência (IANNI, 1988).

A sociologia se constitui, portanto, como a forma de conhecimento da sociedade


contemporânea, assim como a teologia foi a maneira de conhecimento do mundo
feudal, como bem assinalou Augusto Comte.
Biografia

Para Aron (2000, p. 7), autor do magistral As etapas do pensamento


sociológico, a sociologia é o “estudo científico do social, seja ao nível
elementar das relações interpessoais, seja ao nível macroscópico dos

Wikimedia Commons
grandes conjuntos, classes, nações, civilizações ou, utilizando uma ex-
pressão de uso corrente, sociedades globais”.

É preciso considerar, ainda, como aponta Martins (1991 apud MA-


RIANO, 2008), que a sociologia é um projeto tenso e contraditório, pois Auguste Comte (1798-1857) foi
convive com explicações diversas sobre a realidade social. Se tomar- um filósofo francês, conhecido
pela doutrina do positivismo e
mos apenas os três sociólogos considerados os principais clássicos da por ser o pensador que cunhou o
disciplina (Marx, Durkheim e Weber), veremos que cada um desenvol- termo sociologia.
veu não apenas conceitos próprios, mas também perspectivas teórico-
-metodológicas com “diferentes estilos de pensamento, distintas visões
da sociedade, do mundo” (IANNI, 1988, p. 12). Atividade 1
Aponte as principais mudanças
Outra questão importante na sociologia é a metodológica, principal-
pelas quais passaram os
mente para o clássico questionamento sobre a objetividade e suas im- países capitalistas europeus
plicações no modo de pensar a relação sujeito-objeto na produção do no século XIX, que levaram
vários pensadores a considerar
conhecimento científico, assim como oposições clássicas encontradas a necessidade de fundar uma
em suas abordagens, como o biológico e o social, o normal e o patoló- ciência da sociedade.
gico etc. (MARIANO, 2008).

Conhecendo as ciências sociais 11


1.2 As formas de conhecimento e a ciência
Vídeo Para se introduzir o tema do método e do objeto da Sociologia, ou
seja, o que a torna a ciência da sociedade, temos de abordar antes
uma questão fundamental: a existência de diversas formas de conhe-
cimento. Essas diversas formas de conhecimento possuem caracterís-
ticas próprias, as quais veremos a seguir.

Conhecimento religioso
Figura 1 Esse conhecimento se baseia na fé. Sua origem está na busca de
A Bíblia é conhecida como
um livro sagrado. explicações para os mistérios do mundo, que tratam dos fenômenos
para os quais não se conhecem as causas naturais, como a criação
do Universo e da humanidade. As crenças ou dogmas de uma
religião são transmitidas oralmente nos cultos e nas missas,
podendo ser encontradas em livros considerados sagrados,
como a Bíblia e o Alcorão, que contêm as verdades reveladas
por santos ou profetas. Esse tipo de conhecimento não
pode ser verificado e, em vista disso, sua validação depende
exclusivamente da fé dos seus adeptos. Para os cristãos, por
exemplo, Jesus Cristo é o filho de Deus, fato que não pode ser
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confirmado nem desmentido e, por isso, depende da crença.
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Ory Gonia

Conhecimento empírico

Esse conhecimento fundamenta-se na experiência, na observação


e nas interações das pessoas com o meio ambiente e com outras pes-
Figura 2
Por nascer ao leste e se pôr soas. Chamamos de conhecimento espontâneo ou senso comum o sa-
ao oeste, temos a impres- ber resultante das experiências levadas a efeito pela humanidade ao
são de que é o Sol que se
move, e não a Terra. enfrentar os problemas da existência (ARANHA, 2012). Todavia, esse
conhecimento espontâneo, muitas vezes, se baseia em aparências
enganosas (ARANHA, 2012). Por exemplo, poderíamos afirmar
erroneamente que o Sol gira em torno da Terra, a qual perma-
neceria parada no centro do Universo, pois nos parece que é
o Sol que se move quando o observamos nascer ao leste e
se pôr ao oeste. Outra característica desse tipo de conheci-
mento é a não existência de um método sobre o qual ele se
funda, há apenas repetições ou valores pessoais, visto que é
um saber empírico, baseado em experiências superficiais. Por
isso, é uma forma de conhecimento acrítico, no sentido de que
ock
hutt erst
ELHESHAM/S as perguntas sobre as razões das coisas raramente são feitas.
12 Introdução às ciências sociais
Conhecimento científico Figura 3
A ciência utiliza-se de méto-
Esse conhecimento deriva das descobertas da ciência e, assim, per- dos rigorosos de estudo.
mite a formulação de explicações e compreensão de causas e efeitos
dos fenômenos observados. Já na Antiguidade se fundaram as
bases da matemática, da medicina e da física. Entretanto,
foi no século XVII que apareceu um fato novo na história:
a Revolução Científica. Convencionalmente, conside-
ramos Galileu Galilei (1564-1642) o primeiro grande
cientista moderno, por seu papel na constituição de
métodos de investigação rigorosos. Segundo Aranha
(2012, p. 158), a utilização de métodos rigorosos per-
mite à ciência que “atinja um tipo de conhecimento
sistemático, preciso e objetivo segundo o qual são
descobertas relações universais e necessárias entre os
fenômenos, o que permite prever acontecimentos e tam-
ck
sto
bém agir sobre a natureza de forma mais segura”. tte
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AN I m
Outra característica do conhecimento científico é a aspiração à
objetividade e à impessoalidade, pois, além de não depender das cren-
ças e opiniões do cientista, seus estudos podem ser repetidos por ou-
tros membros da comunidade e suas conclusões podem ser validadas
por terceiros. Isso não significa que a ciência seja infalível e que o co-
nhecimento gerado por ela não mude; pelo contrário, a ciência evolui e
muitos preceitos aceitos podem deixar de sê-lo algum dia.

As ciências se especializam e se tornam campos diferentes de co-


nhecimento (ARANHA, 2012), como a química e a física, que, apesar de
estudarem a matéria, têm abordagens inteiramente diferentes, exigin-
do métodos igualmente distintos.

Essa discussão sobre os tipos de conhecimento e sobre o científico é


importante porque introduz a questão do método nas ciências sociais.
Como já vimos, a sociologia surgiu no século XIX, proposta por Augusto
Comte (1798-1857), que a pensou como a ciência dos fatos sociais, isto é,
das instituições, dos costumes e das crenças coletivas. Apesar disso, sua
contribuição é compreendida normalmente no campo da filosofia, justa-
mente porque, ao longo de sua obra, distanciou-se dos preceitos científi-
cos e adentrou o terreno especulativo, ou seja, do pensamento puro.

A questão da objetividade da ciência se manteve no horizonte e o


primeiro grande cientista social, Émile Durkheim (1858-1917), escreveu

Conhecendo as ciências sociais 13


um livro clássico sobre isso – As regras do método sociológico (1895) –,
em que estabeleceu como regra fundamental do método sociológico a
abordagem dos fatos sociais como coisas. Para isso, utiliza-se ampla-
mente o método estatístico.
Site
Para compreender Weber (1864 -1920) também se interessa pela questão do método
bem as notícias diárias, nas ciências humanas e, por isso, sublinha a necessidade de se usar o
acesse o site do jornal
Nexo, que apresenta método da compreensão em oposição ao critério da explicação, típico
análises aprofundadas das ciências da natureza.
sobre vários assuntos
da atualidade. Normal- Assim, embora reconheçamos que existam diversas formas de co-
mente, são produzidos
infográficos que auxiliam nhecimento e que essas sejam igualmente válidas, cumprindo papéis
na compreensão. sociais importantes, é preciso salientar que o conhecimento advindo
Disponível em: https://www. da ciência é o que mais contribui para o avanço humano e para a
nexojornal.com.br/. Acesso em: 7
mar. 2020. compreensão dos desafios enfrentados pelas diferentes gerações ao
longo do tempo.

1.3 Autores clássicos da sociologia


Vídeo A sociologia se consolidou por meio de diversos autores, tais como:
Durkheim, que introduziu o método de estudos empíricos da realidade
social; Weber, que apresentou uma interpretação ampla e global do
desenvolvimento do capitalismo; e Marx, que apontou suas contradi-
ções e o modelo de funcionamento. Esses autores, conhecidos como
pais da sociologia, introduziram os marcos teóricos e metodológicos
da área. Vamos conhecer uma parte da contribuição de cada um deles.

Figura 4
Émile Durkheim 1.3.1 Durkheim e a fundação das ciências sociais
O sociólogo francês Durkheim é considerado, por muitos
estudiosos, o fundador das ciências sociais. No início de sua
carreira, foi influenciado pelo positivismo de Comte e dedicou
seus esforços para a elaboração de uma ciência que permitis-
se a compreensão dos comportamentos coletivos.

Nascido apenas dez anos após o mais longo período tur-


bulento da história da França (1789-1848), que foi marcado
por conflitos e mudanças políticas frequentes, uma de suas
Wikimedia Commons

maiores preocupações era explicar os elementos capazes de


manter a coesão da sociedade que emergiu da Revolução
Francesa e da Revolução Industrial, ainda em curso.

14 Introdução às ciências sociais


Autor de obras fundamentais e que tiveram enorme influência so-
bre outros autores, Durkheim publicou, em 1893, sua primeira grande
obra, Da divisão do trabalho social, na qual delimita o objeto de estudo
da sociologia. Em 1895, publicou As regras do método sociológico, em
que discute as bases metodológicas da nova ciência. Já em 1897, pu-
blicou O suicídio, um estudo em que ele mesmo aplica seu método a
um objeto, até então, inédito; a particularidade desse livro é o uso da
estatística como recurso metodológico na pesquisa social. Em 1912,
publicou As formas elementares da vida religiosa. Além dessas, deixou
outras obras publicadas postumamente, entre elas Educação e Sociolo-
gia (1922) e Sociologia e Filosofia (1924).

Como fundador de um novo campo de conhecimento, buscou criar


conceitos e desenvolver técnicas de pesquisa que, apesar de inspirados
pelas ciências naturais, pudessem levar os cientistas sociais a discernir
um objeto de estudo próprio e os meios adequados para interpretá-
-lo. Neste trecho de uma de suas obras mais importantes, As regras do
método sociológico, podemos perceber como ele constrói esse objeto:
antes de indagar qual o método que convém ao estudo dos fatos
sociais, é necessário saber que fatos podem ser assim chamados.
[...] Cada indivíduo bebe, dorme, come, raciocina e a sociedade
tem todo interesse em que estas funções se exerçam de modo
regular. Porém, se todos esses fatos fossem sociais, a Sociologia
não teria objeto próprio e seu domínio se confundiria com o da
biologia e da psicologia. [...] Na verdade, porém, há em toda so-
ciedade um grupo determinado de fenômenos com caracteres
nítidos, que se distingue daqueles estudados pelas outras ciên-
cias da natureza. (DURKHEIM, 2014, p. 7)

A primeira preocupação será, pois, distinguir os campos da socio-


logia daqueles das demais ciências e descrever o que caracteriza seu
objeto. Mas quais seriam os traços que distinguem os fatos sociais dos
biológicos, por exemplo? O autor segue:
estamos, pois, diante de uma ordem de fatos que apresenta ca-
racteres muito especiais: coexistem em maneiras de agir, pensar
e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coer-
ção em virtude do qual se impõem. Por conseguinte, não pode-
riam se confundir com os fenômenos orgânicos, pois consistem
em representações e em ações; nem com fenômenos psíquicos,
que não existem senão na consciência individual e por meio dela.
Constituem, pois, uma espécie nova e é a eles que deve ser dada
e reservada a qualificação de social. (DURKHEIM, 2014. p. 5)

Conhecendo as ciências sociais 15


Então, quais seriam exatamente as características dos fatos sociais?
Durkheim (2014) enumera as três mais importantes:

3 i. Exterioridade: os fatos sociais existem fora do indivíduo e precedem a existência


dele; já existiam antes de seu nascimento e atuam sobre ele, independentemente de
Um dos exemplos citados por
Durkheim é o idioma. Ninguém
sua vontade ou de sua adesão consciente.
é obrigado, por lei, a usar a lín- ii. Coercitividade: os fatos sociais exercem força impositiva sobre os indivíduos, le-
gua falada em um determinado vando-os a agir segundo regras estabelecidas pela sociedade em que vivem 3 .
país, mas todos são coagidos
a usá-la, uma vez que ela é iii. Generalidade: os fatos sociais atingem muitas pessoas, sendo fenômenos que
condição para a comunicação e o abrangem, se não o conjunto da sociedade, pelo menos uma parte dela 4 .
convívio social.

Outro importante conceito de Durkheim é o de consciência coletiva.


4 Em Da divisão do trabalho social, ele apresenta a ideia de que:
Exemplos disso são a religião o conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos
e as práticas sociais, como membros de uma mesma sociedade forma um sistema determi-
tradições culturais etc.
nado que tem sua vida própria; poderemos chamá-lo: consciên-
cia coletiva ou comum. Sem dúvida, ela não tem por substrato
um órgão único; é por definição, difusa em toda extensão da so-
ciedade. (DURKHEIM, 2014, p. 40)

A consciência coletiva é diferente da consciência individual, muito


embora seja incorporada pelos indivíduos. Trata-se das “similitudes
sociais” compartilhadas pela média dos membros de uma sociedade.
Assim, diz respeito ao que é ou não aceito pela maior parte das pessoas
no interior de uma mesma sociedade. Por exemplo, nas sociedades is-
lâmicas, a poligamia (um homem casado com várias esposas) é aceita,
enquanto nas cristãs há um tabu em torno disso.

Entretanto, como aponta Durkheim (2014), quanto mais complexa é


uma sociedade, mais fraca é a consciência coletiva, uma vez que muitas
determinações não são mais compartilhadas por todos os indivíduos.
Atividade 2
Para exemplificar, digamos que as pessoas podem fazer escolhas que
Considerando o conceito de
fogem aos comportamentos mais usuais e, muitas vezes, esse é o co-
consciência coletiva de Durkheim,
pense e aponte alguns exemplos meço de mudanças em larga escala. A obrigação de casamento de “pa-
dela em nossa sociedade. pel passado” é um exemplo de prática social que está sendo deixada de
lado em sociedades complexas.

Outra ideia que encontramos na obra Da divisão do trabalho social


é a de que a divisão do trabalho (por sexo, por especialização etc.) tem
impacto no incremento do individualismo nas sociedades contempo-
râneas. Igualmente, faz parte do livro a ideia de que a ampliação das

16 Introdução às ciências sociais


funções econômicas, que antes ocupavam um papel secundário na so-
ciedade e agora estão em primeiro plano, ocasionam a diminuição da
importância de outras funções, como as religiosas, as administrativas,
as militares etc. Essas funções desempenham o papel de integrar o in-
divíduo ao corpo social, possibilitando coesão e solidariedade social.
Essas questões levantadas pelo autor vão ao encontro de suas preocu-
pações com as intensas perturbações sociais que aconteciam em sua
época, que foi um tempo de intensas mudanças.

Além disso, há diversos conceitos na obra de Durkheim que, ainda


hoje, mais de cem anos após sua morte, têm validade e ajudam os cien-
tistas sociais a compreender os fenômenos que ocorrem à nossa volta.
Entre esses conceitos, há a ideia de que no estudo da sociedade temos
sempre que partir dela e não dos indivíduos, se quisermos compreen-
der o que ocorre. Isso é particularmente importante porque modifica
uma grande parte da tradição filosófica.

1.3.2 Weber e o mundo contemporâneo


Figura 5
Max Weber Max Weber (1864-1920) nasceu na cidade de Erfurt e morreu em
Munique (Alemanha). Fez estudos nas áreas de direito, filosofia, his-
Natata/Shutterstock

tória e sociologia. Iniciou sua carreira de professor em Berlim e, em


1895, foi catedrático na universidade de Heidelberg (Alemanha).
Suas inclinações políticas eram liberais e parlamentaristas, ou seja,
era inclinado a defender as liberdades individuais e uma estrutu-
ra republicana de governo. Participou, inclusive, da comissão que
redigiu a Constituição da República de Weimar, ou seja, o regime
de democracia representativa que se estabeleceu na Alemanha no
pós-guerra (1919), durando até o início do regime nazista (1933).

Contemporâneo de Durkheim, também se dedicou a com-


preender a sociedade capitalista, que se formou na Europa a partir
do século XIX. Weber morreu em 1920 e, por isso, vivenciou a Primeira
Guerra Mundial (1914-1917), a primeira experiência de um conflito em
nível global e que deixou uma legião de mortos e mutilados, além de
desorganizar a economia da Alemanha, país vencido na guerra.

Em suas obras, Weber abordou uma grande variedade de temas,


como economia, história, filosofia, religião e política. Do conjunto de
sua obra emerge o que ficou conhecido como sociologia compreensiva,
que se baseia na ideia de privilegiar a motivação dos indivíduos e dos
grupos nas ações sociais, debruçando-se sobre o sentido que os su-

Conhecendo as ciências sociais 17


jeitos atribuem às suas próprias ações, bem como no significado que
estas adquirem em um contexto social amplo. Segundo Moraes, Del
Maestro e Dias (2003, p. 35):
Weber procurou construir um esquema interpretativo funda-
mentado na neutralidade axiológica, ou seja, buscou construir
uma ciência social sem pressupostos. Preocupado com o proble-
ma da ação, desenvolveu o conceito de ação social significativa,
tendo como ponto de partida o indivíduo. Assim, definiu a so-
ciologia como a ciência da ação social, estruturando os níveis da
Glossário
ação em três tipos básicos: (1) ação frente a uma situação con-
tipos ideias: tipos teóricos que creta; (2) ação prescrita com base em regras determinadas; (3)
não existem tal qual descritos ação decorrente da compreensão informal das regras.
no mundo real, mas que ajudam
na elaboração da análise e que Segundo Weber (1999), o papel do sociólogo é compreender o senti-
servem para que possamos
do das ações sociais. Para tanto, ele precisa encontrar os nexos causais
compreender a realidade.
que as determinam; assim, o autor propõe o conceito de tipos ideais.

A realidade é demasiadamente complexa para ser compreendida


sem que destaquemos suas características principais (típicas), o que
permite a elaboração de uma ideia ou teoria. Nas palavras do autor, o
tipo ideal “não é uma hipótese, mas quer assinalar uma orientação à
formação de uma hipótese. Não constitui uma exposição da realidade,
porém, quer proporcionar meios de expressão unívocos para repre-
sentá-la” (WEBER, 1999, p. 82).

Um dos usos que Weber fez do tipo ideal foi o desenvolvimento da teo-
ria da ação social, em que lança mão dessa ideia de tipos ideais para che-
gar a quatro ações fundamentais da experiência humana em sociedade:

i. Ação social racional relacionada a fins: baseia-se na racionalidade, de modo


que a ação é orientada por seu fim, buscando-se os melhores meios para sua
realização. Exemplo: a escolha de uma faculdade, tendo em vista obter uma boa
formação profissional.
ii. Ação social racional relacionada a valores: não é o fim que orienta a ação, mas o
valor atribuído a ela, seja ético, religioso ou político. Exemplo: a escolha de um partido
político, buscando obter um governo que tenha como norte a justiça social.
iii. Ação social afetiva: não é considerada uma ação racional, pois orienta-se por senti-
mentos, como esperança, ciúmes, medo, vingança, compaixão etc. Exemplo: a escolha de
um cônjuge para o casamento, com o objetivo de ter uma vida feliz.
iv. Ação social tradicional: não é considerada uma ação racional, pois é motivada por
hábitos, costumes e tradição. Exemplo: mulheres usarem vestidos.

18 Introdução às ciências sociais


Segundo Aron (2000, p. 459),
a classificação dos tipos de ação comanda, em certa medida, a
interpretação weberiana da época contemporânea. O traço ca-
racterístico do mundo em que vivemos é a racionalização. [...]
O empreendimento econômico é racional, a gestão do Estado,
pela burocracia também. A sociedade moderna tende toda ela à
organização racional.

O livro mais conhecido de Weber é A ética protestante e o espírito do


capitalismo, no qual estuda a influência da religião, em especial do pro-
testantismo, na formação do capitalismo ocidental. Aqui, novamente,
encontramos um exemplo do uso da ideia de tipo ideal, nesse caso,
uma certa noção de capitalismo. Segundo o autor, o capitalismo se
apresenta de maneiras variadas na história, dependendo da época e
do país onde é encontrado. Porém, algumas caraterísticas se repetem
(a busca do lucro e a organização racional do trabalho) e podem ser
consideradas típicas desse sistema de produção. Para Weber (1999), o
capitalismo é definido pela existência de empresas que buscam produ-
zir o maior lucro possível por meio da organização racional do trabalho
e da produção, ou seja, dois traços principais: o desejo de lucro e a
disciplina racional. Dessa forma, uma empresa capitalista visa à acumu-
lação indefinida de capital por meio de uma organização burocrática.

Nesse livro, além de buscar uma gênese histórica do capitalismo


moderno, Weber arrisca uma hipótese inovadora, que é ligar, do pon-
to de vista causal, a economia à religião. A hipótese é de que uma
certa interpretação do protestantismo criou algumas das motivações
que favoreceram a formação do regime capitalista. Em seus estudos
de religião, ele percebeu que, no século XVI, o crescimento do protes-
tantismo levou à conversão de muitos cidadãos nas cidades mais ricas
do Império Alemão. Ele também constatou que a maioria dos grandes
proprietários de empresas e bancos eram protestantes, enquanto os
católicos permaneciam em posições de menor destaque. A partir daí, 5
empreendeu uma investigação para descobrir as razões disso, bem A Reforma Protestante foi uma
como seu impacto. dissidência do catolicismo, que
teve como maiores expoentes
Ele partiu do estudo do calvinismo, que é uma das vertentes João Calvino (1509-1534) e
5 Martinho Lutero (1483-1556).
da chamada Reforma Protestante do século XVI . Segundo Weber
Ela foi tanto um movimento
(1999), os protestantes desenvolveram uma nova ética do trabalho religioso quanto teológico,
com base na ideia de que a salvação de suas almas não estava ga- no sentido de revisar alguns
dogmas do catolicismo.
rantida. Enquanto os católicos acreditavam que a salvação adviria

Conhecendo as ciências sociais 19


do arrependimento e da penitência, os protestantes defendiam que
a salvação é uma prerrogativa de Deus, que define seus escolhidos.
Aos seres humanos cabe se esforçarem para fazer o bem a sua co-
munidade e serem trabalhadores.

Essa ideia foi se aperfeiçoando até chegar ao que o autor chama de


ética protestante do trabalho, ou seja, a realização sistemática de um tra-
balho metódico, racionalmente organizado. Mas era necessário que o
indivíduo poupasse e reinvestisse seus ganhos em uma atividade pro-
dutiva. O trabalho, a poupança, o investimento e a melhoria das condi-
ções de vida da comunidade eram vistas como uma forma de louvar a
Deus. Ora o capitalismo moderno vai se desenvolver exatamente sobre
esse tripé de trabalho, acumulação e reinvestimento.

De acordo com Aron (2000, p. 459),


o essencial para Weber […] é a análise de uma concepção reli-
giosa do mundo, isto é, de uma atitude com relação à existência
por parte de homens que interpretavam sua situação a partir
de certas crenças. Max Weber quis demonstrar principalmente
a afinidade intelectual e existencial entre uma interpretação do
protestantismo e determinada conduta econômica. Esta afini-
dade entre o espírito do capitalismo e a ética protestante torna
inteligível o modo como uma forma de conceber o mundo pode
orientar a ação. O estudo de Weber permite compreender de
forma positiva e científica a influência dos valores e das crenças
nas condutas humanas. Mostra a maneira como opera, através
da história, a causalidade das ideias religiosas.

Para Weber (1999), portanto, os fundamentos do protestantismo


6 – pregando, de um lado, uma intensa dedicação ao trabalho e, de ou-
No sentido weberiano, burocra- tro, não condenando a acumulação de riquezas – favoreceram o avan-
tização significa a organização ço e a consolidação do capitalismo nos países em que a influência dele
eficiente do trabalho e das
era crescente. Aplicando seus próprios princípios metodológicos, ele
atividades coletivas, além de
aplicação de regras gerais e demonstra que a maneira como os sujeitos compreendiam seu próprio
impessoais, ou seja, a formação mundo – sua ética religiosa – influenciou diretamente suas ações, que
de quadros profissionais técnicos
encarregados pela administra- confluíram, por sua vez, na consolidação do capitalismo moderno.
ção e pelo funcionamento do Na obra de Weber, o tema da racionalização do trabalho e, poste-
Estado, empresas, igrejas etc.
Já a racionalização, advinda do riormente, de outros âmbitos da vida social é a característica mais im-
avanço da ciência e dos métodos portante do mundo moderno. Por racionalização o autor entende tanto
científicos, Weber denomina 6
a burocratização das atividades quanto o avanço da ciência sobre ou-
desencantamento do mundo.
tras formas de conhecimento, como o religioso ou místico.

20 Introdução às ciências sociais


O desencantamento é um dos conceitos mais conhecidos de Weber,
referindo-se a um longo período de racionalização religiosa pelo qual
passou a religiosidade ocidental, ou seja, a negação do misticismo, da
magia etc., dando lugar a uma ideia de ética. Trata-se de um processo
que levou muitos séculos para se consumar. Nas palavras do autor,
“aquele grande processo histórico-religioso de desencantamento do
mundo, que começara com os profetas do antigo judaísmo e, em as-
sociação com o pensamento científico helenístico, repudiou todos os
meios mágicos de busca da salvação como superstição e sacrilégio,
chegou aqui à sua consumação” (WEBER, 2004, p. 72).

A obra weberiana é uma das mais fecundas entre os pensadores da


contemporaneidade. Sua influência é sentida em vários campos do sa-
ber e seus conceitos fundamentais se transformaram em instrumentos
poderosos para a compreensão do mundo e do capitalismo modernos.

1.3.3 Karl Marx e a interpretação do capitalismo


Karl Marx (1818-1883) nasceu em uma família judia, em Trier, na
Alemanha, e morreu em Londres. Estudou direito, história e filosofia
Figura 6
Karl Marx na Universidade de Bonn. Dedicou sua vida ao estudo da sociedade ca-
pitalista e deixou uma extensa obra, entre as quais o livro O capital, no
qual analisa profundamente os pressupostos e o funcionamento
dessa sociedade. Ao longo de sua vida, trabalhou como jornalista
e morou em várias cidades europeias fora da Alemanha, em ra-
zão de ter sido perseguido pelo governo alemão por conta de
sua militância política e de suas obras.

Em Paris, ainda jovem, conheceu Friedrich Engels, com


o qual estabeleceu uma parceria que rendeu um intenso
Wikimedia Commons

diálogo intelectual, resultando em alguns livros escritos


em conjunto, além de uma amizade que duraria toda a
sua vida. Engels, filho de uma família rica, muitas vezes
foi um mecenas (patrocinador), permitindo que Marx se
dedicasse à sua obra.

Entre os autores inaugurais da sociologia, Marx é o mais conhecido


e o mais polêmico. Sua obra, bastante extensa e variada, é pouco lida,
mas uma parte de suas ideias, vulgarizada por teóricos, jornalistas, mi-
litantes e políticos, até hoje inspira movimentos sociais e políticos, bem

Conhecendo as ciências sociais 21


como é usada para amaldiçoar um conjunto de perspectivas e valores
Biografia
sociais. Isso porque seu nome está ligado aos movimentos socialistas e
comunistas do início do século XX.

Antes de Marx, na passagem do século XVIII para o XIX, vários auto-


Wikimedia Commons res defenderam ideias socialistas. Os mais conhecidos são Robert Owen
(1771-1858), Charles Fourier (1772-1837) e Saint-Simon (1760-1825).
Conhecidos como socialistas utópicos, defendiam, cada um à sua ma-
neira, uma sociedade mais igualitária, que primasse pela busca da feli-
Friedrich Engels (1820-1895) foi cidade, da liberdade e do prazer. Por sua vez:
um político e filósofo alemão.
Ao lado de Marx, fundou o
socialismo científico, também
denominado marxismo. Engels
completou os volumes II e III da
Marx inaugura aquilo que ficou conhecido como socialismo científico.
obra O capital, que Marx não
pôde concluir.

Comumente, a obra de Marx é dividida entre as de juventude e as


de maturidade. As primeiras, de cunho mais filosófico (é preciso lem-
brar que ele fez seu doutorado em filosofia), discutem obras de au-
tores alemães que o influenciaram, como Friedrich Hegel e Ludwig
Feuerbach. As segundas são as mais influentes e registram seu legado
mais importante. Da primeira fase, as mais conhecidas são Teses sobre
Feuerbach (1845) e A ideologia alemã (1845-1846). Da segunda, desta-
cam-se Grundrisse (1857-1858), Para a crítica da economia política (1859)
e O capital: crítica da economia política (Livro I: O processo de produção
do capital) (1867). Durante os anos seguintes, até sua morte, Marx se
dedicara à redação dos demais volumes do livro O capital, publicados
postumamente por Engels.

Por conta do volume e da diversidade de sua obra, bem como pela


polêmica que a cerca, qualquer apresentação breve desta deixará de
fora muitos aspectos importantes. Aqui vamos nos concentrar em algu-
mas ideias que foram importantes para a sociologia marxista.

Uma de suas obras mais conhecidas e lidas foi escrita em conjun-


to com Engels. Trata-se do Manifesto do Partido Comunista (1848), que,
como o nome sugere, não é um livro teórico, mas, sim, um manifesto.
O texto se tornaria rapidamente um clássico relido por gerações, capaz
de inspirar movimentos operários ao redor do mundo. Além disso, aqui
ele apresenta, de modo didático, algumas ideias que são o cerne de
sua interpretação sobre a sociedade capitalista. Isso porque, antes de
mais nada, é preciso ter em mente que, para o autor, não é possível a
compreender sem uma remissão ao sistema econômico que a rege.
22 Introdução às ciências sociais
Segundo Aron (2000, p. 120), “o pensamento de Marx é uma
interpretação do caráter contraditório ou antagônico da sociedade
capitalista. […] é um esforço destinado a demonstrar que esse caráter
contraditório é inseparável da estrutura fundamental do regime
capitalista e é, também, o motor do movimento histórico”. Vamos,
então, ao Manifesto do Partido Comunista para compreender como isso
aparece na obra.

Em primeiro lugar, é preciso considerar que Marx descreve o capita-


lismo como fruto da revolução que a burguesia empreendeu contra o
sistema feudal. Lembremos que a burguesia é, originalmente, a classe
dos comerciantes que viviam nos burgos (pequenas cidades), durante a
Idade Média. A partir da obra de Marx, o termo burguesia passa a deno-
minar os capitalistas, ou seja, os proprietários dos meios de produção,
os donos do capital.
Onde quer a burguesia tenha chegado ao poder, ela destruiu
todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Ela rompeu impie-
dosamente os variegados laços feudais que atavam o homem
ao seu superior natural, não deixando nenhum outro laço entre
os seres humanos senão o interesse nu e cru, senão o insen-
sível “pagamento à vista”. […] Ela dissolveu a dignidade pessoal
em valor de troca, e no lugar das inúmeras liberdades atestadas
em documento ou valorosamente conquistadas, colocou uma
única inescrupulosa liberdade de comércio. A burguesia, em
uma palavra, colocou no lugar da exploração ocultada por ilu-
sões religiosas e políticas a exploração aberta, desavergonhada,
direta, seca. A burguesia despojou de sua auréola sagrada todas
as atividades até então veneráveis, contempladas com piedoso
recato. Ela transformou o médico, o jurista, o clérigo, o poeta,
o homem das ciências, em trabalhadores assalariados, pagos
por ela. […] Apenas ela deu provas daquilo que a atividade dos
homens é capaz de levar a cabo. Ela realizou obras miraculosas
inteiramente diferentes das pirâmides egípcias, dos aquedutos
romanos e das catedrais góticas, ela executou deslocamentos in-
teiramente diferentes das Migrações dos Povos e das Cruzadas.
(MARX; ENGELS, 2014, p. 25)

Para Marx, a burguesia é a classe social responsável por liderar a


grande transformação pela qual passou a humanidade ao longo de sé-
culos, desde a Idade Média, e que culmina no desenvolvimento do capi-
talismo industrial moderno. Por sua ação, a estrutura do mundo feudal
vem abaixo, tanto do ponto de vista econômico quanto político e social.

Conhecendo as ciências sociais 23


Assim, os regimes absolutistas dão lugar a monarquias constitucionais
ou repúblicas, a população rural se torna eminentemente urbana e o
camponês se transforma em operário. Ele segue:
a burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente
os instrumentos de produção, portanto as relações de produção
e, assim, o conjunto das relações sociais. Conservação inaltera-
da do velho modo de produção foi, ao contrário, a condição pri-
meira de existência de todas as classes industriais anteriores. O
revolucionamento contínuo da produção, o abalo ininterrupto
de todas as situações sociais, a insegurança e a movimentação
eternas distinguem a época burguesa de todas as outras. Todas
as relações fixas e enferrujadas, com o seu séquito de veneráveis
representações e concepções, são dissolvidas; todas as relações
novas, posteriormente formadas, envelhecem antes que possam
enrijecer-se. Tudo o que está estratificado e em vigor volatiliza-
-se, todo o sagrado é profanado, e os homens são finalmente
obrigados a encarar a sua situação de vida, os seus relaciona-
mentos mútuos com olhos sóbrios. (MARX; ENGELS, 2014, p. 27)

Para compreender essa passagem, é preciso ter em mente que meios


de produção (ou instrumentos de produção) são os itens necessários
para a produção de um bem ou mercadoria, ou seja, a matéria-prima, as
máquinas e os equipamentos, a tecnologia necessária, a estrutura fabril
e o capital investido. Nós, que vivemos mais de 180 anos depois que o
texto foi escrito, sabemos o quanto os meios de produção mudaram no
período. Saímos das máquinas a vapor e chegamos à inteligência arti-
ficial, por exemplo. Da mesma forma, a dessacralização tanto religiosa
quanto das instituições é outra característica da modernidade. No regi-
me absolutista, que vigorou na Europa até o século XVIII, o rei era consi-
derado o representante de Deus na terra. Pensemos nisso em oposição
à imagem que fazemos hoje de nossos presidentes. Para Marx, o capita-
lismo operou essas mudanças por meio da burguesia.

Outra ideia, que aparece nesta passagem, é a de que o avanço das


forças produtivas não é acompanhado pelo das relações de produção.
Nas palavras de Aron (2000, p. 469),
a burguesia cria incessantemente meios de produção mais po-
derosos. Mas as relações de produção, isto é, ao que parece, ao
mesmo tempo as relações e propriedade e a distribuição das
rendas, não se transformam no mesmo ritmo. O regime capita-
lista é capaz de produzir cada vez mais. Ora, a despeito desse au-
mento das riquezas, a miséria continua sendo a sorte da maioria.

24 Introdução às ciências sociais


Aqui já temos os elementos fundamentais da teoria das classes
sociais de Marx. Para ele, no capitalismo existem apenas duas classes
sociais estruturais: a burguesia e o proletariado. Além disso, essas
classes são antagônicas, ou seja, estão em conflito. O conflito vem
do fato de que seus interesses são divergentes, pois, de um lado, há a
tentativa da burguesia de aumentar a exploração da força de trabalho
e, de outro, há os proletários lutando para suprimir essa exploração e
criar uma sociedade mais justa e igualitária. Para Marx, o acirramento
desse conflito (mais miséria de um lado e mais riqueza concentrada
de outro) levaria, no futuro, a uma crise revolucionária, isto é, uma
crise na qual o regime capitalista seria suplantado pelo socialismo,
uma vez que os trabalhadores são a maioria da população e seus in-
teresses teriam caráter universal.

Podemos encontrar no livro Contribuição à crítica da economia políti-


ca (1859) outro ponto fundamental da teoria marxista. Trata-se de uma
teoria econômica da história. Segundo Aron (2000), é possível indicar
algumas ideias gerais dessa teoria. Em primeiro lugar, a ideia de que
as relações sociais são determinadas, necessárias e independentes de
nossa vontade. Assim, se quisermos compreender uma sociedade ou
uma época, a melhor forma é “seguir o movimento da história analisan-
do a estrutura das sociedades, as forças de produção e as relações de
produção, e não adotando como origem da interpretação o modo de
pensar dos homens” (ARON, 2000, p. 134).

Outra ideia importante que aparece é a de que em toda sociedade


podemos distinguir a base econômica, ou infraestrutura, e a superes-
trutura. Enquanto a infraestrutura diz respeito ao modo como a repro-
dução da vida social está organizada, a superestrutura é formada pelas
instituições jurídicas e políticas, além da cultura e das ideologias.

A terceira ideia, que já estava presente no texto do Manifesto, é a de


que o movimento histórico tem um motor, uma força que produz sua
marcha, e essa é a contradição entre as duas classes sociais que defi-
nem o sistema capitalista.

Ainda, no livro mais importante de Marx, O capital, o autor busca


abordar os vários aspectos do sistema capitalista, como sua estrutura
social, seu modo de funcionamento e, também, seu desenvolvimento
histórico. Aqui abordaremos uma pequena fração dele, a teoria do va-
lor e da mais-valia.

Conhecendo as ciências sociais 25


O tema do trabalho sempre foi importante para Marx. Já em A ideo-
logia alemã, ele chama a atenção para o fato de que o trabalho é a
atividade que permite a reprodução humana, além de nos diferenciar
enquanto espécie.

No capitalismo, o trabalho é responsável, também, pela produção


de mercadorias. Em um primeiro momento, podemos entender que
mercadoria é o resultado do trabalho humano na transformação da na-
tureza. É pelo trabalho que uma árvore pode ser transformada em por-
ta ou mesa. Nesse registro mais básico, a mercadoria tem apenas valor
de uso, ou seja, alguém pode ir a uma floresta, derrubar uma árvore,
deixar a madeira secar, fatiá-la e, posteriormente, construir uma mesa
para receber a família. No interior do sistema capitalista, entretanto, as
mercadorias se destacam por seu valor de troca.

Pensemos no seguinte exemplo: uma pessoa constrói uma mesa,


mas se dá conta de que seus filhos precisam mais de sapatos do que do
objeto construído. Poderia, então, ir ao mercado e trocá-la por quatro
pares de sapato. Nesse caso, não haveria excedente ou lucro. Mas esse
não seria um mercado capitalista; neste, se quiser comprar quatro pares
de sapato, precisaria de dinheiro, o que Marx chama de equivalente uni-
versal. Isso porque, com ele, podemos comprar qualquer tipo de merca-
doria. No mercado capitalista, é preciso partir não das mercadorias, mas,
sim, do dinheiro, resultando, ao fim do processo, em mais dinheiro. Ou
seja, precisaríamos trabalhar para alguém que produzisse mesas para
que ganhássemos um salário. Esse alguém que as produz tampouco se
interessa por elas; a ele importa o dinheiro que restará ao final do pro-
cesso. Esse dinheiro deve ser maior do que o inicialmente investido, ha-
vendo lucro na atividade.

De acordo com Marx, para compreender o capitalismo é preciso de-


terminar a origem do lucro. Para responder a essa questão, ele elabora
a teoria da mais-valia. Segundo essa teoria, o valor de uma mercadoria
corresponde à quantidade média de trabalho social necessário à sua
produção. Importante salientar que valor não é preço, pois este pode
variar de acordo com a oferta e a demanda, como já havia indicado
o economista liberal Adam Smith (1723-1790). Para Marx, a fonte do
lucro não é, como parece ao senso comum, vender uma mercadoria
por um valor maior que seu custo de produção. A fonte do lucro é o
trabalho. Sem trabalho, ou seja, sem a força de transformação produzi-
da por ele, não há lucro. Mas de que maneira o trabalho produz lucro?

26 Introdução às ciências sociais


Conforme a teoria da mais-valia, o tempo de trabalho necessário Atividade 3
para o operário produzir um valor equivalente a seu salário é menor
Considerando o conceito de
que a duração efetiva de sua jornada de trabalho. Desse modo, para luta de classe de Marx, pense e
pagar seu salário, uma produção equivalente a quatro horas é sufi- aponte exemplos de como ele
poderia ser usado hoje em dia.
ciente, mas ele trabalha oito horas. Nas quatro horas excedentes, ele
trabalha para gerar o lucro do patrão. A mais-valia é o sobretrabalho,
em outras palavras, a quantidade de valor produzido pelo trabalhador
além do tempo necessário para a produção daquilo que ele recebe
como salário.

Por fim, para Marx, isso só possível porque o trabalhador é um pro-


letário, ou seja, ele possui apenas sua própria força de trabalho. Sen-
do assim, para sobreviver sob o regime capitalista, ele precisa vender
sua força de trabalho para os que possuem e concentram os meios de Filme
produção. Dessa maneira, o capitalismo é essencialmente um sistema Assista à animação Vida
de inseto e a correla-
que baseia seu funcionamento na exploração dos trabalhadores. Eles cione com os conceitos
produzem o valor social e a riqueza, porém são despojados dela. de consciência coletiva,
coesão social e conflitos
De modo geral, podemos dizer que o estudo dos três autores nos entre as classes sociais
estudados neste capítulo.
apresenta um painel amplo das diferentes abordagens que os primei-
Direção: John Lasseter. Estados Uni-
ros estudos sociológicos nos legaram. Com base neles, foram criadas
dos: Pixar Animation Studios, 1998.
diferentes escolas de pensamento e pesquisa, que atravessaram o sé-
culo XX e chegaram até nós.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As ciências sociais nasceram no século XIX e, desde então, são uma
importante ferramenta para a compreensão da sociedade moderna. Elas
permitem que a humanidade desenvolva um conhecimento aprofundado
sobre como se dão as relações humanas no plano coletivo, como se de-
senvolvem as instituições e como funciona o capitalismo.
Os autores, brevemente apresentados aqui, contribuíram para forjar-
mos essas ciências, criando conceitos que ainda hoje nos ajudam na tare-
fa da compreensão e da crítica social.
Algumas das ideias abordadas criaram tradições teóricas e enseja-
ram estudos e teorias capazes de nos fazer refletir sobre a experiência
humana em várias de suas dimensões, criando, inclusive, outros campos
de conhecimento.
Um dos fatores a serem levados em consideração é que o conheci-
mento social é tão científico quanto o das ciências exatas e, por isso, exige

Conhecendo as ciências sociais 27


o mesmo nível de qualificação e especialização. Desse modo, é ciência e
não opinião. Outra característica igualmente importante é a percepção de
que o senso comum é bastante enganoso e nos encerra, muitas vezes,
num terreno de superficialidade que, apesar de poder ser muito confor-
tável, é falso. Se quisermos compreender as coisas de um modo mais
profundo e amplo, é necessário recorrer aos estudiosos, aos teóricos e ao
conhecimento científico em suma.

REFERÊNCIAS
ARANHA, M. L. A. Filosofando. São Paulo: Editora Moderna, 2012.
ARON, R. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
DURKHEIM, E. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
DURKHEIM, E. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 2019.
IANNI, O. A Sociologia e o Mundo Moderno. Textos em Ciências Sociais, nº 5, EDUC, 1988.
MARIANO, S. A. Modernidade e crítica da modernidade: a Sociologia e alguns desafios
feministas às categorias de análise. Cadernos Pagu (30), Campinas-SP, Núcleo de Estudos
de Gênero-Pagu/Unicamp, 2008, pp. 99-105.
MARTINS, C. B. O que é Sociologia. São Paulo: Brasiliense, 1991.
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Martin Claret, 2014
MORAES, L. F. R.; DEL MAESTRO, A. F.; DIAS, D. V. O paradigma weberiano da ação social: um
ensaio sobre a compreensão do sentido, a criação de tipos ideais e suas aplicações na teoria
organizacional. Revista de Administração Contemporânea, Curitiba, v. 7, n. 2, abr./jun. 2003.
WEBER, M. Ensaios de sociologia. São Paulo: LTC, 1999.
WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

GABARITO
1. As transformações são várias, entre elas: mudança da distribuição democrática com
a migração do campo para a cidade; conversão de camponeses em operárias; suces-
sivas insurreições proletárias devido ao aumento do nível de pobreza e à superexplo-
ração da mão de obra fabril; problemas de organização das condições sanitárias nas
cidades devido às mudanças muito intensas e rápidas etc.

2. Considerando que Durkheim (2014, p. 40) define consciência coletiva como “o con-
junto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma
sociedade forma um sistema determinado que tem sua vida própria; poderemos cha-
má-lo: consciência coletiva ou comum”, poderíamos citar, como exemplos, um certo
consenso social de que ter uma religião é melhor do que não ter nenhuma, a ideia de
que certos comportamentos são mais adequados para homens enquanto outros para
mulheres, a visão de que a família, e não o indivíduo, é a base da sociedade etc.

3. Na obra de Marx, o conceito de luta de classe diz respeito à oposição entre capitalistas
e proletários; oposição porque seus interesses últimos são opostos. Hoje em dia, com
o declínio da produção fabril em vários países, é possível pensar em luta de classe
como a oposição entre os interesses de trabalhadores em geral e os donos do capital,
como banqueiros e grandes empresários, que concentram a renda nacional em níveis
cada vez maiores.

28 Introdução às ciências sociais


2
Abordagens sociológicas
contemporâneas
Há cinquenta anos, as empresas mais ricas e valiosas eram
montadoras de automóveis ou de produção de bens de capital, ou
seja, fabricantes de máquinas que abasteciam outras indústrias.
Um cenário bem distinto do que encontramos hoje. Se pensarmos
nas empresas mais valiosas atualmente, nenhuma delas é produ-
tora de mercadorias físicas. Dentre as maiores, a Amazon é uma
empresa de e-commerce e o Google é uma empresa de inteligência
informacional.
Isso significa que, ao longo das últimas décadas, profundas mu-
danças transformaram o mundo. Neste capítulo, vamos analisar
as transformações pelas quais o capitalismo passou, desde o seu
surgimento, como capitalismo industrial, até os dias atuais, deno-
minado capitalismo contemporâneo.
É importante compreendermos que esse estudo trata de uma
análise sociológica do capitalismo, na qual procuramos identificar
as implicações sociais desse tipo de sistema econômico, que não
é apenas um modo de organizar o mercado, mas também uma
forma de organização da vida em sociedade.
Assim, para que possamos compreender o capitalismo atual, va-
mos discutir as características desse sistema durante grande parte
do século XX, como um sistema econômico pós-industrial mais re-
lacionado à circulação de capital que à produção de mercadorias.

Abordagens sociológicas contemporâneas 29


2.1 Transformação político-econômica
Vídeo do capitalismo
O capitalismo industrial teve início no final do século XVIII e se de-
senvolveu enormemente ao longo do século XIX. No final deste, ele já
tinha alcançado vários países da Europa e estava em plena arrancada
Biografia nos Estados Unidos.

Desde meados do século XIX, a forma de organização da produção


procurava encontrar meios de aumentar a produtividade e a eficiência
de recursos, o que, historicamente, ficou conhecido como taylorismo –
descrito como um modelo de administração e de organização do traba-
lho criado pelo norte-americano Frederick Taylor.
Wikimédia Commons

O caso clássico é o de Henry Ford, que, em 1914, introduziu a jor-


nada de trabalho de oito horas e estabeleceu um salário de cinco
dólares para os trabalhadores de sua empresa de produção de auto-
Frederick Taylor (1856-1915)
móveis. Esse modelo, aliado à produção em massa, ficou conhecido
foi conhecido como o pai da
Administração Científica. Suas como fordismo. Para Ford, era importante a criação de um mercado
ideias, denominadas princípios consumidor para os produtos das empresas capitalistas, que deveria
do taylorismo, que tratavam da
ser formado também pela classe trabalhadora. Ficou famosa a ideia
organização de empresas, foram
adotadas por muitos capitalistas de que a produção em massa – formada pelo fordismo/taylorismo –
no início do século XX. criaria um consumo em massa.

O capitalismo fordista sofreu um revés na década de 1930, nos


Biografia anos seguintes à famosa crise de 1929, quando a bolsa de valores
de Nova York quebrou, levando as empresas e seus acionistas a
grandes perdas. A economia mundial entrou em um período deno-
minado Grande Depressão, que se estendeu até 1939, quando ini-
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ciou a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O esforço de guerra e,


posteriormente, o de reconstrução da Europa, que foi palco desta,
realimentou o crescimento capitalista e o fordismo seguiu vigoroso,
estendendo-se até o fim dos anos de 1970, quando entra em declí-
Henry Ford (1863-1947) foi
o fundador da Ford Motor nio e passa a conviver com o toyotismo, cujas características estuda-
Company. Ficou conhecido como remos a seguir.
um inovador na fabricação de
automóveis, por ser o primeiro É preciso lembrar que o fordismo floresceu no pós-Segunda
empresário a implantar a linha Guerra. A tarefa de reconstrução das cidades e economias europeias,
de montagem em série.
devastadas pela guerra, deu-se concomitantemente à formação do

30 Introdução às ciências sociais


1
Estado do Bem-Estar Social (Welfare State). Este se configurou como 1
resposta ao próprio desafio de estabilizar politicamente o continente, O Estado do Bem-Estar Social
é aquele que executa políticas
dado o apelo dos movimentos socialistas sobre o crescente movimen-
públicas de proteção social a
to sindical, principalmente tendo em vista o sucesso da União Sovié- seus cidadãos, principalmente
tica na guerra. aos trabalhadores.

Outro fator não menos importante é a questão geopolítica e de


abertura de mercados. De acordo com Harvey (2008, p. 131):
o fordismo do pós-guerra também teve muito de questão inter-
nacional. O longo período de expansão do pós-guerra dependia
de modo crucial de uma maciça ampliação dos fluxos de comér-
cio mundial e de investimento internacional. De desenvolvimen-
to lento fora dos Estados Unidos antes de 1939, o fordismo se
implantou com mais firmeza na Europa e no Japão depois de
1940 como parte do esforço de guerra. Foi consolidado e ex-
pandido no período de pós-guerra, seja diretamente, através de
políticas impostas na ocupação (ou, mais paradoxalmente, no
caso francês, porque os sindicatos liderados pelos comunistas
viam o fordismo como a única maneira de garantir a autonomia
econômica nacional diante do desafio americano) […]. Essa aber-
tura do investimento estrangeiro (especialmente na Europa) e
do comércio permitiu que a capacidade produtiva excedente dos
Estados Unidos fosse absorvida alhures, enquanto o progres- Glossário
so internacional do fordismo significou a formação de mercados alhures: em outro lugar.
de massa globais e a absorção da massa da população mundial
fora do mundo comunista na dinâmica global de um novo tipo
de capitalismo.

Esse fenômeno de mercados de massa globais marca, na visão do


autor, o tipo de capitalismo que se desenvolveu no período. Para Har-
vey (2008, p. 131), “o fordismo do pós-guerra tem de ser visto menos
como um mero sistema de produção em massa do que como um modo
de vida total. Produção em massa significava padronização do produto
e consumo de massa, o que implicava toda uma nova estética e merca-
dificação da cultura”. Assim, podemos entender que:

já a partir do fordismo, o capitalismo deixou de ser apenas um tipo de sistema de pro-


dução de mercadorias para constituir um sistema econômico e, mais que isso, um tipo
de sociedade.

Abordagens sociológicas contemporâneas 31


Essa sociedade é aquela em que o consumo de massa abrange mui-
tos aspectos da vida social. Por exemplo, no século XIX, para se ouvir um
concerto, era necessário ir ao teatro. Nessa nova sociedade, pode-se
comprar um disco e o mesmo concerto que podia ser visto apenas por
algumas dezenas de pessoas passa a estar ao alcance de milhões.

A partir de meados dos anos 1970, esse tipo de capitalismo começa


a entrar em crise. Ao mesmo tempo, surge um novo modelo de produ-
ção, conhecido como toyotismo, que, assim como o fordismo, foi conce-
bido em uma montadora de automóveis – a empresa japonesa Toyota.
O toyotismo altera o desenho da planta de produção com o intuito de
aumentar a produtividade e eliminar desperdícios, mas, principalmen-
te, se caracteriza pela chamada produção just-in-time, ou seja, produ-
ção por demanda.

David Harvey, em seu já clássico A condição pós-moderna, indica em


linhas gerais os traços que caracterizam o fordismo em oposição ao
modelo just-in-time. Ele classifica a produção fordista como sendo ba-
seada em economias de escala e a produção just-in-time como baseada
em economias de escopo (Quadro 1).

Quadro 1
Comparação entre os modelos de produção fordista e just-in-time

Produção fordista Produção just-in-time

• Bens homogêneos produzidos em • Produção em pequenos lotes de


massa. uma variedade de tipos de produto.
• Uniformidade e padronização. • Ausência de estoques.
• Grandes estoques e inventários. • Controle de qualidade integrado
• Testes de qualidade ex-post ao processo (detecção imediata de
(detecção tardia de erros e erros).
produtos defeituosos). • Rejeição imediata de peças com
• Ocultação de produtos defeituosos defeito.
nos estoques. • Redução do tempo perdido,
• Perda de tempo de produção diminuindo-se “a porosidade do dia
por causa de longos tempos de de trabalho”.
preparo, peças com defeito, pontos • Subcontratação.
de estrangulamento nos estoques. • Aprendizagem na prática integrada
• Redução de custos por meio do ao planejamento a longo prazo etc.
controle dos salários etc.

Fonte: Elaborado pelo autor com base em Swyngedouw (1986 apud Harvey, 2008).

32 Introdução às ciências sociais


Para esse autor, além de se diferenciarem nos modelos de pro-
dução, os sistemas fordista e just-in-time distinguem-se em relação à
organização do trabalho. Podemos compreender esses contrastes ana-
lisando o Quadro 2.

Quadro 2
Comparação entre a organização do trabalho fordista e just-in-time

Organização fordista Organização just-in-time

• Realização de uma única tarefa • Múltiplas tarefas.


pelo trabalhador. • Pagamento pessoal (sistema
• Pagamento pro rata detalhado de bonificações).
(proporcional ao tempo). • Eliminação da demarcação de
• Alto grau de especialização de tarefas.
tarefas. • Longo treinamento no
• Pouco ou nenhum treinamento trabalho.
no trabalho. • Organização mais horizontal do
• Organização vertical do trabalho. trabalho.
• Ênfase na redução da • Nenhuma segurança no
responsabilidade do trabalhador trabalho e condições
(disciplinamento da força de de trabalho ruins para
trabalho). trabalhadores temporários.

Fonte: Elaborado pelo autor com base em Swyngedouw (1986 apud Harvey, 2008).

Esse novo capitalismo que surge a partir da crise dos anos 1970
desemboca, nos anos 1980, no capitalismo financeiro de cunho neoli-
beral, fenômeno político e econômico marcado pela flexibilidade que
vai caracterizar não apenas as linhas de produção e a organização do
trabalho em torno delas, mas também a:
flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de tra-
balho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo
surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas
maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mer-
cados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação
comercial, tecnológica e organizacional. (HARVEY, 2008, p. 140)

O autor vai chamar esse novo capitalismo de acumulação flexível,


a qual:
envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento
desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas,
criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego do
chamado “setor de serviços”, bem como conjuntos industriais
completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas
[…] Ela também envolve um novo movimento que chamarei de

Abordagens sociológicas contemporâneas 33


“compressão do espaço-tempo”[...] no mundo capitalista – os
horizontes temporais da tomada de decisões privada e pública
se estreitaram, enquanto a comunicação via satélite e a queda
Glossário dos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difusão
variegado: diversificado. imediata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e
variegado. (HARVEY, 2008, p. 140)

O capitalismo que emerge na década de 1980 será então mais global,


alcançando países cujos mercados eram até então inexplorados. É mais
integrado, baseia seu desenvolvimento crescentemente em tecnologia
e na desestruturação do mercado de trabalho e do movimento sindical.

Além dessas características gerais, é possível destacar que, à me-


dida que esse novo modelo se desenvolve, a importância do capital
financeiro sobre o produtivo é cada vez maior. Os chamados capitais
voláteis, que migram de um país para outro por um mero clique, es-
tabeleceram uma nova lógica de instabilidades crescentes. Por isso,
outra característica muito importante desse capitalismo são as crises
recorrentes. Segundo Harvey (2008, p. 155):
a acumulação flexível evidentemente procura o capital financeiro
como poder coordenador mais do que o fordismo o fazia. Isso
significa que a potencialidade de formação de crises financeiras
e monetárias autônomas e independentes é muito maior do que
antes, apesar de o sistema financeiro ter mais condições de mi-
nimizar os riscos através da diversificação e da rápida transfe-
rência de fundos de empresas, regiões e setores em decadência
para empresas, regiões e setores lucrativos. Boa parte da fluidez,
Glossário
da instabilidade e do frenesi pode ser atribuída diretamente ao
frenesi: exaltação violenta; aumento dessa capacidade de dirigir os fluxos de capital para lá
excitação. e para cá de maneiras que quase parecem desprezar as restri-
ções de tempo e de espaço que costumam ter efeito sobre as
atividades materiais de produção e consumo.

Desde que a análise de Harvey foi feita, ainda no fim dos anos de
1980, esse modelo de capitalismo só se aprofundou e nos dias atuais o
capital é cada vez mais financeirizado e desregulamentado, ou seja, os
Estados nacionais foram perdendo sua capacidade regulatória sobre
o fluxo de capital. Por isso mesmo, o paradigma de crises constantes
foi agravado pelo fato de que, pela globalização da economia mundial,
elas se tornaram contagiosas, pois a partir de um país elas se alastram
e contaminam outras economias. No início da década de 1990, tivemos
as crises escandinavas e japonesas; entre 1997 e 1999, a crise asiática;

34 Introdução às ciências sociais


e em 2007-2008, a crise americana dos títulos imobiliários podres (que Atividade 1
ficou conhecida como sub-prime), a qual contaminou rapidamente vá- Considerando as diferenças
entre o fordismo e o toyotismo,
rios países da Europa, como a Grécia e a Espanha (AMARAL, 2009).
aponte as caraterísticas do
As mudanças ocorridas no capitalismo a partir da crise do fordismo toyotismo que dizem respeito
à organização do trabalho,
nos trouxeram para um mundo em que as crises se aprofundaram.
correlacionando-as à acumula-
Novos elementos entraram fortemente em cena, como o avanço da ção flexível.
tecnologia e o uso dela encurtando o tempo e diminuindo distâncias,
a internacionalização crescente das economias, a desregulamentação
progressiva e constante do mercado de trabalho, a consolidação geo-
política entre países centrais e periféricos, entre outras.

2.2 Transformações recentes no trabalho


Vídeo e no mercado de trabalho
A reestruturação produtiva que levou do fordismo à acumulação
flexível aconteceu em meio à evolução tecnológica e a uma crise econô-
mica intensamente vivida na década de 1970 nos países centrais. Essa
crise reuniu estagnação, ou depressão econômica, e inflação, tendo fi-
cado conhecida como estagflação. Esse processo levou a um declínio
das taxas médias de lucro do capitalismo global. Para Antunes e Praun
(2015, p. 421, grifos do original):
em resposta aos obstáculos impostos ao processo de acumula-
ção, nos anos 1980, um conjunto de medidas, articuladoras de
velhas e novas formas de exploração do trabalho, passou a re-
desenhar a divisão internacional do trabalho, alterando também
de forma significativa a composição da classe trabalhadora em
escala global. Movendo-se com facilidade pelo globo, fortemen-
te enraizadas no capital financeiro, um número cada vez mais
reduzido de corporações transnacionais passou a impor à classe-
-que-vive-do-trabalho, nos diferentes países do mundo, patama-
res salariais e condições de existência cada vez mais rebaixadas .

Para compreender bem esse fenômeno, é preciso considerar que a


oligopolização de vários setores e a migração das fábricas para países
cada vez mais periféricos, acabou criando uma espécie de concorrência
entre os trabalhadores do mundo. Por exemplo, nos anos 1990, uma
grande parte do parque industrial automobilístico americano migrou
para outros países, onde a mão de obra era mais barata e os direitos tra-
balhistas menores ou ausentes, deixando atrás de si cidades destruídas

Abordagens sociológicas contemporâneas 35


e trabalhadores desempregados. O mesmo fenômeno aconteceu com a
indústria têxtil. Países como Bangladesh e Índia, e mais recentemente a
China, passaram a ser novos núcleos de produção. Esses movimentos de
transferência sempre foram feitos mediante políticas de cortes de cus-
tos, com redução da massa salarial e de direitos trabalhistas.

Na literatura, isso ficou conhecido como uma nova divisão interna-


cional do trabalho, que se caracteriza pela transferência para os países
da periferia global de atividades mais ligadas à agroindústria, à indús-
tria de transformação de base, como a siderurgia, e ao setor de servi-
ços, mantendo nos países centrais os setores de tecnologia, finanças,
desenvolvimento científico etc. Isto é, as atividades com mais valor
agregado e mais bem pagas ficam nos países centrais (Europa Ociden-
tal, EUA, Canadá, Japão etc.) e as demais, de baixa tecnologia e conse-
quentemente que exigem baixa qualificação profissional, concentram
-se nos países chamados emergentes ou não desenvolvidos.

Desde o final da chamada era de ouro do capitalismo (1946-1973),


em que os países centrais apresentaram índices robustos de cres-
cimento econômico, produção e distribuição de riquezas, não houve
mais um ciclo de crescimento estável e de longa duração nos países
capitalistas. Crises sucessivas levaram à compressão contínua dos salá-
rios, à desestruturação do sindicalismo, que tinha conseguido alcançar
ganhos salariais expressivos no período fordista, e, também, à crise do
Estado do Bem Estar Social. Nas palavras de Harvey (2008, p. 140):
esses poderes aumentados de flexibilidade e mobilidade per-
mitem que os empregadores exerçam pressões mais fortes de
controle do trabalho sobre uma força de trabalho de qualquer
maneira enfraquecida por dois surtos selvagens de deflação,
força que viu o desemprego aumentar nos países capitalistas
avançados (salvo, talvez, no Japão) para níveis sem precedentes
no pós-guerra. [...] A acumulação flexível parece implicar níveis
relativamente altos de desemprego estrutural [...], rápida des-
truição e reconstrução de habilidades, ganhos modestos (quan-
do há) de salários reais [...] e o retrocesso do poder sindical – uma
das colunas políticas do regime fordista.

O Estado do Bem-Estar Social é resultante das políticas públicas de


proteção aos trabalhadores e cidadãos que emergiram na Europa e nos
Estados Unidos logo depois da Segunda Guerra Mundial. Incluem polí-
ticas de saúde, educação, previdência social, seguro-desemprego e ou-

36 Introdução às ciências sociais


tras, inspiradas na obra do economista britânico John Maynard Keynes. Biografia
Para ele, mesmo resguardado o princípio da livre iniciativa, o Estado de-
veria assegurar direitos sociais, pleno emprego e o controle da inflação.

Wikimédia Commons
Nos anos de 1990, esse Estado entra em crise e, até os dias atuais,
há um embate político em torno de sua manutenção ou diminuição de
seu escopo de atuação. Entre os vários exemplos desse embate, po-
demos citar o movimento dos “coletes amarelos”, realizado na França,
Keynes (1883-1946) defendia
país que ainda mantém um dos Estados de Bem-Estar Social mais ro- a intervenção econômica
busto, em 2019/2020. Esse movimento lutou contra uma reforma da do Estado na economia,
contrariando os preceitos liberais
previdência que retirava direitos dos trabalhadores.
clássicos do capitalismo que
O fato é que, embora de maneira desigual, muitos países viram preconizam, por sua vez, que as
forças de mercado comandem
o padrão de seus empregos decair e seus trabalhadores empobre- não apenas a economia, mas
cerem. Em alguns casos, como na Inglaterra da primeira-ministra também a repartição social do
Margaret Thatcher (1925-2013), que governou o país entre 1979 e seu resultado.

1990, com viés fortemente liberal e sendo uma das precursoras do


chamado neoliberalismo, o mercado de trabalho é fortemente desre-
gulamentado se comparado a outros países europeus com o mesmo
nível de desenvolvimento.

Observamos que no capitalismo, que surge a partir da crise do for-


dismo, a questão do trabalho pode ser abordada tanto do ponto de
vista de que há uma nova divisão internacional do trabalho, com a ex-
portação de empregos menos qualificados para os países da periferia
do sistema (como América Latina, África e partes da Ásia), quanto de
um movimento internacional de rebaixamento das condições de tra-
balho, mesmo nos países centrais, com pressões constantes sobre os
estados de bem-estar social remanescentes.

2.3 Terceirização e precarização


Vídeo A evolução do capitalismo nos últimos 40 anos foi acompanhada
pela progressiva deterioração das condições de trabalho, por um lado,
e pela aceleração da concentração de renda por outro. Segundo da-
dos compilados pelo World Inequality Report (ALVAREDO; CHANCEL;
PIKETTY; SAEZ; ZUCMAN, 2018), publicado pela Escola de Economia da
Universidade Paris I, a concentração de renda nos Estados Unidos foi
galopante.

Abordagens sociológicas contemporâneas 37


De acordo com esse documento, no período considerado entre
1980 e 2016, a renda média anual bruta dos 10% mais ricos dobrou
(para US$ 311 mil); e a dos 1% mais ricos triplicou (para US$ 1,3 milhão).
Enquanto isso, o valor médio dos rendimentos dos 50% mais pobres
cresceu apenas US$ 200 (de US$ 16,4 mil para US$16,6 mil). Outro dado
apresentado é que a chamada classe média americana (renda anual
média de cerca de US$ 78,5 mil) diminuiu de 60% da população para
cerca de 50%.

Interessante notar que, no mesmo período, a produtividade das


empresas americanas aumentou 77%, enquanto o valor médio da hora
trabalhada aumentou apenas 12%. Em 2019, o salário mínimo ameri-
cano correspondia a US$ 7,25 por hora. Se tivesse acompanhado os
ganhos de produtividade, seria de cerca de US$ 20 por hora (CANZIAN;
MENA, 2019). O aumento da riqueza produzida pelo trabalho não foi
apropriado pelos trabalhadores.

Fenômeno semelhante aconteceu na Europa Ocidental, ainda que


em uma escala um pouco menor. Temos então que a desregulamenta-
ção do mercado de trabalho e do mercado financeiro, a corrosão da es-
trutura sindical – com a diminuição acentuada dos filiados –, o fenômeno
da desindustrialização em vários setores da economia e, mais recente-
mente, a automação criaram o ambiente propício tanto para a escalada
da concentração de renda como para o aumento do desemprego.

O início da aceleração desse processo se deu na década de 1980,


nos EUA liderados por Ronald Reagan (1911-2004), que foi presidente
do país entre 1981 a 1989; e na Inglaterra, de Thatcher. No caso dos
EUA, de acordo com Harvey (2008, p. 296):
ataques ao poder sindical (liderados pela violenta reação de Rea-
gan aos controladores do tráfego aéreo), os efeitos da desindus-
trialização e das mudanças regionais (encorajadas por reduções
de impostos), bem como do alto desemprego (legitimado como
remédio adequado na luta contra a inflação), e todos os impac-
tos acumulados da redução do emprego na manufatura e do
seu aumento no setor de serviços enfraqueceram as instituições
tradicionais da classe operária num grau suficiente para tornar
vulnerável boa parte da população. Uma maré montante de de-
sigualdade social engolfou os Estados Unidos nos anos Reagan,
alcançando em 1986 o ponto mais alto do período de pós-guerra.

Ainda nos anos de 1980, foi forjado o termo precariado para des-
crever esses novos trabalhadores sem direitos. Essa palavra vem da

38 Introdução às ciências sociais


junção de dois termos: precário + proletariado, este último usado na
teoria marxista para se referir à classe trabalhadora. Nos últimos anos,
assistimos ao avanço das formas precárias de organização do trabalho,
com o encolhimento do mercado formal e a substituição por um em
que os vínculos são crescentemente informais.

Exemplo do avanço dos vínculos precários pode ser apontado na


terceirização crescente. Basicamente, há dois modelos de terceiriza- 2
ção. No primeiro, o vínculo direto entre empregador e empregado é No Brasil, esse fenômeno é
substituído por um contrato entre pessoas jurídicas. O antigo empre- conhecido como pejotização
(de CNPJ, o Cadastro Nacional
gado abre uma empresa que, via de regra, tem apenas um cliente, o de Pessoa Jurídica), uma vez
antigo patrão. Desse modo, as empresas obtêm o mesmo serviço que que, do ponto de vista legal,
um empregado poderia prestar, mas sem os encargos trabalhistas de o trabalhador passa a ser uma
2 pessoa jurídica.
uma relação tradicional de emprego .

O segundo é também conhecido como subcontratação. Nessa mo-


dalidade, uma empresa se interpõe entre a empresa principal e seus
“prestadores de serviço”. Por exemplo, em vez de contratar vigilantes e
faxineiros diretamente, a empresa principal contrata outra, que ofere-
cerá os trabalhadores à primeira e assumirá seus encargos trabalhis-
tas. Nesse caso, a precarização vem do fato de os salários pagos pela
empresa terceirizada serem, em geral, menores, a rotatividade maior
e, normalmente, os chamados benefícios (como seguro de saúde e va-
le-alimentação) serem menores ou inexistentes. Para Antunes e Praun
(2015, p. 420),
na última década a terceirização vem se convertendo em instru-
mento central das estratégias de gestão corporativa. A impor-
tância desse mecanismo de contratação, entre outros aspectos,
deve-se ao fato de, ao dissimular as relações sociais estabeleci-
das entre capital e trabalho, convertendo-as em relações inte-
rempresas, viabiliza maior flexibilidade das relações de trabalho,
impondo aos trabalhadores contratos por tempo determinado,
de acordo com os ritmos produtivos das empresas contratantes.

A partir da publicação, em 2011, do estudo O precariado: a nova


classe perigosa, pelo sociólogo britânico Guy Standing, o termo preca-
riado se popularizou nos estudos da sociologia do trabalho e passou
a ser muito usado para designar as novas condições de trabalho para
uma parcela crescente de trabalhadores nas sociedades capitalistas
contemporâneas. Nestas, o trabalho temporário e a falta de identida-
de profissional, além da instabilidade daí decorrente, transformam os

Abordagens sociológicas contemporâneas 39


trabalhadores, nessa situação, em pessoas potencialmente frustradas
e doentes, bem como mais suscetíveis a serem seduzidas por discursos
populistas e autoritários. Segundo Braga (2014, p. 37),
decorrente da descentralização da produção, da financeirização
das empresas, da precarização das formas de contratação e da
generalização da terceirização da força de trabalho, as formas
tradicionais de auto-organização política dos trabalhadores, em
especial os sindicatos, têm enfrentado enormes desafios na con-
temporaneidade. O resultado da confluência de todas essas ten-
dências têm sido o incremento em escala global do peso relativo
do proletariado precarizado no interior das classes trabalhado-
ras de diferentes países, tanto no Norte quanto no Sul globais.

De acordo com o mesmo autor, hoje “vivemos sob a sombra do ‘pre-


cariado’, isto é, um grupo de pessoas despojadas de garantias trabalhis-
tas, submetidas a rendimentos incertos e carentes de uma identidade
coletiva enraizada no mundo do trabalho” (BRAGA, 2014, p. 37). Essa
nova realidade é inteiramente diferente da existente até a década de
1970, quando era comum que um operário metalúrgico, por exemplo,
trabalhasse na mesma empresa durante toda a sua vida e desfrutasse
de uma carreira profissional estável.

Um exemplo desse tipo de precarização foi a criação, na Inglaterra,


do zero hour contract (contrato de zero hora), conhecido no Brasil como
trabalho intermitente. Nesse tipo de contrato não há garantia de uma
jornada fixa de trabalho, mas os trabalhadores ficam à disposição para
quando as empresas os chamarem. São pagos apenas pelas horas efe-
tivamente trabalhadas e não desfrutam de direitos trabalhistas nem
indenizações em caso de desemprego ou demissão.

Na Inglaterra, esse tipo de contrato se popularizou a partir de 2011,


como uma resposta à crise de 2008. Entretanto, mesmo depois de a
crise ser superada, a quantidade de pessoas empregadas nesse tipo de
regime só tem aumentado. Estima-se que, em 2019, cerca de 25% das
empresas britânicas, com mais de 250 empregados, utilizavam contra-
tos de trabalho intermitente (MAEDA, 2016). No Brasil, essa modalida-
de de contrato foi introduzida pela reforma trabalhista realizada em
2017, durante o governo de Michel Temer.

Em estudo sobre esse tipo de contrato na Inglaterra, Maeda (2016)


aponta algumas características gerais, a saber: cerca de 60% dos traba-
lhadores intermitentes, ou zero hora, são menores de 25 ou maiores

40 Introdução às ciências sociais


de 50 anos, sendo que as mulheres que trabalham na área de cuidados
(enfermeiras, cuidadoras de idosos e crianças etc.) ou hospitalidade
(garçonetes, recepcionistas etc.) representam a maioria dentre esses.
Isso mostra que as parcelas mais vulneráveis da força de trabalho do
país são as atingidas. Elencando as críticas formuladas pelos sindicatos
a esse tipo de contrato, a autora expõe que:
mascara o desemprego com a criação de subempregos flexíveis;
a flexibilidade que o justifica é unilateral – em regra serve apenas
ao empregador; [...] a falta de transparência e informação sobre
o zero hour contract dificulta a já mitigada liberdade contratual do
trabalhador; [...] o trabalhador sujeita-se à condição bastante inse-
gura – não é possível saber se terá trabalho nem salário; essa inse-
gurança tem efeitos sobre a saúde mental e física do trabalhador,
além de impossibilitar o planejamento familiar em termos de ro-
tina e de finanças; o zero hour contract obsta o acesso a direitos e Glossário
garantias como férias e licença-saúde; a discriminação quanto aos obsta: dificulta.
estatutos – os trabalhadores zero hora, por vezes, desempenham
a mesma atividade que os empregados regulares, mas recebem
menos e têm menos segurança e direitos; por fim, o trabalhador
zero hora está sujeito a mais exploração e maus-tratos do que os
demais. (MAEDA, 2016, p. 17-18, grifos do original)

Percebemos que o trabalho intermitente leva a precarização do tra- Filme


balho a outro patamar, uma vez que nesse tipo de contrato, marca- Assista ao filme Eu, Daniel
Blake e procure correla-
do pela ausência da maior parte dos direitos trabalhistas reservados cioná-lo com os temas
a outros trabalhadores, o trabalho passa a ser algo análogo a qualquer aqui tratados, entre eles
a situação de vulnerabi-
outro insumo para a produção de produtos e serviços. O trabalhador lidade do trabalhador.
não é visto como um cidadão que precisa de um mínimo de previsibi- Além de abordar a
precariedade da situação
lidade e estabilidade para organizar a própria vida, mas apenas como de um trabalhador que
uma mercadoria que colabora para a produção de outras. O resultado repentinamente perde
sua renda, esse filme
prático disso é o aumento crescente da pobreza e da desigualdade. trata das dificuldades que
Países ricos como a Inglaterra veem uma parcela crescente de suas po- o Estado apresenta para
que o acesso aos direitos
pulações relegada à categoria de cidadãos de segunda classe. mínimos seja desfrutado.

O processo de precarização do mercado de trabalho formal, datado Direção: Ken Loach. Inglaterra:
Sixteen Films, 2016.
da crise do fordismo dos anos de 1970, tem se intensificado bastan-
te, principalmente, a partir da crise econômica mundial de 2008. Esse
movimento é global e atinge também os países desenvolvidos. Com Atividade 2
isso, o precariado, ou seja, os trabalhadores com empregos instáveis Aponte as diferenças
e privados de direitos trabalhistas, torna-se uma massa crescente. Um entre a terceirização e o contrato
exemplo desse processo é o trabalho intermitente. intermitente.

Abordagens sociológicas contemporâneas 41


2.4 Desemprego e exclusão social
Vídeo Desde a crise do fordismo no fim dos anos de 1970, o desemprego
passou a assolar muitas economias capitalistas. Ele atingiu os países de
forma desigual, mas, nos últimos anos, tem se tornado endêmico em
vários, principalmente nos periféricos. Muitos autores apontam que
o desemprego é desejável para o funcionamento do capitalismo, do
ponto de vista de sua lógica interna, na medida em que cria e mantém
o chamado exército de reserva, atenuando pressões excessivas por au-
mentos salariais e modificações econômicas estruturais.

Uma das consequências do desemprego estrutural – em que uma


parcela da mão de obra estará sempre disponível – é o crescimento
da pobreza e da exclusão social. Se considerarmos que o desempre-
go faz parte do sistema, entenderemos que, em certos momentos da
vida, muitos trabalhadores vão sofrer com essa situação ou, ainda, um
mesmo grupo social será atingido, em geral, trabalhadores com baixa
escolaridade, imigrantes, mulheres, moradores das periferias das cida-
des etc.

A persistência de desemprego crônico ou de empregos temporá-


rios/intermitentes pode levar à situação de pobreza crescente. Nos
diferentes países, a definição do limiar da pobreza varia bastante,
pois depende do patamar de renda, da existência ou não de pro-
gramas de amparo social, do nível de desigualdade encontrado etc.
É possível afirmar que todos os países convivem com algum nível
de pobreza. Para Lopes (2006), é preciso, entretanto, diferenciar o
fenômeno da pobreza daquele da exclusão social, que é bem mais
amplo. Para o autor,
enquanto a pobreza é um desdobramento das relações histó-
ricas e estruturais de oposição entre os interesses de classes,
portanto, um fenômeno econômico que se configura na questão
social derivada das relações capital x trabalho, a “exclusão social”
se caracteriza por um conjunto de fenômenos que se configu-
ram no campo alargado das relações sociais contemporâneas:
o desemprego estrutural, a precarização do trabalho, a desqua-
lificação social, a desagregação identitária, a desumanização do
outro, a anulação da alteridade, a população de rua, a fome, a
violência, a falta de acesso a bens e serviços, à segurança, à justi-
ça e à cidadania, entre outras. (LOPES, 2006, p. 13)

42 Introdução às ciências sociais


A exclusão social, decorrente da pobreza, é um fenômeno bem mais
amplo porque implica consequências econômicas e não econômicas.
Diz respeito também à restrição de acesso a bens e serviços sociais,
além de seus impactos psicológicos e psicossociais sobre os sujeitos.

Para compreendermos bem a questão da exclusão, é preciso tam-


bém pensarmos como o acesso a bens e serviços sociais – ou direitos
sociais – está, muitas vezes, internamente correlacionado à posição em
que os trabalhadores se encontram na estratificação do mercado de
trabalho. Os direitos sociais ou direitos de cidadania estão reservados
para aqueles que estão inseridos no mercado formal de trabalho e são
crescentes à medida que essa inserção se dá nos estratos mais altos,
mais relevantes ou mais poderosos (LOPES, 2006). Ou seja, quanto
mais especializado, técnico ou gerencial é um posto de trabalho, maior
a probabilidade de o trabalhador correspondente poder acessar direi-
tos sociais, como um sistema de saúde de boa qualidade, previdência
social, seguro-desemprego, entre outros.

A abordagem da exclusão não pode prescindir da promessa histó-


rica da inclusão, empreendida pelas democracias modernas, isto é, a
ideia de que todos os cidadãos teriam os mesmos direitos e prerro-
gativas. A modernidade que permitiu o desenvolvimento do capitalis-
mo industrial é tributária da Revolução Francesa, movimento social e
político que pôs por terra os regimes absolutistas e, com eles, a ideia
de que os homens são constitutivamente diferentes por nascimento,
que tinha presidido as relações humanas por séculos. Ao invés dessa
ideia, vigoraram os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade para
todos. Esses mesmos ideiais fundaram as democracias modernas, que
são regimes políticos baseados na premissa de que todos os cidadãos
são livres e iguais. Interessante notar que o capitalismo se desenvolveu
conjuntamente com as democracias ocidentais.

Essa confluência entre democracia e capitalismo coloca justamente


em questão a inclusão social, porque, nesse quesito, democracia e capi-
talismo têm princípios contraditórios entre si. Enquanto a democracia
postula a igualdade entre todos os cidadãos, o capitalismo se estabe-
lece na diferença fundamental entre trabalhadores e capitalistas, ain-
da que abra a possibilidade de ascensão social e eventual porosidade
entre as duas classes (em tese, um trabalhador pode se tornar patrão,
mas a divisão básica entre as duas classes permanece). Essa tensão

Abordagens sociológicas contemporâneas 43


fundamental entre os dois sistemas (um político e outro econômico)
pode ser explicitada pelo par inclusão x exclusão, embora se dê em
outro registro, justamente o da confluência de ambos, a democracia e
o capitalismo, ou socioeconômico.

Um cidadão excluído é aquele que experimenta um deficit tanto de


seus direitos sociais quanto em sua inserção econômica; o regime po-
lítico assim como o econômico falharam com ele, uma vez que não se
trata apenas da pobreza material, mas também da simbólica. O tipo
de marginalização e invisibilidade social que atinge os excluídos é bem
particular (LOPES, 2006). Pensemos, por exemplo, nas pessoas em
situação de rua. Elas não têm nome e endereço nem são alvos, por
exemplo, dos discursos políticos. Numa campanha eleitoral, nenhum
candidato vai se dirigir a eles, porque eles não são eleitores. Segundo
Zioni (2006, p. 18):
tradicionalmente, a pobreza e o pobre foram objetos de dois
mecanismos racionalizadores. De um lado, a naturalização das
conjunturas estruturais e relações sociais que levam à pobreza,
fazendo com que nem o indivíduo nem a sociedade sejam res-
ponsabilizados. O destino de cada um é fruto do acaso, do azar,
da inevitabilidade do que sempre foi. […] E de outro, um meca-
nismo de neutralização que trabalha, por sua vez, no sentido de
desenvolver formas de separação, de se evitar o contato com a
população pobre.

A exclusão, portanto, pode ser entendida de diversas maneiras, está


tanto relacionada com o desemprego e a ausência de direitos sociais
quanto compreende uma outra dimensão, que engloba uma certa in-
visibilidade (ou separação). Esse aspecto diz respeito, por exemplo, a
certas barreiras invisíveis que separam os bairros ricos dos pobres, os
hábitos e valores da população periférica da central etc.

O desemprego tem se tornado, cada vez mais, parte integrante da


estrutura social e econômica contemporânea. Além das questões rela-
tivas à desregulamentação do mercado de trabalho, outro agravante
é a automação que, gradativamente, tem eliminado postos de traba-
lho, transformando-os em funções ocupadas por máquinas ou, mais
especificamente, por robôs. Assim, os mecanismos de exclusão social
se tornaram igualmente mais presentes. Como vimos, a exclusão é um
fenômeno complexo porque, além de englobar a pobreza, inclui fato-
res não econômicos, como a impossibilidade de acesso a direitos, e
fere os princípios da dignidade humana.

44 Introdução às ciências sociais


2.5 Capitalismo global
Vídeo Globalização é um termo que entrou em nosso vocabulário corrente.
Muitas pessoas ligam a ele a ideia da integração entre os países, o avan-
ço das telecomunicações, o comércio internacional, as trocas culturais
etc. Entretanto, conceitualmente, o termo designa algo bastante distinto.

Para sociólogos e economistas que estudam as transformações pe-


las quais o capitalismo tem passado ao longo dos séculos XX e XXI, a
globalização é a forma adotada por este, a partir da crise do regime
fordista, como vimos nas primeiras seções deste capítulo, o que Har-
vey conceituou como acumulação flexível. A globalização diz respeito ao
processo de internacionalização das empresas e das economias por
meio da financeirização crescente do capitalismo a partir dos anos de
1980. Para Chesnay (apud LAPYDA, 2011, p. 39), ela se caracteriza pela
“grande mobilidade dos capitais, sobretudo o financeiro, a liberalização
e desregulamentação de mercados, a formação de holdings – empre-
sas estruturadas para priorizar a ‘liquidez’ de seus ativos, ou seja, que
se pautam prioritariamente pela lógica financeira”.

Essa ideia é importante porque denota uma mudança estrutural do


capitalismo. Se na etapa fordista ele se destacava pela produção de
mercadorias, o capitalismo atual se destaca pela produção de mais ca-
pital. A primeira se concentrava na produção e a segunda, nas trocas,
cada vez mais ágeis e descompromissadas com a produção.

Um exemplo disso é o fato de os mercados financeiros (bolsas de


valores, por exemplo) estimarem o valor de uma empresa não pelo vo-
lume de sua produção, mas por sua capacidade de gerar dividendos.
Muitas empresas deficitárias, como a Uber (um aplicativo de transporte
urbano), têm valor estimado em bilhões de dólares. As subidas ou de-
cidas das cotações das empresas, muitas vezes, pouco têm a ver com
sua produtividade ou mesmo saúde financeira, porém se guiam por
expectativas de valorização ou desvalorização de suas ações.

Outra característica da globalização, de acordo com Lapyda (2011),


é o crescimento dos oligopólios industriais e a concentração de capital
em escala global em grandes conglomerados. Segundo o autor, as prin-
cipais características da globalização podem ser assim elencadas:

Abordagens sociológicas contemporâneas 45


o investimento externo direto supera o comércio exterior como
vetor principal no processo de internacionalização e se torna alta-
mente concentrado; os grupos industriais tendem a se organizar
como “empresas-rede”; aumenta a interpenetração dos capitais
de diferentes nacionalidades; cresce o número de oligopólios
mundiais; há marginalização dos países em desenvolvimento; e,
como não podia deixar de ser, ocorre a ascensão de um capital
muito concentrado, que conserva a forma monetária, favore-
cendo a emergência da globalização financeira e acentuando a
lógica financeira das empresas e dos aspectos financeiros dos
grandes grupos industriais. (LAPYDA, 2011, p. 40)

Um exemplo disso é o chamado capital volátil, isto é, aquele que


circula pelo mundo à procura da conjunção de maiores taxas de juros
com maior segurança econômica e jurídica. Normalmente esse capital
compra títulos da dívida pública de países endividados que pagam ju-
ros generosos, contudo os abandona ao menor sinal de instabilidade
política. Desse modo, muitas vezes um país tem um índice de investi-
mento externo direto maior que o saldo de sua balança de comércio
exterior, que é um indicador de atividade econômica muito mais se-
guro. O capital volátil entra e sai por meio de fatores que esses países
não controlam. Daí normalmente pagam juros cada vez maiores com a
esperança de segurar esses capitais.

Também podemos apontar que, durante esse período de expansão


da globalização, surgiram os grandes blocos econômicos. Exemplos são
Site
o Mercosul, que reúne países do chamado Cone Sul (Brasil, Argentina,
Acesse o site do Instituto
Brasileiro de Geografia Uruguai e Paraguai e foi formado em 1991; o NAFTA (Acordo de Livre Co-
e Estatística (IBGE), na mércio da América do Norte ou North American Free Trade Agreement)
aba dedicada ao tema
do trabalho, e obtenha que é um acordo econômico e comercial formado por Estados Unidos,
uma enorme quantidade Canadá e México em 1994; e a União Europeia, formada atualmente por
de informações sobre
o mercado de trabalho, 27 países, que teve sua origem em 1958, mas a forma atual data de 1993,
analisadas e apresenta- inclusive com a criação de uma moeda única, o Euro.
das em forma de gráficos
e tabelas, além de Outro aspecto a ser salientado foram questões de geopolítica, pois
analisar o perfil dos tra-
balhos segundo variados o mesmo período marcou várias mudanças importantes. Em 1989 hou-
critérios. ve a queda do muro de Berlim, que separava a Alemanha Ocidental
Disponível em: https://www.ibge. (capitalista) da Alemanha Oriental (comunista), simbolizando o fim da
gov.br/estatisticas/sociais/trabalho.
html. Acesso em: 30 abr. 2020. Guerra Fria, que desde o final da Segunda Guerra Mundial havia pola-
rizado o mundo em duas forças políticas e militares antagônicas. Logo

46 Introdução às ciências sociais


depois, em 1991, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS),
que era uma espécie de coalizão de vários países socialistas liderados
pela Rússia, se fragmentou e foi desmembrada, dando origem a mais
de uma dezena de países.

O capitalismo global refere-se, portanto, a uma etapa do desenvolvi-


mento do capitalismo conhecido como globalização ou mundialização
Atividade 3
e caracteriza-se pelo primado do capital financeiro sobre o produtivo,
Considerando as transformações
pela concentração de capital e formação de gigantescos complexos in- pelas quais passou o capitalismo
dustriais, formando empresas oligopolistas transnacionais, e pela vola- nas últimas quatro décadas,
tilidade dos recursos. Do ponto de vista político, é o sistema que vê a aponte as características do
capitalismo global.
formação de grandes blocos econômicos e o equilíbrio de poder mudar
em um dos seus polos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste capítulo, procuramos compreender um amplo processo de
mudanças ocorridas no mundo capitalista ocidental, iniciado a partir dos
anos 1970 e 1980 e que se estende até os nossos dias.
Esse processo implicou uma nova configuração tanto do modo de pro-
dução capitalista, com a emergência do toyotismo que passou a ter proe-
minência e substituiu o fordismo na maioria dos países mais desenvolvidos,
quanto de sua estrutura internacional, com o advento da globalização. Nes-
se amplo processo, as relações de trabalho sofreram muitas mudanças,
que, de modo geral, redundaram na precarização crescente dos postos de
trabalho bem como do mercado de trabalho como um todo.
O capitalismo globalizado de nossos dias é mais concentrado e oli-
gopolizado, possui ampla agilidade de movimentação internacional e capi-
tais anônimos e voláteis. Enquanto isso, os trabalhadores, que eram parte
fundamental para a acumulação de capital e geração de lucros, perderam
espaço para a esfera da circulação, que hoje concentra as maiores fontes
de lucros e resultados econômicos. O resultado disso tem sido concentra-
ção de renda em volumes inéditos na história, assim como crescimento da
pobreza e da desigualdade.
Este capítulo nos possibilitou analisar como nosso sistema econômico
funciona, de modo a esclarecer muitas coisas que acontecem a nossa vol-
ta e que impactam nossa vida.

Abordagens sociológicas contemporâneas 47


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GABARITO
1. Podemos apontar as seguintes características: múltiplas tarefas; pagamento pessoal
(sistema detalhado de bonificações); eliminação da demarcação de tarefas; longo trei-
namento no trabalho; organização mais horizontal do trabalho; ausência de seguran-
ça no trabalho e condições de trabalho ruins para trabalhadores temporários. Todas
essas características dizem respeito a um sistema em que o trabalhador precisa ser
adaptável a múltiplas funções e aprendizados, além de apresentar insegurança cres-
cente quanto a sua estabilidade.
2. Na terceirização, o contrato é realizado entre duas empresas, sendo uma principal e
a outra secundária. Essa segunda subcontrata os funcionários que prestarão serviço
para a primeira. Outra modalidade é aquela em que o trabalhador abre uma empresa
e presta serviço apenas para uma empresa, encobrindo uma relação direta de traba-
lho. No caso do trabalho intermitente, o trabalhador não tem jornada fixa de trabalho
e é contratado e pago de maneira avulsa, pelas horas efetivamente trabalhadas.
3. Há uma série de características, como a mobilidade e a volatilidade dos capitais, prin-
cipalmente o capital financeiro, a liberalização e desregulamentação de mercados, a
concentração e oligopolização de empresas transnacionais, a priorização da troca em
detrimento da produção, entre outros.

48 Introdução às ciências sociais


3
O Brasil no contexto
da globalização
Neste capítulo, vamos recorrer a conceitos da sociologia po-
lítica e da ciência política, áreas das ciências sociais, buscando
compreender como o Estado e a sociedade brasileira têm se de-
senvolvido nas últimas décadas.
O Brasil é um dos maiores e mais importantes países do mun-
do, se considerarmos seu território, o tamanho de sua população,
a força de sua economia e sua inserção internacional. Apesar de
ser considerado uma das maiores democracias do mundo, nossa
história política nos coloca aquém da solidez dos regimes vigen-
tes nos países mais avançados da Europa e mesmo das Américas.
Durante o século XX, foram três golpes de Estado e vários momen-
tos de instabilidade política e econômica.
Vamos conhecer algumas das características do Estado bra-
sileiro percorrendo sua história, bem como de seus arranjos ins-
titucionais e da forma econômica assumida por ele. Iniciaremos
pelo governo de Getúlio Vargas, que é o grande artífice do estado
brasileiro no século XX.
Considerando como o nacional-desenvolvimentismo dos anos
1950 desaguou no neoliberalismo dos nossos dias, nosso intuito
é compreender como chegamos à configuração social, econômi-
ca e política que temos hoje, assim como nos familiarizarmos com
conceitos que são centrais para a compreensão do processo. Essa
compreensão nos permite olhar para nossas instituições como fru-
tos tanto de uma história como de escolhas políticas muito claras.

O Brasil no contexto da globalização 49


3.1 O Estado brasileiro no final do século XX
Vídeo Ao longo do século XX, o Estado brasileiro passou por uma série
de modificações, acompanhando as mudanças sociais, econômicas e
políticas pelas quais o país também passou. No início do século, a so-
ciedade era ainda bastante rural e a economia baseada na produção e
exportação de café. A primeira onda de industrialização no Brasil, bas-
tante incipiente, começou ainda no final do século XIX e se desenvolveu
lentamente, alcançando um impulso considerável apenas na década
de 1930, sob o governo de Getúlio Vargas (1882-1954). Na década de
1950, ocorreu uma terceira onda, que se consolidou nas duas décadas
seguintes, já sob o regime militar. Foi nesse último período que se ins-
talou no Brasil a indústria automobilística, entre outras.

Para compreender bem como o moderno Estado brasileiro se de-


senvolveu, é preciso, em primeiro lugar, pensar nas características que
ele vai assumindo durante os governos de Vargas. Isso porque, nesse
período, consolidaram-se as características mais essenciais desse Esta-
do, considerando um longo período que se inicia com a Revolução de
1930 e se estende até o final do governo de José Sarney (1985-1990).
Dentre essas características, podemos apontar o autoritarismo, o diri-
gismo estatal, o populismo e o desenvolvimentismo.

No século XX, Vargas foi o político de maior influência sobre os


destinos do país e a forma como nossa história se desenrolou. Isso se
deve, parcialmente, ao fato de que ele governou o Brasil por quase 20
Figura 1
Getúlio Vargas anos, além de ter sido um governo reformista, que mudou a face da
sociedade brasileira.

No primeiro período de seus governos, de 1930 a 1945, perfazen-


do, portanto, 15 anos de governo ininterrupto, dirigiu o país como pre-
sidente eleito, presidente constitucional e também como ditador. De
1930 a 1934, chefiou o chamado Governo Provisório, instaurado pela
Revolução de 1930; de 1934 a 1937, presidiu o país como presidente
da República, eleito pela Assembleia Nacional Constituinte (1934); em
1937, realizou um golpe de Estado, conhecido como Estado Novo, e
governou o país como ditador até 1945.
Em 1951, volta ao governo como presidente eleito pelo voto
direto. Dessa vez, seu governo se estende por três anos e meio,
Wikimedia Commons
Governo do Brasil/

de 31 de janeiro de 1951 a 24 de agosto de 1954, quando ter-

50 Introdução às ciências sociais


mina por seu suicídio. Muitos historiadores consideram que seu suicí-
dio postergou um golpe de Estado que já estava em marcha, adiando-o
por 10 anos, já que este de fato ocorreu em 1964, com a deposição de
João Goulart (1919-1976).
É interessante notar a recorrência da busca de respostas autoritárias
na história do Estado brasileiro. São três golpes de Estado durante o sé-
culo XX (1930; 1937; 1964). Se somarmos a isso a instalação da República,
ocorrida em 1889 – fruto de um golpe de Estado contra o Imperador
Pedro II – vemos o quanto nossa história política é instável e, ao mesmo
tempo, apresenta acentuadas tendências autoritárias.

3.1.1 O Estado varguista


Para Sallum Jr. (2003), ao longo do século XX, apesar das mudanças,
o Estado brasileiro mantém uma característica constante:
cumpriu o papel de núcleo organizador da sociedade, deixando
pouco espaço para a organização e a mobilização autônomas de
grupos sociais (sobretudo dos vinculados às classes populares),
e funcionou como alavanca para a construção de um capitalismo
industrial, nacionalmente integrado, mas dependente do capital
externo, por meio de uma estratégia de substituição de importa-
ções. (SALLUM JR., 2003, p. 35)

Essas características foram forjadas durante o período conhecido


como Estado Novo, que corresponde ao período ditatorial do gover-
no de Vargas (1937-1945). O Estado Novo, inspirado pelo fascismo de
Benito Mussolini (1883-1945) na Itália, era fortemente autoritário e cen-
tralizado. Essa estrutura inclusive se tornou constitucional, visto que
uma nova Constituição foi promulgada em 1937. De modo geral, pode-
mos dizer que o Estado Novo operou com algumas medidas, entre elas:

•• governo por decreto-lei;


•• redução da autonomia dos estados e municípios;
•• nomeação de interventores no lugar de governadores eleitos;
•• fechamento do Congresso;
•• censura da imprensa, da cultura e das artes.

O governo de Vargas, nesse período, foi marcado pela ambiguidade.


Enquanto lançava mão do repertório de políticas fascistas, precisava man-
ter uma certa distância do fascismo, tal como ele se apresentava na Euro-

O Brasil no contexto da globalização 51


pa. É preciso lembrar que esse momento de seu governo coincidiu com a
Segunda Guerra Mundial e, nesta, o Brasil era aliado dos Estados Unidos,
que lutavam exatamente contra o fascismo e o nazismo europeus, tendo
inclusive enviado tropas brasileiras para a guerra.

No campo do trabalho e das relações com os trabalhadores, o go-


verno de Vargas também foi ambíguo, criando leis de proteção aos
trabalhadores ao mesmo tempo em que impedia a organização autô-
noma deles. Algumas medidas adotadas pelo governo foram:
•• proibição do direito à greve;
•• intervenção nos;
•• criação da Justiça do Trabalho;
•• criação do salário mínimo (1940);
•• criação da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT (1943).

Essas políticas de Vargas ficaram conhecidas como trabalhismo e


é uma das partes mais importantes de seu legado político. Ainda hoje
temos partidos políticos, como o Partido Democrático Trabalhista (PDT)
e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que o reivindicam. Para Bastos
(2011, p. 357), o trabalhismo de Vargas procurou enfatizar:
1) a existência de interesses convergentes entre trabalhadores e
empresários, em um esforço de neutralização dos comunistas; 2)
que esta convergência far-se-ia garantindo direitos trabalhistas
regulados por lei, mas tendo como condição a expansão dos fru-
tos do progresso econômico a serem divididos entre as classes.
De fato, repetidas vezes durante seus quinze anos de governo,
Vargas afirmara que o desenvolvimento econômico era neces-
sário para garantir a coesão social interna, permitindo elevação
dos salários reais (“valorização do trabalho”) graças à oferta de
empregos de produtividade maior e à elevação do piso salarial.

Vargas compreendia a necessidade de o país se industrializar e se


modernizar por meio de relações de trabalho regulamentadas e es-
táveis, garantidas em lei, mas, ao mesmo tempo, pretendia controlar
os sindicatos e outras forças políticas de raiz revolucionária. Ou seja,
trata-se aqui do início daquilo que ficou conhecido na literatura como
modernização conservadora.

Outra característica que irá marcar o Estado brasileiro nesse perío-


do é um nacionalismo brando, em desacordo com o fascismo clássi-
co, no qual o nacionalismo exacerbado é uma marca importante. Para
Fausto (2019, p. 316):

52 Introdução às ciências sociais


o incentivo à industrialização foi muitas vezes associado ao na- 1
cionalismo, mas Getúlio evitou mobilizar a nação em uma cru- A Carta de 1937 refere-se à
1
zada nacionalista. A Carta de 1937 reservava aos brasileiros a Constituição de 1937, a qual
exploração das minas e quedas-d’água. Determinava que a lei cria a base legal da ditadura de
regularia a sua nacionalização progressiva, assim como a das in- Vargas.
dústrias consideradas essenciais à defesa econômica ou militar.
Dispunha também que só poderiam funcionar no país bancos Livro
e companhias de seguros cujos acionistas fossem brasileiros.
O jornalista Elio Gaspari
Concedia-se às empresas estrangeiras um prazo, a ser fixado por
escreveu uma coleção de
lei, para que se transformassem em nacionais. cinco volumes em que re-
cria a história da ditadura
Esse nacionalismo mitigado foi mantido pelo período seguinte, in- militar no Brasil. Os livros
são escritos em lingua-
clusive durante a ditadura militar (1964-1984), em que foi exercido de
gem bastante acessível e
vários modos, por exemplo, pela criação de várias empresas estatais, ajudam a compreender
o período. Leia o volume
nas então chamadas áreas estratégicas. Por outro lado, a concessão de
5, A ditadura acabada,
benefícios ao capital internacional, como a contratação de emprésti- que trata do período final
da ditadura, mostrando
mos com juros extremamente elevados, mostra que o nacionalismo no
o processo de abertura
Brasil sempre foi contraditório. política.
GASPARI, E. Coleção Ditadura. Rio de

3.1.2 O Estado desenvolvimentista Janeiro: Editora Intrínseca, 2016.

A industrialização foi fundamental para o debate político e social


do Brasil durante boa parte do século XX. O país não fez parte da pri-
meira onda de países que se industrializaram ainda no século XIX. No
período, era parte da Coroa Portuguesa, e esta, apesar de ter mudado
o estatuto do país para Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves a
partir de 1815, o administrava como uma colônia e, portanto, não tinha
qualquer interesse em sua industrialização. Depois da Independência
em 1822, vários fatores contribuíram para a não adesão do país à Re-
volução Industrial, sendo o mais importante dentre eles certamente a
manutenção do regime escravocrata no país até 1888.

O processo de industrialização do Brasil só ganha fôlego a partir do


segundo governo Vargas e do governo de Juscelino Kubitschek, ambos
já na década de 1950. Conforme lembra Perissinotto (2014, p. 35), a “in-
dustrialização, sobretudo em países que a ela chegaram tardiamente,
depende muito da presença de grupos sociais dispostos a assumi-la
como ‘projeto’ e a sustentá-la politicamente contra forças dedicadas a
defender o ‘antigo regime’”. O antigo regime, no caso, é a base econômi-
ca anterior e seus atores.

É por essa razão que a implantação da indústria no Brasil passou


longe de ser um consenso entre as elites políticas e econômicas. Houve

O Brasil no contexto da globalização 53


inúmeras disputas. As principais ocorreram entre o consórcio formado
pela chamada oligarquia agrário-exportadora, pelos importadores de
mercadorias e ainda pelo capital internacional, de um lado, e, do outro,
uma ala reformista composta de novos setores urbanos que já expe-
rimentavam a riqueza trazida pela indústria, como os próprios indus-
triais e uma nascente classe média formada por profissionais liberais,
funcionários públicos e intelectuais.

Além disso, em outro nível, mais ideológico, outra disputa se deu


entre políticos e economistas simpatizantes do keynesianismo implan-
tado na Europa, no pós-guerra, e os liberais. Os primeiros defendiam
que o processo de industrialização deveria ser liderado pelo Estado e
os segundos, que o mercado definiria livremente como o país iria se
desenvolver. Historicamente, o modelo vencedor foi aquele que ficou
conhecido como nacional-desenvolvimentismo.

Segundo Bresser-Pereira (2016, p. 1):


Nos anos 1950 os cientistas políticos e os economistas brasileiros
identificaram “desenvolvimentismo” como o conjunto de ideias
políticas e de estratégias econômicas que orientavam a industriali-
zação acelerada do Brasil e a coalizão das classes sociais identifica-
das com o desenvolvimento nacional. Hélio Jaguaribe (1962: 208)
afirmava no início dos anos 1960 que ‘a tese central do nacionalis-
mo desenvolvimentista é a de que a promoção do desenvolvimen-
to econômico e a consolidação da nacionalidade constituem dois
aspectos correlatos do mesmo processo emancipatório’.

Assim, a tese vitoriosa na disputa foi a que defendia que para al-
cançar rapidamente um desenvolvimento condizente com o tamanho
do território, o mercado consumidor, numa palavra, as potencialida-
des do Brasil, seria necessário que o Estado capitaneasse o processo.
O caráter emancipatório deste se daria pela diminuição da depen-
dência do país aos produtos fabricados por outras economias, bem
como do capital internacional, com o fortalecimento de um capital
nacional. Sociologicamente, a consolidação da nacionalidade se daria
pela autoidentificação da população como parte de uma nação pu-
jante, preocupada com o bem-estar de seu povo e capaz de produzir
riquezas em pé de igualdade com outros países. Por isso o termo na-
cional-desenvolvimentismo se popularizou.
Para Sallum Jr. (2003, p. 37), é possível resumir em quatro tópicos
gerais as características do desenvolvimentismo. Segundo o autor, as
ideias centrais eram:

54 Introdução às ciências sociais


•• a industrialização é a via da superação da pobreza e do
subdesenvolvimento;
•• um país não consegue industrializar-se só por meio dos im-
pulsos do mercado, sendo necessária a intervenção do Estado
(intervencionismo);
•• o planejamento estatal é que deve definir a expansão desejada
dos setores econômicos e os instrumentos necessários;
•• a participação do Estado na economia é benéfica, captando re-
cursos e investindo onde o investimento privado for insuficiente.

A industrialização, pois, foi resultado de uma clara decisão política num


país que desde o início de sua colonização possuía uma estrutura agrária
e baseava sua economia no modelo agroexportador, durante a Colônia,
como produtora e exportadora de cana-de-açúcar e posteriormente de
café.
Segundo Bresser-Pereira (2016), esse fenômeno não ocorreu ape-
nas no Brasil. Na verdade, o “estado desenvolvimentista está associado
às coalizões de classes desenvolvimentistas que comandaram a forma-
ção do estado-nação e a revolução industrial” (BRESSER-PEREIRA, 2016,
p. 3). Para Schneider (2013), a implementação do desenvolvimentismo
no Brasil tem um caminho próprio. Nas palavras do autor:
Na esteira da Grande Depressão, os governos de Getúlio Var-
gas (1930-1945 e 1951-1954) começaram a criar as instituições
e políticas que mais tarde seriam os principais instrumentos de
desenvolvimento liderado pelo Estado: a proteção tarifária e o
comércio administrado (ano 1930); as empresas estatais de aço
(anos 1940 e 1950); um banco de desenvolvimento, o Banco Na-
cional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) (anos 1950); uma
empresa estatal de petróleo (Petrobras, anos 1953); e as políti-
cas setoriais para a implantação de uma indústria automobilís-
tica (anos 1950) [...]. Além disso, Vargas criou uma nova agência
de pessoal, o Departamento Administrativo do Serviço Público
(DASP), projetado para profissionalizar e despolitizar a burocra-
cia das principais instituições desenvolvimentistas. (SCHNEIDER,
2013, p. 9)
Por essa descrição das medidas tomadas por Vargas, bem como Atividade 1
pelas instituições criadas por ele, vê-se claramente que o Estado var- Aponte as principais caracte-
guista entrega o arcabouço institucional e econômico que possibilitou rísticas do Estado varguista/
o desenvolvimento do Estado nacional-desenvolvimentista que irá ser desenvolvimentista.
a tônica do Brasil nos períodos seguintes.

O Brasil no contexto da globalização 55


3.2 Desenvolvimentismo como política econômica
Vídeo O modelo de Estado desenvolvimentista formatado na era Vargas
perpassa os governos de Juscelino Kubitschek (1956-1961) e João Goulart
(1961-1964) sem grandes soluções de continuidade em suas premissas
básicas e alcança também o período dos governos militares (1964-1984).
Neste, o autoritarismo do Estado se intensifica, bem como é possível ver
como os mecanismos de concentração de renda e geração de desigual-
dade social se aprofundam. A essência do modelo é, contudo, a mesma.
É preciso salientar que o tipo de capitalismo industrial que se desenvol-
veu no Brasil e em outras regiões da América Latina é o conhecido como
capitalismo dependente. Ou seja, o desenvolvimentismo manejado pelo
Estado brasileiro é também o dependente.

A ideia da dependência foi desenvolvida por vários autores e, de


modo geral, podemos dizer que ela preconiza que no capitalismo in-
ternacional existem países centrais e outros que são periféricos. A re-
lação centro-periferia se dá pela subordinação da economia dos países
periféricos à dos centrais, ou seja, seu desenvolvimento se dá na me-
dida em que as condições dos países centrais o permitem. Da mes-
ma maneira, o tipo de indústria que se desenvolve na periferia é o de
transformação primária de matérias-primas e não o de alta tecnolo-
gia, envolvendo pesquisa e desenvolvimento. Por exemplo, o tipo que
2 transforma o minério de ferro em aço, mas a transformação deste em
O desenvolvimentismo surgiu produtos finais, com maior valor agregado, é feita nos países centrais.
na Ásia, em países como Coreia
do Sul e Singapura. Esses países Para Bresser-Pereira (2016), entre os vários tipos de estado desen-
2
conseguiram um modelo mais volvimentista , o nacional-dependente foi o que alcançou o menor
bem sucedido que o que ocorreu
êxito como estratégia de desenvolvimento e geração e distribuição de
na América Latina.
riquezas. Segundo ele,
os países nessa categoria foram suficientemente desenvolvi-
3 mentistas para conseguir realizar sua revolução industrial, mas
não foram capazes de manter suas taxas de crescimento acele-
Catch-up em economia é
traduzido como convergência radas, e sua renda per capita, que crescia em torno de 4% nos
de riqueza entre países pobres anos da industrialização, passou a crescer em torno de 1% ao
e ricos em algum momento do ano, caracterizando-se, assim, um quadro de semiestagnação
tempo. Isso é alcançado pelo 3
e de fracasso em realizar o catching up . (BRESSER-PEREIRA,
maior crescimento da renda per
2016, p. 11, grifos nossos)
capita dos países pobres durante
um certo período, até que se No caso do Brasil, durante os primeiros anos de adoção do modelo,
chegue à equalização..
as taxas de crescimento foram expressivas, mas, no final da década de

56 Introdução às ciências sociais


1970, quando a crise internacional atingiu as economias centrais, o país
passou a compartilhar a mesma crise, agravada aqui pelo colapso da
base de sustentação do regime militar.

Ainda segundo Bresser-Pereira (2016), a análise do modelo do


desenvolvimentismo brasileiro aponta para a existência de cinco
características principais:
•• lucros e investimentos dependendo do Estado;
•• discurso desenvolvimentista dominante sobre a necessidade da
industrialização e da intervenção do Estado para promovê-la;
•• exclusão da maioria da população;
•• burocracia pública fracamente institucionalizada;
•• recurso excessivo ao endividamento externo, que afinal financiou
muito mais o consumo do que o investimento.

Ao final dos anos 1970, o quadro que se desenhava era de um au-


mento expressivo da desigualdade social tendo em vista o incremen-
to na concentração de renda, o endividamento externo crescente do
Estado, tomado a juros cada vez maiores. Apesar disso o país tinha
construído um parque industrial de peso, o maior da América Latina.

Segundo Schneider (2013), o nacional-desenvolvimentismo deixou


um robusto legado. Para o autor:
alguns dos principais destaques de desempenho da década de 1990
e 2000 foram: os maiores produtores de aço, Gerdau, Companhia
Siderúrgica Nacional (CSN) e Usiminas; de aviões, a Empresa Brasi-
leira de Aeronáutica (Embraer); de mineração, a Vale, originalmen-
te Companhia Vale do Rio Doce (CVRD); de petróleo, a Petrobras
e os fabricantes de automóveis multinacionais. Essas são algumas
das maiores empresas brasileiras no país, as de maior volume de
exportações, as que se internacionalizaram de forma mais agressi-
va, bem como as líderes tecnológicas em seus respectivos setores.
Além disso […] todas elas (exceto as montadoras multinacionais)
começaram como empresas estatais. (SCHNEIDER, 2013, p. 15)

Outro importante legado foi o desenvolvimento da tecnologia do


etanol, que transforma a cana-de-açúcar em combustível, e a do motor
flex nos automóveis. Essas empresas, muitas delas privatizadas duran-
te o governo de Fernando Henrique Cardoso, capitanearam por pelo
menos duas décadas o desenvolvimento brasileiro.

O Brasil no contexto da globalização 57


Esse momento histórico, final da década de 1970 e começo dos
anos 1980, é o da crise do modelo fordista de capitalismo e o início
do que foi chamado de acumulação flexível e, concomitantemente, da
financeirização crescente das economias mundiais. Como veremos no
próximo tópico, essa mudança levou à hegemonia de um novo para-
digma de política econômica. Passamos do keynesianismo e do Estado
do Bem-Estar Social para o neoliberalismo, marcado por políticas de
contenção de gastos públicos e controle monetário.

Mas, antes, vamos explorar um pouco o que estava acontecendo na


política brasileira nesse período. A mudança de orientação que chega-
va do exterior bem como o cenário interno levaram os governos dos
generais Ernesto Geisel (1974-1979) e, posteriormente, João Figueiredo
(1979-1985) a terem diante de si a escolha entre pressões externas por
priorizar o pagamento dos juros da dívida, o que implicava um extenso
programa de ajuste fiscal e desinvestimento, e o desenvolvimento in-
terno, com incentivos à indústria nacional. Eles optaram pelas pressões
externas, o que levou ao esgarçamento de sua base de sustentação e à
implosão do arranjo de forças sociais e econômicas que haviam levado
os militares ao poder em 1964. Segundo Sallum Jr. (2003, p. 37),
a estratégia escolhida para enfrentar o estrangulamento exter-
no produziu uma crise política muito complexa. Ela começou
por dissociar o governo da base de sustentação sociopolítica do
Estado varguista. O “ajuste externo” opôs-se ao receituário eco-
nômico da coalizão desenvolvimentista, que via no crescimento
econômico nacional o valor básico a ser alcançado e fazia das
empresas estatais seu pilar central de sustentação. A política
governamental foi considerada recessiva, inflacionária e “injus-
ta”, pois transferia todos os custos do “ajuste” para os agentes
econômicos domésticos, principalmente para os assalariados e
para as empresas estatais, evitando onerar os credores exter-
nos. Assim, as políticas de governo não só se dissociaram dos
interesses imediatos da base de sustentação do Estado como
passaram a ser consideradas ilegítimas, contrárias aos valores
básicos da aliança desenvolvimentista.

Aqui é interessante notar como a crise econômica mundial, ao


lado das escolhas políticas dos dirigentes, levou ao colapso do regime,
abrindo espaço para uma oposição cada vez mais robusta, atuante e
mais enraizada na sociedade brasileira. De acordo com o mesmo autor:

58 Introdução às ciências sociais


essas reações surgidas no interior da elite empresarial e no sis-
tema de empresas estatais favoreceram a atuação da oposição
político-partidária no Congresso e seus esforços para mobilizar
as classes médias e populares na luta contra a perpetuação do
regime militar. Essa mobilização de massa resultou, entre janei-
ro e março de 1984, na mais importante demonstração pública
ocorrida no Brasil em favor da democratização política – a cam-
panha das ‘Diretas Já’. (SALLUM JR., 2003, p. 37)

A crise do regime coincide com a do Estado varguista. Como vimos


anteriormente, o modelo dependia de uma concentração de forças que
começa a desaparecer no final do governo de Geisel e se estende pelo
de Figueiredo. A ideia inicial do regime de uma abertura lenta, gradual
e segura foi acelerada pela mobilização popular, que precipitou o seu
fim em 1984, com a eleição do líder da oposição, Tancredo Neves.

A década de 1980 foi bastante difícil para o país. Em sua primeira


metade, durante o governo de Figueiredo, tivemos a crise própria do
colapso do regime militar e do modelo de Estado autoritário que o mar-
cou desde sua origem, agravada ainda pela crise econômica e acelera-
ção da inflação. Somado a isso, a instabilidade da transição da ditadura
para a democracia. Quando o novo governo civil eleito indiretamente
pelo Colégio Eleitoral – já que a Emenda Constitucional que garantia
a eleição direta para presidente não foi aprovada por um Congresso
Nacional dominado ainda pelo regime – ia tomar posse, o presidente
eleito adoece e, depois de um mês de agonia, tragicamente morre, em
21 de abril de 1985, antes da posse. O governo é então entregue ao
vice-presidente eleito, José Sarney.

Esse segundo período da década de 1980 deu luz ao que ficou co-
nhecido como Nova República. Durante o governo Sarney, houve um
expressivo avanço do processo de democratização das instituições, cujo
cume foi a promulgação da Constituição de 1988 e o incremento da par-
ticipação popular no processo político.
Durante o governo Sarney o legado institucional autoritário
ajustou-se ao processo de democratização em curso, traduzindo as
demandas de ampliação do espaço da política e do universo de seus
participantes reconhecidos em regime político democrático. Isso
implicou tanto o rompimento dos limites institucionais impostos à
participação e à organização política das classes populares como a
expansão dos direitos básicos do cidadão. Eliminou-se, assim, na
Nova República, um dos pilares centrais do Estado varguista em

O Brasil no contexto da globalização 59


qualquer de suas formas de organização política. As mudanças nas
instituições políticas e no âmbito de poder dos diversos atores cul-
minaram na Constituição de 1988, que ampliou o poder de ação do
Legislativo, do Judiciário e do Ministério Público nos processos de
decisão governamentais. (SALLUM JR., 2003, p. 38)

A chamada Constituição Cidadã foi fruto de um intenso processo


de negociação entre os novos e antigos atores políticos, de modo a
contemplar muitas demandas totalmente represadas durante o regime
militar. Exemplo disso foi a criação de conselhos consultivos e delibe-
rativos com a participação da sociedade civil para a implementação de
políticas sociais, como o de Saúde, de Defesa de Crianças e Adolescen-
tes etc., a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), que universaliza o
atendimento público de saúde etc. Uma série de novos direitos foram
criados. Para Sallum Jr. (2003, p. 38),
em relação aos direitos de cidadania, a nova Constituição estabe-
leceu uma regra política democrática e ampliou a proteção social
para todos, trabalhadores ou não. Definiu como dever do Estado
garantir vários direitos sociais – inclusive alguns direitos difusos,
como os relacionados à proteção do meio ambiente – e tornou
possível que cidadãos e coletividade exigissem o cumprimento
dessas garantias pelo poder público.

Sendo assim, a Constituição de 1988 ampliou os direitos sociais e


reconfigurou as relações políticas, além de ter criado o arcabouço ins-
titucional para a formatação do nosso sistema político, tal como o co-
nhecemos hoje.

O mesmo período marca os momentos finais do desenvolvimen-


tismo tal como fora configurado nos anos 1950 e 1960. A disputa en-
tre esse modelo e o neoliberalismo também teve palco no Brasil. Por
isso, é preciso lembrar que a crise do fordismo se aprofundou nos
anos de 1980 e, apesar de uma parte da elite brasileira ainda apostar
na estratégia desenvolvimentista, a conjunção de alto endividamento
Atividade 2
externo do Estado brasileiro, as altas taxas de juros nos empréstimos
Considerando as transformações
internacionais, que drenavam os recursos, e, finalmente, a estagnação
pelas quais passou o Estado
brasileiro nas últimas décadas no econômica e a inflação galopante acabaram por facilitar a hegemonia
século XX, aponte as principais crescente das políticas neoliberais.
mudanças do capitalismo
mundial que impactaram o As desastrosas tentativas feitas durante os governos de Sarney e
nacional-desenvolvimentismo Collor de Mello (1990-1992) de conter a inflação e impulsionar o cres-
brasileiro.
cimento, representadas por sucessivos planos econômicos, alguns de

60 Introdução às ciências sociais


natureza heterodoxa, teriam levado, cada vez mais, a elite a aderir às
políticas neoliberais.
Daí em diante, a elite empresarial mobilizou-se para moldar as es-
truturas e controlar as ações do Estado orientando-se, pelo menos
parcialmente, pelas concepções neoliberais que vinham sendo di-
fundidas, desde os anos de 1970, pelas instituições econômicas
multilaterais, por think tanks e governos dos países centrais […]
[de] 1988 em diante, a elite econômica passou a confrontar o in-
tervencionismo do Estado, exigindo desregulamentação, melhor
acolhida para o capital estrangeiro, privatização das empresas
estatais etc. Assim, embora o liberalismo econômico no Brasil só
tenha se tornado politicamente hegemônico nos anos de 1990,
essa hegemonia começou a ser socialmente construída ainda na
segunda metade da década de 1980. (SALLUM JR., 2003, p. 41)

Desse modo, no final da década de 1980, a Revolução Industrial “ao


modo brasileiro”, conduzida e alavancada pelo Estado e tendo como
pretensão levar o país a um nível elevado de desenvolvimento, com
redução das desigualdades sociais e proteção ao trabalho, foi abando-
nada e saiu da agenda brasileira pelos próximos 10 anos, período no
qual as políticas neoliberais ganharam relevo.

3.3 O neoliberalismo
Vídeo As ideias que fundam o chamado neoliberalismo começaram a se de-
senvolver ainda na década de 1940 concomitantemente com o Estado de
Bem-Estar Social Welfare. Dois dos seus expoentes são os economistas
Friedrich Hayek (1899-1992) e Milton Friedman (1912-2016). Apesar dis-
so, os primeiros governos claramente comprometidos com esse ideá-
rio foram eleitos apenas mais de quatro décadas depois. Em 1979, as
eleições de Thatcher na Inglaterra e, em 1980, de Reagan nos Estados
Unidos iniciam a hegemonia crescente do neoliberalismo.

Segundo o historiador Perry Anderson (1995, p. 10), o governo


Thatcher realizou o “pacote de medidas mais sistemático e ambicioso
de todas as experiências neoliberais em países de capitalismo avança-
do”. Entre seus feitos, ele aponta que:
os governos Thatcher contraíram a emissão monetária, elevaram
as taxas de juros, baixaram drasticamente os impostos sobre os
rendimentos altos, aboliram controles sobre os fluxos financei-
ros, criaram níveis de desemprego massivos, esgotaram greves,

O Brasil no contexto da globalização 61


impuseram uma nova legislação antissindical e cortaram gastos
sociais. E, finalmente [...] se lançaram num amplo programa de
privatização, começando por habitação pública e passando em
seguida a indústrias básicas como o aço, a eletricidade, o petró-
leo, o gás e a água. (ANDERSON, 1995, p. 10)

Dez anos depois, em 1990, com a consolidação da hegemonia neoli-


beral, o Fundo Monetário Internacional (FMI), credor dos países subde-
senvolvidos endividados, sistematizou e recomendou um conjunto de
4 medidas econômicas que deveriam ser observadas por esses países,
O superavit primário acontece principalmente os da América Latina. De acordo com esse receituário,
quando a conta resultante do como ficou conhecido à época, essas levariam à retomada do cresci-
volume de recursos arrecadados
mento. Essas medidas foram chamadas de Consenso de Washington.
pelo Estado, por meio de
impostos, menos o que ele gasta Dentre elas podemos citar:
com investimentos e custeio
da máquina pública, resulta
•• suspensão de controles sobre o setor financeiro;
positiva, ou seja, o Estado gasta •• privatização de empresas estatais e serviços públicos;
menos do que arrecada. 4
•• controle dos gastos públicos e a geração de superavit primário ;
•• reforma fiscal com redução de impostos;
•• desregulamentação da economia, incluindo a do mercado de
trabalho.

No caso brasileiro, o neoliberalismo chegou com o governo de Col-


lor de Mello. Seu curto governo, interrompido por um processo de
impeachment por denúncias de corrupção que levou à sua renúncia,
Figura 2 caracterizou-se por uma série de medidas de inspiração neoliberal.
Fernando Collor de Melo
Conforme Sallum Jr. (1999, p. 23),
foram suspensas as barreiras não-tarifárias às compras do exte-
rior e implementou-se um programa de redução progressiva das
tarifas de importação ao longo de quatro anos. Ao mesmo tempo,
implantou-se um programa de desregulamentação das atividades
econômicas e de privatização de empresas estatais (não protegida
pela Constituição) para recuperar as finanças públicas e reduzir
aos poucos o seu papel na impulsão da indústria doméstica. Final-
mente, a política de integração regional materializada na constitui-
ção do Mercosul (1991) tinha como horizonte ampliar o mercado
para a produção doméstica dos países-membros.

O governo Collor, apesar de tomar medidas de liberali-


zação da economia e outras de matriz neoliberal, tomou
também uma série de decisões que iam na contramão dos

Agência Brasil/EBC/Wikimedia Commons


preceitos deste. O Plano Collor, que tentava conter a infla-

62 Introdução às ciências sociais


ção, adotou o congelamento de preços, o sequestro de recursos da
poupança e mesmo de conta correntes, o que foi entendido como que-
bra de contrato e instalação de insegurança jurídica. No caso da admi-
nistração pública, com seu discurso de “caçador de marajás”,
enfraqueceu o Estado e suas instituições, desativando uma série de
políticas e setores essenciais. Figura 3
Fernando Henrique Cardoso
Itamar Franco, que era seu vice-presidente, governou o país por
dois anos (1993-1994). Seu governo teve como principal legado o con-
trole da inflação, alcançado com o Plano Real, encabeçado pelo então
ministro Fernando Henrique Cardoso. Isso impulsionou não apenas a
vitória deste em primeiro turno na eleição presidencial seguinte (1994)
como também lhe deu maioria no Congresso Nacional.

Sallum Jr. (1999, p. 32) resume o conjunto de inspirações para as ini-


ciativas tomadas pelo governo de FHC (1995-2002), afirmando que:
o governo Cardoso buscou com perseverança cumprir o
propósito de liquidar os remanescentes da Era Vargas,
pautando-se por um ideário multifacetado, mas que tinha
no liberalismo econômico sua característica mais forte.
[...] o núcleo dessa perspectiva pode ser resumido neste
pequeno conjunto de proposições: o Estado não cumpri-
ria funções empresariais, que seriam transferidas para a
iniciativa privada; suas finanças deveriam ser equilibra-
das e os estímulos diretos dados às empresas privadas
Agência Brasil/Wikimedia Commons
seriam parcimoniosos; não poderia mais sustentar privi-
légios para categorias de funcionários; em lugar das fun-
ções empresariais, deveria desenvolver mais intensamente
políticas sociais; e o país teria que ampliar sua integração com o
exterior, mas com prioridade para o aprofundamento e expan-
são do Mercosul.

O autor ainda aponta como o governo atuou para liquidar a estru-


tura do Estado nacional-desenvolvimentista, inclusive a parte que havia
sido incorporada pela Constituição de 1988. Segundo ele, seus projetos
mais relevantes foram:
a) o fim da discriminação constitucional em relação a empresas
de capital estrangeiro; b) a transferência para a União do mono-
pólio da exploração, refino e transporte de petróleo e gás, antes
detido pela PETROBRAS, que se tornou concessionária do Esta-
do (com pequenas regalias em relação a outras concessionárias
privadas); c) a autorização para o Estado conceder o direito de
exploração de todos os serviços de telecomunicações (telefone

O Brasil no contexto da globalização 63


fixo e móvel, exploração de satélites, etc.) a empresas privadas
(antes empresas públicas tinham o monopólio das concessões).
Além de desencadear este conjunto de reformas constitucionais,
o governo Fernando Henrique estimulou fortemente o Con-
gresso a aprovar lei complementar regulando as concessões de
serviços públicos para a iniciativa privada, já autorizadas pela
Constituição (eletricidade, rodovias, ferrovias, etc.), conseguiu a
aprovação de uma lei de proteção à propriedade industrial e aos
direitos autorais nos moldes recomendados pelo GATT e preser-
vou o programa de abertura comercial que já havia sido imple-
mentado. Sustentado pela legislação que permitia e regulava a
venda de empresas estatais desde o período Collor e pelas refor-
mas constitucionais promovidas desde 1995, executou um enor-
me programa de privatizações e de venda de concessões tanto
no âmbito federal como no estadual. (SALLUM JR., 1999, p. 32)

Por essa descrição, pode-se constatar a afinidade das políticas


desenvolvidas pelo governo FHC com as premissas do neolibera-
lismo tal como defendido pelo FMI, pelo Banco Mundial e por ou-
tros organismos internacionais. O governo dele fez parte da mesma
onda e seus focos principais foram “modernizar” o Estado, abrir a
economia e estabilizar a moeda.

Do ponto de vista político, por outro lado, considerando a enor-


me herança autoritária do Estado brasileiro e a escassa participação
popular em suas decisões, apesar dos avanços presentes na Cons-
tituição de 1988, não houve uma grande abertura para interações
com os movimentos sociais e novos atores políticos. O sociólogo
Sallum Jr. (1999, p. 45), realizando uma avaliação política do governo
FHC, aponta que para
Site o exercício do poder, sua estratégia foi insular-se sistematica-
O Politize é um site e um mente dos movimentos da sociedade organizada, concentran-
canal no YouTube que
do seus esforços nas arenas institucional e de influência. Desta
apresenta de maneira sim-
ples e didática os conceitos forma, embora não haja como negar ao governo Fernando Hen-
fundamentais da política, rique a qualificação de democrático e representativo, ele afas-
como Estado, governo, tou-se de qualquer veleidade social-democrata. Pelo contrário,
neoliberalismo etc.
sua prática democrática foi de estilo delegativo. Não há que
Disponíveis em: https://www.politize. confundi-la, porém, com a concepção de democracia inerente
com.br/;
https://www.youtube.com/channel/ ao programa de Collor, à medida que a delegação suposta no
UC0NtqwtL1oLxwm3lx_Uo5Og. exercício de governo de Fernando Henrique não tem a marca
Acesso em: 22 maio 2020. personalista daquele.

64 Introdução às ciências sociais


Ou seja, o governo FHC realizou o programa neoliberal e liquidou os
alicerces do Estado varguista, que durou meio século no Brasil. Além
disso, ajudou a consolidar o avanço democrático, alcançado com o fim
Atividade 3
do regime militar. Falhou, entretanto, no aprofundamento do processo
Considerando as transformações
de democratização da sociedade. pelas quais passou o Estado
No período seguinte, tivemos dois mandatos sucessivos de Luiz brasileiro nas últimas décadas no
século XX, aponte as principais
Inácio Lula da Silva (2003-2011). Embora tenha mantido muitas das ca- características do neoliberalismo
racterísticas do Estado neoliberal, este foi modificado em muitos as- no Brasil.
pectos, sendo incorreto ou pelo menos controverso qualificá-lo como
um governo neoliberal. Por isso, demanda uma análise própria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste capítulo, procuramos delinear o processo de formação do cha-
mado moderno Estado brasileiro. Esse foi o Estado responsável pela in-
dustrialização do país e pela mudança de seu estatuto de país agrário e
atrasado para o de país em desenvolvimento ou emergente – para usar-
mos a terminologia consagrada já nos anos dez do século XXI.
Este processo só pode ser compreendido a partir da história dos go-
vernos e personagens que se sucederam e também é preciso ter em
mente que os conceitos de desenvolvimentismo, dependência, capitalis-
mo nacional-dependente e, mais recentemente, neoliberalismo são cen-
trais. Sem eles, não há propriamente a formação de um Estado.
A história econômica e política brasileira está intimamente entrelaçada
com a história mundial. Mesmo durante o regime militar, em que o país
sofreu certo isolamento internacional pela própria natureza e ilegitimida-
de do regime, nossas instituições e escolhas políticas estiveram condicio-
nadas pelo cenário internacional, inclusive o dos nossos vizinhos. Como
exemplo, nos anos 1970 houve golpes de Estado em países como Argenti-
na, Chile e Uruguai, além de governos autoritários em outros países, como
México e Paraguai.
Nos dias atuais, em que o neoliberalismo dos anos de 1980 e 1990
se radicaliza e se converte em um novo ultraliberalismo, com a ascensão
da extrema-direita em muitos países do mundo, inclusive no Brasil, é ain-
da mais importante não apenas compreender como chegamos até aqui,
mas também, e principalmente, o que isso significa em termos políticos,
sociais e econômicos.

O Brasil no contexto da globalização 65


REFERÊNCIAS
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SCHNEIDER. B. R. Estado desenvolvimentista no Brasil: Perspectivas históricas comparadas.
IPEA Textos de discussão. Rio de Janeiro, set. 2013.

GABARITO
1. As principais características do Estado varguista/desenvolvimentista são: a) a industrializa-
ção como resposta para a superação da pobreza e do subdesenvolvimento; b) a necessida-
de de intervenção do Estado para alavancar o processo de industrialização; c) a necessidade
de um planejamento estatal; d) visão de que a participação do Estado na economia é benéfi-
ca, alocando recursos e investindo onde o investimento privado for insuficiente.

2. A crise do fordismo e o surgimento e consolidação do neoliberalismo, cujas premissas vão


de encontro às do desenvolvimentismo, uma vez que preconiza a diminuição e mesmo
extensão do papel do Estado na economia, além de privatizações, desregulamentações etc.

3. No Brasil, a introdução do neoliberalismo está associada aos governos de Collor de Mel-


lo e Fernando Henrique Cardoso. Suas principais características são: a) o fim da discri-
minação constitucional em relação a empresas de capital estrangeiro; b) a transferência
para a União do monopólio da exploração, refino e transporte de petróleo e gás, antes
detido pela Petrobras, que se tornou concessionária do Estado (com pequenas regalias
em relação a outras concessionárias privadas); c) a autorização para o Estado conceder
o direito de exploração de todos os serviços de telecomunicações (telefone fixo e móvel,
exploração de satélites, etc.) a empresas privadas (antes empresas públicas tinham o
monopólio das concessões).

66 Introdução às ciências sociais


4
A democracia contemporânea
A democracia é nossa forma de governo e de organização
social. Ou seja, vivemos em uma democracia não apenas porque
nossos governantes são escolhidos livremente pelos cidadãos do
país. A sociedade se organiza em torno de valores básicos que
consideramos democráticos, como o respeito às leis, às liberdades
individuais – de expressão e de ir e vir, igualdade perante a lei entre
todos os cidadãos – etc.
Contudo, quais são exatamente os conceitos envolvidos na ideia
de democracia? Quais são suas fragilidades e suas potencialidades?
Ou melhor, quais são os pontos em que ela pode ser aprofundada
e aperfeiçoada? Quais são seus desafios no mundo contemporâ-
neo, em que novas tecnologias e uma grande sociedade de massa
chegaram a quase todas as nações ditas democráticas? Essas e ou-
tras perguntas orientam o que vamos desenvolver neste capítulo.
Winston Churchill, o conhecido primeiro-ministro britânico, que
liderou o país durante a Segunda Guerra Mundial, afirmou certa
vez que “a democracia é a pior forma de governo, com exceção de
todas as demais”. Isso quer dizer que temos muitos problemas em
nossos sistemas políticos e mesmo em nossas sociedades, mas até
hoje não encontramos outra forma bem-sucedida de governar os
povos e as nações. Todas as sociedades mais avançadas do mundo
têm governos democráticos.
Para aprofundar a questão, também vamos discutir um pou-
co o que é e como se constitui o poder político, além de inves-
tigar suas formas contemporâneas de manifestação, resgatando
discussões empreendidas por Max Weber (1864-1920) e Michel
Foucault (1926-1984).
Com isso, buscamos municiar você com conceitos-chave que
vão ajudá-lo a compreender como funcionam os sistemas políticos
e as instituições sociais.

A democracia contemporânea 67
4.1 Teorias da democracia
Vídeo A ideia de democracia, assim como a própria palavra, nasceu na
Grécia Antiga, especificamente em Atenas, cerca de 500 anos antes de
Cristo. Surgiu como uma reforma política que se opunha à tirania até
então existente, criando outra forma de governo segundo a qual cada
cidadão representaria um voto e, nessa arena de cidadãos, reunidos em
assembleia, seriam decididos os destinos da cidade. Daí vem a palavra
democracia: demos (povo) + kratos (governo), ou seja, governo do povo.
Em Atenas, entretanto, o povo se resumia a homens livres e era consti-
tuído por uma minoria. Mulheres, escravos ou estrangeiros não eram
considerados cidadãos e, por isso, não estavam aptos a votar.

Essa experiência grega pouco tem a ver com a nossa democracia


moderna, que em sua origem bebe de três fontes: a inglesa, a america-
na e a francesa.

Na Inglaterra, remonta ao século XVII e, tradicionalmente, consi-


dera-se que seu marco é a Revolução Gloriosa (1688-1789), ocorrida
durante o reinado de Jaime II (1685-1688), em que conflitos religiosos
entre protestantes e católicos dividiam o país. Em 1688, o rei Jaime II
(católico) foi deposto pelo Parlamento (de maioria protestante). No pe-
ríodo, foi assinado o documento Bill of Rights – em português, Carta
de Direitos –, considerado o fundador da democracia moderna. Com
isso, começou a chamada monarquia constitucional e se inaugurou uma
ideia de parlamento tal como a conhecemos hoje. Composto de repre-
sentantes eleitos em eleições livres e periódicas, o Parlamento inglês é
permanente e impõe limites à atuação dos reis, enterrando, assim, o
governo absolutista até então existente.

Cem anos depois, em 1787, foi promulgada a Constituição


Americana, depois da Guerra de Independência das 13 colônias ameri-
canas contra a Inglaterra, guerra essa que criou os Estados Unidos da
América. Essa Constituição consagra vários princípios constitutivos das
democracias modernas, como a ideia de federação, ou seja, a indepen-
dência relativa dos estados com relação à União, a criação de diferen-
tes níveis de governo, a divisão do poder em três esferas autônomas
e independentes de governo (os Poderes Legislativo, Executivo e Judi-
ciário), a defesa da liberdade de expressão e religiosa como valores e
direitos fundamentais etc.

68 Introdução às ciências sociais


A Revolução Francesa (1788) é da mesma época; reafirmava a sobe-
rania do povo, os limites constitucionais aos poderes dos governantes,
as eleições livres para os representantes no Parlamento, a periodici-
dade das eleições estabelecendo mandatos, a igualdade entre os cida-
dãos etc.

A partir do século XVIII, portanto, a democracia moderna já se


desenha tal como chegou aos nossos dias, como uma forma de orga-
nização política em que o povo constitui a fonte da soberania, isto é, o
poder decisório emana dele. Entretanto, este é exercido de modo dele-
gado, por meio de representantes eleitos. Dessa forma, a democracia
não tem como base a assembleia dos cidadãos, como na Grécia, mas
passa a se fundamentar no voto, o voto livre dos cidadãos, elegendo re-
presentantes que constituem, estes sim, assembleias e governos, como
no caso dos países parlamentaristas. A democracia contemporânea é
essencialmente representativa em seu desenho institucional – em to-
dos os países democráticos existem eleições para representantes, e a
maioria das decisões políticas são tomadas por eles.

Atualmente, considera-se que há duas grandes vertentes dentro da


teoria democrática: a da democracia representativa e a da democracia
participativa.

Antes de apresentarmos aspectos das diversas formas como a de-


mocracia é discutida e compreendida, convém apontar algumas de
suas características gerais.

Uma nota importante é que o cidadão capaz do voto mudou muito


do século XVIII até os nossos dias. Isso aconteceu em todas as grandes
democracias, ainda que cada uma tivesse peculiaridades próprias.

Se ficarmos apenas no caso brasileiro, veremos que, apesar de cons-


tituir as instâncias de representação da democracia moderna desde o
século XIX, ou seja, a existência de um Congresso formado por deputa-
dos e senadores eleitos, o corpo de eleitores foi ampliado progressiva-
mente. No século XIX, apenas homens brancos dotados de uma renda
anual prefixada eram eleitores. Homens pobres, mulheres e escravos
não tinham direito ao voto; posteriormente, este foi estendido a todos
os homens maiores de 18 anos, eliminando-se o chamado critério cen-
sitário (no caso, o da renda). Entretanto, as mulheres só puderam votar
no Brasil a partir de 1934. Os analfabetos, por sua vez, só tiveram direi-

A democracia contemporânea 69
to ao voto em 1985. Consequentemente, no caso brasileiro, apenas a
Glossário
partir de 1985 é que se pode falar em sufrágio universal.
sufrágio: processo de escolha
por votação; eleição. Outra característica importante é que, na democracia representati-
va, os cidadãos não decidem sobre as políticas públicas, uma vez que
isso compete aos representantes. As políticas públicas definem como
o governo age a respeito de determinado tema. Por exemplo, se a edu-
cação será pública ou privada, obrigatória ou facultativa etc. Exceto no
caso de plebiscito ou referendo (quando o conjunto dos eleitores de-
cide sobre uma questão específica), em geral, as decisões cabem a de-
putados, senadores e presidente; em outras instâncias, a vereadores e
prefeitos. Isso significa que, na democracia representativa, a participa-
ção popular é indireta, mediada por representantes e instituições. Por
isso, na teoria, os eleitores elegem planos de governo, projetos políti-
cos que contenham as políticas a serem desenvolvidas. Teoricamente
porque, na prática, muitas vezes, os cidadãos acabam votando não em
programas, mas em pessoas, como ocorre frequentemente no Brasil.
Assim, gera-se um nível de indeterminação, de imprevisibilidade muito
maior, uma vez que uma pessoa pode mudar de posição muito mais
facilmente do que um grupo.

Outra característica geral das democracias representativas moder-


nas é que as eleições devem ser livres, justas e frequentes, seguindo ca-
lendários predeterminados. Além disso, os regimes democráticos têm
como base Estados Nacionais que garantem a vigência da democracia
no interior de seus territórios. É importante lembrar que representar
significa falar e decidir em nome dos interesses de alguém ausente e
que a representação política pressupõe autorização, mandato e pres-
tação de contas. Ainda, para que a representação seja bem-sucedida, é
desejável que os partidos tenham programas diferentes entre si e que,
consequentemente, os mandatos defendam coisas diferentes.

4.1.1 Democracia representativa


A democracia representativa nasceu de desafios históricos enfren-
tados por países vindos de revoluções ou instabilidades políticas. Ela
surgiu em Estados Nacionais que reclamavam uma forma de governo
em que a população tivesse voz política. A impossibilidade da participa-
ção direta dos cidadãos nos negócios públicos, quer pela extensão do
território, quer pela especialização dos temas tratados, levou à respos-
ta da representação ao desafio da igualdade da cidadania.

70 Introdução às ciências sociais


Um dos autores mais importantes da teoria democrática é o econo-
mista e cientista político austríaco Joseph Schumpeter, considerado o
pai do modelo concorrencial e do elitismo democrático. Para ele, o que
define a democracia é a ocorrência de eleições mediante a competição
entre elites (lideranças políticas ou partidos) pelo voto do cidadão, que
tem apenas a função de votar. O autor considera que o cidadão comum
é apático e desprovido de competência política. No livro Capitalismo, so-
Biografia
cialismo e democracia, Schumpeter “redefine a democracia como sendo
simplesmente uma maneira de gerar uma minoria governante legítima
[...] O governo, assim, devia ser formado mediante a luta competitiva
pelos votos do povo” (MIGUEL, 2005, p. 9). O autor acredita que há mui-
ta idealização sobre quem é o cidadão e quais são seus interesses. Por

Wikimedia Commons
isso, ele coloca em questão a ideia de que este se informa e tem inte-
resse real sobre a denominada coisa pública. Esse cidadão consciente
não passa de fantasia, uma ilusão das teorias sobre a democracia.

O caráter elitista e formalista ou procedimental da teoria do liberal Joseph Schumpeter


(1883-1950) é um dos mais
Schumpeter se refere à ideia de que o cidadão é incapaz de partici-
importantes economistas da
par efetivamente da vida pública, devido à sua apatia, desinformação primeira metade do século XX
e desinteresse, o que transforma a democracia representativa em um devido às suas contribuições em
teorias como a do crescimento
mero palco de competição entre elites políticas e econômicas. Segundo econômico, da democracia e
ele, a democracia deve ser entendida “como um sistema institucional, da história econômica. Uma de
para a tomada de decisões políticas, no qual o indivíduo adquire o po- suas principais obras é intitulada
Capitalismo, socialismo e
der de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos do eleitor” democracia, de 1942.
(SCHUMPETER, 1984, p. 327-328).

Por isso, conforme Miguel (2005, p. 10), a “visão de Schumpeter


é profundamente desencantada quanto às possibilidades de que a
democracia cumprisse quaisquer de suas promessas fundamentais
– governo do povo, igualdade política, participação dos cidadãos na
tomada de decisões”. Para Schumpeter (1984, p. 355), a democracia
“significa apenas que o povo tem a oportunidade de aceitar ou recusar
as pessoas designadas para governá-lo”.

Outro expoente da teoria das elites é o cientista político Atividade 1


norte-americano Robert Dahl (1915-2014). Herdeiro de Schumpeter,
Com base na apresentação
Dahl vai além, pois sua teoria pretende não apenas fazer uma descri- da teoria da democracia
ção das democracias, mas também melhorar suas condições, além de de Schumpeter, apresente as
duas características mais impor-
introduzir o elemento da participação política como constitutiva. Da tantes apontadas pelo autor.
mesma forma que Schumpeter, Dahl considera que os eleitores são
apáticos e desinteressados, mas pondera que, eventualmente, podem

A democracia contemporânea 71
se mobilizar em torno de um interesse. Assim, se “não podemos contar
com o governo do povo ou mesmo com o governo da maioria, pode-
mos ao menos ter um sistema político que distribua a capacidade de
influência entre muitas minorias” (MIGUEL, 2005, p. 10). Desse modo,
Dahl se inscreve na denominada tradição pluralista da teoria democrá-
tica. Para ele, as minorias concorrem entre si pela influência e pelo po-
der. Essa é uma ideia que está na base do conceito de poliarquia.

A ideia de poliarquia criada por Dahl diz respeito à especificidade da


democracia contemporânea relativamente a outros sistemas de gover-
no existentes antes do século XVIII. Segundo Pereira (2014, p. 7), Dahl
chama a atenção para a mudança de escala – o exercício da de-
mocracia passa a acontecer no contexto de um Estado nacional
– e algumas de suas consequências – representação, expansão
ilimitada, maior diversidade, aumento nas cisões e conflitos –
contribuíram para o desenvolvimento de um conjunto de ins-
tituições que, de um modo geral, diferenciam a democracia
representativa moderna de todos os outros sistemas políticos,
sejam eles não democráticos ou sistemas democráticos mais
antigos. Robert Dahl denominou esse tipo de sistema político
de ‘Poliarquia’.

Dahl pretende a desvinculação entre a democracia ideal e as demo-


cracias reais (poliarquias), que são reais e imperfeitas. Para tanto, ele
precisa enfrentar o problema clássico da democracia, já colocado por
Tocqueville (1805-1859) e Stuart Mill (1806-1876), que é o da maioria
versus a minoria. De acordo com Miguel (2005, p. 10),
Dahl admite que os regimes vigentes no ocidente não são real-
mente ‘governos do povo’, mas ao mesmo tempo nega que exis-
ta uma classe dominante, como querem os marxistas, ou uma
‘elite do poder’, como dizia Wright Mills (1981 [1956]). Em vez de
uma minoria governante, existem muitas minorias que disputam
entre si a respeito de questões específicas e que devem ser leva-
das em conta pelos governantes. Ao seu modelo, o autor chama
‘poliarquia’, a palavra designando a existência de múltiplos cen-
tros de poder, dentro da sociedade – e se distinguindo da verda-
deira democracia, entendida como ideal normativo cuja plena
realização é utópica.

Para que uma poliarquia seja possível, Dahl enumera algumas ins-
tituições cuja existência e pleno funcionamento são imprescindíveis.
Entre elas, Pereira (2014, p. 9) aponta sete, a saber:

72 Introdução às ciências sociais


1. Funcionários (políticos) eleitos.
2. Eleições livres e justas.
3. Sufrágio inclusivo (universal).
4. Direito de concorrer a cargos eletivos.
5. Liberdade de expressão.
6. Informação alternativa (variadas e não oficiais).
7. Autonomia associativa.

Em outras palavras, para que a democracia exista de fato e se di-


ferencie da tirania, é necessário mais do que a realização de eleições
livres. As instituições devem garantir e preservar a existência de várias
minorias. Para Dahl (1989, p. 132), “em comparação com os processos
políticos das ditaduras, as características da poliarquia aumentam mui-
to o número, tamanho e diversidade de minorias, cujas preferências
influenciarão o resultado das decisões governamentais”.

Algumas características garantem o bom funcionamento das poliar-


quias. Entre elas, podemos apontar, conforme Pereira (2014, p. 14): a)
a institucionalização da competição pública deve preceder a expansão
dos direitos de participação; b) o uso de meios violentos de coerção e
sanções socioeconômicas estão dispersos ou neutralizados; c) o nível
de desenvolvimento é elevado; d) as desigualdades são pequenas ou
decrescentes; e) se houver pluralismo cultural, nenhuma subcultura
pode constituir uma maioria absoluta; f) os cidadãos engajados poli-
ticamente defendem e acreditam na superioridade das instituições da
poliarquia, confiam uns nos outros e realizam acordos por meio de re-
lações políticas cooperativas competitivas; g) não há domínio perma-
nente de um poder estrangeiro.

Opondo-se à democracia liberal-pluralista estão os deliberativos,


representados, entre outros, pelo filósofo alemão Jürgen Habermas.
Aqui a atenção está nos mecanismos discursivos da prática política. Os
teóricos dessa vertente consideram que “as decisões políticas devem
ser tomadas por aqueles que estarão submetidos a elas, por meio do
‘raciocínio público livre entre iguais’” (MIGUEL, 2005, p. 12). Daí nasce
a ideia de que a esfera pública é a arena em que a opinião se forma
com base no embate de diferentes discursos dos sujeitos envolvidos. A
opinião pública, por sua vez, cria influência que se transforma em poder
comunicativo por meio das eleições e este, por intermédio da legislação,
torna-se poder administrativo (MIGUEL, 2005, p. 13).

A democracia contemporânea 73
Isso seria possível por meio de princípios éticos, observadas al-
gumas premissas: “(1) qualquer contribuição pertinente ao debate
pode ser apresentada; (2) apenas a argumentação racional é levada
em conta; e (3) os participantes buscam atingir o consenso” (MIGUEL,
2005, p. 14). A ideia aqui, conforme Miguel (2005), é de uma comuni-
cação face a face em que cada partícipe pode dialogar livremente com
outros formando, assim, seu juízo e, consequentemente, seu voto. En-
tretanto, existem algumas amarras para que esse processo seja de
fato bem-sucedido, tendo em vista a desigualdade na identificação
dos interesses, na utilização das ferramentas discursivas e, finalmen-
te, na capacidade de universalizar (ou fazer parecer universal) os pró-
prios interesses.

Essa vertente recebeu muitas críticas, entre as quais podemos des-


tacar a impossibilidade da existência de um debate que realmente
envolva todos os cidadãos interessados em determinado tema, consi-
derando sociedades complexas, populosas e extensas. Outra crítica co-
mum é a ideia de criação de consenso que subjaz a isso. Nem sempre é
possível chegar a um consenso, e esperar por ele pode encobrir o uso
da força ou outros meios de coação, além de obliterar a questão das
minorias que não necessariamente são contempladas.

4.1.2 A democracia participativa


Os teóricos da democracia participativa começaram a desenvolver
suas ideias entre as décadas de 1960 e 1970, com base tanto no em-
bate com a democracia liberal quanto na constatação da baixa parti-
cipação dos cidadãos na vida pública. A ideia desses teóricos, então,
é pensar em alternativas e incentivos para incrementar a participação
dos cidadãos.

Se os problemas de escala não permitem a efetividade da democra-


cia direta, os participacionistas pensam em democratizar a vida civil,
criando ao mesmo tempo mecanismos de ampliação da participação e
desenvolvendo uma espécie de treinamento para os cidadãos.

Uma das expoentes dessa vertente é Carole Pateman. Segundo


Miguel (2005, p. 20),
o modelo esboçado por Pateman [...] enfatiza a introdução de
instrumentos de gestão democráticos na esfera da vida cotidia-
na, sobretudo nos locais de trabalho (a chamada ‘democracia

74 Introdução às ciências sociais


industrial’, que exige formas de autogestão). Com isso, haveria
tanto uma ampliação significativa do controle da própria vida,
como do entendimento sobre o funcionamento da política e da
sociedade, o que permitiria maior capacidade de interlocução
com seus representantes e maior fiscalização destes. Em outras
palavras, a accountability (responsividade do representante pe- Filme
rante os representados), que na democracia eleitoral tende a

Petra Costa/Netflix
funcionar precariamente, seria aprimorada com o treinamento
oferecido pela participação na base. A compreensão deste vín-
culo entre os níveis micro e macro, que recupera o caráter edu-
cativo da atividade política [...] é essencial para que o modelo
participativo ganhe sentido.

Ao apostar no caráter educativo da atividade política, a corrente


participacionista contesta a ideia de que a gestão pública deve ficar a
cargo da elite e que só ela é apta ou talhada para tal.
Assista ao documentário
Se a democracia funciona melhor quando os cidadãos participam Democracia em vertigem,
dela, podemos nos perguntar sobre os espaços de participação. Isso indicado ao Oscar 2020,
da cineasta Petra Costa.
porque a população sobre a qual se exerce o poder político tem uma No documentário, a
composição própria que pode ser classificada segundo vários critérios, cineasta mostra o pro-
cesso de impeachment
como gênero, etnia, classe etc. A rigor, a representação perfeita repro- da ex-presidente Dilma
duziria na esfera de poder a mesma composição da população sujeita a Rousseff sob um ponto
de vista dos atores en-
esse poder, ou seja, o grupo dos detentores do poder seria proporcio- volvidos e de sua história
nalmente igual à população em todos os aspectos em que se pudesse pessoal e de sua família.
Procure correlacionar o
classificar aquela população. processo político descrito
no filme com os conceitos
Na vida real, entretanto, em qualquer sistema desse tipo sempre de democracia e seus im-
haverá aqueles que estão sobrerrepresentados e aqueles que se veem passes discutidos neste
capítulo.
sub-representados. O fato de a representação não ser capaz de repro-
Direção: Petra Costa. EUA; Brasil:
duzir a composição exata da população pode gerar as distorções que
Netflix, 2019.
acabam empoderando alguns grupos dessa população e tornando ou-
tros vulneráveis.

Voltemos então à questão da representação. Para Hanna Pitkin


(1967), a representação política ocorre em quatro âmbitos:
1. A representação formalística, que diz respeito às instituições
políticas e à forma como os representantes são eleitos.
2. A representação simbólica, relativa à receptividade que certos
espaços reservam a pessoas com certas características.

A democracia contemporânea 75
3. A representação descritiva, ligada às características que
aproximam certos indivíduos do eleitorado, como raça, gênero,
sexualidade e religião.
4. A representação substantiva, concernente aos candidatos que
representam os interesses de um grupo.

Ora, nos últimos anos, entrou no debate público a chamada crise


de representação – insatisfação dos eleitores acerca de seus eleitos.
Essa crise também decorre de outra ideia, a de que a representação,
tal como ela acontece tradicionalmente, é estruturalmente falha. Se
1 1
considerarmos o conceito de accountability , ou seja, a responsivida-
O conceito oriundo da ciência de dos representantes com relação aos representados, isso de fato
política americana diz respeito parece ser um problema. A responsividade política dos representan-
à prestação de contas que os
representantes devem aos repre- tes, sua atenção às necessidades e preferências dos representados
sentados. Também é traduzido parece depender também da similaridade entre representantes e
como transparência e responsa-
representados.
bilização. Trata-se da relação que
os representantes devem manter Por isso, Anne Phillips (1996) considera que é preciso revalorizar a
com os representados, que deve
representação descritiva por meio da política da presença. Nas pala-
ser pautada em sensibilidade
às demandas, à prestação de vras da autora,
contas etc.
quando a política das ideias é tomada isoladamente do que eu
chamarei política de presença, ela não dá conta adequadamente
da experiência daqueles grupos sociais que, em virtude de sua
raça, etnicidade, religião, gênero, têm sido excluídos do processo
democrático. Inclusão política tem sido cada vez mais – e eu acre-
dito que acertadamente – vista em termos que pode ser concre-
tizada somente por política de presença. (PHILLIPS, 1996, p. 146)

A política de presença significa que ninguém melhor para com-


preender os interesses das mulheres do que uma mulher, dos negros
e das negras do que um negro ou uma negra, e assim por diante. Isso
significa que é possível que um homem, por exemplo, defenda o inte-
resse das mulheres, mas isso é raro. Portanto, é importante que as de-
nominadas minorias sejam representadas por membros de seu grupo.

O argumento teórico mais importante em favor da política de pre-


sença é o conceito de perspectiva social, desenvolvido na obra de Iris
Young (2000).

O que seria perspectiva social? Segundo Young (2000, p. 136), trata-


-se de “experiências diferentes, histórias e conhecimento social deriva-

76 Introdução às ciências sociais


dos de suas posições na estrutura social”. Para a autora, essas diversas
experiências geram diferenciação entre os indivíduos, o que repercute
na representação. Ela declara:
eu argumento que diferenciação de grupo oferece recursos para
um público comunicativo democrático que objetiva a justiça, porque
pessoas diferentemente posicionadas têm experiências diferentes
e conhecimento social e histórico derivado deste posicionamento, e
eu chamo isto de perspectiva. (YOUNG, 2000, p. 136)

Em outras palavras, perspectiva social é “o ponto de vista que mem-


bros de um grupo têm sobre processos sociais por causa de sua posi-
ção neles” (YOUNG, 2000, p. 137).

Para a autora, grupos sociais plurais levam diversidade à vida pú-


blica. Além disso, ela postula que a diferença entre homens e mulhe-
res, héteros e homossexuais, negros e brancos etc. não é essencial,
não é intrínseca, mas está ligada à posição que ocupam na sociedade.
Essa posição diferenciada gera experiências, expectativas e proble-
mas diferentes. Entretanto, para Biroli e Miguel (2012), é preciso não
descartar a ideia dos interesses em jogo na representação, afinal
se desvincularmos interesses e perspectivas, teremos que des-
cartar a ideia de que há um nexo entre as posições na estrutura
social e a produção dos interesses. A presença de múltiplas pers-
pectivas sociais no debate público pode, de fato, ser vantajosa
para ampliar a qualidade deste debate […] O que está em jogo é
a possibilidade de realmente alcançar, na esfera política, o plu-
ralismo de perspectivas e de interesses que caracteriza socieda- Atividade 2
des fragmentadas como as contemporâneas. Medidas especiais, Considerando a perspectiva
cotas, são necessárias porque a diferença estrutural se traduz na de Iris Young, justifique a
desigualdade da capacidade de intervenção na esfera pública. necessidade de diferentes
(BIROLI; MIGUEL, 2012, p. 75) minorias fazerem parte efetiva
da representação política.
Outro aspecto a ser considerado é o fato de que o discurso domi-
nante sempre se reveste de uma “ilusão da imparcialidade” ou aspira à
universalidade, o que recobre as desigualdades e as relações de domi-
nação. Dessa forma, é possível que parlamentos compostos em larga
maioria de homens brancos de meia idade se arvorem a defender o
interesse de todos, enquanto mantêm mulheres, negros e outras mi-
norias com um deficit permanente de direitos.

A democracia contemporânea 77
Biografia Outro autor muito importante para a discussão da democracia
é Norberto Bobbio. No livro O futuro da democracia: uma defesa das

Wikimedia Commons
regras do jogo, de 1992, o autor analisa os cenários da democracia
contemporânea e defende que a observação de regras e procedi-
mentos é importante para a validade das normas que permitirão a
pluralidade de posições e pensamentos, fomentar a participação e
garantir a liberdade dos indivíduos contra governos potencialmente
autocráticos.
Norberto Bobbio (1909-2004),
filósofo político, historiador Bobbio (2006) estabelece algumas condições a serem observadas
do pensamento político e para que a democracia funcione de maneira adequada. Em primeiro
escritor italiano, foi defensor lugar, deve haver um empenho por parte dos cidadãos para o exercício
da democracia social-liberal e
do positivismo jurídico além de da democracia, isto é, precisa haver participação massiva; em segun-
crítico de Marx e do fascismo. do, é necessário que seja obedecida a regra da obtenção e obediência
Deixou uma vasta contribuição
à maioria nas decisões políticas; em terceiro e último lugar, é preciso
para o pensamento político.
que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que decidem
tenham diante de si alternativas reais e estejam em condição de poder
escolher entre estas.
Vídeo Para Bobbio (2006), há uma vinculação visceral entre a democracia
Bobbio foi um dos princi- e o Estado liberal, uma vez que na base do liberalismo estão os chama-
pais pensadores sobre a
democracia, tematizando dos direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, de reunião,
várias questões relativas de associação etc., que são condições incontornáveis da democracia.
ao tema. Assista à entre-
vista Norberto Bobbio – o Logo, não pode funcionar em um Estado não liberal.
que é “democracia”, publi-
cado no canal André Viola, A democracia participativa, portanto, é defendida por aqueles que
e reflita sobre os dilemas procuram fugir de uma visão apenas formalista da democracia, no sen-
da democracia atual
apontados pelo autor. tido de que uma vez que eleições são realizadas e uma elite governa,
Disponível em: http://youtu.be/ a democracia está garantida. Esses autores procuram salientar os pro-
JEbMVHFAAEg. Acesso em: 8 jul.
2020. blemas que os regimes contemporâneos têm enfrentado e propõem
alternativas para contorná-los.

4.2 Poder político


Vídeo Antes de discutirmos o poder político, vamos observar os concei-
tos fundamentais de poder segundo Max Weber. Esses conceitos são
bastante concisos e estão entre os mais utilizados nas Ciências Sociais,
bem como no Direito. Para Weber (2009, p. 33), “poder significa toda
probabilidade de impor a vontade numa relação social, mesmo con-
tra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade”. Ou

78 Introdução às ciências sociais


seja, é a probabilidade de que determinada ordem seja seguida por
um grupo específico de pessoas. Nesse conceito, é importante salientar
que a ordem emitida é específica e se dirige a um grupo igualmente
específico.

Essa probabilidade de alcançar êxito para uma ordem é funda-


mentada na força e na capacidade de coerção sobre as pessoas a
quem a ordem é dirigida ou na legitimidade que estas conferem a ela.
A legitimidade é essencial para pensar o poder político, porque ele
tem como base eminentemente a aceitação. Legitimidade é, portanto,
o consentimento que os indivíduos dão para quem emite a ordem.
O consentimento é uma decisão de que o cumprimento da ordem é
razoável, desejável ou conveniente.

Contudo, qual é a especificidade do poder político? Para entender


o conceito de poder político, é fundamental notar que as formas admi-
tidas pelo Estado estão legitimadas para o exercício da violência so-
bre determinada população sujeita a essa força. A definição clássica
de Estado nos é oferecida por Weber (2009, p. 98), para quem o Estado
“é aquela comunidade humana que, dentro de determinado território
– este, o ‘território’, faz parte de suas características – reclama para si
(com êxito) o monopólio da coação física legítima”. No caso do Estado,
os indivíduos entregam para este a tarefa de defender sua vida e seus
bens e, ainda, zelar por seu bem-estar, conferindo-lhe em troca o mo-
nopólio da violência (coação física) legítima, ou seja, apenas usada con-
tra aqueles que ameaçam suas vidas e o bem-estar público. Por isso,
apenas o Estado tem polícia, exército, instituições penais etc.

As relações de poder são parte integrante de qualquer sociedade


e os detentores do poder modelam as instituições segundo seus inte-
resses e valores. Conforme Castells (2012, p. 13),
é preciso considerar porém que dado que as sociedades são con-
traditórias e conflitivas, onde há poder há também contrapoder,
que considero a capacidade de os atores sociais desafiarem o
poder embutido nas instituições da sociedade com o objetivo de
reivindicar a representação de seus próprios valores e interesses.
Todos os sistemas institucionais refletem as relações de poder e
seus limites tal como negociados por um interminável processo
histórico de conflito e barganha. A verdadeira configuração do
Estado e de outras instituições que regulam a vida das pessoas
depende dessa constante interação de poder e contrapoder.

A democracia contemporânea 79
A ideia de contrapoderes é a de que movimentos sociais reivindicam
seus espaços e seus direitos no âmbito do Estado, reinventando as for-
mas da legitimidade.

Agora, vejamos algumas concepções de poder além das clássicas


de Weber. Segundo Bobbio (2017), há três vertentes teóricas sobre o
conceito de poder que ele identifica na história da filosofia:
a. substancialista (Hobbes);
b. subjetivista (Locke);
2 c. relacional.
2

A mais conhecida é a de Robert


Na substancialista, “o poder é concebido como uma coisa que se
Dahl.
possui e se usa como um outro bem qualquer […], [tais como] os dotes
naturais como a força e a inteligência, ou adquiridos, como a riqueza”
(BOBBIO, 2017, p. 77). Na forma subjetivista, o poder é tomado não
como “a coisa que serve para alcançar o objetivo, mas a capacidade
do sujeito de obter certos efeitos” (BOBBIO, 2017, p. 77); e finalmente,
na forma relacional, o poder é tomado como “uma relação entre dois
sujeitos, dos quais o primeiro obtém do segundo um comportamento
que, em caso contrário, não ocorreria” (BOBBIO, 2017, p. 77). Na teoria
Biografia relacional, as relações de poder político podem ser descritas também
pela influência de um indivíduo sobre o outro.
Wikimedia Commons

Ainda, Bobbio apresenta uma tipificação dos tipos de poder: eco-


nômico (riqueza), ideológico (saber) e político (força). Assim como
Weber, o filósofo assume que a possibilidade de uso da força define
o poder político. Entretanto, ele salienta que essas formas de poder
fundamentam as desigualdades sociais, na medida em que produ-
zem, respectivamente, ricos e pobres, sábios e ignorantes, bem como
fortes e fracos.
Alexis de Tocqueville (1805-
1859) foi um pensador político Por fim, para pensar o poder político moderno, é importante tra-
francês e um dos principais zer um autor do século XIX, Alexis de Tocqueville, que compreendeu
nomes do pensamento liberal.
como poucos o funcionamento do Estado democrático e o tipo de
Atuou também no campo
político, chegando a exercer relação que se estabelecia entre este e os cidadãos.
cargos públicos na França como
parlamentar e até mesmo minis- Em sua obra mais importante, A democracia na América – na qual
tro de Estado. Com base em uma investiga como os Estados Unidos, considerando a matriz inglesa, fun-
viagem realizada aos Estados daram o modelo da democracia moderna –, ele mostra sua preocupa-
Unidos, em 1830, escreveu seu
livro A democracia na América. ção com a forma como o governo, o poder soberano do Estado, conduz
os cidadãos apáticos. Sobre o tema, Tocqueville (2014, p. 636) afirma:

80 Introdução às ciências sociais


após ter assim tomado em suas mãos poderosas cada indivíduo
e após ter-lhes dado a forma que bem quis, o soberano esten-
de os braços sobre toda a sociedade; cobre-lhe a superfície com
uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e uni-
formes, através das quais os espíritos mais originais e as almas
mais vigorosas não conseguiriam aparecer para sobressair na
massa; não dobra as vontades, amolece-as, inclina-as e as dirige;
raramente força a agir, mas opõe-se frequentemente à ação; não
destrói, impede o nascimento; não tiraniza, atrapalha, compri-
me, enerva, arrefece, embota, reduz, enfim, cada nação a nada
mais ser que uma manada de animais tímidos e industriosos,
cujo pastor é o governo.

Para o autor, o poder político, no âmbito das sociedades democrá-


ticas, cria cidadãos pouco interessados em participar das decisões de
seu próprio destino. A especificidade de sua concepção quanto a ou-
tros teóricos da democracia liberal contém essa ideia de que o mais
importante não é o desinteresse dos cidadãos, mas o fato de que eles
são, por assim dizer, moldados pelo Estado e se conformam no confor-
to de ter seus problemas resolvidos sem o esforço que a vida pública
demanda. Nesse sentido, ele antecipa de certo modo as formas mais
modernas de concepção do poder, como a foucaultiana, que estudare-
mos na seção a seguir.

4.3 Poder disciplinar e biopoder


Vídeo No livro A vontade de saber, Michel Foucault introduziu outra con-
cepção de poder, com base em um estudo aprofundado de seus meca-
nismos. O autor nos alerta para nossa fixação na ideia do príncipe, do
governante que encarna o poder, ou seja, na ideia de que o poder é o
poder do Estado. Foucault vai então questionar a ideia de poder e do-
minação restrita à forma da repressão ou da proibição. A ideia de poder
como eminente e essencialmente negativo, limitador, ou seja, daquele
que apenas diz não. Pensemos, por exemplo, nos Dez mandamentos de
Moisés, que são basicamente dez interdições.

Foucault observa que o poder político, pelo menos desde o século


XVII, mais organiza do que controla as forças sociais. Assim, ele pro-
duz mais normas que leis e não é uma instância externa ou estranha à
sociedade. O poder, pelo contrário, pode ser encontrado nas relações
pessoais, nos processos econômicos e de produção de conhecimento.

A democracia contemporânea 81
Por isso, ele não é um ente, “alguma coisa que se adquire, se toma ou
se divide, algo que se deixa escapar” (FOUCAULT, 2000b, p. 85). O po-
der, portanto, realiza-se em relações de poder. Além disso, a fonte de
sua legitimidade e permanência não é seu caráter negativo, mas, antes,
sua capacidade produtiva. Segundo Foucault (2000b, p. 8), “o que faz
com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que
ele não pesa só como a força que diz não, mas que de fato ele permeia,
produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso”.

Com isso, o filósofo desenvolveu as noções complementares de po-


der disciplinar e de biopoder, em que percebe, em primeiro lugar, a
transformação das sociedades feudais em sociedades disciplinares. As
instituições da disciplina crescem com o declínio das monarquias ab-
solutistas, ao longo dos séculos XVII e XVIII. Estas desenvolvem as ins-
tituições da disciplina, quartéis, manicômios, prisões, escolas, fábricas
etc. Para Foucault (2000b, p. 143), “o poder disciplinar é com efeito um
poder que, em vez de se apropriar e retirar, tem como função maior
adestrar; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais
e melhor”.
Biografia
O adestramento cria indivíduos úteis na medida em que são ajusta-
Exeter Centre/Wikimedia Commons

dos às demandas do mundo do trabalho, principalmente se considerar-


mos que esse período coincide com o desenvolvimento do capitalismo,
o qual requer operários produtivos, focados e dóceis.

Esse poder se exerce por meio daquilo que o autor chama de dis-
positivos disciplinares. Conforme Foucault (2000a, p. 244), dispositivo é
“um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, ins-
tituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,
Michel Foucault (1926-1984), medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosó-
filósofo, historiador, sociólogo
e crítico literário, possui uma ficas, morais, filantrópicas”. O dispositivo é a rede que se pode tecer
obra que aborda diversos temas, entre estes elementos. Seus elementos são a sanção normalizadora
entre eles, loucura, sexualidade,
(o poder da norma exercido por meio de regramentos e que cria a
disciplina, poder e punição. Em
1975, lançou Vigiar e punir, obra conduta normalizada), o exame (o mecanismo que permite classificar,
seminal para o entendimento premiar ou punir os indivíduos) e a vigilância. Entre esses elementos,
sobre a sociedade moderna e sua
a vigilância é o dispositivo fundamental. De acordo com Pogrebinschi
relação com a disciplina.
(2004, p. 194), ela
contribui para automatizar e desindividualizar o poder, ao passo
que contribui para individualizar os sujeitos a ele submetidos. [...]
a vigilância produz efeitos homogêneos de poder, generaliza a dis-
ciplina, expandindo-a para além das instituições fechadas. Nesse

82 Introdução às ciências sociais


sentido, pode-se dizer que ela assegura, como explica Foucault,
uma distribuição infinitesimal do poder. […] Com a vigilância, o
poder disciplinar torna-se um sistema integrado [...]. Não há um
centro, não há um chefe no topo da forma piramidal desse poder:
a engrenagem como um todo produz poder. Trata-se de um poder
em essência relacional. Daí Foucault afirma que o poder disciplinar
funciona como uma máquina, se organiza como uma pirâmide e
opera como uma rede. Com sua forma hierarquizada, contínua e
funcional, a vigilância também estabelece uma simetria crescente
entre poder e produção, poder e saber. Mais uma vez, a fórmu-
la foucaultiana se repete: quanto mais poder se exercer sobre os
indivíduos, maior será a sua produtividade; quanto mais o poder
discipliná-los, mais saber eles gerarão.

O poder disciplinar é uma ampla teia de relações que submetem


os indivíduos, incidindo sobre seus corpos e criando com isso o aluno
obediente, o trabalhador focado, o cidadão observador das leis. Enfim,
é o poder que cria indivíduos domesticados. O quadro a seguir ilustra
as diferenças entre a concepção tradicional de poder e a introduzida
por Foucault.

Quadro 1
Poder soberano e poder disciplinar

Poder soberano Poder disciplinar


Indivíduo-sociedade Indivíduo-corpo
Terra e seus produtos Corpo
Apropriação e expiação de bens e riquezas Anatomia política do corpo humano
Existência física do soberano Disciplina
Tributação Vigilância
Produção de bens e riquezas Maximização da força
Monarquia Sociedade disciplinar
Lei Norma
Codificação Normalização
Estado Instituições: escolas, oficinas, hospitais etc.
Direito Ciências Humanas
Continuidade Descontinuidade
Contrato Disciplina
Visibilidade do soberano e invisibilidade dos súditos Invisibilidade da disciplina e visibilidade dos sujeitos
Fonte: Pogrebinschi, 2004, p. 195.

O biopoder é outra dimensão do poder contemporâneo. Ele convive


com o poder disciplinar, mas vai além. A sede da vida do biopoder é a
vida mais que o corpo dos indivíduos. Ele se exerce sobre a população

A democracia contemporânea 83
e na cidade. Trata-se de um poder coletivo, que se aplica à massa e
recobre aspectos tais como nascimentos e mortes, taxa de natalidade,
tratamento de doenças etc. O biopoder, assim como o poder discipli-
Filme nar, gera conhecimento, e a segmentação das ciências na modernidade
é decorrente disso (POGREBINSCHI, 2004). Assim, esse poder
não intervém no indivíduo, no seu corpo, como faz o poder disci-
plinar; ao contrário, intervém exatamente naqueles fenômenos
coletivos […] disso decorre que precisa estar constantemente
medindo, prevendo, calculando tais fenômenos e, para isso, o
biopoder cria alguns mecanismos reguladores que o permitam
realizar tais tarefas. (POGREBINSCHI, 2004, p. 196)

Isso significa que é preciso desenvolver uma técnica ou uma tecnologia


para que ele possa ser efetivo. Historicamente, esse saber se consolidou
Assista ao filme Laranja
mecânica e reflita sobre
na formação de diferentes campos do conhecimento, como as ciências e
a violência extrema as tecnologias, além do campo da medicina. Além disso, ele também cria
praticada pelo grupo de
adolescentes liderados
instituições sociais como as empresas de seguro e a previdência.
por Alex DeLarge e a
O poder disciplinar e o biopoder são complementares e estão um-
violência sofrida por ele,
posteriormente, em seu bilicalmente ligados. Um diz respeito à disciplina e o outro, ao regu-
processo de “reabilita-
lamento. Assim, a ordem no corpo e a ordem na cidade são obtidas
ção”, exercida sobre o
corpo como um processo graças à norma. “A norma da disciplina e a norma da regulamentação
de adestramento. Rela-
dão origem ao que Foucault chama de sociedade de normalização, uma
cione tais situações com
a ideia de poder discipli- sociedade regida por essa norma ambivalente, na qual coexistem indi-
nar de Foucault.
víduo e população, corpo e vida, individualização e massificação, disci-
Direção: Stanley Kubrick. EUA, Reino
plina e regulamentação” (POGREBINSCHI, 2004, p. 197). Nas palavras
Unido: Warner Bros, 1971.
de Foucault (2000b, p. 302):
dizer que o poder, no século XIX, tomou posse da vida, dizer pelo
menos que o poder, no século XIX, incumbiu-se da vida, é dizer
que ele conseguiu cobrir toda a superfície que se estende do
orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante o jogo
duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnolo-
gias de regulamentação, de outra.
Atividade 3
Foucault realizou um esforço para compreender os mecanismos de
Aponte três caraterísticas
controle das sociedades contemporâneas com base no estudo da gê-
do poder segundo Foucault,
fundamentando-se nas ideias de nese de suas instituições. Para isso, estudou a sexualidade, as prisões,
poder disciplinar e biopoder. a loucura etc., ou seja, os fenômenos sobre os quais o poder se exer-
ceu e criou formas disciplinares de controle. Com isso, introduziu uma
versão bastante original do que é o poder e que, por isso e por sua
fecundidade teórica, é muito utilizada em vários domínios da ciência.

84 Introdução às ciências sociais


CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste capítulo, trabalhamos com alguns temas importantes da Socio-
logia Política e da Ciência Política. O tema da democracia se desdobra em
suas vertentes teóricas mais expressivas, a da democracia representati-
va e da democracia participativa. Estudamos que ambas as correntes vi-
sam compreender quais são os desafios para o bom funcionamento dos
regimes democráticos. Isso é de vital importância para as sociedades
contemporâneas, na medida em que diferentes formas de democracia
são vividas em diferentes países e em todos se busca o aperfeiçoamento
das formas democráticas.
A baixa participação dos cidadãos nos processos políticos é uma rea-
lidade recorrente. Em países onde o voto não é obrigatório, a taxa de
comparecimento às urnas é, via de regra, decrescente, e mesmo no Brasil,
onde este é obrigatório, as taxas de abstenção (não comparecimento) e
votos brancos e nulos são altíssimas. Nas eleições de 2018, no segun-
do turno, a soma foi de 30%, ou seja, mais de 40 milhões de eleitores
(COELHO, 2018). Parece haver, portanto, uma desconfiança de parte da
população com relação ao sistema político e à capacidade deste em ofe-
recer respostas aos desafios sociais que enfrentamos. Daí a importância
adicional de percebermos quais são as entranhas das instituições das
quais participamos.
Outro tema abordado foi o poder político e as diversas perspec-
tivas para sua compreensão, debatendo, inclusive, as concepções
foucaultianas de poder disciplinar e biopoder. A questão do poder tam-
bém é crucial, uma vez que ele é um dos instrumentos fundamentais com
o qual os sistemas democráticos de fato governam, além da forma como
constroem sua legitimidade.
Esses conceitos procuram demonstrar como o mundo da política se
constitui e como ele funciona, visto que a política é uma atividade humana
fundamental tanto para o adequado funcionamento de nossa sociedade
quanto para lutarmos por justiça e solidariedade social. É o principal ins-
trumento para as mudanças que se fazem necessárias.

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A democracia contemporânea 85
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pdf. Acesso em: 8 jul. 2020.

GABARITO
1. Para Schumpeter, as principais características dos regimes democráticos são a apatia
e o desinteresse dos cidadãos de participarem da vida pública e o fato de que a finali-
dade das eleições é a escolha de qual parte da elite irá governar.

2. A ideia de perspectiva é a de que as experiências oriundas das posições sociais ocu-


padas pelos indivíduos importa para a configuração de seus interesses políticos. Por
isso, é importante que as minorias estejam pessoalmente representadas nas instân-
cias de poder.

3. 1) O poder é criador mais que repressor; 2) ele cria normas antes das leis; 3) as insti-
tuições criadas por ele têm a finalidade primordial de disciplinar os corpos, tornando
os cidadãos mais produtivos.

86 Introdução às ciências sociais


5
Temas emergentes
das ciências sociais
Neste capítulo, vamos discutir alguns aspectos sociais e políti-
cos da sociedade contemporânea que vieram a se tornar temas
importantes estudados pelas ciências sociais.
Veremos quatro grandes temas essenciais para termos uma
ideia a respeito de algumas das questões que impactam as novas
formas de vida que têm se imposto a nós neste início do século
XXI. Por serem temas que impactam nossa vida social e o debate
público, é de fundamental importância que um profissional de nível
superior esteja municiado para poder participar desse debate.
O primeiro tema de que trataremos é o da desigualdade so-
cial no Brasil, considerado por muitos o maior e mais importante
problema brasileiro. Depois, discutiremos os mecanismos de fun-
cionamento das redes sociais, como o Facebook, o Instagram e o
WhatsApp, bem como seu impacto na vida das pessoas. Em se-
guida, apresentaremos diferentes abordagens sobre as questões
identitárias, que ultimamente têm incendiado o debate público
com assuntos como a identidade de gênero e o feminismo. Por
fim, abordaremos o tema sustentabilidade e suas possibilidades
reais de ser uma resposta à emergência climática.
Esses temas são considerados emergentes porque entraram
recentemente na agenda tanto pública quanto de estudos para as
ciências sociais. Apesar disso, para cada um deles, há uma vasta
bibliografia que pode ser explorada. Portanto, neste capítulo, são
apresentados brevemente, nos limites de uma introdução, mas
convidamos você a se aprofundar no que tiver mais interesse.

Temas emergentes das ciências sociais 87


5.1 A desigualdade social
Vídeo A desigualdade social tem acompanhado a história humana há
séculos. Desde os primeiros registros das antigas civilizações já havia
pessoas divididas em diferentes estratos sociais, que lhes conferiam
desigualmente de poder, de recursos e de reconhecimento.

A desigualdade como problema passou a ser tematizada no século


XVII por meio de questões teológicas pelos padres da Igreja Católica.
Em uma sociedade fortemente estratificada, com a presença de cam-
poneses e nobres, algo passou a incomodar os pensadores da Igreja. A
ideia de que Deus havia criado homens iguais, feitos da mesma matéria
e à sua imagem e semelhança, não se coadunava com a desigualdade
então existente. Além disso, todos os homens tinham sofrido igual-
mente uma queda, oriunda do pecado original (PASCAL, 2005). Uma
das respostas a isso foi o calvinismo e a ideia de “escolhidos por Deus”
para serem salvos.
Vídeo
Já no século XVIII, o capitalismo nascente cristalizou uma desigual-
A TV Folha produziu
dade já existente e a colocou em outro patamar. Via de regra, os cam-
uma série de pequenos
documentários sobre a poneses se tornaram operários, e a nobreza, destituída de seus títulos
desigualdade em dife-
na maior parte dos países ocidentais, mas mantendo bens imóveis,
rentes continentes. Eles
dão uma ideia bastante tornou-se rentista. A burguesia mercantil migrou para ser a dona do
abrangente da profun-
capital, formando a classe dos capitalistas. Mesmo em países como a
didade do problema e
da forma como atinge França, onde ocorreu uma intensa e profunda mudança representada
diferentes países. Assista
pela Revolução Francesa, cuja defesa da igualité era uma de suas divi-
ao primeiro episódio –
Desigualdade Global: sas, a mobilidade social restou mais como parte da ideologia moder-
Europa.
na do que uma realidade realmente existente durante todo o século
Disponível em: http://youtu.be/ XIX e parte do XX. Em grande parte da Europa, as desigualdades só
NyuxGvSyJvQ. Acesso em: 3 jul.
2020. foram enfrentadas efetivamente depois da Segunda Guerra Mundial,
com o desenvolvimento do Estado do Bem-Estar Social.

Considerando que o capitalismo sempre gerou concentração de


renda, a partir dos anos 1980, ele tem sido pródigo na criação de novos
pobres. Esse processo é multifatorial, ancora-se na desregulamentação
ou não regulamentação do mercado de trabalho, na competição inter-
nacional pelos investimentos, na geopolítica que mantém claramente
estabelecidos países centrais e periféricos etc.

88 Inteligência e segurança pública


Após esse breve panorama histórico, vejamos agora a questão da de-
sigualdade social no Brasil, com base em uma abordagem sociológica.

De acordo com os dados internacionais de 2019, apresentados


pelo Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvi-
mento (PNUD), o Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo, de-
1
sigualdade medida pelo coeficiente de Gini . Os seis primeiros são 1
países da África. Segundo esse documento, o Brasil estava à frente Coeficiente de Gini ou índice
Gini é uma escala de distribuição
apenas de África do Sul, Namíbia, Zâmbia, República Centro-Africana,
matemática desenvolvida pelo
Lesoto e Moçambique. Se a métrica fosse outra – a mera concentra- estatístico Corrado Gini, em
ção de renda –, o Brasil ocuparia o segundo lugar, depois apenas do 1912. Essa escala varia de 0 a 1
e é usada internacionalmente
Catar. Conforme o relatório, “a parcela dos 10% mais ricos do Brasil como uma medida de desigual-
concentram 41,9% da renda total do país, e a parcela do 1% mais rico dade com base na distribuição
concentra 28,3% da renda” (PNUD, 2019). de renda. Nessa escala,
quanto mais próximo de 1, mais
A desigualdade é um problema que afeta uma enorme gama de desigual é o país. Inversamente,
quanto mais próximo de 0, mais
aspectos. Economicamente, representa um freio no desenvolvimento
igualitário.
porque, se a renda está muito concentrada, como é o caso brasileiro,
a capacidade de consumo das famílias e dos cidadãos é bastante li-
mitada. No Brasil, milhões de pessoas sobrevivem sem a maior parte
dos bens de consumo de que dispõe os 10% ou mesmo os 50% mais
Vídeo
ricos, o que diminui muito o mercado consumidor e, consequente-
Assista ao segundo epi-
mente, a expansão da economia interna. A mesma concentração di- sódio da série produzida
minui o acesso à escola, à saúde e à cultura. Os impactos políticos são pela TV Folha, intitulado
Desigualdade Global:
igualmente grandes, afinal a igualdade perante a lei, considerada a Estados Unidos.
base mínima da democracia, fica bastante comprometida nesse tipo Disponível em: http://youtu.
de sociedade. Sabemos que, no Brasil, os pobres são a quase totalida- be/1WbqCfG3GVw. Acesso em: 3
jul. 2020.
de dos encarcerados, por exemplo. Da mesma forma, a concentração
de riquezas impacta outras formas de desigualdade, como a racial e a
de gênero, ambas abissais no país.

Se considerarmos apenas a desigualdade entre brancos e negros,


dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), órgão
oficial que realiza o censo demográfico e outras sondagens em nos-
so país, todos os indicadores (renda, moradia, violência, desemprego,
saneamento básico etc.) confirmam a população negra e parda como
bastante penalizada. No gráfico a seguir, elaborado pelo IBGE, temos
alguns resultados de 2019.

Temas emergentes das ciências sociais 89


Mercado de trabalho Distribuição
Educação de renda e Educação
condições de moradia
Taxa de analfabetismo (2) 2018 Taxa de analfabetismo (2) 2018
Cargos gerenciais 2018 Pessoas abaixo das linhas de
pobreza 2018 Total Urbano Rural
68,6% X 29,9% Preta ou
ocupados por ocupados Branca Branca 3,9% 3,1% 11,0%
parda
brancos por pretos ou
Inferior a
pardos
US$5,50/dia
15,4%
15,4% 32,9% 32,9% Preta ou
parda
9,1% 6,8% 20,7%
Inferior a
US$1,90/dia
3,6%
3,6% 8,8%
8,8%
Taxa composta de subutilização (1) (2) Pessoas de 15 anos ou mais
2018 de idade.
Branca 18,8%
Preta ou
Violência
parda 29,0% Taxa de homicídios, por 100 mil
Representação política
jovens (3) 2017
Deputados federais eleitos
Total Homens Mulheres
(1) Soma das populações 2018
Branca 34,0 63,5 5,2
subocupadas por insuficiência Branca e Preta ou
de horas, desocupada e força de Preta ou outras parda
parda 98,5 185,0 10,1
trabalho potencial.
(3) Pessoas de 15 a 29 anos de idade.
75,6% 24,4%
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Populações e Indicadores Sociais, 2019.

A questão a ser colocada é, então, por que razão a desigualdade,


sendo tão grande e, ao mesmo tempo, tão nociva, passa relativamente
2
despercebida no país. Ainda que nos últimos anos tenha sido objeto
O conceito de patrimonialismo de algumas políticas compensatórias, como o Bolsa Família e as cotas
foi criado pelo sociólogo Max
Weber; diz respeito à ideia de que universitárias, não tem sido suficientemente tematizada e combatida,
em determinado Estado não há haja vista a resistência da sua permanência como realidade social.
distinções ou limites entre bens
públicos e privados. A ideia de Entre os sociólogos brasileiros que estudaram a questão, destaca-se
personalismo é um dos aspectos Jessé Souza com várias obras dedicadas ao tema. No livro A invisibilidade
do patrimonialismo e indica o
da desigualdade brasileira, publicado em 2006, ele aborda o caso do Brasil
caráter pessoal das relações no
interior do Estado patrimonia- sob a perspectiva da construção de uma modernidade periférica e de uma
lista. O conceito foi largamente crítica à tradição brasileira de pensar nossa sociedade com base nos para-
utilizado pela sociologia brasileira 2
para descrever o tipo de funciona- digmas do personalismo e do patrimonialismo . Para o autor, a forma
mento do Estado brasileiro. Neste, como a questão da identidade brasileira se constituiu é uma das fontes da
ainda que haja formalmente invisibilidade da nossa desigualdade, uma vez que a naturalizou, ou seja,
leis em que essa distinção está
presente, a elite dirigente, muitas a tomou como normal. Para ele, há uma extensa tradição segundo a qual
vezes, negligencia esses limites e tudo decorre como se a razão da desigualdade estivesse em nosso passa-
age como se fosse “dona” de tudo.
do colonial, na herança portuguesa. Algo como “somos assim porque sem-
pre fomos assim”. É a nossa identidade, é o jeito brasileiro.

90 Inteligência e segurança pública


Entretanto, para Souza (2006), isso não é uma explicação devido ao Vídeo
fato de desconsiderar o processo de modernização e a introdução e Assista ao terceiro epi-
sódio da série produzida
desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Estes, sim, processos que pela TV Folha, intitulado
conferem as características presentes do país. Nas palavras do autor: Desigualdade Global:
China.
[...] a naturalização da desigualdade social e a consequente
Disponível em: http://youtu.be/
produção de “subcidadãos” como um fenômeno de massa, em nCyRvStXeYQ. Acesso em: 3 jul.
países periféricos de modernização recente como o Brasil, pode 2020.
ser mais adequadamente percebida como consequência, não de
uma suposta herança pré-moderna e personalista, mas precisa-
mente do fato contrário, ou seja, como resultante de um efetivo
processo de modernização de grandes proporções que se im-
planta paulatinamente no país a partir de inícios do século XIX.
(SOUZA, 2006, p. 17)

Ainda de acordo com o autor, o personalismo e o patrimonialismo Biografia


são parte de uma certa “teoria emocional da ação” (SOUZA, 2006). Fa-
zem parte de um mito fundador sobre a nacionalidade brasileira, atua-
lizado por intelectuais que estudam nossa história. Que mito é esse? O
de um povo cordial, emotivo, quente. É o Brasil do samba, do futebol,
do carnaval, que encantou estrangeiros por décadas. Segundo esse Fabio Rodrigues Pozzebom/
Agência Brasil/Wikimedia Commons
mito, assim é a sociedade e a sociabilidade brasileira. A fonte de nossas
mazelas estaria em outro polo, o do Estado, com sua ineficiência, cor- Jessé Souza, sociólogo, professor
universitário e pesquisador
rupção e privilégios. brasileiro, atua nos estudos sobre
desigualdade e classes sociais
Nesse mito em que se encontra, esquematicamente, uma socieda-
no Brasil contemporâneo. Entre
de boa e um Estado ruim, as diferenças produzidas pelo funcionamen- suas obras estão A ralé brasileira,
to do sistema capitalista são apagadas. Daí que para grande parte da A radiografia do golpe e Elite do
atraso. Foi presidente do Ins-
cultura brasileira o problema é o Estado ou seus agentes – os políticos.
tituto de Pesquisa Econômica
Para usar um exemplo recente, toda a discussão sobre a corrupção no Aplicada (IPEA) até 2016.
Brasil poupou grande parte dos corruptores.

Contudo, como se formou esse mito a que o patrimonialismo serviu


tão bem? Para responder a isso, o autor faz uma retrospectiva de uma
certa tradição sociológica brasileira.

Durante o século XIX, e mesmo em parte do século XX, foi predomi-


nante a ideia de que a miscigenação seria um problema para um futuro
promissor do país, que só seria resolvido com o “embranquecimento”
da população. A mistura de raças teria formado um povo fraco, imper-
feito. Em um país marcado por 300 anos de regime escravocrata e com
uma imensa população mestiça, o chamado racismo científico preco-
nizava a superioridade dos brancos quanto a outras etnias, como os

Temas emergentes das ciências sociais 91


negros e os indígenas. Apenas a eliminação da mistura racial levaria o
país a um patamar aceitável de desenvolvimento, alcançando um bom
lugar entre as nações. O médico Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906)
foi um dos expoentes do denominado eugenismo, a ideia de formação
de uma raça pura.
Vídeo Conforme aponta Souza (2006), o sociólogo pernambucano Gilberto
Assista ao quarto episó- Freyre (1900-1987) foi o primeiro a considerar que a mestiçagem seria
dio da série produzida
nossa vantagem, e não nosso problema. Com isso, empreendeu uma
pela TV Folha, intitulado
Desigualdade Global: África grande revolução na história das ideias, introduzindo a ideia de que a
do Sul.
mistura teria enriquecido nossa cultura. Para Freyre, as diferentes et-
Disponível em: http://youtu.be/ nias que contribuíram para a formação do povo brasileiro legaram o
My0HlKZqyXc. Acesso em: 6 jul.
2020. melhor da sua cultura para a civilização brasileira. No livro Casa-Grande
e Senzala (1933), aparece a ideia da existência de uma relação cordial
entre senhores e escravos, deixando oculta toda a violência implícita
na relação de escravização. Com isso, construiu um mito que se tornou
hegemônico no país, o da democracia racial, ainda que ele mesmo não
utilize essa expressão. O fato é que, durante décadas, o racismo não foi
tematizado no Brasil porque tudo se passava como se ele não existisse.

Outro autor analisado por Jessé Souza é Sérgio Buarque de Holanda.


Herdeiro de Freyre, o sociólogo modifica, entretanto, suas teses mais
importantes, invertendo mesmo algumas delas. Para ele, o “mito da
brasilidade” como congraçamento de raças, criado por Freyre, não tem
validade científica. Além disso, Buarque de Holanda rechaça as caracte-
rísticas que o autor havia apontado como vantagens do povo brasileiro.
Para este, a cordialidade, por exemplo, significa apenas que os brasilei-
ros não são racionais e agem de acordo com o coração, raiz etimológica
da palavra cordial.

Souza (2006) chama a atenção para o fato de que, segundo a aná-


3 lise de Buarque de Holanda, na comparação com países como os Es-
O neopatrimonialismo se tados Unidos, os brasileiros interpõem seus interesses particulares
3
refere à atualização do conceito de sobre os comunitários, em uma forma de neopatrimonialismo .
patrimonialismo no contexto das
Além disso, os brasileiros seriam emocionais; já os americanos, ra-
sociedades capitalistas. Neste, as
relações pessoais e a indistinção cionais. A oposição entre razão e emoção é, também, a do mercado
entre o público e o privado, típicos versus Estado. Ou a ideia de que o mercado é racional e o Estado,
do patrimonialismo, continuam
presentes, mas ocorrem no patrimonialista.
interior de relações mais marca- Esse seria o berço das ideias correntes no Brasil do mercado como
damente capitalistas.
virtuoso e meritocrático e do Estado como ineficiente e corrupto, que

92 Inteligência e segurança pública


alimentam até hoje as discussões sobre o liberalismo à brasileira. Toda-
via, para Souza, não é a chamada herança ibérica
4
(o patrimonialismo 4
e o personalismo) que explica a desigualdade brasileira assim como sua Herança ibérica é uma expressão
de Sérgio Buarque de Holanda;
naturalização e consequente invisibilidade. Lançando mão do conceito
refere-se ao patrimonialismo e ao
de habitus do sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002), Souza desenvolve a personalismo do Estado brasileiro.
ideia de habitus precário para compreender a realidade brasileira.

Se o habitus pode ser entendido na qualidade de um princípio me-


diador, como um conjunto de ideias e procedimentos que interme-
deiam as práticas individuais e  as condições sociais de existência, o
habitus precário significa um certo tipo de socialização que predispõe
os indivíduos de determinadas classes ou estratos sociais às beiradas
do sistema como inadaptados ao mundo capitalista. É o caso do indiví-
duo criado sem a disciplina de estudo, sem a capacidade de concentra-
ção, sem o domínio da etiqueta social.
O habitus precário representou a reprodução de certo tipo de
personalidade que terminou sendo julgada como improdutiva e
disruptiva para a sociedade. Isso ocorria porque esses indivíduos
não tinham as pré condições psicossociais para o reconhecimen-
to na sociedade de classes [...]. Como consequência, houve a pro-
dução de uma massa de inadaptados às demandas modernas e
capitalistas de Estado e mercado na sociedade de classes, pois
não conseguiram se modernizar de forma plena. Foi o habitus
precário a causa última da inadaptação e da marginalização, pois
representou a reprodução de uma massa de indivíduos inade-
quados para o trabalho produtivo no mercado capitalista com-
petitivo [...]. (RIBEIRO, 2019, p. 5, grifos do original)

A esse grupo Souza (2003) chama de ralé estrutural, composta


de pessoas sem cidadania efetiva. O autor nos dá um exemplo do
que significa na prática essa subcidadania. Segundo ele, em países
europeus, o tratamento concedido a pessoas das diferentes classes
é bem mais igualitário.
Se um brasileiro de classe média atropela um brasileiro pobre
da “ralé”, [...] as chances de que a lei seja efetivamente aplicada
neste caso é […] baixíssima. Isso não significa que as pessoas,
nesse último caso, não se importem de alguma maneira com o
ocorrido. O procedimento policial é geralmente aberto e segue
seu trâmite burocrático, mas o resultado é, na imensa maioria
dos casos, simples absolvição ou penas dignas de mera contra-
venção. (SOUZA, 2003, p. 75)

Temas emergentes das ciências sociais 93


Atividade 1 É como se a vida de uns valesse mais que a de outros. Exemplos de
Considerando a discussão sobre como as pessoas são tratadas desigualmente são abundantes no país.
a desigualdade no Brasil, aponte
Vejamos a questão de como o patrimonialismo ajuda a obscurecer
o que caracteriza a ideia de
habitus precário desenvolvida a desigualdade. Para Souza (2011, p. 3):
pelo sociólogo Jessé Souza.
todo esse arsenal interpretativo está hoje em dia a serviço do
(des)conhecimento e do preconceito contra as classes popula-
res no Brasil, tanto em relação ao que chamo provocativamen-
te de “ralé” quanto, também, em relação aos “batalhadores” da
chamada “classe C”. É precisamente o obscurecimento sistemá-
tico de todo conflito de classes entre nós, em nome da falsa
oposição já naturalizada entre mercado e Estado, que abre es-
paço para um “economicismo liberal” que desconhece a pro-
dução sociocultural de indivíduos diferenciais por heranças de
classe distintas. A percepção equivocada da “classe C” como
classe média, ou seja, como classe privilegiada, mediante mero
aumento do potencial de consumo e renda, reflete, precisa-
mente, esse desconhecimento.

Vídeo Isso é o que o autor chama de parte de baixo da sociedade brasileira.


Assista ao quinto episó- Primeiro, são os batalhadores, a classe trabalhadora atuando em con-
dio da série produzida dições precárias. São os vendedores de loja, as manicures, enfermeiras
pela TV Folha, intitulado
Desigualdade Global – etc., pessoas que, normalmente, têm jornadas de trabalho acima de 8
Brasil. horas diárias, muitos estudam no período noturno e fazem bicos aos
Disponível em: http://youtu.be/ fins de semana. Por isso, têm um potencial de consumo que “pressupõe
PGgVZAZJKwY2. Acesso em: 6
jul. 2020. extraordinário esforço pessoal, sacrifício familiar de todo tipo, além de
todo tipo de sofrimentos e dores silenciadas pelo discurso triunfalista
dominante” (SOUZA, 2011, p. 6).

Além dos batalhadores, o autor aponta a existência da “ralé”, que


representa cerca de ⅓ da população brasileira. Nesse caso, trata-se de
indivíduos que vivem em condições ainda mais precárias, sendo con-
siderados os “sem futuro”. Executam funções operacionais perigosas,
enfrentando sujeira, carregando peso e sem direitos trabalhistas, como
camelôs, pedreiros, cuidadores etc. Enquanto os batalhadores têm fa-
mílias razoavelmente estruturadas, muitas vezes a “ralé” sofre com
abandono social e desestruturação familiar, o que a torna incapacitada
a absorver e desenvolver capital social que lhe daria perspectivas de
ascensão na sociedade.

Como vemos, a desigualdade social é uma das características mais


presentes na sociedade brasileira, chegando a ser apontada por vá-
rios estudiosos como o principal problema do país. Funciona como um

94 Inteligência e segurança pública


entrave tanto para o desenvolvimento econômico quanto para a qua-
lidade de nossa democracia, além de comprometer os princípios cons-
titucionais de justiça.

Ela produz subcidadãos, ou seja, pessoas cujos direitos fundamen-


tais não são devidamente respeitados. Se é gerada primariamente pela
concentração de renda oriunda de políticas fiscais e tributárias que pri-
vilegiam os já ricos, ela é perpetuada, também, pela maquinaria social
geradora de pessoas inadaptadas para as exigências que o moderno
mercado de trabalho capitalista requer. Os mecanismos compensató-
rios desenvolvidos nos últimos anos não se mostraram suficientes para
sanar o problema, que continua grave e compromete não apenas o
futuro das pessoas atingidas pela desigualdade, mas também o futuro
do país como um todo.

5.2 As redes sociais


Vídeo As redes sociais, tal como as conhecemos, são uma das invenções
mais recentes da humanidade e com maior impacto de curto prazo.
Possibilitadas pela internet, cuja popularização se expandiu a partir
dos anos 1990, e pelos avanços tecnológicos que se aceleraram nas
últimas décadas, elas rapidamente ganharam centenas de milhões de
usuários ativos.

Por isso, a história das redes sociais está umbili- Curiosidade


calmente ligada à da tecnologia. Sem a internet e os Você sabia que antes das
smartphones, não seria possível pensar em redes redes sociais populares
houve outras que foram
sociais, desde seus primórdios, como o Orkut, até muito utilizadas, como o
as mais recentes – Facebook (2004), YouTube (2005), mIRC e o MSN Messenger?
Para conhecer um pouco
Twitter (2006), WhatsApp (2009), Instagram (2010) e sobre antigas redes
TikTok (2016) –, que são as redes mais acessadas e sociais da internet, acesse
o link a seguir.
usadas atualmente, porém novas redes têm surgido
Disponível em: https://
continuamente. revistagalileu.globo.com/
Sociedade/noticia/2018/11/5-
Cada uma dessas redes tem suas peculiaridades,
redes-sociais-das-antigas-para-
mas é preciso pensar os papéis que elas desempe- matar-saudades-ou-conhecer.html.
Acesso em: 9 jul. 2020.
nham e as mudanças que introduziram na forma
como as pessoas se comunicam, se relacionam e fa-
zem política. Com elas, ocorreu a introdução de vários
novos conceitos, como o de amigo virtual, seguidor e audiência, assim
como curtir (uma palavra que fazia parte do léxico típico da década de

Temas emergentes das ciências sociais 95


1960), compartilhar, reencaminhar e comentar. Além disso, colocaram em
foco questões como a relação entre espaço público e privado, e a privaci-
dade diante da exposição pública inédita até então. O celular acrescenta a
essa fórmula o ingrediente da mobilidade extrema e da instantaneidade.

Outra dimensão trazida tanto pela internet quanto pelas redes so-
ciais é a de ubiquidade, ou seja, a qualidade de estar “presente” em
muitos lugares ao mesmo tempo. Quando se consulta uma rede social,
muitos têm a sensação de estar curtindo as férias dos amigos ou das
celebridades como se lá estivessem. O que acontece em qualquer lugar
do planeta chega ao nosso conhecimento de modo instantâneo. Com
isso, “uma reconfiguração do espaço e tempo está aparecendo, uma
reconfiguração que implica que a forma e o propósito da comunicação
definem o ‘público’ e ‘privado’, e não o espaço no qual a comunicação
acontece” (COOPER et al., 2002, p. 295).

Ainda assim, por que tantas pessoas fazem parte das redes sociais? Qual
é o elemento principal que nos atrai para elas? Para Recuerdo (2014, p. 215,
grifos do original),
os sites de rede social proporcionam novas formas de cone-
xão social e de manutenção dessas conexões aos atores. Por
conta disso, esses sites também são capazes de gerar valores
diferenciados específicos para os atores. Chamamos esses va-
lores de capital social. O capital social é constituído dos valo-
res negociados e embebidos na estrutura dos grupos sociais
(COLEMAN, 1988; PUTNAM, 2000; BOURDIEU, 1983). Refere-se,
assim, grosso modo, aos valores associados ao fazer parte de
redes sociais. Nesse sentido, Coleman (1988) argumenta que
toda a ação social é motivada pelos interesses individuais no
capital social. Ou seja, os atores participam de grupos e redes
porque percebem valores constituídos nessas ações, que são
acessíveis a eles. Fazer parte de uma rede, estar conectado, é
um valor por si, porque, conforme Burt (2001), os recursos que
estão disponíveis a cada ator são dependentes daqueles que
estão disponíveis a seus contatos ou conexões. Logo, quanto
mais contatos, maior a quantidade de recursos a que alguém
potencialmente tem acesso, o que justificaria a valorização das
conexões associativas nos sites de rede social.

O tipo de capital social conferido pelos diferentes sites muda um pouco,


conforme sua especificidade, mas é possível afirmar que todos são procu-
rados pelos benefícios sociais que proporcionam. No caso do Facebook,
existe a possibilidade de resgate e manutenção de relações (passadas e

96 Inteligência e segurança pública


presentes) e acesso a novas (muitas vezes de pessoas que não se conhe-
cem pessoalmente), que, de outra forma, seriam inacessíveis. Além disso,
quanto maior a quantidade de “amigos” ou seguidores, maior o prestígio
e a influência. Inclusive, há o fenômeno de a “influência” ter se tornado,
ela mesma, uma espécie de profissão, na medida em que influenciadores
digitais, ou seja, pessoas com grande número de seguidores, vendem seu
apoio a marcas e causas em troca de patrocínio para suas atividades.

Há aqui dois fenômenos complementares importantes: a adição


constante de novos elos nas redes (a expansão das redes) e a hiperco-
nectividade. Em outras palavras, os mecanismos que levam as pessoas
a ficarem on-line o maior tempo possível e a buscarem marcar sua pre-
sença nas redes, bem como os comportamentos que facilitam o seu
crescimento, como os de postar, curtir, comentar e compartilhar. Esses
comportamentos são conduzidos por botões presentes em todas as
redes sociais, exceto no WhatsApp. Conforme Recuerdo (2014, p. 215):
o botão ‘curtir’ parece ser percebido como uma forma de tomar
parte na conversação sem precisar elaborar uma resposta. To-
ma-se parte, torna-se visível a participação, portanto, com um
investimento mínimo, pois o ator não necessariamente precisa
ler tudo o que foi dito. É uma forma de participar da conversação
sinalizando que a mensagem foi recebida. Além disso, ao ‘curtir’
algum enunciado, os atores passam a ter seu nome vinculado a
ele e tornam público a toda a sua rede social que a mensagem foi
‘curtida’ (essa mensagem aparece como uma notificação para as
conexões de quem ‘curtiu’).

Se curtir é uma forma de marcar presença e de indicar também ao


algoritmo suas preferências, o botão de compartilhar é uma forma de
sancionar e de apoiar determinada ideia por meio da promoção de sua
difusão. No diálogo virtual que se estabelece nas redes, o usuário quer
ter voz ativa, mesmo quando apenas reproduz mensagens elaboradas
por terceiros. Ao compartilhar uma mensagem, ele está dizendo que
aquilo merece ser conhecido por mais pessoas e que ele de alguma
forma subscreve o que foi dito. Ou, pelo contrário, quer assinalar sua
discordância, sua distância com relação ao publicado. De qualquer for-
ma, é uma maneira de participar da conversação.

O caso do WhatsApp, aplicativo de trocas de mensagens mais usado


no mundo, é ligeiramente diferente, visto que revolucionou a telefonia.
Se no início ele era usado apenas como um substituto para as antigas

Temas emergentes das ciências sociais 97


mensagens em SMS – mensagens de texto –, rapidamente se transfor-
mou em uma rede social em sentido análogo às demais. É certo que aqui
há uma conversação muito mais intensa, mas os mecanismos de perten-

Atividade 2 cimento a um grupo, de compartilhamento de mensagens e ideias, de


formação de prestígio e popularidade é muito similar. Ao reencaminhar
As redes sociais revolucionaram
a forma como as pessoas se uma mensagem, o emissor está assumindo a relevância desta para si.
relacionam entre si e com a Também está emprestando uma parte de sua própria autoridade para
arena pública. Transformadas em
ela. Além disso, cada pessoa tem o potencial de se tornar um hub, um
arrobas, espécies de identidades
digitais, as pessoas criam perso- centro de difusão de conteúdos, à medida que os dissemina em sua rede.
nas públicas que muitas vezes
Um dos grandes impactos das redes sociais foi sua aparente ho-
pouco têm a ver com as pessoas
reais que são. Descreva o que rizontalidade. Tudo se passa como se fosse uma espécie de aldeia,
significam as reações esperadas na qual todos têm voz e podem se exprimir de modo equânime, em
pelos usuários, como curtir,
comentar e compartilhar. que a opinião de todos pode ser ouvida e ter o mesmo peso. O tempo
mostrou que isso não passou de fantasia, não apenas pelo surgimento
de influenciadores digitais que passaram a ocupar um lugar de poder,
mostrando que nem todos têm a mesma voz. Ainda, o mais importante
é o chamado algoritmo – mecanismo que define como a rede funciona,
ou seja, sua programação, sob controle da empresa que detém a rede,
5 e que define o que aparece, quando aparece e para quem aparece em
Occupy Wall Street foi um movi- cada post e notícia. Isso passa a ser determinante, afinal, o que é mos-
mento de protesto ocorrido nos trado e visto não é aleatório. É definido de antemão o que terá rele-
Estados Unidos, em 2011. O foco
vância nas redes; e cada vez mais, o que é relevante nas redes torna-se
do movimento era a luta contra a
desigualdade social, a corrupção e relevante fora delas. O que no início foi visto como mero entretenimen-
o poder de influência das grandes to, passou a ser decisivo para vários domínios da vida social.
corporações e dos bancos. Come-
çou em Manhattan, Nova York, Além disso, a proliferação de fake news (notícias falsas) e os extre-
e se espalhou posteriormente, mismos de toda ordem trouxeram uma sombra sobre as redes e sua
ocorrendo versões dele em várias
cidades do mundo. capacidade de contribuir para uma sociedade mais justa e democrática.

Isso não quer dizer que uma parte da promessa trazida pela in-
ternet e mesmo pelas redes sociais tenha desaparecido. Muitos mo-
6 5
vimentos políticos importantes como o Occupy Wall Street e a
Primavera Árabe foi uma série
Primavera Árabe
6
se organizaram pelas redes. Conforme afirma
de protestos e manifestações
públicas ocorridas em 2010. A Castells (2012, p. 19):
maioria dos movimentos lutava como os meios de comunicação de massa são amplamente con-
por democracia e reformas políti-
trolados por governos e empresas de mídia, na sociedade em
cas em países do norte da África e
do Oriente Médio. Atingiu o Egito rede a autonomia de comunicação é basicamente construída nas
e a Tunísia, além de Argélia, Líbia, redes da internet e nas plataformas de comunicação sem fio. As
Síria, Jordânia, Marrocos, Líbano, redes sociais digitais oferecem a possibilidade de deliberar sobre
entre outros. e coordenar as ações de forma amplamente desimpedida.

98 Inteligência e segurança pública


Entretanto, como o próprio autor salienta, para que as ações te-
nham efetividade, é preciso que essas redes migrem para as ruas e
aconteçam no mundo real. As redes sociais ajudam a difundir e criar
uma rede de atores e ativistas, mas as transformações sociais efetivas
só podem ocorrer fora delas. De acordo com Castells (2012, p. 21):
em nossa sociedade, o espaço público dos movimentos sociais
é construído como um espaço híbrido entre as redes sociais da
internet e o espaço urbano ocupado: conectando o ciberespaço
com o espaço urbano numa interação implacável e constituin-
do, tecnológica e culturalmente, comunidades instantâneas de
prática transformadora. A questão fundamental é que esse novo
espaço público, o espaço em rede, situado entre os espaços di-
gital e urbano, é um espaço de comunicação autônoma. A auto-
nomia da comunicação é a essência dos movimentos sociais, ao
permitir que o movimento se forme e ao possibilitar que ele se
relacione com a sociedade em geral, para além do controle dos
detentores do poder sobre o poder da comunicação.

Conforme o autor, portanto, não é mais possível pensar os movi-


mentos sociais fora da questão de sua comunicação, que passou a se
configurar com base nas redes sociais.

Pensar as redes sociais se tornou um grande desafio para as ciên-


cias sociais, uma vez que introduziram muitos elementos novos para a
questão tanto da sociabilidade quanto para a arena política. Novas for-
mas de vida estão sendo inventadas, assim como diferentes modos de
fazer política. Ao mesmo tempo em que mudam as pessoas e o merca-
do, não podemos deixar de notar que elas são controladas por mega-
corporações internacionais que têm o poder crescente de determinar
como nosso futuro será configurado.

5.3 As questões identitárias


Vídeo As chamadas questões identitárias dizem respeito
Glossário
a pressões e disputas que atingem grupos minoritá-
rios, como mulheres, negros, LGBTQ+ etc. Trata-se LGBTQ+ (Lésbicas, gays,
bissexuais, transexuais, queers
dos grupos que detêm menor poder, recursos e e mais) é uma sigla que tem
prestígio que outros, mesmo se demograficamente procurado abarcar toda a diversi-
majoritários, como é o caso das mulheres, que re- dade sexual humana. Diferentes
formas de identificar o grupo
presentam a maior parte da população mundial ou são usadas. Ainda é comum ser
o dos negros e das pessoas pardas, que são metade encontrada apenas como LGBT.
da população brasileira.

Temas emergentes das ciências sociais 99


De onde vem a ideia de identidade? O que é uma identidade? Ser
mulher é uma identidade? Ser negro? Ser homossexual? E ser pobre?
Pertencer a uma classe social também é uma questão identitária?
Biografia O sociólogo polonês Zygmunt Bauman empreendeu uma análise da
condição contemporânea denominada por ele de modernidade líquida.
A ideia das certezas que se liquefazem e dão ao nosso mundo uma
Forumlitfest/Wikimedia Commons

fluidez inédita em que nada mais tem solidez, pois os modelos, os pa-
radigmas perderam suas formas, em meio a ilusões de que haveria um
ponto imutável aonde chegar ou um caminho certo por onde seguir
(BAUMAN, 2001).

Até o século XIX, a história de cada indivíduo deixava pouca mar-

Zygmunt Bauman (1925-2017), gem para a invenção pessoal. As regras e posições sociais, a família e a
sociólogo e filósofo polonês, foi classe social eram elementos delineadores bastante precisos dos cami-
responsável pelo termo moderni- nhos de cada um. Até casamentos eram arranjados e diziam respeito a
dade líquida como uma das
formas de explicar as relações conveniências sociais e alianças políticas ou econômicas.
humanas atuais. Apontou em
Mesmo na primeira metade do século XX, ainda havia uma conside-
sua obra como características da
sociedade contemporânea o in- rável solidez nas instituições e nas possibilidades para cada indivíduo.
dividualismo e o caráter efêmero No fordismo, os empregos eram estáveis, sendo muitas vezes para
nas relações interpessoais.
toda a vida produtiva, e os casamentos possuíam igual estabilidade.

Diferentemente do que se pode afirmar dos tempos atuais, as


trajetórias profissionais são instáveis e a vida amorosa e familiar das
pessoas, muitas vezes, imprevisíveis. Segundo Szwako (2006, p. 54), na
Vídeo
modernidade líquida,
No vídeo Zygmunt
Bauman – sobre os laços os atores sociais, individualmente situados, além de experimen-
humanos, redes sociais, tarem uma nova temporalidade, uma concepção de tempo e de
liberdade e segurança você
assistirá a um depoi-
futuro que os impede de um delineamento minimamente inteligí-
mento do importante vel de ‘projetos de vida’, são responsabilizados politicamente por
sociólogo. Ele faz uma suas escolhas ou trajetórias e, portanto, por suas consequências.
análise filosófica do
que significam as redes Daí a importância adquirida pela questão da identidade. Dada a flui-
sociais do ponto de vista
dos laços humanos, bem dez e a multiplicidade de redes que se fazem e desfazem e nas quais
como sobre a liberdade e estamos imersos, como nos identificar? Somos nossa profissão, nosso
segurança.
emprego, nossa orientação sexual ou nossas escolhas políticas? Nos
Disponível em: http://youtu.be/
LcHTeDNIarU. Acesso em: 6 jul. identificamos por meio de nossa inserção no Estado-nação? Somos
2020. brasileiros ou estrangeiros? Somos cidadãos ou apátridas? A identida-
de pode ser pensada por meio da unidade ou da diferença?

Para Bauman, nós que vivemos a modernidade líquida estamos


sendo interpelados a todo tempo por demandas contraditórias, quais

100 Inteligência e segurança pública


sejam, a necessidade de fazermos parte de um todo e, ao mesmo
tempo, a de nos diferenciar dos demais, ou seja, a necessidade de
afirmarmos nossas características individuais. Por exemplo, se pen-
sarmos no caso de um homem negro e homossexual, a qual grupo ele
vai se vincular? No caso, ele faz parte de duas minorias. A dos negros
e a dos homossexuais. No entanto, também é parte de uma maioria, a
7
dos homens . O dilema é apontado por Bauman (2005, p. 48): “como 7
alcançar a unidade na (apesar da?) diferença e como preservar a dife- Maioria e minoria, nesse contexto,
rença na (apesar da?) unidade”. Isso significa que, na modernidade lí- refere-se ao campo político.
Minoria é um grupo cujos direitos
quida, os apelos são múltiplos e muitas vezes contraditórios. Inclusive não são iguais aos da chamada
porque a identidade (um princípio de unidade) se faz por meio da afir- maioria e estão aquém dos desta.
mação da diferença. Szwako (2006) aponta ainda uma convergência
entre Bauman e Joan Scott na questão das reivindicações identitárias.
Segundo Szwako (2006, p. 57):
aqui, a ideia de mistura entre a natureza das distintas deman-
das político-identitárias torna densa a compreensão daquilo que
Scott denominou de ‘o enigma da igualdade’. A compreensão da
tensão entre as múltiplas identidades, para ambos, aponta ne-
cessariamente para a profunda ambivalência que ocupa o cerne
das estratégias de reconhecimento: na medida mesma em que
demandam reconhecimento identitário, ou seja, igualdade legal
e legítima, tais estratégias reproduzem diferença. ‘Os termos do
protesto contra a discriminação tanto recusam quanto aceitam
as identidades de grupo sobre as quais a discriminação está ba-
seada’ (SCOTT, 2005, p. 20). Bauman, por sua vez, é mais asserti-
vo: ‘As batalhas de identidade não podem realizar sua tarefa de
identificação sem dividir tanto quanto, ou mais do que, unir. Suas
intenções includentes se misturam com (ou melhor, são comple-
mentadas por) suas intenções de segregar’ (BAUMAN, 2005a,
p. 85). O cenário delineado pelo sociólogo polonês é liquidante.

As identidades mais reivindicadas atualmente são a de gênero e a


orientação sexual. Sobre isso, podemos, por exemplo, nos perguntar
por que a dominação masculina sobre as mulheres é tão presente na
cultura? Outro exemplo é da heterossexualidade como norma social
impositiva mesmo diante do fato de que a homossexualidade sempre
existiu entre os seres humanos e mesmo em várias espécies animais, o
que a torna tão natural quanto a heterossexualidade.

Um dos autores que tematizaram a questão das identidades e da


sexualidade foi Foucault. Para isso, ele estudou como instituições so-
ciais de controle – polícia, justiça e sistema prisional, por exemplo – uti-

Temas emergentes das ciências sociais 101


lizaram a sexualidade, ou a identidade sexual, para definir o normal e o
anormal. Estudando casos judiciais nos séculos XIX, o autor descobriu
um “dispositivo” construído para fabricar uma correspondência entre
os corpos e as identidades socialmente aceitáveis. Segundo ele, não se
deve conceber a identidade social como uma espécie de dado da natu-
reza que o poder tenta pôr em xeque, ou como um domínio obscuro
que o saber tentaria, pouco a pouco, desvelar. A sexualidade é o nome
que se pode dar a um dispositivo histórico (FOUCAULT, 2008).

De acordo com Foucault, esse dispositivo procura estabelecer


a “verdade” da identidade com relação ao corpo. Para desvendar
esse dispositivo, Foucault escreveu três tomos de uma História da
Sexualidade (1976). Para ele, essa é, antes de tudo, a história dos dis-
cursos sobre a sexualidade, ou seja, a forma como conhecemos o cor-
po e pensamos considerando-o. Também, diz respeito às formas de
domesticá-lo e torná-lo útil para o mundo do trabalho.

Outra questão identitária importante é a do gênero, que não se con-


funde com o sexo biológico, o feminino e o masculino. Ele trata da iden-
tidade do sujeito e da relação de poder que está implícita aí. Trata-se de
uma construção social, uma vez que os papéis de homens e mulheres
são construídos. Por exemplo, as mulheres não são apenas indivíduos
do sexo feminino, mas são, também, pessoas das quais se espera de-
terminados comportamentos, como a aptidão para cuidar dos filhos e
do marido, certos talentos como os domésticos etc. Esses comporta-
mentos são moldados desde a tenra idade quando a elas são dadas
bonecas para brincar, por exemplo.

Teóricas feministas desenvolveram uma longa e rica discussão so-


bre as categorias de gênero e sexualidade. Scott foi uma das primeiras
a questionar as hierarquias naturalizadas de poder entre os gêneros.
Para ela, “o gênero é um campo primário no interior do qual, ou por
meio do qual, o poder é articulado. O gênero não é o único campo, mas
ele parece ter sido uma forma persistente e recorrente de possibilitar
a significação do poder no ocidente, nas tradições judaico-cristãs e islâ-
micas” (SCOTT, 1995, p. 74).

Ao trazer o gênero para o campo político, Scott reclama a desna-


turalização das diferenças entre homens e mulheres, o que permite
questionar as relações de poder aí embutidas. Interessante notar como
o corpo feminino, capaz da reprodução biológica, é impregnado das

102 Inteligência e segurança pública


consequências sociais que disso decorre (transmissão do patrimônio
familiar, manutenção da vida doméstica e da reprodução da cultura).
Decorrentes são, também, o trabalho social de controle do corpo da
mulher, como a penalização do adultério, presente há poucas décadas
no Código Civil e do aborto, ainda em vigor, no caso brasileiro.

A questão das identidades é um importante campo de disputas


sociais e políticas. Muitos movimentos sociais são construídos sobre
a reivindicação de determinada identidade. O movimento negro, por
exemplo, reivindica sua ancestralidade africana, sua história de opres-
são e seus traços étnicos. Suas lutas mais atuais como black is beautiful
(preto é lindo) ou black lives matters (vidas pretas importam) fazem uso
do princípio de identidade. Da mesma forma, o movimento feminista
reivindica a identidade de mulher como aquela que luta por equidade
entre homens e mulheres.

5.4 O meio ambiente e a questão


da sustentabilidade
Vídeo Os movimentos ambientalistas surgiram na década de 1960 e desde
então a questão ambiental entrou na pauta política e social. Também, a
ciência se debruça cada vez mais tanto sobre como conciliar o desenvol-
vimento econômico e a proteção dos recursos naturais quanto sobre a
chamada crise climática, que se tornou nos últimos anos a emergência
climática. A questão ambiental, como matéria eminentemente multidis-
ciplinar que abarca as ciências naturais e as sociais, passou a ser incon-
tornável em qualquer discussão sobre o futuro da humanidade.

Durante as décadas seguintes, viu-se certa disputa entre os ambien-


talistas, que defendem o primado da necessidade de proteção à na-
tureza de um lado e, de outro, os desenvolvimentistas, defensores da
necessidade de desenvolvimento econômico, inclusive como recurso
de combate à desigualdade entre diferentes estratos sociais e entre os
países desenvolvidos e em desenvolvimento.

Um dos resultados dessa disputa foi o surgimento do conceito de desen-


volvimento sustentável. Este passou a circular internacionalmente a partir de
1980, com a ideia de que o desenvolvimento deveria contemplar a defesa
dos seres vivos e dos recursos naturais. Segundo Kanashiro (2010, p. 21),

Temas emergentes das ciências sociais 103


foi somente a partir do Relatório Brundtland [...] publicado com o
sugestivo título Our Common Future em 1987 – que o desenvolvi-
mento sustentável passou a se consolidar como uma ideia-força,
gerando certo consenso em torno da questão e ganhando ade-
são política também de países em desenvolvimento – fato decisi-
vo para o encaminhamento da Rio-92 e os debates ali travados.

Contudo, o que é exatamente desenvolvimento sustentável? O termo


é controverso e a própria definição é objeto de disputas políticas im-
portantes, uma vez que envolve diferentes níveis de problemas.

Por exemplo, podemos nos perguntar como a humanidade pôde


ter vivido por milhares de anos em relativa harmonia com o mundo
natural e em apenas pouco mais de 200 anos de capitalismo a extin-
ção em massa de várias espécies de animais e plantas ter se tornado
7 uma realidade cotidiana. No registro da emergência climática , a
7

Conforme a reportagem hipótese de extinção da própria humanidade por falta de condições


publicada no jornal El País, “O ano
de 2019 põe fim a uma década de sua sobrevivência deixou de ser uma distopia de filme de ficção
sombria na crise climática que científica e passou a ser uma ameaça real.
atinge todo o planeta, devido ao
acúmulo de gases do efeito estufa Se há evidências de que a atividade humana na Terra alavancou a
na atmosfera, segundo a maioria emissão de poluentes, a eliminação de florestas, a exaustão de solos,
dos cientistas. Assim alerta a
entre outras consequências, é preciso perguntar de que modo o desen-
Organização Meteorológica
Mundial (OMM), […] ´2019 volvimento pode se coadunar com a ideia de sustentabilidade. O Rela-
encerra uma década de calor tório Brundtland afirma que “desenvolvimento [sustentável é aquele]
global excepcional, perda de gelo
e recorde no aumento do nível do
que atende às necessidades do presente sem comprometer a capa-
mar, impulsionados pelos gases cidade de as gerações futuras atenderem também as suas” (CMMD,
do efeito estufa expelidos por 1991, p. 9 apud KANASHIRO, 2010, p. 23).
atividades humanas´. Dois dados
específicos dão uma ideia da Como podemos definir as “necessidades do presente”? O nível de
magnitude do problema: as tem-
consumo atual, por exemplo, seria um bom parâmetro para definirmos
peraturas médias para os atuais
períodos de cinco anos (2015- essas necessidades? Sabemos, por outro lado, que os países detêm di-
2019) e dez anos (2010-2019) ferentes níveis de riqueza e, portanto, diferentes níveis de consumo.
quase certamente serão ”as mais
Vê-se que a questão não é simples. Segundo Kanashiro (2010, p. 27), os
altas já registradas”. E, faltando
quase um mês para seu final, este autores do relatório admitem que esse processo tenha limitações; en-
2019 já é apontado pela OMM tretanto, argumentam que elas não são absolutas, mas impostas pelo
como o segundo ou terceiro ano
mais quente desde que existem estágio do desenvolvimento tecnológico e da organização social para
registros confiáveis, a partir de gerir os recursos naturais e não extrapolar a capacidade da biosfera
1850” (PLANELLES, 2019). de absorver os efeitos da atividade humana. Para eles, uma vez que a
pobreza é vista como um mal em si mesma e um dos fatores da degra-
dação ambiental, o crescimento econômico é fundamental tanto para

104 Inteligência e segurança pública


satisfazer às necessidades básicas do presente quanto para promover
a preservação do meio ambiente.

Outra questão igualmente importante é a da própria sustentabi-


lidade. Kanashiro também discute a necessidade de se diferenciar Vídeo
os conceitos de sustentabilidade social e econômica. A primeira diz Por falar em sustenta-
bilidade, é importante
respeito à promoção de equidade na distribuição de renda; já a se- sabermos sua relação
gunda, refere-se não apenas ao uso racional e eficiente de recursos, com o ciclo de produção
de todas as mercadorias
mas também considera fluxos de investimentos públicos e privados, que consumimos. O
além de atender ao pressuposto da busca de maior equilíbrio nas vídeo A história das coisas,
publicado no canal Eder
relações entre países do Sul Global e os desenvolvidos (KANASHIRO, Ramos Amorim, mostra
2010, p. 48). Ou seja, sem a consideração de como erradicar a po- uma visão bastante crítica
do modo como o consu-
breza, não é possível falar em sustentabilidade ou desenvolvimento mo destrói os recursos
sustentável. naturais e cria uma lógica
de descarte que impacta
Diferentes abordagens tentam dar conta desses impasses, uma vez tanto o planeta quanto
o modelo de produção e
que envolvem tanto a forma de funcionamento do sistema econômico das relações de trabalho.
quanto das relações econômicas, políticas e geopolíticas dos diferentes Disponível em: https://
países em um mundo cada vez mais globalizado. Diferentes vertentes www.youtube.com/
watch?v=Q3YqeDSfdfk. Acesso em:
teóricas e grupos políticos, como o ecodesenvolvimento, o ecossocialis- 6 jul. 2020.
mo, a ideia de sociedade em risco etc., são exemplos das diversificadas
tentativas de respostas ao problema.

Em outra frente, nos últimos anos, foram realizadas diversas confe- 8


8
rências internacionais envolvendo quase todos os países do mundo Entre as principais, tivemos
em busca de protocolos para lidar com os pontos mais problemáticos na Suécia a Conferência
da emergência climática que é o aquecimento global. de Estocolmo (1972). Em 1995,
ocorreu a Conferência das Partes
Um dos desafios desse tipo de enfrentamento é que, apesar de I (COP-1), em Berlim. Em 1997,
em Kyoto, a COP-3, que resultou
o aquecimento global e suas consequências já serem sentidas, a ca-
no Protocolo de Kyoto. Em
tástrofe anunciada é um problema do futuro, o que pressupõe a 2002, a Cúpula de Joanesburgo
necessidade de uma solidariedade transgeracional. Ou seja, precisa- ou Conferência Mundial sobre
Desenvolvimento Sustentável.
mos tomar medidas agora para que haja um futuro, mesmo conside-
Em 2012 a Rio +20. Em 2015, foi
rando-se que todos nós já estaremos mortos. Isso é particularmente assinado o chamado Acordo de
difícil, pois essas medidas têm custos que precisam ser pagos pela Paris, que foi um compromisso
global, envolvendo 195 países,
geração atual. Além disso, muitos governos não firmam compromis- para redução da emissão de gases
sos de longo prazo. do efeito estufa. Todas essas con-
ferências e esses compromissos
A sustentabilidade deixou de ser um problema de modelo de de- internacionais tiveram como fim a
senvolvimento econômico para ser de como podemos gerir o pre- diminuição dos efeitos deletérios
da atividade humana no planeta.
sente para que um futuro não sombrio seja possível. As ideias de
que os recursos naturais são finitos e que as pegadas humanas na

Temas emergentes das ciências sociais 105


Atividade 3 Terra deixam marcas profundas passaram a frequentar nosso ima-
Considerando a discussão sobre ginário e nosso cotidiano. A experiência da pandemia de Covid-19,
meio ambiente e sustentabili- por exemplo, na medida em que foi causada provavelmente pelo
dade, aponte qual o conceito de
desenvolvimento sustentável contato humano com um animal silvestre, é um lembrete eloquente
mais conhecido e usado de que o equilíbrio ecológico não é apenas uma expressão bonita, é
atualmente.
antes um fim a ser buscado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste capítulo, fizemos um passeio panorâmico por algumas das ques-
tões mais atuais do debate público no país e no mundo, que se tornam,
por isso mesmo, importantes temas de estudo para as ciências sociais.
Obviamente, há outros temas importantes, mas nos limites de uma intro-
dução, é preciso fazer algumas escolhas.
A desigualdade social é considerada por muitos o maior problema
brasileiro e fonte de uma infinidade de outros que condenam o país ao
subdesenvolvimento crônico e à injustiça social. Milhões de brasileiros
vivem na miséria e outros tantos a tangenciam em muitos momentos de
suas vidas.
O advento da internet e das redes sociais, por sua vez, revolucionou as
formas de comunicação e de sociabilidade modernas. O celular deixou de
ser um mero equipamento para significar quase uma extensão de nosso
corpo. As redes sociais nos colocam, ou nos dão a ilusão de nos colocar,
em permanente esfera pública.
A questão das identidades é de suma importância para o debate social
e político, uma vez que organiza o modo como os diferentes sujeitos se
tornam atores políticos, além de ser tornarem, elas mesmas, bandeiras
de lutas.
Finalmente, as questões relativas ao meio ambiente talvez sejam as
mais decisivas atualmente, tendo em vista que a própria sobrevivência da
espécie humana está em risco. Pensar a respeito da emergência climática
e sobre como responder a ela é nosso maior desafio.

REFERÊNCIAS
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BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005.
CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança. Movimentos sociais na era da internet. São
Paulo: Zahar Editora, 2012.
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106 Inteligência e segurança pública


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PLANELLES, M. 2019 encerra a pior década da crise climática. El País, Madri, 3 dez. 2019.
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Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rsocp/n27/17.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020

GABARITO
1. Para Souza (2003), o habitus precário significa um certo tipo de socialização que pre-
dispõe os indivíduos de determinadas classes ou estratos sociais às beiradas do siste-
ma, como inadaptados ao mundo capitalista. Ele cria indivíduos sem as características
que permitem a certas pessoas poder competir no mercado de trabalho com maiores
chances de sucesso, por exemplo, sem capacidade de concentração, pensamento abs-
trato, cultura geral etc.

2. Curtir é uma forma de marcar presença e de indicar ao algoritmo as preferências do


usuário; o botão compartilhar é uma forma de sancionar e de apoiar determinada
ideia por meio da promoção de sua difusão; e comentar é um modo de participação
ativa no diálogo virtual que se estabelece nas redes.

3. De acordo com o Relatório Brundtland, “desenvolvimento [sustentável é aquele] que


atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as gerações
futuras atenderem também as suas” (CMMD, 1991, p. 9 apud KANASHIRO, 2010, p.
23).44444444

Temas emergentes das ciências sociais 107


Introdução Às Ciências Sociais
Vivemos em um mundo cada vez mais complexo, com
atores, demandas e desafios novos. Um mundo onde as

Introdução
mudanças ocorrem em velocidade acelerada. Temas como
crise, desenvolvimento econômico, tecnologia, problemas
ambientais e climáticos, desigualdade, novas identidades,
entre outros, pautam não só as discussões acadêmicas, mas
também a vida cotidiana de cada um de nós.
Para se orientar nesse emaranhado, algumas ferramentas
adicionais são importantes. Por isso, uma introdução a alguns

às Ciências
dos conceitos e ideias fundamentais das ciências sociais tem
sobretudo a função de fornecer aos estudantes instrumentos
que lhes permitam compreender melhor nossa realidade.
É com esse propósito que este livro foi concebido.
Hoje, com a internet, um mundo de conhecimento qualificado

Sociais
pode ser facilmente acessado. Desse modo, esta obra tem o
intuito de indicar os primeiros passos de um caminho que o
próprio estudante pode trilhar ao longo de sua vida. Trata-se,
portanto, antes de tudo, de um convite à reflexão. Pensar
que as coisas são sempre mais complexas do que parecem à
primeira vista e duvidar de nossas certezas são pré-requisitos
imprescindíveis ao pensamento crítico.

VILMA AGUIAR

Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-6641-4
VILMA AGUIAR
59416 9 788538 766414

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