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35ª Reunião Anual da Anpocs


MR-17 – Vinte anos sem Henri Lefebvre

A dialética do método regressivo-progressivo


em dois temas brasileiros: cidade e campo

José de Souza Martins

O fundamental no retorno à dialética na obra de Henri Lefebvre é o reencontro da


sociologia marxiana em oposição crítica à chamada sociologia marxista e estruturalista.
Ou seja, a retomada da dimensão triádica desse método sociológico, em oposição ao
mecanicismo das concepções binárias que reduzem a análise sociológica à
temporalidade de um movimento pendular em que o tempo histórico perde a
historicidade no confinamento cronológico entre passado e presente. E se perde na
edificação puramente conceitual dos arranjos formais e classificatórios por meio dos
quais o pesquisador dá nome ao que nome não tem e presume, assim, que ao conceituar
interpreta e ao conceituar explica sociologicamente. O retorno metodológico de
Lefebvre está na retomada da centralidade do tempo histórico na sociologia, da
sociologia como ciência dos processos sociais e, portanto, também, da dimensão
transdutiva do processo histórico, a do possível.
Diferente de outras sociologias ditas marxistas, na dialética marxiana e na
sociologia que propõe, o possível não é o teoricamente imaginado, e imaginado
politicamente, mas a superação construída na práxis, anunciada na própria realidade
cotidiana, visível também para o homem comum, conhecida nas antinomias de sua
alienação. Não há alienação absoluta, como não há desalienação absoluta, na
consciência social mutilada e insuficiente que é não só mediação do viver, mas condição
do indagar e do conhecer. A diferença está também no empírico do possível e da
sociedade nova que se anuncia nas contradições que se são estruturais, são ainda do
próprio vivido.
O retorno está em reconstituir o método que sustenta o conjunto da obra de Marx.
Foram poucos os textos em que ele fez elaborações explicativas do método que está na
base de seus estudos. Ele não escreveu textos de metodologia, embora com frequência
autores se refiram a aspectos de seu trabalho que podem ser definidos como de sua
teoria do método. Há passagens de sua obra mais explicitamente metodológicas que,
porém, demandam explanações, como se vê em Terrell Carver (Karl Marx: Texts on
Method, Basil Blackwell, Oxford, 1975). Carver expõe e analisa dois textos de Marx
em que a questão do método é tratada: A Introdução aos Grundrisse e as Notas sobre
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Adolph Wagner. Embora fique nos aspectos mais criativos do método de Marx, como a
distinção entre “método de investigação” e “método de exposição” ou a efetiva
concepção dialética de determinação, o estudo de Carver ainda se move no terreno
limitado da dialética como movimento interpretativo que vai do abstrato ao concreto na
síntese de muitas determinações, mas abstratamente.
Trabalhando desde o final dos anos 1930 com o conjunto da obra de Marx, e
certamente um dos primeiros e poucos a lê-la integralmente, Lefebvre construiu
interpretação diversa e menos formal da questão do método do autor alemão. Sobretudo,
no retorno a Marx, a questão do movimento teórico entre abstrato e concreto, no meu
modo de ver e em perspectiva lefebvriana, pede particular atenção à complexidade
teórica do “método de investigação” como momento lógico e integrante do “método de
exposição”. E não como momento estritamente cronológico dos procedimentos da
sociologia marxiana. O método de investigação não só como momento do abstrato, mas
também como momento do empírico e condição de reconstituição sociológica do
socialmente concreto, isto é, histórico. Não só o peso das gerações mortas e o fardo do
presente alienado, mas também a carga de superação e destino.
Lefebvre entendeu que a obra de Marx é um todo, ainda que um todo inacabado, e
é um processo intelectual, um movimento sem rupturas nem renúncias, mas momentos
de uma análise da sociedade contemporânea e do capitalismo. Enquanto alguns vêm
uma descontinuidade entre livros de Marx, Lefebvre tenta desvendar o entendimento
sociológico subjacente à sua diversidade. Um dos pontos metodologicamente decisivos
dessa compreensão da obra de Marx é o relativo à verdadeira relação teórica entre os
Grundrisse e O Capital. Em sua interpretação os Grundrisse tratam do desenvolvimento
desigual do capital enquanto O Capital trata de seu desenvolvimento igual. Ênfases
metodologicamente diversas que vão muito além do meramente preparatório em
contraposição ao meramente definitivo. Trata-se de perspectivas teoricamente
complementares entre si. Assim é possível compreender o caráter metodologicamente
triádico da obra, que aparece no terceiro e inacabado tomo de O Capital, quando Marx
reintroduz na interpretação da distribuição da mais-valia a renda da terra personificada
por uma classe social fundamental da sociedade capitalista. O proprietário rentista se
tornaria uma figura perturbadora na compreensão do capitalismo se nos limitássemos à
simplificação binária de compreendê-la como sociedade estruturalmente polarizada
entre burguesia e proletariado, capital e trabalho, o que ela efetivamente não é.
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O confronto das duas obras, nessa perspectiva, é da maior importância no estudo


sociológico de sociedades em que o capital se polariza entre extremos que parecem
antagônicos, tal a diferença histórica que os separa. Em sociedades como a nossa, de
ritmos lentos de desenvolvimento e demoras sociais e culturais, de acentuados
desencontros entre o desenvolvimento social e o desenvolvimento econômico, essas
polarizações parecem sugerir etapas históricas do tipo de pré-capitalismo a capitalismo.
No entanto, as formas extremadas igualmente se determinam pelo processo de
reprodução ampliada do capital, dele retirando sua dinâmica e seu sentido. A pesquisa
empírica, corretamente feita, é fundamental para que o pesquisador não sucumba às
armadilhas do conceitualismo e do formalismo que rotulam, mas não explicam
sociologicamente. Em meu estudo sobre a expansão do capital na fronteira, de
orientação lefebvriana, a pesquisa empírica revelou que um grande número de empresas
modernas do Sudeste estavam implantando empresas agropecuárias na Amazônia, a
partir dos anos 1970, utilizando trabalho escravo na fase de derrubada da mata e
formação das pastagens. Uma delas, uma grande multinacional alemã da indústria
automobilística, cuja fazenda no Pará empregava técnicas e tecnologias da maior
sofisticação na produção, refrigeração e transporte de carne diretamente para a
Alemanha. No entanto, empregava 500 trabalhadores sob regime de escravidão por
dívida, a chamada peonagem.
Um movimento teoricamente semelhante pode ser observado entre o ensaio sobre
a alienação, nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, e a análise da reificação das
relações sociais, em O Capital, aquele um texto mais filosófico e este um texto mais
sociológico, separados por algumas décadas. Um pensamento que se enriquece na
pesquisa empírica e que retorna ao objeto com mais densidade e mais conteúdo. É no
movimento investigativo e interpretativo que está o método e não nos supostos
conceitos. Conceitos aliás frágeis, como mostrou o venezuelano Ludovico Silva no seu
esclarecedor livro sobre O Estilo Literário de Marx. Supostos conceitos, como o de
modo de produção é em Marx recurso estilístico para explicar os momentos do processo
social e histórico que está descrevendo. As variantes de modo de produção capitalista
em diferentes momentos da análise que do capital faz Marx já sugerem a nominação
como recurso metodológico de inteligibilidade do que não é fixo e, portanto, nem é
conceitual.
Foi Sartre quem chamou a atenção para um pequeno artigo, publicado em 1953
nos Cahiers Internationaux de Sociologie, em que Lefebvre integra a sociologia e a
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história num método dialético simples e irreprochável (Jean-Paul Sartre, Questão de


Método, trad. Bento Prado Júnior, Difusão Europeia do Livro, 1966). O texto de
Lefebvre constitui um marco desse retorno à dialética e de sua interpretação do método
sociológico de Marx. Centrado nos procedimentos investigativos e lógicos, a essencial
referência do empírico e descritivo fica indissociável da busca e localização das
temporalidades do que é propriamente histórico. As contradições sociais como
contradições de relações sociais datadas, gêneses desencontradas, tensões de tempos
sociais do desenvolvimento desigual dos momentos do processo histórico e da estrutura
social. O que deixa claro que o método de exposição teoricamente explicativa dos
resultados da pesquisa se propõe, também e simultaneamente, já na aplicação do método
de investigação.
Também nos Cahiers, em 1955, Lefebvre publicou outro artigo referencial sobre a
questão do método, “La notion de totalité dans les sciences sociales”. Nele, um aspecto
essencial do método opõe o autor às concepções abstratas e formais da dialética: a
distinção entre totalidade aberta e a de totalidade fechada. O método regressivo-
progressivo está referido à premissa da totalidade aberta, inconclusa, em que as
superações propõem novas contradições e novas tensões, a sociedade movendo-se e
transformando-se todo o tempo. É nessa perspectiva que Lefebvre distingue, também,
noção de conceito. Os conceitos são formais, fechados, negadores da dinâmica social
que pretendem definir e descrever, antidialéticos e anti-históricos. As designações
sociológicas das expressões desse movimento são noções. Modo de produção capitalista
é noção que nela se expressa a dinâmica da sociedade capitalista no desencontro e nas
contradições entre o desenvolvimento da economia propriamente capitalista e a
consciência social alienada por meio da qual ela se viabiliza socialmente e se nega, se
mostra e se esconde. É na recíproca necessidade desses contrários que o todo se propõe
em processo. Não há em Marx um conceito de modo de produção e muito menos
confunde Marx o modo de produção com a sociedade que por meio dele se determina.
Para falar da mesma coisa, Marx usa diferentes nomes.
A pesquisa não se separa da teoria, como etapa destacada do processo de
produção do conhecimento científico. Do mesmo modo, a sociologia não se isola das
ciências que lhe são auxiliares. Daí que, em Marx, não exista propriamente uma
sociologia, no sentido crescentemente redutivo que caracteriza o campo dessa ciência,
mas uma ciência social que é, ao mesmo tempo, sociologia, antropologia, história e
geografia. Apenas nesse marco é possível seguir o roteiro dos momentos do método: o
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descritivo, da descrição teoricamente informada pela diversidade das disciplinas


especiais e pela observação participante no trabalho de campo, o mapeamento do
presente aparentemente atemporal; o analítico-regressivo, o da análise e datação
histórica da realidade descrita; o histórico-genético, o da análise das modificações das
estruturas datadas e da sua subordinação ao todo, classificação genética das formações e
estruturas, definição de seu tempo social e histórico, e retorno ao atual, compreendido e
explicado. Isto é, como totalidade concreta, suas contradições identificadas em sua
pluralidade social, histórica, cultural. O método regressivo-progressivo abomina o
economicismo, o determinismo e o reducionismo, em particular ao econômico e o das
instâncias e sobredeterminações, o conceitualismo classificatório e abstrato. Ao
contrário, busca a diversidade histórica e antropológica do real, de preferência na sua
maior amplitude.
Não é, portanto, estranho que Henri Lefebvre, filósofo, autor já consagrado,
depois de ter sido o excelente pesquisador de campo de seus estudos sobre o espaço e o
urbano, tenha feito um doutorado em sociologia rural. Se há que fazer os chamados
“recortes” do real para realizar a pesquisa sociológica, a dinâmica e os atributos
dialéticos do real pedem que o recorte seja pelo âmbito maior e não pelo âmbito menor,
justamente para que toda a complexidade histórica e toda a carga de destino da realidade
não escape da pesquisa nem se oculte à observação sociológica. Sem que se constituam
em “mundos” com legalidade própria, rural e urbano são em si mesmos realidades
historicamente diferenciais que não se estranham, momentos que são do processo
histórico de constituição da humanidade do homem. Por sua vez, cada qual contém
outras tantas diferenciações, não raro imbricando-se: o urbano em sociedades lentas,
como a nossa, ainda impregnado de modos de ser, de pensar e de relacionar-se que uma
análise típico-ideal confinaria no rural; o rural, impregnado de antecipações do que é
propriamente urbano. O rural e a ruralidade como antecipações críticas do
mutiladamente urbano que nele apontam o possível e a terceira dimensão do tempo
histórico.
Sociedades como a brasileira propõem-se à análise sociológica quase como campo
ideal de aplicação dessa perspectiva metodológica, em seus processos sociais e políticos
inconclusos, sua historicidade vacilante, seu hibridismo social, seu ritmo lento e
relutante de desenvolvimento social e histórico, no conservadorismo disfarçado de sua
consciência social e política.
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Tanto em meus estudos sobre as tensões sociais no campo, e os entraves às


reformas sociais, quanto em meus estudos sobre o subúrbio tenho adotado o método
lefebvriano, o que me permite ver o Brasil numa perspectiva diversa da perspectiva
corrente. Creio que, nessa orientação, a sociologia crítica assume uma função
desconstrutiva enquanto sociologia do conhecimento, superando estereótipos sobre
classes sociais, consciência de classe, luta de classes, revolução, movimentos sociais,
rural, urbano, capitalismo e desenvolvimento capitalista, imaginário, mentalidades, vida
cotidiana, dentre outros temas de forte presença na sociologia brasileira atual. Na
temática rural, faço-o particularmente nos livros O Cativeiro da Terra (9ª edição,
Contexto, 2010), Fronteira (2ª edição, Contexto, 2009), Os Camponeses e a Política no
Brasil (5ª edição, Vozes, 1995), O Sujeito Oculto (Editora da UFRGS, 2003) e A
Política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto, 2011). Na temática urbana, na trilogia
sobre o subúrbio: Subúrbio 2ª edição, Hucitec/Ed. Unesp, 2002), A Sociabilidade do
Homem Simples (Contexto, 2010), e A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34,
2008). A que agrego meu livro de memórias, agora publicado: Uma Arqueologia da
Memória Social (Autobiografia de um moleque de fábrica), Ateliê Editorial, 2011, um
texto de observação participante retrospectiva, de orientação lefebvriana.
Nessa perspectiva posso compreender as relações sociais do “mundo” rural na
negação e não na afirmação de um desenvolvimento linear em que o próprio
desenvolvimento capitalista engendra formas sociais não-capitalistas de produção por
meio das quais viabiliza a reprodução ampliada do capital e sua acumulação. As
relações “atrasadas” se determinam pela mediação das relações mais “avançadas”, isto
é, têm sentido nesse movimento. Assim também modos de ser e de pensar, relações,
cultura, ritos, compreensões arcaicos se regeneram na mediação do moderno, como
formas e significações sociais determinadas ocultamente pela dinâmica do possível que
viabilizam e que as nega.
Não é diferente o que ocorre no “mundo” urbano. A diferenciação espacial centro-
periferia-subúrbio como categorias de apoio metodológico para compreensão dialética
da espacialização dos engendramentos sociais do capital nos mostra a distância social e
cultural entre o lugar de produção da riqueza e o lugar de sua realização. A distinção
lefebvriana de espaço concebido, espaço percebido e espaço vivido constitui um dos
aspectos sociologicamente fundamentais da questão espacial exposta pela aplicação do
método regressivo-progressivo à pesquisa e estudo do chamado “mundo” urbano. No
que, aliás, foi decisiva a observação participante de Lefebvre como motorista de táxi em
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Paris durante a pesquisa. Nos meus estudos, o método de Lefebvre permitiu situar o
subúrbio industrial como lugar da produção da riqueza, mas não como lugar de
realização das possibilidades que a riqueza cria; como lugar de insuficiências em
contraposição ao centro como lugar do que a riqueza possibilita. A necessária
monumentalidade do centro, o monumento, isto é, a obra de arte, o teatro, o museu, a
sala de concertos, a universidade, o próprio partido político e o próprio sindicato, são
possibilidades do lugar de realização da riqueza, mas não o são no lugar de produção da
riqueza, no lugar do trabalho, o da fábrica.
Nessa orientação, é possível reencontrar linhas de compreensão da sociedade
brasileira em outra perspectiva presentes, sobretudo, na obra de Roger Bastide, na de
Antonio Candido e na de Florestan Fernandes (cf., em especial meu livro Florestan –
Sociologia e Consciência Social no Brasil, Edusp/Fapesp, 1988). Refiro-me, em
particular, às questões interpretativas que foram propostas no âmbito da Sociedade
Brasileira de Sociologia nos anos 1950 e que perduram ao longo da história da
sociologia brasileira, como a do atraso social em relação ao desenvolvimento
econômico, a das resistências à mudança social, à função da educação e da própria
sociologia na história brasileira do presente.

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