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15.03.2004
Toda essa baboseira de luz no fim do túnel...
no final das contas não é baboseira nenhuma.
Dedico essa história àquelas pessoas que têm a chave na mão.
E a porta na frente de seus narizes.
Capítulo I
– Que cachorro? – quis saber a mulher, que a esta hora já havia se esquecido totalmente de lixar
as unhas e encarava o filho com ar de intriga.
- Aquele do começo da rua – explicou Eduardo, apontando com o indicador a direção – aquele
daquela casa misteriosa – disse ele abaixando o tom de voz.
Referiu-se à casa “misteriosa” como alguém que confia segredos cabeludos. Havia um grande
enigma envolvendo a casa do começo da rua e era sempre assim que as conversas ficavam cada
vez que o local se tornava parte delas.
Era o seguinte: fazia tempo já, quase dez anos, que uma família mudara-se para lá, mas depois
disso, ninguém jamais viu um morador de perto. Nas raras vezes que alguém os via, faltava
coragem ou assunto para aproximações. Logo, não havia quem soubesse como eram estas
pessoas, o que faziam, aonde iam e porque sumiam.
Era verdade que eles não davam sinal de vida.
Poderia até se afirmar que o local estava vazio, se a casa não estivesse sempre bem conservada,
se não fossem as luzes acesas de noite, ocasionais aparições nas janelas e raríssimas, mas
raríssimas vezes em que alguém saía para o jardim da frente durante o dia.
Tamanha falta de sociabilidade gerava uma curiosidade geral naquela rua.
Quem seriam os moradores da casa do começo da rua?
- O cachorro daquela casa? – indagou Sônia muito pasma. Agora sua curiosidade fora aguçada... o
interesse era muito quando se tratava da casa do começo da rua.
- É! – respondeu Eduardo curto e grosso.
- Ah bom! – disse a mulher, que depois parou refletindo, franziu o cenho e comentou decepcionada
– Mas... meu filho... aquele cachorro é um pequinês!!! Um pequinês!!!
O rapaz ficou ainda mais vermelho:
- Um pequinês... um pequinês!!! – arremedou o garoto imitando a voz da mãe em tom de mofa.
Depois completou sério – É! Um pequinês que quase me atorou a perna fora! Se não fosse a
minha esperteza eu tinha morrido ali no meio da rua!!!
Dona Sônia nem respirava mais de tão impressionada que estava com o dramalhão que o filho
estava aprontando. Olhava para o rapaz – que não olhava de volta para ela.
A mulher parou com tudo e tentou imaginar a cena.
Tentava imaginar o pequinês correndo atrás do filho como um animal feroz.
Não conseguia formar essa imagem de jeito nenhum.
Achou graça até.
Finalmente sorriu e discordou do filho:
- Oras... É um cachorrinho tão bonitinho, tão pequenino que duvido que faça mal a uma mosca! –
voltou a lixar as unhas e continuou a falar incrédula – onde já se viu um pequinês causar risco de
vida? Um bichinho tão fofinho... com um focinho tão delicado, aposto que ele é tão frágil quanto um
cristalzinho!
Eduardo se contorceu inteiro. Segurou-se ao máximo para não xingar a mãe, tremia tanto que fazia
os bibelôs da mesa trepidarem, quase trazendo abaixo o arranjo de flores:
- Isso é o que você pensa! – retrucava indignado – Aliás, isso é o que ele quer que vocês todos
pensem! – completava parecendo um louco – Mas a mim ele não engana! Ele já mostrou quem ele
é! – e o rapaz seguia fazendo gestos – Aquela bocarra enorme cheia de dentes! É um bicho do
mal! É uma besta satânica!!!
- Nossa! – exclamou a mãe do garoto, que a esta hora já estava ficando farta de ouvir tamanhas
besteiras – Que exagero Eduardo! Que drama! Onde já se viu eu já perguntei!? Coitado do
cachorrinho! – e gralhava com o filho, até que perguntou, só para desencargo de consciência –
Que mal ele te fez? Ele te mordeu?
O garoto que já ia reclamar parou com a boca aberta e dedo a caminho de ficar em riste...
Putz!
Eduardo crescera feliz naquela rua. Tivera muitos amigos de infância, mas todos agora já eram
crescidos e não brincavam mais. Logicamente Eduardo não queria brincar de queimada nem
esconde-esconde, mas sentia que era uma pena a turminha da rua ter se dissolvido assim que a
puberdade veio alcançando todos.
Puderam perceber que estavam mudando quando as brincadeiras de “casamento atrás da porta” já
não eram tão inocentes quanto eram em tempos idos. E pouco a pouco, as meninas, que sempre
amadurecem antes dos garotos, não se permitiam mais participarem de todas as ações conjuntas
da galerinha da rua.
Poderiam ainda estar amigos hoje e formar uma trupe legal, armando churrascos de fim de
semana, fazendo festas e agitando por aí.
Mas... cada um se arranjou como pôde e já não batiam um à porta do outro como antigamente
para fazer qualquer coisa, nem para conversas.
Realmente era mais uma dessas boas fases da vida que tinham se acabado.
Eduardo arrumou sua turma no colégio e no time de futebol da escola.
Desta época, sobraram apenas alguns poucos amigos e muitos apelidos em seus ombros, como
Duda, Dudú, Ed, Eddie, Dú, Edú ou o que ele mais odiava: Dado.
Essa sua turma o tinha acompanhado pelo segundo grau, até que ao término deste, todos
tentaram vestibular, inclusive Eduardo.
A maioria não obtendo êxito, entrou no cursinho.
Combinaram todos de entrar na mesma sede, para não se separarem e para poderem formar
grupos de estudos (que, diga-se de passagem, nunca chegaram a ser formados devido à falta de
interesse dos colegas de Ed).
Alguns de seus amigos do colégio antigo caíram na mesma sala que ele, e ali compartilhariam
juntos mais um ano de estudo e sofrimento. Encarar todas aquelas matérias em ritmo de cursinho
e suportar toda a pressão externa e interna não seria nada fácil!
O seu melhor amigo, Fábio, também ficara na mesma sala e com isso Eddie se alegrava, pois
sabia que se alguma vez chegasse a se abater, Fábio logo viria lhe dar uma boa injeção de ânimo.
Verdade era que Fábio andava um pouco distante, mas ainda sim Ed via no garoto um grande
amigo.
Mas Eduardo até que estava indo bem.
Ficava sempre entre os cinco primeiros colocados nos provões e simulados que seu cursinho
promovia. Achava isso bom, mas não excelente. Sabia que se estudasse mais e mais poderia
galgar os degraus dourados que levavam ao primeiro lugar do podium.
Tinha certeza que todo sacrifício teria sua recompensa e era isso o que ele esperava por tanto
empenho: passar na UFPR, que apesar de andar capengando, ainda tinha prestígio e fazia parte
do sonho de cada vestibulando de todas as sedes de Curitiba.
Ficou revisando as matérias do dia e conferindo as da véspera enquanto o cheiro do almoço quase
pronto vinha invadindo o quarto.
Sabia que não demoraria muito e a mãe iria vir chamá-lo para almoçar, estava com uma bruta
fome, mas pensara em não descer, só para provar como era fodão, birra pura, mas já que a mãe
não havia dado importância ao fato do cachorro lhe avançar, poderia muito bem não dar
importância para o almoço também!
O estômago roncou alto. Decidiu que era melhor não fazer isso.
Fechou as apostilas e ficou só aguardando.
Seus pensamentos começaram a fluir, sua imaginação era poderosa e ganhava asas até mesmo
quando Eduardo não queria.
Mas desta vez ele queria.
Estava lembrando de algo que ocorrera havia uma hora apenas e fora muito curioso.
Depois da saída do cursinho Eduardo pegou o ônibus para voltar para casa como costumava fazer
todos os dias, e estava muito tranqüilo imerso em pensamentos, quando, subitamente, percebeu
um garoto o encarando.
Encarando mesmo, na cara dura.
Olhou em volta para ver se não estava enganado, mas não estava, eram dirigidos a ele os olhares
do garoto.
Que será que o rapaz queria?
Eddie pôs-se a pensar e chegou à conclusão de que o garoto só podia mesmo era estar o
confundindo com alguém. Uma força nova vinda de não se sabe onde fez Eduardo levantar bem a
cabeça e retrucar o olhar. Talvez estivesse por demais intrigado pelo olhar perfurante e convicto do
outro rapaz que quisesse descobrir quais seriam as verdadeiras intenções por detrás dele. Estaria
o garoto com vontade de lhe falar alguma coisa?
E Edú não desviou os olhos.
Resolveu continuar encarar o rapaz, que a esta hora, já estava sorrindo.
Sorria com certo nervosismo, mas sorria.
Eduardo achou o rapaz muito simpático, sorrindo daquele jeito, mas não sorriu de volta.
TRRRRIIIIIMMM!!!! TRRRRIIIIIMMM!!!!
Arrancado subitamente de sua lembrança, Eduardo atendeu ao telefone bem depressa:
-Alô?
-Amoooooor!!! – bradou uma voz feminina e irritantemente melada do outro lado da linha.
Era Camila, a namorada de Eduardo.
Uma garota linda. Tinha dezessete anos, cabelos loiros longos e perfumados. Sua pele era pintada
por sardas que a deixava com um ar sapeca, e seus olhos, enormes e muito azuis, contribuíam
ainda mais para este aspecto se firmar.
Seu corpo era delgado, delicado, parecendo que o mínimo toque o faria se quebrar. Era rata de
academia, fazia ginástica aeróbica e adorava todas as novidades do mundo fitness.
Não era muito alta, mas se destacava no meio das outras garotas.
Edú a conhecera no baile do colégio onde estudava.
Ele, já estava no segundo ano do segundo grau e tinha dezessete anos, ela ainda estava na oitava
série, com quinze anos na época.
Era um baile à fantasia.
Todo ano os formandos do terceirão promoviam um, como uma forma de despedida, e este baile,
era aberto a todas as séries a partir da sétima.
Ela estava vestida de Fada Azul, meiga, com purpurina jogada sobre os ombros e cabelos, e ele
estava fantasiado de Zumbi do Mato, com as roupas todas rasgadas, cara pálida cheia de pó,
olheiras pintadas e folhas secas grudadas nos braços e pescoço. Estava mesmo era parecendo
um jagunço com anemia.
-Não acredito que você veio assim! – exclamou Fábio sorrindo – logo você, que vive todo certinho
e arrumado. Pensei que você vinha fantasiado de príncipe ou qualquer coisa do gênero, mas meu!
Tua fantasia tá muito engraçada!
-Ah... nem fala nada! – disse o rapaz que já estava se arrependendo por ter se vestido daquele
jeito. Pegou na aba da camisa de Fábio e indagou – E a sua fantasia? O que é? Me conta, porque
eu não estou conseguindo reconhecer!
-Como não??? – indignou-se Fábio.
-Bem... é um sapo?
-Que sapo o quê, Eduardo! Eu sou o Peter Pan!
-Ãhn... – fez Duda, erguendo a sombrancelha direita e meneando a cabeça como quem diz
ironicamente “Claro! É lógico que é Peter Pan, como não reconheci antes?”.
-Ah, tá! Deixa de onda! O que acontece é que nós dois estamos ridículos! Tanto você, que tá
vestido de “homem folha”, quanto eu, que estou de Peter Pan...
Eduardo bronqueou:
-Eu não sou um “homem folha”! Eu sou um zumbi do mato! E se você sabia que ia ficar ridículo
com sua fantasia porque a vestiu então?
-Simples caro amigo! – Fábio disse como se fosse algo muito evidente e ainda concluiu – É que as
garotas acham isso o máximo!
-É? – o outro rapaz indagou, adorava escutar as pirações do amigo. Cada vez que Fábio vinha
com uma idéia, Eduardo se deliciava prestando atenção.
-Claro! É lógico que elas gostam! Elas acham isso muito “fofo” – e desenhou as aspas no ar – Você
vai ver só, metade das garotas da festa vão estar caindo aos meus pés antes das nove e meia.
Ed respondeu em tom de mofa:
-Para cair aos seus pés, só dando altas doses de ponche para elas. Mas... se você diz... então tá
né? Fazer o que?
-Vai ter que se contentar com as sobras meu caro amigo – e riu de Eduardo.
-Ah tá garanhão!
Fábio parou de rir gradualmente, tocou a mão de Eduardo e disse:
-Não sei nem porque a gente tá falando disso... você sabe que sempre consegue ficar com quem
você quer. Você sabe que a gente sempre se arranja nestas festas.
-Eu sei, e eu não estou preocupado.
-Ainda bem que temos gostos bem diferentes! Assim nunca vamos brigar por conta de namorada.
-É verdade! Pelo menos isso! Tem para você, e tem para mim!
-É assim que se fala!
Eddie fez uma cara murcha:
-É, né? Mas Fábio, acredite se quiser, eu queria estar em casa dormindo. Eu não vim aqui pra ficar
agarrando ninguém.
-Não? – o outro arregalou os olhos.
-Não!
-E porque veio então?
-Porque eu ouvi o Carlos falar que ia colocar uma parada estranha no ponche da festa. Mais um
dos planos daquele cabeça-de-vento!
-Seu podre! – Fábio disse cobrindo a boca – E você veio só para ver o povo se estrepar?
-Claro que não! Eu vim para impedir que isso aconteça – Eddie respondeu indignado.
-E o que você vai fazer? Vai arranjar briga com ele?
-Não. Você sabe que não adianta pedir para ele não fazer porque é aí que ele faz mesmo... mas eu
vou fazer o seguinte: quando ele colocar a paradinha na bebida, eu vou lá e “sem querer” derrubo
tudo no chão.
-Sério? Você vai fazer isso? – quis saber o amigo, que admirou a coragem de Eduardo – você está
mesmo disposto a pagar esse mico?
-Sim, claro, foi para isso que eu vim!
-Ai, Eduardo! Você vai ficar mais popular ainda, mas desta vez vai estar conhecido como “o rapaz
que derrubou a única bebida alcoólica da festa”!
-Nem fale!
-Não é melhor nós dois deixarmos de beber o ponche e pronto? Para que criar alarde? Os outros
que bebam... nem dá nada!
-Não, a gente não pode fazer isso! Sabe-se lá o que o Carlos vai colocar lá dentro! Imagina se
alguma pessoa tem um pirepaque? Vai que tem gente alérgica a essas coisas? Alguém pode
morrer, sabia?
-Credo Eduardo! Você também hein? É o mestre da piração! Como pode ir tão longe sua cabeça?
Você acha que o Carlos ia colocar algo perigoso na bebida da festa? Ta achando que ele quer
matar o colégio inteiro é?
-Não, eu espero que não! Mas seja o que for que o Carlos queira colocar lá, eu vou derrubar o
ponche!
A festa continuou normal, todos dançando, até que pelo alto falante anunciaram a hora das
canções lentas. Assim que as luzes do salão se abrandaram e as músicas ficaram brandas e
românticas, Ed reparou que Carlos estava indo em direção ao grande recipiente de ponche.
Era essa a hora.
Ficou de matuto por perto. Carlos despejou o pó dentro da bebida e se retirou bem ligeiro dali.
Neste mesmo instante Eddie rumou para a mesa feito um pé-de-vento e quando estava chegando
perto do tacho, um braço branquelo e magrinho pegou a concha de vidro e já ia mergulhando na
bebida.
-Não! – gritou Eduardo.
-O que??? – a garota se assustou.
-Vo-você não pode beber isso!
-Não posso?
-Não.
-E porque? – indagou a garota, sem nada entender, com uma mão na concha e na outra um
copinho plástico bem fajuto.
-Oras! Porque serei eu quem vai beber! – disse o rapaz – Dá licença... – e ao terminar de dizer isso
ele tomou a concha da garota e arrancou o copo da mão dela também.
-Aaaai! – fez a garota, surpresa com o gesto de Edú.
-Doeu? – indagou o rapaz fazendo cara feia.
A menina armou uma cara de indignada que não tinha tamanho.
Ed fez que ia se servir e aproveitou para esbarrar fortemente contra o tacho, entornando todo o
ponche – na garota.
-Aaaah!!! Seu grosso!!!
-Desculpa, foi sem querer!
-Foi nada! Você derrubou o ponche de propósito!
-E-eeuuu? – ed apontou para o próprio peito, com a maior cara de pau – Claro que não! Mas isso é
um abuso!
-No mínimo é! Você é um abusado! Olha só! Arruinou o meu sapato!!! Você me lavou com esse
ponche!
-Desculpa... eu sou mesmo um desastrado...
-Argh! Agora já foi, seu mongo!
-Ok, tchau então!
Eduardo virou de costas e retirou-se dali.
Uma hora mais tarde as músicas lentas ainda estavam tocando, pois parecia que todos estavam
curtindo – exceto alguns poucos, que ficavam encostados pelos cantos, sentados em suas
mesinhas, fazendo caras e bocas, na esperança de que alguém viesse lhes pedir uma dança.
Eddie andava pelo salão tentando achar o amigo Fábio. Localizou-o abraçado com uma linda
garota de cabelos negros. Dançavam ao som do suave piano.
-E não é que ele se arranjou mesmo? – Eduardo comentou para si mesmo, sorrindo e cruzando os
braços – que danado esse rapaz!
Continuou vagando por entre as pessoas até que avistou a garota do ponche largada numa mesa,
apoiando a cabeça numa das mãos e com a nítida expressão do tédio em sua face.
-Posso sentar? – ele perguntou.
A garota olhou para cima e reconheceu Eduardo:
-Você tá é louco? Se você sentar é bem capaz de virar a mesa em cima de mim.
-Eu prometo que não – e dizendo isto, ele sentou-se à mesa – eu estraguei sua noite, não
estraguei?
-É... foi mesmo – disse a garota sorrindo apoiada em seus cotovelos.
-Meu nome é Eduardo. Qual é o seu?
-Camila.
-Desculpa pelo que aconteceu, tá?
-Esquece...
-Eu sou tão desastrado...
-Você é mal educado, isso sim! Se queria tomar o ponche devia ter esperado! Afinal eu havia
chegado primeiro, e mesmo que não fosse esse o caso... eu sou uma dama! Tinha preferência na
fila!
Eduardo achou graça e sorriu.
Mal ela sabia que ele a salvara de algo que ninguém, a não ser Carlos podia prever.
-É! Eu sou mesmo um mal educado.
Camila sorriu de volta.
Acabaram se beijando e arrancando comentários por todas as partes, pois sem querer, Eduardo
era o garoto mais cobiçado do colégio, e ela, era a menina mais desejada de seu pavilhão.
Desde aquele dia ficaram juntos.
Já se iam bem uns dois anos de namoro. E tudo parecia estar bem...
-Camila? – indagou Eduardo, ainda meio confuso, segurando o telefone bem próximo ao ouvido.
-Lógico que sou eu né Eduardo! Quem mais poderia ser? Se eu disse “oi amor” só posso ser eu
né? – exclamou a namorada irritada, do outro lado da linha, como se fosse a coisa mais óbvia do
mundo – Ed... – continuou ela desconfiada – ...tem mais alguém te chamando de amor???
-Não, é claro que não! – respondeu Eduardo mais que depressa, pois qualquer que fosse a técnica
usada para evitar ladainhas, essa era logo aplicada com muita felicidade pelo rapaz que detestava
as crises e churumelas da namorada – Tem ninguém me chamando de amor não.
A voz da garota se animou:
-Então tá bom!
Ele ficou mudo esperando a namorada continuar tagarelando. Não precisou ficar parado muito
tempo.
-Me conta, como foi no cursinho hoje?
-Foi normal, o mesmo de sempre... – disse Edú com desinteresse.
-Ah... nada de novo? Nenhuma novidade?
-Não... nada.
-Nada mesmo? – a garota insistiu.
A namorada ligava todos os dias.
Detalhe: várias vezes.
E queria novidades sempre!
Aquilo já estava enchendo o saco de Edú de tal modo que não sabia mais como iria agüentar. Se
havia uma coisa que ele não gostava era de chicletes grudados nos seus pés, atrapalhando os
movimentos.
-Não... não tenho novidade nenhu... – ele interrompeu a frase e voltou a falar, desta vez em tom de
fofoca – Ah! Tenho! Tenho sim! Aconteceu uma coisa estranha hoje no ônibus.
-Então conta! – suplicou a namorada já super curiosa.
-Pois é! Eu tava voltando prá casa, e no ônibus tinha um cara me encarando...
-Te encarando? – indagou Camila interrompendo a narração – Como assim? Ele queria brigar?
-Não Camila, acho que brigar era o que ele menos queria fazer... – respondeu Ed, ficando
vermelho e meio sem jeito (ainda bem que a namorada não o podia ver agora) – ...ele estava me
encarando... de outro modo!
-Que outro modo? – quis saber a namorada.
-Sabe... ele me olhava... do jeito que um garoto olha prá uma garota... do jeito que uma garota
encara um garoto... sabe?
-E... – fez Camila que precisava de mais informações pois aquelas ainda não bastavam para tirar
nenhuma conclusão.
-E... ele tava me paquerando! – finalizou Edú, agora, totalmente sem graça por ter que verbalizar o
que antes dizia sutilmente.
Agora a menina estava passada!
-Te paquerando??? Tem certeza??? – queria saber, muito pasma.
-Tenho!
-Não! Vai ver que era engano. Vai ver que ele tava olhando para outra pessoa, ou te confundiu
com alguém que ele conhec...
Eduardo interrompeu calmamente:
-Não, não foi engano nenhum. Deixa eu contar o resto.
-Vai logo! – Camila pediu impacientemente.
-Pois é, ele estava me encarando muito, ali, com o ônibus cheio de gente...
-E você? – Camila interrompeu novamente.
-Eu o quê? – quis saber Eduardo.
-O que você fez?
-Eu?
-É! – exclamou – Você!
-Nada! – concluiu naturalmente.
-Nada? – decepcionou-se a namorada – Porque simplesmente não catou ele na porrada?
-Camila – irritou-se o rapaz – você vai deixar eu terminar de contar a história ou não?
-Desculpa... – amuou-se a garota.
-Pois bem, o ônibus já estava entrando no bairro, quando eu vi que ele tirou um papel do bolso e
escreveu alguma coisa nele. Até aí tudo bem, só que antes de descer, ele veio e entregou o papel
para mim, sorrindo!
-Sorrindo?
-É! Ele tava sorrindo de canto de boca! Você não acha sorriso de canto de boca algo estranho? Eu
posso garantir que aquele rapaz sabia muito bem o que tava fazendo. Me entregou o papel com a
maior cara de pau!
-E você?
-Eu? – perguntou Edú e depois concluiu logicamente – Eu peguei o papel!
-E ele?
-Desceu do ônibus, ué! Não disse que ele tinha apertado o botão de parada?
-Não.
-Puxa... tá, mas o caso é que ele desceu do ônibus. Virou-se para trás para ver minha cara e tudo
mais!
-E o que estava escrito no papel? – perguntou Camila roendo-se de curiosidade.
-O nome e o telefone dele.
-Mas que sem vergonha!!! Que bicha descarada!!! Dando em cima do meu namorado, assim! Em
plena luz do dia!!! Isso é revoltan... – a garota parou de gralhar de repente e indagou – e você por
acaso guardou o papel?
Dudú, tentando fazer a voz natural, como se o fato não significasse nada para ele, respondeu:
-Guardei.
-Cadê? Pega lá e me dá o número que eu vou ligar e descer a boca nele, onde é que já se viu?
Vou dizer que você já tem dona! E que é muito do meu!
-Ok, ta no bolso da minha calça jeans... peraí que eu vou pegar... – levantou-se da cama e foi em
direção à calça que estava jogada a um canto do chão, vasculhou os bolsos até que encontrou o
bilhete. Voltou para o telefone:
-Tá aqui! – e leu o que estava escrito, mundando apenas o final do telefone, para a garota não
conseguir ligar – “Ligue para mim, 793- 5436, Tiago”.
Terminando de ler, dobrou o papel e guardou no meio da apostila.
-Logicamente você não vai ligar, né? – Camila quis saber.
-É claro que não! Até parece!!! – irritou-se o namorado.
-Como é que ele era?
-Como assim?
-Ele era bonito? – quis saber Camila.
-E eu vou lá achar homem bonito? – indignou-se Duda.
Ao mesmo tempo lembrou-se da cara de Tiago. O modo alinhado de se vestir e o seu porte. Era
bonito sim, mas nunca ele, Eduardo, iria admitir isso a ninguém.
-Que mal tem nisso? Um homem pode achar outro bonito sim! – exclamou a garota.
-É Camila!!! Isso eu já percebi! Tanto pode achar, como achou e veio me cantando!
-Pois é! Um descaramento... mas espera aí que eu vou ligar lá!
-Ok – concordou o rapaz, sabendo que ela não conseguiria.
Ed colocou o fone no gancho, nem bem passado um minuto, a namorada liga de volta:
-Não tem ninguém lá com nome de Tiago.
-Bom, vai ver que ele deu um nome falso – o rapaz comentou para dar mais veracidade à omissão
de informações.
-Não, porque disseram que nem morava garoto nenhum lá. O casal só teve filhas mulheres.
-Puxa, então ele só tava afim de tirar com a minha cara!
-Viu só Dú? Eu bem sabia que não devia de ser um gay te cantando, você é macho e eles sabem
quando podem ou não avançar o sinal. Realmente, ele só devia estar mesmo zoando!
-Verdade.
-Bem, mas então deixa eu contar...
A garota ainda falava quando a mãe de Ed o chamou para almoçar.
-Amor, tenho que desligar, tá? Minha mãe tá me chamando, o almoço já tá pronto. Depois eu te
ligo, ok?
-Ok!
-Um beijo!
-Outro.
.....
Na mesa da cozinha, lugar onde geralmente a família Braschi almoçava, a conversa girava em
torno de Eduardo.
Como sempre.
Talvez para fazer graça, a mãe de Edú mudou o rumo da conversa que levavam, comentando em
tom de troça:
-Pois é... seu filho agora deu para ter medo de cachorrinhos... – comentou dona Sônia para o pai
de Eddie, seu Antônio – diz ele, que o cachorro da vizinha quase arrancou a perna dele fora...
Eduardo olhou para a mulher com uma cara de “pára mãe!”, ao que o pai do rapaz comentou:
-Bem, confesso que até eu ficaria com medo se aquele monstro viesse para cima de mim – disse o
pai defendendo o rapaz – me passe o arroz, sim? – pediu o simpático homem à mulher, que
alcançou a travessa com arroz para o marido que acrescentou – mas eu pensei que os Souza
mantivessem aquela fera presa no canil...
-Ah não! Não! – exclamou a mãe de Eduardo – Não é o cachorro dos Souza! É o cachorro da casa
do começo da rua – corrigiu e depois acrescentou no mesmo tom de voz que Eduardo usou para
referir-se ao local – aquela casa, onde parece que não mora ninguém...
O marido entendeu:
-Aaahhhh... o cachorro daquela casa! – e voltou a comer. Depois de certo tempo, parou com os
talheres no prato, num momento de reflexão e exclamou – Mas aquele é um pequinês!!!
-É disso que estou falando! – continuou a mulher – Nosso filho tem medo daquele cachorrinho.
Seu Antônio olhou para o filho. Indagou:
-Isso é verdade?
-Não... – esquivou-se Eddie – não é bem assim... é só que... que... aquele cachorro me avança
sempre. Cada vez que eu passo na frente do portão, ele vem e me avança. Não tem uma única
que vez isso não aconteça. É perigoso, não acha? Ele pode ter raiva, me morder...
-Aquele cachorrinho?
-É... – confirmou Eduardo totalmente sem jeito.
-Impossível! – exclamou o pai totalmente incrédulo – Ele é bem cuidado. Não se parece em nada
com um cão de rua, que pode ter doenças e tudo mais. Aposto que tem todas as vacinas em dia! E
não é nada feroz. Sempre que vou e volto das minhas caminhadas diárias pelo bairro eu passo ali
e o bichinho até me abana o rabo, tão belo cãozinho! Ele vem todo contente pedir agrados...
-Mas pai... é verdade o que lhe conto! – defendeu-se o garoto – Ele gosta de todo mundo, menos
de mim!
-Filho... – disse o pai sério – ...você anda tomando drogas?
O pai de Eduardo era um senhor de cinqüenta e quatro anos, mas ainda com a aparência muito
jovem. Costumava caminhar todos os dias depois que voltava do trabalho.
Ele era sócio-presidente de uma empresa de arquitetura que não ficava muito longe do bairro onde
moravam. Por isso sempre vinha almoçar em casa e depois voltava para o serviço.
Não era liberal de todo, mas também não era muito severo, cobrava apenas os bons valores
morais que todos os pais cobram dos filhos.
Era simpático, sim, mas somente porque sua feição italiana lhe dava a simpatia plástica. Em seu
interior a coisa devia ser lapidada e seu coração conquistado para poder se mostrar dócil.
Costumava dar liberdade para Eduardo e Sônia agirem do jeito que bem entendessem, mas se
fizessem alguma coisa errada... se andassem fora da linha... bem... eles que arcassem com as
conseqüências depois.
Mas era um homem com o coração imenso e bondoso.
Detestava injustiça e se orgulhava de ter passado muitas das suas características “marcantes”
para o filho. Se Eddie cortava o joelho, era ele que sentia a dor e o garoto tinha que confortá-lo
dizendo: não foi nada pai! É só um arranhãozinho à toa! Já passa, ta vendo?
Antônio conhecia bem as pessoas a sua volta.
Bastava olhar para elas para saber se algo ia bem ou não. Muitas vezes seu sentido materno era
mais aguçado que o paterno. E cada vez que o filho aparecia com uma atitude diferente, uma
faceta meio desconhecida, ou apresentava uma idéia diferente do comum, seu Antônio logo lhe
perguntava se ele estava tomando drogas.
Eduardo já estava habituado a toda esta cena:
-Não pai... eu não estou tomando drogas... – respondeu o garoto, revirando os olhos, respirando
fundo e rodando a comida com o garfo de um lado para o outro no prato.
-Então – disse o homem, que cortava um bife, deixando grãos de arroz besuntados com molho
caírem na toalha sob os olhares da mulher que teve ímpetos de gritar “minha toalha que acabei de
lavar!” – meu filho, de onde você tirou a idéia de que aquele cachorro poderia te atacar?
-Olha pai, eu não tirei a idéia de lugar nenhum. Aquele cachorro avança em mim e pronto! Se não
querem acreditar, não acreditem!
-Ah... tá! – concordou a mãe, que juntou os grãos de arroz da toalha e recolocou no prato do
marido.
Para mudar de assunto, ela indagou:
-Quem era no telefone?
-Quem poderia ser? – retrucou Eduardo tendo certeza de que a mãe sabia e muito bem quem era.
-Camila, né?
-É!
-E o que ela queria?
-Nada. Só queria saber das novidades.
-E de onde ela quer que você as tire? – indagou a mãe, que apesar de gostar muito da namorada
do filho e achá-la um doce de pessoa, não sabia porque a garota ligava tantas vezes todos os dias.
-Boa pergunta mãe.
-De onde vocês tanto tiram assunto? – quis saber o pai.
-E quem disse que eu tiro assunto de algum lugar? Eu quase nem falo. Acho que ela confunde
telefone com microfone, porque cata o aparelho e fala, fala, fala. Aquela menina parece que
engoliu um rádio, sei lá... – respondeu o filho.
-Não fale assim de sua namorada – o pai advertiu.
-Não é por mal pai...
-Você bem sabe o gênio “bom” que ele tem, né? – Sônia tentou ajudar o filho e ainda acrescentou,
apontando para o prato do garoto – Eduardo Braschi, pare de brincar com a comida!
O rapaz revirou os olhos novamente:
-De qualquer modo, eu disse que ligava para ela depois...
-Sei... – concluiu o homem, que já terminava de comer.
Assim que todos almoçaram, Antônio foi para a sala e Sônia ficou arrumando a cozinha. Ed subiu
as escadarias e se jogou na cama.
Ficou olhando para o teto durante um bom tempo.
Se concentrou tanto no nada que chegou a sentir-se capaz de levitar.
Se pudesse, o faria. Iria voando para longe, esfriar a cabeça.
Não estava afim de ver nem falar com ninguém.
Não era de descumprir palavras, mas não queria telefonar para Camila.
E não o fez.
Não ligou.
Nem para Camila, nem para Tiago.
Um dia, bem um mês antes de fazerem um ano de namoro, Camila encheu-se e cobrou:
-Por que isso Eduardo?
-Por que isso o quê? – perguntou ele de volta com cara de santo, fingindo-se de besta surda, muda
e cega.
-Você sabe muito bem! – disse a namorada, muito séria. Camila olhava para o garoto como um
delegado de polícia olha um marginal – Não é de agora que eu percebo que você evita!
-E-evito? – gaguejou nervoso.
-É! – desembestou Camila – Você evita me tocar, evita continuar carícias... quando tudo está no
bem bom... quando tá esquentando... você me afasta ou se afasta, sei lá!!! Porra Edú! – a garota
explodiu – quero saber porque você evita transar comigo!
-E-eu? – e apontou para si mesmo.
-Bem o senhor! – dizia ela dando de dedo no focinho do rapaz – Eduardo, nós já temos quase um
ano de namoro... e você até agora... nada! – e bateu uma mão na outra para concluir – Puxa! Eu
tenho necessidades também!!!
O garoto ficou mudo.
-O que é? – indagou a namorada – Qual é o problema?
-Não... não tem problema... – esquivou-se.
-Então porque até agora nada?
-Camila, você é muito nova! É uma criança ainda!
-Eu não sou mais criança! Mas mesmo assim, e daí? Eu me sinto pronta e segura. É uma coisa
que eu sei que quero fazer! – e ela passou a mão no rosto do namorado, com os olhos carregados
de ternura – ainda mais com você, que é quem eu mais amo nessa vida.
-É que... é que... – ele estava tentando achar uma desculpa convincente – ...é que eu pensei que
você não queria!!!
A garota torceu a cara, duvidando:
-Pensou que eu não queria? – deu um pausa e continuou – Impossível Eduardo, eu dava todos os
sinais, só um burro não ia perceber...
-É! Talvez eu seja um burro mesmo. Mas é que mulher é um bicho complicado, sabia? Nunca a
gente sabe o que vocês querem! Vocês podem dar um mísero sinal, mas que pode significar
milhares de coisas... eu, por exemplo pensei... – e desculpou-se – ...puxa, eu queria te respeitar...
sabe? Perder a virgindade... é complicado...
-Mas eu sei que eu quero! – disse a garota em verdadeira convicção – Eu quero fazer isso com
você!
-Melhor esperar... pensar bem...
-Mas... eu tenho certeza!
A verdade era que o “negócio” não funcionava com a namorada.
Cada vez que a tocava, intrigava-se com o fato de sentir-se pecando, como se tocasse na mãe, ou
em uma irmã, pois era o que ele considerava que Camila fosse: uma irmã para ele.
E com irmã não se transa.
Sentia-se profundamente estranho com isso.
Sua cabeça fervilhava de grilos por conta deste problema.
-Veja bem: eu te amo – explicou Edú – e quero que o momento seja muito especial para nós dois.
Eu também tenho que estar preparado sabia?
-Você? – estranhou a garota – ...preparado? Prá quê?
-Prá... prá... – o rapaz gaguejou sem graça – ...ah! você sabe... – e ficou vermelho. Não gostava
desse tipo de conversa e ficava embaraçado com facilidade.
Neste ponto, a namorada, que olhava para ele, sorriu:
-Ohhh... que bonitinho! Você está planejando um momento especial para nossa primeira vez, não
é? – e beijou o namorado – Que tola eu fui apressando as coisas!
O rapaz sorriu e a namorada ainda suspirou:
-Você é perfeito meu amor! É tão romântico.
E a conversa ficou por isso mesmo.
Mas passado uns três meses Camila viu que tudo continuava do jeito que estava e Eddie não
apresentava planos de mudanças, então a cobrança reapareceu.
A garota ficou insinuando... bem sutil, como quem não quer nada... e Eduardo seguia fingindo que
não via nenhum dos sinais e não entendia as indiretas.
Toda vida Camila o convidava para ir dormir na casa dela.
Ela tinha uma avó muito doente que morava em Campo Largo e seus pais iam para lá quase todos
os finais de semana, para fazer uma dessas visitas de rotina.
Camila tinha uma irmã de vinte e um anos chamada Franciele e nenhuma das duas costumavam ir
junto com os pais para Campo Largo. Iam muito de vez em quando. Logo, Camila sabia que iria
ficar sozinha durante os finais de semana, ao menos enquanto a avó se mantivesse viva e por isso
sempre rezava para a velhota resistir firme e forte.
Mas Eduardo sempre recusava os convites da namorada para ir “dormir” em sua casa.
Para isso Edu tinha um esquema: ficava sábado o dia inteiro com a namorada, mas quando ia
caindo à noite, ele picava as mulas. Dizia que tinha que estudar, que tinha provas e etc., e saia de
fininho.
A namorada ficava revoltada com tudo isso, mas engolia e levava em frente, pois gostava de
Eduardo de tal modo que sexo não era tão importante assim...
Edu desceu do ônibus e pisou em uma poça d’água, formada pela fina, mas constante garoa:
-Merda! – o rapaz praguejou – Era tudo o que eu precisava! – e se pôs a balançar a barra da calça.
-Olha a boca mocinho! – uma beata que ia passando advertiu e comentou com a amiga mais
carola ainda – Essa juventude de hoje não tem mais respeito mesmo! Tá tudo mudado!
-É – a outra concordou gesticulando – viu só o palavreado desse menino?... uma pena, tão bonito
e falando essas coisas...
Ao que a outra beata exclamou:
-Aposto que anda tomando drogas!
Eddie parou de balançar a calça imediatamente.
.....
Eduardo conhecia Fábio desde os treze anos. Eram colegas de classe e cresceram juntos feito
irmãos. Não sabiam ao certo como ficaram tão amigos assim, mas souberam desde o início que o
“clique” necessário para isso ocorrera.
Cansaram de aprontar peraltices juvenis e de mirabolar planos e mais planos para o futuro.
Planejaram montar uma fábrica de automóveis voadores, serem donos de empresas de andróides
e estas baboseiras futurísticas.
Agora, nada disso era visto com seriedade, ficara para trás junto com as brincadeiras do passado.
Eduardo sentia falta do tempo em que podia ficar horas na casa do amigo, só jogando papo fora
sem preocupar-se com estudo, garotas, dinheiro, futuro ou qualquer outra coisa.
Sentia falta do tempo em que o amigo ia dormir em sua casa e ficavam vendo filmes até de
madrugada. Certa vez Fábio apareceu com uma fita pornográfica, mas Eduardo, com muito medo
de aparecer alguém e pegá-los vendo uma coisa tão feia, não quis ver.
Era uma amizade boa.
Volta e meia dona Sônia estranhava a ausência do rapaz e perguntava de Fábio, ao que Dudú
apenas respondia – vai bem...
Será que ia?
Ed desejava que sim.
Já era sexta-feira e Fábio não tinha nem pisado no cursinho a semana inteira. O que fazia tanto
Fábio que não podia contar nada para ninguém, nem para Eduardo, o seu melhor amigo? Isso
estava extrapolando e Edú estava decidido a ligar para Fábio e pedir explicações. É!
-É o que eu vou fazer! – o rapaz exclamou extasiado.
-O quê??? – perguntou Marcos intrigado.
-Ãh?! – acordou Duda de seu devaneio – Nada! Nada não!
Os colegas ainda o olhavam em silêncio.
-Vamos subir para a sala? – propôs Eduardo.
E foram-se todos escadaria acima, para terem as aulas de sexta.
.....
Na hora do intervalo, Ed, que geralmente ficava na sala de aula, resolvendo os exercícios com um
grupo de estudo, decidira descer para comprar lanche, pois saíra de casa sem tomar o café da
manhã.
Assim que pisou no pátio, seus colegas o chamaram:
-Eduardoooooooo!!! – fez o coro de vozes masculinas.
Edú apenas olhou e fez um gesto como quem diz, "já vou".
Rumou para a cantina e pediu um misto quente com guaraná.
Tratou de comer tudo antes de voltar para o grupinho de amigos, pois não estava nada a fim de
dividir seu desjejum com um bando de marmanjos que com certeza devorariam o seu café da
manhã em um segundo.
Enquanto mordia o pão, uma garota se aproximou dele e perguntou:
-Você é o Eduardo, não?
Ele concordou balançando a cabeça.
-Eu sou Rose.
Novamente balançou a cabeça para dizer “muito prazer”.
A garota prosseguiu:
-Eu sei que você é amigo do Marcos. Eu queria saber... ele tem namorada?
Eduardo fez que não com a cabeça e a garota virou puro sorriso e saiu de perto sem ao menos
agradecer a informação.
“Garota estranha...” Eddie pensou com seus botões enquanto engolia o lanche.
-Pois é Eduardo... o meio do ano já está quase chegando... – disse Marcos, com sua cara
irremediavelmente estúpida, assim que Eduardo entrou na roda – ...e a galera tá afim de ir viajar
nas férias.
-Viajar? Prá onde? – quis saber Edú.
-Para Quatro Barras – informou Carlos.
-Como? – Eduardo riu com desdém – Quatro Barras??? No inverno??? – e conclui como se os
demais fossem loucos – Não, eu não vou! – disse bem com tom de reprovação afim de deixar bem
clara a sua vontade de ficar em casa e quente durante Julho.
-Ah! Cara, deixa de ser embação! – protestou Marcos – A gente vai fazer camping durante quase
um mês inteiro. Vai ser demais!
-Nem vou...
-Putz cara! Já não basta o Fábio não dar mais nem sinal de vida, você também vai abandonar a
gente? Como vai ficar nossa gangue? – reclamou Marcos, que queria porque queria que Dudú
fosse acampar com o povo – vai ser que nem nos velhos tempos de colegial. Lembra?
Mal soou o sinal de saída, a maior parte dos alunos se levantou. Todos pareciam desesperados
para ir embora e curtir o final de semana de uma vez. Parecia fim de catequese, com as crianças
loucas e impacientes que ficam olhando o sol brilhando pela janela mas nada podem fazer a não
ser esperar para estarem livres.
Eduardo ainda guardava seu material.
Não estava com muita pressa, pois como havia feito o roteiro do seu dia logo pela manhã, tinha
tudo programado na cabeça e sabia que tinha tempo de sobra para guardar o material, desguardar
e guardar de novo.
Ia almoçar pelo centro e pegar as aulas de revisão durante a tarde.
Sempre que podia fazia isso, pois revisava os tópicos de maior importância que foram expostos no
decorrer da semana. Tinha a vantagem de fazer isso porque os alunos que iam a essas aulas
estavam interessados em aprender de verdade, então a sala não ficava tumultuada.
Assim que acabou de guardar tudo, ficou observando as pessoas saírem e a sala ir se esvaziando.
Observou que poucos permaneciam sentados como ele, aguardando a multidão desaparecer.
Dentre os que ainda se encontravam em seus lugares, estava Henrique.
Provavelmente esperaria até a última pessoa sair e tudo ficar parecendo-se com um deserto, a fim
de evitar qualquer tipo de comentário.
Eduardo ficou o observando.
Sim, Henrique tinha trejeitos efeminados, mas nada que o garoto fizesse tornava evidente a sua
opção sexual. Achava babaquice o que faziam com ele e não via motivo para tratá-lo com tanto
preconceito.
Era um garoto magro, feio, de cabelos escuros bem curtos e olhões pretos brilhantes. Talvez fosse
por conta de sua aparência frágil que todos se aproveitassem para humilhá-lo. Se fosse alto e
forte, a história poderia ser diferente...
-Bando de covardes... – sussurrou Eduardo mordendo os lábios.
A sala já estava quase vazia.
Sobrara apenas Eduardo e Henrique, que continuava sentado.
Duda foi caminhando para a porta, até que parou e perguntou:
-Você não vai embora?
Os assustados olhos negros fitaram Eduardo.
-Daqui a pouco – disse Henrique timidamente, que de pronto desviou o olhar para as mãos – eu
sempre espero todo mundo ir embora.
-Pois é. De vez em quando eu também faço isso. Quando fico pelo centro não tenho pressa. Meus
amigos, alguns deles, ficam comigo também de vez em quando, mas muito de vez em quando, só
quando eu aviso que tal matéria é importante e vai cair com certeza na prova do fim do ano.
Henrique estava mudo.
-Eles não ligam para os estudos – foi dizendo Ed – e acho que tampouco se preocupam por ser
ano de vestibular. Tudo o que querem é fazer festa. Talvez por isso esse comportamento.
Silêncio.
-Imagine você que eles querem acampar em Quatro Barras em Julho!!! – Eddie confidenciou.
-Quatro Barras no inverno? – admirou-se Henrique – Por acaso seus amigos são loucos?
-São – o rapaz concordou – E querem que eu vá junto.
-E porque não? Se são seus amigos, vai ser divertido...
-Acontece – explicou Dudú – que eu não gosto dos meus amigos realmente. É um bando de
imbecis. Parece que ainda têm quatorze anos. Não amadureceram e nem querem amadurecer.
Isso me deixa muito revoltado.
-Eu tô vendo! – exclamou o rapaz.
Eddie olhou ao redor. Apurou os ouvidos:
-Bem, acho que o colégio inteiro já saiu – disse Eduardo, que depois olhou para o garoto sentado e
convidou – Vamos?
Henrique olhou para Eddie, que estava perto da porta de saída da sala e tinha uma expressão
curiosa na cara. Não acreditava que um hetero estaria sendo legal com ele, pois todos os garotos
que lhe dirigiam a palavra o faziam com o intuito de lhe ferir.
Mas Edu tinha a face tranqüila, expressão pura e natural de quem simplesmente está esperando
pelo amigo.
Henrique sorriu internamente, pegou a sua mala de cima da carteira e dirigiu-se para a porta.
-Eu sou Eduardo – apresentou-se.
-E eu sou Henrique.
-É, eu sei – Edú comentou sorrindo – você é bem famoso aqui no cursinho.
Eduardo referia-se ao fato de todos pegarem no pé do pobre garoto. Fizera o comentário sem
nenhum veneno na voz. Disse como quem está ciente da situação, como quem sabe que existem
inimigos, mas é do partido aliado.
-Cambada de idiotas. Mas eu não ligo.
-Claro! Quem não deve não teme!
-Não é esse o caso. Eu apenas não ligo. Finjo que não é comigo, pois se desse trela só iria me
estressar a cada provocação que recebo.
-Faz bem – ponderou Eduardo.
Henrique soltou uma risada de escárnio:
-Faço? – indagou em tom irônico – De vez em quando eu não acho que a coisa certa a se fazer é
ficar calado. Tem vez que eu quero é meter um soco na cara dos filhos da mãe!
-E porque não faz então?
Henrique olhou para Eddie e indagou:
-Por acaso tá escrito super-homem na minha testa?
.....
Eduardo ia descendo a rua de casa, em passos lentos.
Acabara de assistir as aulas vespertinas e agora o grande sol vermelho já estava se pondo,
deixando o céu nublado com um tom púrpuro, como se um grande manto de veludo alaranjado
manchado com vinho tivesse sido jogado em cima da cidade.
O garoto andava e lamentava que as réstias de sol do outono não estivessem ali para iluminar a
rua com poesia. Era tão belo quando a vida parecia uma pintura renascentista. E do modo que
Eddie estava se sentindo, meio melancólico, talvez o verde das folhas com gotas de sol pudessem
se refletir em seu interior acalentando-o.
Não conseguira prestar muita atenção no conteúdo das aulas, pois ficara pensando em Henrique.
Sentia pena por ele – e não dele.
Era um sentimento estranho, que começava pontiagudo e terminava arredondado, talvez fosse a
conformidade, tão temível por Eduardo mas latente na situação, pois o que poderia ele fazer?
Que tinha ele a ver com a vida de Henrique?
Mas de qualquer modo, aquilo incomodava.
Não conversara muito com o garoto, que foi logo embora para casa, mas constatara que ele era
gente boa prá caramba.
Não merecia estar passando o sofrimento à que o estavam submetendo.
Eduardo pôs-se no lugar do pobre rapaz e chegou à conclusão de que se fosse com ele, já teria
explodido há séculos. Não sabia como Henrique suportava aquela situação.
Capítulo IV
Em seu quarto, de banho tomado e já vestido, Duda arrumava uma mochila com itens de
sobrevivência para levar para casa de Camila. Levava pijama, escova de dente, pente, e o
principal: suas apostilas do cursinho. Iria ignorar a namorada estudando, ou pelo menos fingindo
que estava fazendo isso.
Deitou-se na cama e pegou o telefone. Discou rapidamente os números.
- Alô? O Fábio está? – Ed foi perguntando assim que atenderam.
- Dudú? – perguntou a voz do outro lado.
- Oi Fábio! Puxa, tudo beleza? – indagou Eduardo super animado ao reconhecer a voz do amigo.
- Diga aí seu Eduardo! – festejou Fábio, igualmente feliz.
- O que aconteceu com você? Andou sumido a semana inteira!
- Pois é... andei ocupado... – o tom da voz do amigo era do tipo “sim, andei fazendo mil e uma
coisas, mas, por favor, não me faça falar delas...”.
Duda resolveu passar por cima disso:
- Ocupado com o quê?
- Com uns negócios aí... – esquivou-se o rapaz. Obviamente não queria comentar nada, e isso, de
certo modo incomodava Eduardo, que estava com a pulga atrás da orelha. Porque o amigo agia
deste jeito?
- Porque isso Fábio? – perguntou Ed.
- Porque isso o quê? – Fábio deslavadamente rebateu a pergunta com outra. Coisa típica dele
quando queria fazer-se de inocente. Mas Dudú não caía nessa, pois lançava mão deste mesmo
artifício quando as coisas iam apertando ao seu redor. Talvez tivessem desenvolvido a técnica
juntos.
Perguntou:
- Porque você anda misterioso? – em sua voz, fazia-se nítida a exigência de uma resposta
plausível. Mais nítida ainda era a impossibilidade de uma desculpa esfarrapada ser engolida
facilmente. Fábio teria que se explicar – e muito bem! Afinal Eddie era o seu melhor amigo e
sentia-se no direito de saber de seus passos – Faz tempo que a gente não têm uma conversa
decente. Faz tempo que você deixou de me contar as coisas. O que foi? – indagou como uma
mulher rejeitada que pergunta “o que aconteceu? Eu não te atraio mais? Estou caída? Você tem
outra?”.
- Foi nada não – respondeu Fábio, cruzando a linha vermelha – É só que não tenho novidades.
- Não Fábio – indignou-se Eduardo – Você sabe que não é isso. Não se faça de palhaço e não me
venha com desculpas.
Fábio estava mudo. Edú continuou:
- Você tá sabendo que a turma quer ir acampar no meio do ano?
- Não – o amigo respondera sinceramente. Realmente ignorava o fato. Agora, mesmo sabendo do
plano dos amigos, tampouco se animara com a idéia – Quem vai? – o desinteresse era claro em
sua voz.
Edú, sem graça, respondeu:
- A galera... – e foi citando os nomes – O Marcos, o Lucas, o Jorge, o Carlos, o Rodrigo e mais uns
outros. Eles pretendem se divertir prá caramba!
- Ah... – fez Fábio, como se raciocinasse algo a respeito do que se falava – o povinho de sempre!
- E aí? – perguntou Eduardo, com entusiasmo teatral. Sabia que Fábio já não demonstrava o
mínimo interesse pelo que se passava com a “turma” fazia bom tempo.
Talvez como Edú, Fábio já devia ter percebido o quão enfadonho era o grupo de “amigos” com que
andavam. A única diferença, porém é que Fábio já havia começado a fazer o que Edú queria ter
feito faz tempo: o afastamento do grupo.
- Nem estou afim... – respondeu o amigo, cuja resposta não surpreendera em nada Eddie. Já
esperava por algo assim. Foi o que ele fez ao recusar diretamente ao grupo.
- Não quer nem saber onde vai ser? – tentou novamente, revestindo o remédio intragável com uma
camada de mel.
- Diga.
- Em Quatro Barras.
Fábio se espantou:
- E você vai???
- Eu não! – exclamou prontamente Eduardo, como se só a idéia de ele ir fosse absurda.
- Então porque me chamou? – quis saber o amigo, encurralando o outro contra a parede.
“Não está sendo algo muito agradável falar com Fábio” pensou Edú, mas este apenas se
defendeu:
- Eu não chamei, só perguntei se você sabia do acampamento.
- Ah...
A conversa não estava levando ninguém à lugar algum.
Depois de um momento de um silêncio – de péssima qualidade – Eduardo mudou o tom de voz e
dessa vez perguntou super animado e carregado de interesse:
- Mas e aí Fábio? O que você tem feito de bom e proveitoso que possa ser comentado?
- Nada demais... – disse Fábio com naturalidade – saio de vez em quando, vejo um pessoal por aí
e pronto!
- A turma tá dizendo que você tá envolvido com drogas – desabafou Eduardo, que já não
agüentava mais de tanta preocupação com o amigo.
- Há, há, há, há! – riu gostosamente – Disseram mesmo?
- É! – afirmou Ed.
- Não, eu não estou envolvido com drogas – explicou o amigo, ainda rindo e depois esclareceu –
Mas confesso que já experimentei.
- Eu sei, seu mané! – comentou Eduardo – Eu lembro! Você me contou!
- Pois é! – e curioso indagou ainda – E o que mais o povo disse?
Ed sem rodeios:
- Que talvez suas saídas misteriosas escondam um belo par de pernas...
- Saídas misteriosas? Belo par de pernas???
- É isso aí! – afirmou Eduardo – Dizem que você tem namorada ou é amante de alguma coroa!
Pior, já até rolou comentário que você engravidou uma mina por aí... Fábio, todo mundo morre de
curiosidade para saber aonde você vai nos finais de semana, que não conta para ninguém!
- Ah, é? Ôrra, eu não sabia que era um mistério. Mas não sabem porque não querem. Ninguém
pergunta diretamente... – Fábio comentou com descaso.
- Ah é? Então não seja por isso. – Ed iria aproveitar a brecha que o amigo lhe abria – Aonde você
vai tanto?
Com naturalidade, o amigo lhe contou:
- Em boates gays!!!
Edú ficou paralisado.
Silêncio.
Não podia acreditar no que ouvira. Aquela notícia tinha caído feito bomba em seus ouvidos, que
agora zumbiam e incomodavam. Começara a sentir certa vertigem, quando, do outro lado da linha
Fábio explodira em gargalhadas:
- Há! Há! Há! Há! – e chorava de tanto rir – Eu tô brincando seu mané!!! Há! Há! Há!
Sem ao certo saber porque, uma sensação estranha percorreu a espinha de Eduardo. Era forte e
carregada com um misto de alívio e decepção.
Alívio porque seu melhor amigo não era gay.
De certo modo Eddie já sabia que Fábio não era, pois inúmeras vezes dormiram na casa um do
outro. Nadavam juntos e trocavam de roupa um na frente do outro. Tomavam até banho juntos e
Fábio jamais viera de papo-aranha para cima de Eduardo. Sem contar que em cada festa que iam,
Fábio agarrava praticamente todas as minas do pedaço.
Mas ainda não sabia porque se sentiu estranho ao ouvir tamanha brincadeira de mau gosto.
O que o incomodara? Aliás, porquê o incomodara?
Perdera a fome instantaneamente! Embora até um cachorro com síndrome de down pudesse
entender a indireta, Eddie resolvera fingir que não havia entendido.
- Mas o que é isso Camila?? Eu não sou egoísta! – o rapaz fez a comida entalada descer pela
garganta – Deixa de ser boba! – e olhou solícito para a irmã da namorada – Fran, se você quiser
eu divido a sobremesa com você!
.....
Terminada a janta, todos conversaram um pouquinho ainda à mesa, até que Camila se levantou e
chamou o namorado, ela tinha que arrumar um local para Eduardo dormir. Fran ficou lavando a
louça, enquanto Camila e Ed foram providenciar isso.
- Me ajuda aqui Dudú! – pediu Camila, puxando o colchão de dentro do armário da irmã.
O garoto foi para o lado da namorada e puxou o colchão de uma vez só. Com a força que tinha,
acabou puxando junto quase todo o conteúdo do armário. Algumas revistas caíram de dentro e
foram se espatifar no chão.
- Ahá! – fez a garota, como se desvendasse um mistério – Então é aí onde minha irmã as
esconde!!! – exclamou Camila olhando para as revistas espalhadas pelo chão – Venha amor,
vamos olhar algumas!
- Nem tô afim... – respondeu Eduardo, olhando sem interesse algum para os exemplares – São só
revistinhas de moda!
- Ah é? – fez Camila – Olha só! – e puxou do meio das revistas uma com a capa bem diferente das
capas das demais. Era uma revista de homens pelados – Veja só que pervertida minha irmã é!!!
Eduardo arregalou os olhos. Fran não parecia ser do tipo...
Camila sentou-se na beira da cama da irmã e convidou Eduardo a fazer o mesmo. Assim que o
garoto sentou, a namorada abriu a revista e exclamou:
- Isso deve ser muito engraçado! – e riu – Veja! – e apontou para o primeiro modelo – Olha só esse
cara! Que gostoso!
Era um homem, expondo tudo de fora, com o pintão duro em uma pose sensual debaixo de um
chuveiro ligado. Parecia um operário de mão-de-obra pesada tirando o cansaço e o suor depois de
um árduo dia de trabalho.
- Não vejo nada de mais! – disse Edu, chacoalhando os ombros em fingido desdém – Que que
esse cara tem de gostoso? Ele é feito de morango por acaso??? – e continuava tentando colocar
apatia em sua voz e demonstrar desinteresse.
A realidade era a seguinte: achara a foto um tanto quanto atraente.
Nunca havia visto nenhuma revista de mulher pelada, muito menos de homem. Parecia que estava
fazendo algo feio, algo estranho... ilícito! E aquela sensação, embora fosse muito estranha, era de
certo modo excitante.
- E olha esses dois! – ria-se Camila, virando a página – Que horrorosos!!! Se bem que a bundinha
desse...
Eduardo viu a foto.
Tratava-se de dois caras, conversando por cima de um muro. Um estava de costas e outro de
frente. Realmente os caras eram horríveis, mas os corpos deles... eram maravilhosos.
Eduardo não queria admitir, mas reconhecia a beleza deles.
À medida que as páginas iam revelando novas fotos, novos lugares e mais situações insinuantes,
Eduardo ia fixando o olhar nas faces perfeitas dos modelos, com seus corpos esculturais e
semblantes de deuses gregos.
Toda aquela beleza, aquela situação da nudez encarada na boa pelos modelos, como se fosse
algo natural e agradável, fizera com que uma fagulha se acendesse no interior de Ed.
Não sabia bem ao certo porque, mas estava se sentindo atraído pelos corpos definidos,
bronzeados e totalmente másculos.
Algo mexia com ele.
E agora... isso!
Ele estava sentindo tesão em ver homens pelados na revista quando na verdade devia era estar
sentindo nojo ou qualquer outra aversão pelo mesmo sexo.
...mas não estava.
Muito confuso, Eddie tirou a revista das mãos da namorada e indagou:
- Puxa... amorzinho, vamos parar logo de ver isso e voltar a arrumar minha cama, ok?
- Não Eduardo! – protestou a namorada tentando pegar a revista de volta – Eu quero ver! Me
devolve isso aqui!
- Não! Não devolvo não! Tá pensando o que da vida? Acho que não é legal você ficar vendo esta
baixaria! – o garoto coçou o olho direito, pigarreou e completou sem muita firmeza – Esta pouca
vergonha!
A garota revoltou-se:
- O quê??? Você não acha legal? Escuta aqui Eduardo, senhor bam-bam-bam, nós mulheres
também temos o direito de ver homem pelado, tá? Se a mulher pode mostrar tudo pro homem ver,
porque o mesmo não poder acontecer ao contrário? Me diga!!!
- É que... – Ed tentava argumentar sob o olhar inquisidor da namorada – veja bem, sob o ângulo da
moral... bem... é que...
- É que o quê???
- Não... não é nada... é só que não concordo com isso e pronto! – o rapaz desembuchou tais
palavras com as bochechas tão vermelhas quanto um tomate bem maduro.
- Ah é? Então só a mulher que tem que posar nua, aparecer pelada na televisão nestes
programinhas de auditório e só as mul...
- Não – Ed interrompeu – eu estou falando que eu não concordo tanto com o homem quanto com a
mulher. Nenhum dos dois precisa ficar se mostrando, ficar se vendendo vulgarmente. É disso que
eu não gosto! De vulgaridade!!!
Camila ficou olhando para o namorado sem dizer palavra.
Eduardo tornou a indagar:
- Agora, por favor, podemos arrumar a minha cama?
.....
Deitado em seu colchão, à meia luz, enquanto esperava Camila terminar de se trocar, Eduardo
pensava nas fotos que acabara de ver e na sensação que elas tinham despertado nele.
A cabeça estava que era um nó que ia se apertando cada vez mais.
- Eu achei homem bonito... eu achei homem bonito... – o garoto balbuciava como se estivesse
delirante e com febre.
- O quê? – perguntou Camila indo se deitar.
- Nada não...
- Ãhn... – fez Camila que agora se encontrava deitada também, mas sem cobertas e com uma mini
camisola.
Passado um momento de silêncio, a garota perguntou toda doce:
- Dú... posso apagar a luz do abajur?
Edu arregalou os olhos, levou a mão na testa e pensou “pronto, começou!”. Tentou se safar:
- Não sei... eu estou querendo dar uma estudada...
- Ah... estudar? Essa hora da madrugada?
- É.
Novo silêncio.
- Oras... pensando melhor... pode apagar a luz sim Camila, que eu não vou estudar! – resolveu
enfim o garoto.
- Ok.
Quando o quarto ficou escuro, a namorada tentou jogar mel, justamente como Ed havia previsto:
- Puxa amor... tá tão friozinho aqui né?
Ele, com a delicadeza de um Jeca respondeu:
- Se cobre, ué!
- Mas... eu tava pensando... bem... – ela estava totalmente sem graça – ...eu tava pensando
Duduzinho... que talvez você pudesse... você sabe... vir deitar aqui comigo...
Eduardo já ia respondendo “Deus me livre”, quando uma idéia se passou em sua cabeça.
Agora era a hora.
Com certeza!
Ela já estava tentando seduzi-lo e ele... bem, ele poderia deixar se seduzir.
Afinal, era homem, era macho e seu tesão tinha que ser por fêmea!
Nada dessa história de ficar excitado vendo revistinhas de homem pelado... não, não! Se era
mesmo homem, a hora de provar isso tinha chegado e era AGORA!!!
E não tinha desculpas!
Sem nada dizer, passou para a cama da garota num pulo.
- Amor!!! – ela exclamou praticamente incrédula e com um baita sorriso esculpido em seus lábios.
Eduardo começou a beijá-la, a abraçá-la, a se esfregar contra o corpo da namorada, tentando por
em prática o que seus instintos naturais lhe pudessem oferecer para a realização da “missão”.
Tirou a camisola de Camila, tirou seu pijama, ficaram os dois apenas com suas roupas íntimas e
Eduardo continuou acariciando a namorada. Continuou tentando... tentando... mas...
...nada acontecia.
O “negócio” simplesmente não funcionava.
Prosseguiu durante mais algum tempo, mas acabou desistindo.
- O que foi? – quis saber Camila que estava adorando, pra lá de excitada e pensando “oba! É
hoje!!!” – Que há de errado?
- Não... não é nada... – desculpou-se Ed.
Agora sim sua cabeça estava latejando tamanha era sua preocupação.
Como aquilo podia estar acontecendo? Como ele podia não funcionar com uma garota tão bonita
quanto a que ele tinha? Uma garota que se encontrava quase nua, disposta a ir até o fim, em uma
cama, no escurinho? Uma garota que era dele, só dele?
- Se não é nada... então porque parou? – indagou a garota, ofegando.
- Porque... isso não parece certo!
- Amor, o que não parece certo?
- Eu não sei... – e ele realmente não sabia – só não parece ser.
- Mas porque?
- Ah Camila... – e o rapaz foi tratando de arranjar uma desculpa – você é ainda tão jovem...
- E que tem isso demais? Você também é!
- Puxa! Eu sei! E é justamente isso! Vai que acontece alguma besteira? Vai que sai algo errado?
Eu não quero que você tenha traumas...
- Dú... – Camila passava as mãos pelos cabelos do namorado com muito carinho e sussurrava
– ...a gente já conversou sobre isso antes... você sabe muito bem o que eu penso! Amor, eu estou
pronta, eu quero!
A confusão era tamanha, que o garoto se sentia encurralado.
Não sabia o que fazer. Aquilo era por demais horrível para ser encarado na boa de uma hora para
a outra. O turbilhão em sua cabeça fazia uma pressão tremenda.
Não demorou, o garoto explodiu em lágrimas.
Apenas respondeu:
- Mas eu não estou pronto, eu não quero!
E escorreu para a sua cama no chão.
Capítulo V
Era meio como se tivesse sido pego com a boca na botija, um ladrão na
iminência de deixar a cena do crime de modo desonrado, covardemente após
o delito.
- É... eu sei.
Um silêncio monstruoso invadiu o quarto.
O garoto.
A garota.
O silêncio.
Camila era apaixonada por mitologia e vivia contando lendas para Eduardo, mas
ele não estava muito certo se sabia com exatidão quem Pan era,
tinha apenas uma vaga e incerta lembrança.
- Pois Pan era muito feio. Nenhuma das musas o desejava. Um dia, Afrodite, a
deusa do amor, deu-lhe uma flauta encantada. Disse lhe que cada vez que tocasse
o instrumento, as musas o desejariam. E Pan tocava a flauta – Camila foi
dizendo – para as suas musas... e elas se encantavam... se enamoravam
dele, mas ele a nenhuma queria...
- Como poderia...
- Afrodite não havia explicado... quando um ganha, outro perde. Ele perdia
interesse quando as musas os procuravam. Então, um dia as belas entidades
se revoltaram e roubaram a flauta de Pan enquanto ele dormia. Em vingança,
retiraram uma nota musical do instrumento. Quando Pan despertou, foi tentar
tocar sua flauta para encantar as musas e descobriu que ao invés delas
se apaixonarem por ele, eram os anjos que acabavam sob o seu encanto.
- Mas...
- E foi assim. Cada vez que Pan tocava sua flauta, fazia os anjos caírem...
Camila narrava a história de tal modo que parecia que ela mesma tinha
participação neste mundo mitológico. Parecia querer passar
um recado como quem diz “eu tenho medo de cair morta também”.
Cedo ou tarde alguém ia sofrer por conta disso. Ele demorou ainda um
pouco para quebrar o silêncio, mas finalmente indagou:
- Deixa de bestei...
- O quê?
O garoto nada pode dizer. Não podia procurar dentro de si palavras seguras
e honestas para falar, pois se o fizesse, magoaria mais ainda a namorada, preferiu
ficar calado, forçando sua natureza madura se calar, e isso lhe consumia
tanta energia que tremia inteiro.
- Nada... tchau.
.....
No caminho de volta para casa, Eddie desejava não ter sentimento algum.
Nem bondade, nem ruindade, nem alegria nem tristeza, nem sensação
de fome nem de saciedade, nem plenitude, nem solidão. Seria mais tão
mais fácil ficar neutro. Iria parar de machucar os outros com sua cabeça
dura e também iria parar de se machucar.
Caminhava rua abaixo, tomando o rumo de casa, arrancando folhinhas dos álamos
de copas gordas e verdejantes. Além de ter aquele maldito nó em
sua cabeça, ainda se preocupava em bolar uma desculpa convincente para
apresentar aos pais, que certamente iriam estranhar a sua presença de
volta em casa tão cedo.
PIMBA!
O chute que deu fora com mais gosto do que se fosse uma bola na mira exata
do gol. Deu um bicudão bem na ponta do focinho do animal que voou para
longe com o impacto. A trajetória que o cachorro descreveu no ar fora
a mais desajeitada o possível, o bicho mais parecia um saco de batatas
todo desconjuntado do que um ser vivo.
- Besta demoníaca...
Resolveu investigar...
Estava intacta.
Como podia ter matado o cachorro com apenas um pontapé? Será que
o bicho tava se fingindo de morto. Era bem capaz do jeito que o cão era
ruim feito a peste... Eduardo estava perplexo.
E agora?
O que faria?
Ele podia muito bem ir para casa e deixar o incidente morrer por ali mesmo,
uma vez que não existiam testemunhas. Podia ainda dar sumiço do
cachorro, assim seria apenas mais um bichinho que saiu de casa e não
voltou mais.
Bem, o correto Eduardo sabia muito bem o que era, mas simplesmente não
o podia por em prática. Nunca teria coragem de tocar a campainha e dizer:
- Oi! Sabe o que é? Eu estava descendo a rua para ir para casa, pois eu
moro logo ali no retorno – e teria que dizer com a maior cara de pau –
quando dei um chute no seu cachorro e o matei!
.....
Ao tocar a campainha, Eduardo suava frio nas mãos. Esfregou uma na outra
e estufou o peito.
Estava ali parado diante da porta sem ao menos ter bolado uma desculpa decente.
Ia apenas inventar na hora, pois sempre que bolava algo para ser dito, acabava
dizendo tudo ao contrário.
Quem a abria era um rapaz de aproximadamente vinte anos, com uma toalha enrolada
na cintura. Tinha os cabelos encharcados e o corpo molhado ainda.
O garoto daquela casa se parecia muito com um dos modelos da revista que vira
na casa de Camila.
Ed tinha certeza que aquela toalha branca e felpuda escondia um par de pernas
fantásticas, com coxas poderosas...
...o garoto não queria nem pensar nisso! Era como se algo de maléfico
voltasse para sua cabeça, algo que simplesmente não podia ser,
como um anjo vingador trazendo sofrimento aos pecadores.
Tratou de desviar o olhar, virar a cara para outro canto qualquer e falar:
- O-oi! Sabe o que é? É... e-eu estava descendo a rua para ir para
casa, pois eu moro logo ali no retorno – disse Ed, totalmente sem jeito
– quando de repente passou um cara em uma bicicleta que passou por cima
do pescoço do seu cachorro!
- Mas você viu quem era o cara? – indagou o rapaz sem mostrar muita
preocupação na voz.
- Ro-roupa?
- Vi sim! Ele tava usando uma calça jeans bem velha, uma camiseta preta
e chinelos tipo havaianas...
O rapaz sorriu segurando a porta, enquanto seu cabelo pingava pelo rosto de
pele clara:
- Você reparou tudo isso... – fez uma pausa ainda sorrindo e foi
logo jogando verde – ...e não viu como era o homem?
- É que... – desculpou-se Edú – ...é que o cara
passou muito rápido e estava de costas pra mim...
- Ah! – fez Eduardo como se finalmente entendesse uma conta muito difícil
– Sei... sim, Fred... – fitou o vazio lembrando em flashback a cena
do chute e afirmou sem o mínimo tato – É... seu cachorro
morreu sim... tá ali na grama...
- É?
- É! Sério! – e a cabeça que aparecia detrás
da porta gargalhava.
.....
Não que fosse tarado, mas uma força de natureza misteriosa obrigava
os olhos do rapaz a ficarem grudados na traseira do outro. Alguém de
fora precisaria deixar a vulgaridade indiferente e reparar na beleza escondida
por detrás daquela cena. Apreciação total que Eduardo tinha.
- E eu o Rodrigo!!!
O garoto de toalhas sorriu e saiu do quarto, deixando Edú com seus pensamentos.
De algum modo aquilo parecia errado, embora não existisse ali nada que
dissesse que aquilo era errado. Não havia nada de anormal, afinal, já
estava bem acostumado a esperar amigos saírem do banho. Era normal após
o esporte, era normal quando iam a festas. Esta mesma situação
já tinha se repetido umas mil vezes com Fábio e nunca tivera a
conotação que agora tinha...
...o que seria isso que tornava a estada ali naquele recinto tão inquietantemente
errada? Aliás, tão deliciosamente errada?...
Era uma peça, que embora meio desordenada, acalentava muito aconchego
e dava um toque displicente ao recinto.
O quarto tinha um cheiro que muito agradou Edú. Não sabia distinguir
aquele cheiro, não sabia que estranho odor era, mas acalentou-se e sentiu-se
bem por estar naquele ambiente.
Havia uma estante onde diversos troféus estavam expostos. Eram de muitos
tamanhos, com inúmeras medalhas ao redor do pescoço de estatuetas
ora prateadas, ora douradas.
O rapaz ainda estava com uma toalha enrolada na cintura, mas já era outra
e desta vez, não pingava. Acabara o banho e se secara, penteara os cabelos
e cheirava muito bem.
- Ok... – fez Eduardo não para apoiar a frase de Rodrigo, mas sim
para não se parecer como uma múmia que não interage na
conversa.
Ficou nu em pêlo.
Sabia que Duda sentia-se desconfortável, mas queria estudar a sua reação.
- E-eu? – gaguejou Eduardo com muita vergonha, sem olhar para o corpo do
rapaz.
Incomodava porque Eddie queria olhar, mas não podia, se pudesse teria
que ser natural, mas se olhasse jamais seria natural. Algo muito confuso, mesmo
assim, Eduardo lutava para se expressar de maneira adequada e não transparecer
em sua voz esse fascínio às avessas:
- Na Federal?
- É...
- Te-tenho! – acanhou-se Eddie, que a esta hora, olhava para qualquer canto
do quarto em que Rodrigo não estivesse.
- Porque nunca tive a presença dos meus pais. Tive apenas vultos deles.
- É! – confirmou Digo.
- Boate?
- É!
A GrooveLands!!!
- Você tem amigos gays? – quis saber Eduardo, num misto de nervosismo
e curiosidade.
Esperava ansioso por uma desculpa qualquer para poder se rir do moleque, que
estava totalmente sem defesas. Eduardo tremia o queixo tamanha a raiva que sentia.
- Passar bem!
E saiu bufando pelo mesmo caminho que fez para chegar no quarto do rapaz.
.....
Eduardo entrou feito um tufão em casa e foi direto sentar-se na mesa
da copa. Batera a porta da entrada atrás de si com toda força
que conseguira reunir. A casa inteira tremeu. Os pais de Edú que estavam
na saleta ao lado do hall de entrada escutando rádio e namorando um pouquinho
ao ouvirem o estrondo da porta reviraram os olhos.
- O que faz em casa tão cedo meu filho? – quis saber Sônia,
que se sentava do outro lado da mesa, como de costume.
O garoto continuava.
- Matei mãe!
- Oras! Isso na sua cara não me parece cara de alegria! Anda! Desembucha
logo menino! Conta o porque está assim! Eu e seu pai estávamos
namorando numa boa e você interrompeu! Não estou com tanta paciência
assim! Porque tá revoltado?
- Porque... porque... – disse Eduardo fazendo pausa para inventar uma desculpa
qualquer – ...porque eu fui avisar que o cachorro tinha morrido e o dono
do cachorro não gostou e brigou comigo!
- Como?
- Não... mas...
- Não tem mais nem menos Eduardo! Eu vou chamar o seu pai aqui!
Antes que Eduardo pudesse se defender ou pronunciar qualquer coisa em sua defesa,
dona Sônia falou:
- Isso é verdade? – o tom severo da voz do pai, fez com que Eduardo
sentisse vontade de chorar.
- Pai... é que...
O pai arregalou os olhos para cima do filho. Eduardo mais que depressa acrescentou:
- Mas foi sem querer! Eu não quis matar o desgraça... digo, o cachorrinho!
Pobrezinho! É que ele me assustou e eu nem pensei. Só chutei.
Foi sem querer! Foi sem querer! Foi sem quereeeeeeeeeerrrrrrrrrrrrr...
.....
Matara o cachorro. Mas isso não lhe parecia importante. Estava de castigo
por algo que os pais nem podiam imaginar o que era. Ia muito além de
um chute no focinho de um cão.
Era frustrante.
Já era quase onze horas da manhã e tinha o dia inteiro pela frente
ainda. Sentia que estudar, no momento, não daria certo.
Puxa... até que ele podia entrar na internet... mas deveria esperar até
as duas horas da tarde, para ficar mais barato. O que faria neste período
de tempo?
- Puxa! – era mania do garoto falar puxa para tudo – Você não
faz idéia do que eu estou passando!
Ou pra baixo.
Como cair estava fora dos seus planos... resolveu andar para trás, já
que não conhecia o caminho adiante.
- Como assim? – quis saber Eduardo, que estava meio mongo por tudo aquilo
estar acontecendo.
Primeiro de tudo naquela lista bizarra era o estranho sentimento que se apoderara
dele no dia anterior ao ver as revistas. A segunda coisa: já de manhã,
magoara a namorada e se magoara.
- Camila... – ele ainda tentou argumentar, mas ela era mais rápida
e tinha toda a situação em seu favor. Era bem mais fácil
para ela ser a vítima, afinal ela era mulher, menor, mais nova e acima
de tudo “inocente”.
- Se bem que eu nem sei mais o que sentir... – a garota foi dizendo, incorporando
seu papel de anjo caído.
Era como uma batata quente que lhe tivesse caído em mãos.
- Vou pensar.
- Não vou te ligar durante uma semana e nem quero que você me ligue.
Era meio que uma cartilha que ele tinha na mente para tentar decifrar a namorada.
- Não sei... mas eu sei que quando terminar a segunda semana, a gente
vai se encontrar e vai ter que jogar limpo. Dizer cada palavra do que se sente,
cada palavra do que se passou neste período... tudo! Vamos ter que redefinir
este relacionamento ou acabá-lo!
Era a GrooveLandS!
Com muita curiosidade, Eduardo aproximava a foto e ficava tentando reparar nos
detalhes do local, mas embora enxergasse muito bem, a foto estava com o fundo
demasiado escuro e as pessoas em primeiro plano estavam muito brancas por causa
do flash, de maneira que acabavam chamando mais atenção do que
qualquer outro elemento da cena.
Era um mistério para ele como aquilo podia ser, mas já que era...
o que poderia ele fazer senão colher mais uma nebulosa?
O telefone tocou.
- Alô?
- Nada!!!
- Ah é? – fez Edú.
- Mas isso você não precisava nem me dizer. Acho um pouco óbvio
que essa idéia não tenha partido de ti.
Eduardo se explicou:
- Na verdade foram os dois, meu pai e minha mãe, mas a palavra do Seu
Antônio é o que conta... fazer o quê?
- Não!
- Atropelou o animal?
- Não!
- Mas como pode? Você ficou chutando o cachorro até ele morrer?
- Pois é... acho que assim pelo menos vai ser melhor, cada um vai poder
pensar direito o que sente de verda... – ia dizendo Eduardo quando ouviu
a mãe lhe chamar pela porta. Falou para o amigo – Olha Fábio,
vou ter que desligar. Minha mãe tá me chamando. Mais tarde eu
te ligo para confirmar se vou amanhã ou não, falou?
.....
- Mas não foi por querer benhê! Você viu o estado que o menino
ficou!
- Quem é?
- Ah... aquele moleque!!! Não liga não, que ele sempre foi assim
desde pequeno, sabe? Tem um gênio muito ruim o meu filho, às vezes
nem eu agüento... e olha que paciência de mãe é coisa
que...
- Não minha senhora! Seu filho não fez nada demais! Fez até
uma gentileza em avisar que o Fred, nosso cachorrinho, morreu. Imagine... o
que é que ele tinha a ver com isso?
Rodrigo continuou:
- Entendo...
- E fui injusto. Gostaria de falar com ele para me desculpar.
.....
Aquele cheiro maravilhoso, que tanto deixava Eduardo desnorteado... aquele odor
realmente surtia um estranho efeito em Edú... sentia todos os poros do
corpo abertos, prontos para algo selvagem.
E Rodrigo entrou.
- Mas agindo assim não me parece que esteja disposto a isso! – Edú
observou e sentou-se na cama também.
- Disso o que? – quis saber o outro, que agora olhava com a curiosidade
estampada na cara.
Neste momento Digo percebeu que Eduardo não entendia nada da linguagem
do “babado” e teria que explicar tintin por tintin as palavras que
pronunciava. E então recomeçou:
- Pois bem, fora estes indivíduos, que eu não tenho nada contra,
pois são muito queridos... a maioria é discreta. Não dá
nem para perceber que são homossexuais, nem pelo jeito de se vestir,
nem pelo modo de falar... você ficaria surpreso ao saber da quantidade
de gays que existe por aí... só em aqui em Curitiba... nossa!
Você não ia acreditar!!! – e terminou a frase balançando
a cabeça para cima e para baixo, como uma lavadeira de rio fofocando
com as outras enquanto bate a roupa nas pedras.
- Verdade?
- Eu quero dizer que para você... – fez uma pausa, olhou pra Eduardo
e continuou o pensamento fazendo ar de troça – ...você que
é hetero... – nova pausa – isso se for mesmo... bem, neste
caso então, sobra mais mulher para você!!! E já bem dizem
que aqui pro sul tá sobrando mulher... só não arranja uma
quem não quer... ou quem é gay!
- De jeito nenhum!
- Porra... castigo é uó! – Digo lamentou-se.
- É! Tenho!
- Sim...
- Ok!
O olhar de Eduardo sobre o novo amigo fora tão severo, que Rodrigo não
teve outra escolha a não ser redimir-se:
- Isso! Se for pensar bem, moramos na outra rua, não nessa. E por causa
da diferença de horário, nunca parece ter ninguém na casa.
Meus pais estão construindo uma clínica médica, e isso
também ocupa o tempo deles, que vistoriam as obras para ver como está
ficando. Durante o dia, meus pais dormem e eu, que estou acordado, estou fora.
De noite, eles estão fora e eu durmo ou fico lá pra dentro fazendo
qualquer outra coisa.
- Fico... não tem nada demais, a casa tem alarme e essas coisas.
- Mais ou menos... tem dias que a empregada dorme por lá. Mas não
sou muito amigo dela não. Da última vez que apareci com um namorado
lá em casa e ela nos pegou dando um “malho”, ela quase arrancou
meu braço tentando me puxar para a igreja. Armou o maior barraco com
meus pais e tudo mais.
- Puxa!
- Puxa... quem me dera ter uma oportunidade de festejar todas as noites... pelo
menos uma vez por mês eu ia chamar a galera para curtir.
Eddie pensou por momentos o que aquela frase representava. Apesar de alegre
e inocente, aquela era uma frase de peso e que mascarava uma grande mudança.
E parecia que era somente isso o que o rapaz ali queria, pois mal Eduardo pronunciara
essas palavras, foi logo dizendo:
- Falou!
Só depois de certo tempo o rapaz foi se tocar de que deveria ter acompanhado
o amigo até a porta...
Capítulo VI
Fábio provavelmente estaria temperando a carne na casa dele no mesmo instante em que seu
Antônio cuidava do seu grelhado com tanto carinho.
Nem o Diabo em pessoa, queimando no fogo do inferno com o seu tridente mirado para Ed poderia
ter parecido tão demoníaco quanto o pai parecera com o seu garfinho de churrasco ao lado do fogo
da churrasqueira...
É... o clima ainda pesava por ali...
.....
- Alô? – fez Eduardo assim que atenderam o telefone – Fábio?
- Oi Edú! – alegrou-se o amigo – E aí? Você vem?
- Nem vou... que saco! A coisa ainda está preta por aqui!
- Hum... a história do cachorro, né? – Fábio concluiu.
- É! – Eddie confirmou – Um porre!
- Ah! Nem tem problema! – o amigo disse em tom animador – Pelo menos você vai se livrar
daquela chatice toda!
- Nem fale... – Edú concordou. Realmente, vendo por este lado o castigo era coisa boa, pois pelo
menos esta desculpa ele tinha, por outro lado... – Mas, puxa cara, eu queria te ver, né? Faz tempo
que nós não fazemos nada juntos!
- É verdade... – Fábio ponderou – Quisera eu ter um cachorro para matar... – e pôs-se rir com a
brincadeira.
Eduardo também achou graça.
- É... assim você também se livrava, não é mesmo? – e indagou ainda, sem interesse, mas com
educação – Já chegou alguém aí?
- Ainda não, mas devem estar chegando em bloco lá pelas duas... – Fábio informou, sem interesse
também e quase sem paciência – Eu não sei o que eu vou fazer!
- Puxa... ataque em bloco da velha guarda... – e indagou, sem pistas – mas ainda não entendo o
que te fez liberar a casa para este churrasco. É como um padre liberando a igreja para uma festa
satânica.
- Credo Eduardo!!! Não fala desse jeito. Mas... devo admitir uma coisa para você, é mais ou menos
por aí... – lamentou-se em tom de profundo desânimo – sabe Dú... eu me sinto um peixe fora
d’água no meio desse povo... é um sem graça sem fim.
- Meus pêsames! – o rapaz recomendou honestamente. Sabia bem do que o outro falava, pois
começara a se sentir assim fazia um bom tempo já.
- Nem diga! Estou morrendo de vontade de ligar pro povo e desmarcar – o amigo reclamou sem
alterar a voz, mantendo a calma daqueles que não se abalam por nada – Isso é um porre! A idéia
nem foi minha! – e Fábio em sua calma deixava Eduardo reconhecer o que se passava por dentro,
pois esse pegava de longe e perfeitamente o tom de revolta na voz inalterada do amigo.
- E de quem foi a idéia? – Duda quis saber.
Como se fosse óbvio, Fábio respondeu:
- Do Carlos, de quem mais?
- Ah, é! – Ed deduziu, realmente percebendo a trivialidade da situação. E completou ainda em tom
de mofa – Novidade...
- Será que eu faço isso? – Fábio indagou.
- O quê? Desmarcar? Ih... acho que não, hein? – Eduardo aconselhou – Eles iriam ficar putos e
como já falam que você sumiu, que não é mais o mesmo... aí sim, te excluiriam do grupo de uma
vez por todas.
- É... você tem razão... – disse Fábio concordando com a observação do amigo.
.....
Por volta de três horas da tarde, Fábio apareceu na casa de Eduardo.
- Então você cancelou mesmo o churrasco? – disse Eduardo, admirando a coragem do amigo.
Estavam ambos deitados na cama, de papo pro ar, olhando um ponto vago no teto, como
costumavam ficar quando filosofavam ou quando ficavam à toa mesmo.
- É! – Fábio confirmou – Tô fudido agora!
- Tá mesmo! – Eduardo riu da cara do outro.
Nem sabia porque ria, pois analisando mais a fundo a situação, era bem mais complicada e séria
do que parecia. Dar essa falta para com a turma era como se fosse finalmente oficializada a
ruptura do passado.
Como desejava ele, Eduardo, que aquilo se desse também em sua vida
- O que é que o povo falou?
- Nossa! – e Fábio levou as mãos à cabeça – Me xingaram um monte! O Carlos foi o que mais
gralhou comigo. Eles ficaram muito indignados!
- É, eu imagino. – Ed riu-se novamente. E observou inutilmente – Considere-se fora do grupo daqui
em diante.
- Eu sei... – o amigo murmurou, para depois explodir em felicidade – Viva!!!
Quem os ouvisse falar, pensaria que a velha guarda era constituída por alguns monstros, senão
por um bando de mortos-vivos tarados sexistas trogloditas de caverna. E na verdade pura, ia levar
bem mais do que se falava para tornar um pingo sequer de todo aquele oceano em verdade.
Mas na cabeça dos garotos deitados na cama era essa a tempestade que se passava. A
convivência com aquela turma era bem pior do que viver entre traficantes barra pesada de boca de
morro.
Tal exagero levou Ed a desabafar:
- É! Que sorte você tem meu caro amigo! Eu já não agüento mais ficar com eles na hora do
intervalo e ter que falar sobre todas aquelas besteiras e futilidades que eles falam – e como se
confidenciasse algo indizível, abaixou o tom da voz o mais que pôde e disse – Eu devia ter feito
como você e ir caindo fora aos poucos... creio que agora seja tarde demais...
- Nem é! – disse Fábio para encorajar o amigo – E para falar a verdade, você nem deve satisfação
nenhuma para qualquer um daqueles caras lá! Se afaste e pronto! Afinal você é homem ou não?
Eduardo nem sabia ao certo... titubeando respondeu:
- Sou... – e preparou uma avalanche de desculpas – ...mas você tem que considerar o fato de que
eles são os meus amigos.
- E daí?
- E daí que com eles não tem esse negócio de “caiu fora, tudo bem”. Se eu pisar na bola, como
devem estar pensando que você pisou, eles já me passam do roll dos amigos para o dos inimigos.
- Que exagero! – Fábio observou.
- Não é exagero e você sabe muito bem disso! Com eles não tem meio termo! Ou é oito ou oitenta.
Ou você está com eles ou está contra eles!
Ponderando, o amigo respondeu:
- É verdade... e quer saber? Eu estou contra!!!
- Que inveja! – fez Eduardo, forçando a voz, como uma Maria fofoqueira.
Ontem não pude escrever em ti... estava muito puta para fazer isso!
O Eduardo me deixou sem paciência.
E hoje... fiz tanta coisa que não poderia nem listar aqui tudo o que fiz. Acho que é mais fácil anotar
o que eu não fiz, que foi falar com o meu Eddie.
Tão estranho sofrer por uma coisa que nem se sabe o que é! Injusto esse lance todo! Que saco!
Se ele tem um problema, porque não se abre comigo que sou a pessoa em que ele mais deveria
ter confiança???
Sabe o que é mais foda?
É que tenho que ficar uma semana inteira sem falar com ele! Burrice minha que inventei isso!
...mas eu vou agüentar!!! Vou sim!
Agora vou dormir. Tenho aula amanhã cedo!
Boa noite!”
.....
Segunda-feira, no cursinho, Eduardo passava por entre as pessoas como se não as enxergasse.
Chegara a esbarrar em uma ou duas. E nem pediu desculpas, apenas continuou andando. Será
que um dia voltaria a ser como era antes de toda essa confusão aparecer?
O rapaz acordara com um sentimento estranho.
Pensava em tanta coisa ao mesmo tempo que no fim das contas já não raciocinava direito. Todas
as idéias colidiam e repartiam-se em milhares de pedaços que não se juntavam e nem tinham
lógica nesse enorme quebra-cabeça mental.
Estava fora de órbita e via-se isso em sua fisionomia.
Tanto foi que nem o grupinho da velha guarda, reunida na entrada da sala de aula esperando o
sinal tocar, conseguiu tirar Ed de seu estado.
- Deixa quieto! – disse Jorge para Carlos, que ainda estava revoltado com Fábio e por troco de
nada começaria uma confusão.
- Vai ver que o cérebro dele já está começando a derreter de tanto que ele estuda e sobrecarrega o
coitado – Marcos brincou, olhando em volta esperando aprovação geral do grupo.
E Carlos disse:
- É cara... sinto em informar que quem estuda demais acaba virando um Nerds com impotência
sexual...
E Eduardo, sem um pingo de paciência exclamou em tom de ameaça:
- Não enche o saco, falou? – e retirou-se dali.
Ao entrar na sala, foi direto para o seu lugar.
Tirou a apostila de dentro da mala e pôs-se a revisar a lição trinta e quatro de física. Fora a que
mais lhe dera trabalho e queria ficar craque na resolução daquele tipo de problemas.
Estava desligado do mundo exterior, tamanha sua concentração, que levou o maior susto quando
lhe tocaram no ombro. Era Fábio, que finalmente aparecera na aula.
- E aí cara? Beleza? – Fábio perguntou – desculpa te assustar, não foi a minha intenção!
- Não foi nada! – disse o garoto que ainda se recuperava do sobressalto – tá tudo beleza sim! E
você?
- Eu estou morrendo de sono, mas fora isso tudo legal.
- Ótimo.
De pé, ao lado da carteira de Eduardo, Fábio fez um ar de machão e indagou:
- Viu os guarda costas na entrada da sala?
- É, vi! Inclusive já disse para o Carlos não me encher o saco.
- Já para mim não disseram nada. Apenas me olharam passar. Aos outros acredito que me tenham
indiferente em seus conceitos, afinal eu só não pude liberar a casa pro churrasco... mas o Carlos
me deu um olhar cancerígeno! Acho que me enchi de tumores por dentro!
E riram.
- É sério! Me olhou como quem diz “te pego lá fora, babaca!” – e rindo, depois de imitar a voz de
Carlos, completou encenando histerismo debochado – Ai!!! Que medaaa!!! Ele deve realmente
achar que bota medo em alguém. Se ele não fosse tão baixinho eu até topava brigar, mas isso é
covardia!
- Com certeza!
- É, mas do jeito que ele é esquentado, é bem capaz de querer arranjar confusão. E se ele vier
cantando de galo eu não vou agüentar não. Vou para cima dele.
- Não! Eu creio que ele não vá querer chegar a esse ponto...
- Ele que tente!
- Mas que vai tentar arranjar arruaça de outro modo, isso ele vai!
- Pode tentar fazer o que quiser, que ele vai ver o bom dele!!!
E o sinal tocou.
Inquietação geral enquanto os alunos iam subindo as escadas e entrando na sala de aula como
uma horda de jovens com cara de sono. Segunda-feira era o dia mais foda de adaptar a vida
desregrada de um final de semana ao cotidiano do vestibulando.
Eduardo prestava atenção à massa que adentrava o recinto.
Viu Henrique entrar, como sempre, muito hábil em passar no meio das pessoas com a sua cabeça
baixa em constante sinal de covardia. Era a admissão de que era vulnerável e que facilmente seria
esmagado por todos em sua volta se assim o desejassem.
Para tamanho horror não ocorrer, Henrique se fazia invisível.
Henrique se anulava debaixo do seu lençol de medo.
E Eduardo, novamente, sentiu pena por ele.
Dois Garotos
Capítulo VII
O Capítulo Entrecortado, como a Alma de Eduardo.
Assim que o sinal do intervalo tocou, o professor mal se despedira da turma e esta já rompia para fora
da sala, como um estouro de boiada. Todos muito aflitos querendo pegar um lugar bom na fila da
cantina ou querendo fumar o seu cigarrinho na boa e botar as fofocas em dia.
Para Edú seria um momento decisivo.
Sem contar que Fábio sempre ficava com as mais poderosas beldades.
Sempre se saía bem em tudo.
Ele, Eduardo, também tinha este poder... se dava bem e tinha o mesmo sucesso... mas... e daí? De
que lhe adiantava tudo aquilo se agora estavam danificados os alicerces nos quais ele construíra toda
uma vida? Que tipo de segurança teria em viver dentro dessa casinha frágil?
Ele que sempre fora tão forte, chegara em um momento em que duvidava da própria força.
E agora? Que caminho seguir?
Do outro lado da cidade Camila fechou o grosso diário e ficou deitada na cama, apoiada sobre os
cotovelos. Não tivera vontade de ir para a escola.
Simplesmente não tinha ânimo.
Estava morrendo de saudades do namorado. Queria ligar para ele e falar qualquer coisa... mas
acabaria soando patética. Não queria dar o braço a torcer nem se parecer como um cachorrinho
abandonado...
...mas era mais ou menos assim como se sentia agora.
.....
Os garotos da velha guarda estavam reunidos num canto do pátio do cursinho. Faziam piadinhas e
falavam bobagens.
Carlos ficara num lugar estratégico, de onde podia observar Fábio e Eduardo nos mínimos detalhes. Já
fazia um bom tempo que estava disperso nessa atividade que nem prestava atenção ao que os seus
colegas diziam.
- O que foi? – indagou Jorge observando a abstração do colega.
- Não sei... – disse Carlos, deixando os olhos semicerrados – ...mas que tem coelho nesse mato... isso
tem... – e apontou com o queixo, numa esticada de pescoço sutil o local onde Ed e Fábio estavam.
.....
Fábio ainda estava quieto.
Eduardo ainda olhava para o chão.
- Ei... Eduardo, eu sou seu amigo, não sou? – disse Fábio finalmente rompendo o silêncio – Pode ficar
calmo. Você não vai acabar ficando sozinho. Eu não vou sumir da sua vida porque você é meu melhor
amigo.
- Eu sei, mas é que... – Edú parou de falar.
.....
Na sala de aula Henrique escrevia em seu fichário algumas frases desconexas. A maior parte delas era
trechos de música. Gostava de ficar sozinho na sala durante o intervalo. Gostava de ver todas aquelas
carteiras vazias. E quando nenhum grupo de estudo ficava lá dentro para resolver alguns exercícios,
era melhor ainda. Era como se todo o mundo tivesse morrido e ele se visse livre de pessoas
mesquinhas e que lhe queriam fazer mal. Tinha vez que ia até o grande quadro negro e apagava o que
estava escrito nele, assim gostava de fingir que ele eliminara todos os vestígios da humanidade.
Desde a segunda aula estava com vontade de ir ao banheiro.
Mas estava se segurando.
Na hora do intervalo, a vontade era quase incontrolável, mas ele tentava segurar a onda. Ia escrevendo
e tentando não pensar nisso.
Não queria descer pro pátio para ser motivo de escárnio diante de um covil de carrascos. Mas a
vontade crescia e a bexiga ia ficando cada vez mais dolorida...
Cantarolou um pedacinho de uma canção. A primeira que lhe veio à mente. Talvez se regulasse a sua
concentração ao máximo, a vontade diminuísse... ficou cantando, cantando...
...até que não agüentou e levantou-se.
Desceu as escadas tão agilmente que parecia até ser feito de uma corrente de ar. Assim que chegou
no patamar do pátio, dobrou a velocidade das pernas e zuniu para o banheiro ziguezagueando por
entre as pessoas com a habilidade de quem está acostumado a mudar de rota para o seu próprio bem.
.....
- Eu sei, mas é que... – Edú parou de falar assim que viu Henrique se esgueirar por entre a multidão.
Os gritinhos e brincadeiras já começavam a se fazer ouvir.
Eduardo sentiu um aperto no coração.
Raspou o solado do tênis no chão, arrastando algumas pedrinhas dos vãos do calçamento. Juntou um
pouco de coragem em suas veias.
Olhou para o amigo e indagou.
- O que você acha disso? – e apontou para Henrique.
Dependendo da resposta do amigo, Eduardo saberia se poderia ou não contar o que se passava em
sua alma. Rezou para não escutar algo do tipo “tenho nojo de gente assim”.
Ao invés disso, ouviu:
- Eu sinto pena... – disse Fábio, com os olhos fixos em Henrique, acompanhando a trajetória do pobre
garoto.
- É... eu também... – Ed deixou transparecer um pesar exagerado em suas palavras. E fitando o nada,
reforçou murmurando desconsolado, chutando uma pedrinha para longe – ...eu também...
Estava certo então... não tinha conseguido o gancho que queria para conversar com Fábio, pois o
amigo nada mais manifestara sobre o assunto.
.....
Capítulo VIII
Sentia que algo passava feito um ciclone dentro de si. Mas nem a mais tênue brisa lhe pareceria
calma neste instante. Queria conversar com alguém sobre isso. Queria poder contar para Fábio...
Oras! Que idéia é essa? É claro que você pode contar comigo!
E Eddie desejou que fosse tão fácil quanto parecia ser.
Assim que desceu do ônibus pisou num chão incerto, um chão que quase lhe faltou. Estaria ele
vivendo em um mundo paralelo? Levava um fora das circunstâncias cada vez que elas se
apresentavam. Essa busca incessante de uma certeza abria e fechava tantas portas. Abria e
fechava.
“Quando um ganha, outro perde” a voz da namorada ecoava em sua cabeça e ele peneirava o que
podia. As coisas iam fazendo sentido pouco a pouco, bem de leve, como uma pintura ia ganhando
vida a cada pincelada. Tantas matizes para formar um quadro.
Tantas percepções para formar um caráter.
Ficou parado no ponto enquanto o ônibus se afastava.
Hesitou sobre que direção tomar. Poderia ir para casa ou poderia ir se esconder no Farol do Saber
que tinha ali por perto. Adquirira este hábito desde que colocaram o Farol no bairro. Sempre que se
sentia meio “estranho”, era lá que ia se refugiar durante algum tempo. Voltava para casa com um
livro e esta era sua terapia.
Decidiu ir para casa.
Ao descer a rua e passar na frente da casa de Rodrigo, estranhou a paz.
Fred já não existia e não mais o perturbaria. Era como se um pesadelo tivesse terminado. O foda
era que Eduardo não sabia ao certo se um outro pesadelo pior ainda estivesse começando...
Sônia preparava a mesa para servir o almoço quando Eduardo chegou em casa.
- Oi mãe! – disse o menino chegando-se perto da pia e encostando-se na geladeira. Fazia isso
como se estivesse muito cansado e precisando de um pouco de alento. Toda a confusão que
sentia tinha que ser muito bem escondida, feito poeira varrida para debaixo do tapete.
- Oi Dú! – respondeu a mulher, que amassava batatas para fazer purê – O que vai fazer hoje de
tarde?
Sem pestanejar o garoto respondeu:
- Vou estudar, ué! – era tão óbvio... – Que mais posso fazer?
- Iiiiih... perguntar não ofende! – defendeu-se Sônia – Queria saber se você poderia ir no centro
para mim.
- Que horas? – Ed indagou só por curiosidade.
Não iria mais sair de casa nem a pau. Estava era querendo sumir do mapa, nem sabia ao certo
porque, mas era assim que se sentia. Inventaria uma desculpa qualquer para se livrar do pepino.
- Tem que ser antes das três. – Sônia informou.
- Nem dá mãe... – o rapaz foi logo se desculpando – tem muita matéria para hoje. Pode ser
amanhã?
A mulher fez um muxoxo:
- Melhor se fosse hoje... mas tudo bem! Pode ser amanhã! Quero que você vá no banco.
- Ok. – Eddie concordou tranqüilamente.
Já ia se retirando quando a mulher lhe chamou a atenção:
- Ah! O vizinho deixou um negócio para você, não faz nem quinze minutos – e dizendo isso, a
mulher agachou para pegar a lata de óleo de olivas que ficava embaixo da grande pia de mármore.
- O vizinho? – Eduardo estranhou.
- É! – a mãe do rapaz confirmou – O Rodrigo!
- O que ele deixou? – Duda quis saber. Que coisa estranha isso...
- Não sei... – Sônia temperava o purê com um fiozinho do óleo, enquanto falava com descaso – é
um embrulho. Claro que eu não abri para ver o que é, por isso eu te disse que é um embrulho... – e
já começou a fazer drama – ou você acha que eu vou abrir as suas coisas? Você tá achando que
eu sou mexeriqueira? Por acaso alguma vez eu já...
- Chega! – Eduardo interrompeu a ladainha.
A mulher sorriu e informou docemente:
- Tá lá no seu quarto.
Edú revirou os olhos demonstrando alívio por sair logo da cozinha e escapar das churumelas da
mãe. Mais que depressa subiu as escadas e rumou para o quarto.
Viu o embrulho em cima da cama. Eduardo pegou o pacote nas mãos.
Ouvia os deuses do Olimpo cantando ao longe.
Um papel pardo cobria algo com o formato retangular e plano. Descobriu o que era antes mesmo
de abrir o embrulho: era o porta-retrato de Rodrigo. Ao rasgar o papel constatou que não estava
equivocado. Era justamente o que ele achara que era, só que não continha fotografia nenhuma, e
sim apenas um número escrito por cima do vidro com canetinha de retro-projetor.
Eduardo sorriu.
Deduzira de cara que aquele era o telefone de Rodrigo.
.....
Já era noite feita, Ed já tinha estudado, tomado banho, jantado e conversado com o pai. Não
estava mais de castigo, mas deveria ser muito obediente e se saísse da linha iria voltar de vez pra
“correção”.
- Rodrigo? – Ed indagou assim que atenderam do outro lado.
- Quem? – o rapaz perguntou.
- É o Eduardo...
- Oi!!! – Digo exclamou todo feliz quando o Edú se identificou – Cara! Eu pensei que você não
fosse me ligar!
- Ah é? Porque?
- Não sei. Já tava até triste. É que eu deixei o telefone ainda cedo na sua casa e a tarde se passou
sem você me ligar, então ao anoitecer eu pensei que não tinha mais jeito!
- Não tinha mais jeito?...
- É! Mas deixa pra lá! Ei, eu queria falar uma coisa...
- Diga...
- Como Fred morreu?
- Oras... Eu já disse, passaram com a bicicleta por cima dele.
- Onde?
- Por cima do pescoço.
- Não foi assim não. – Rodrigo afirmou sem titubear.
- Como???
- Meu pai me ajudou a enterrar o Fred no mesmo dia, logo depois que fui na sua casa.
- E daí...?
- Pois é, meu pai estava examinando o Fred e disse que não foi atropelamento não...
- E como é que ele sabe disso? Por acaso é adivinha?
- Não, mas é médico legista e especializado em fraturas, esqueceu? Ele não viu nenhum indício de
tecido possivelmente danificado pela pressão das rodas. Considerando o tamanho do animal e
comparando com o peso de uma bicicleta em velocidade média com um homem adulto montado
em cima dela... ao menos a pelagem do Fred deveria estar avariada em alguma área... mas nada.
Meu pai disse que o focinho estava cortado em diversos pontos, como se alguém o tivesse
amassado, ou mesmo dado um chute. Isso ele logo concluiu pela mobilidade do pescoço. O
impacto foi dado de frente, pois segundo ele, o choque ocasionou o desligamento de
aproximadamente duas ou três vértebras, disso ele não tem certeza, pois não tirou radiografia e
nem teria lógica fazer isso, mas considerando que essas vértebras são logo as que se ligam ao
crânio... meu pai afirmou que não foi atropelamento... isso não foi não!
Eduardo estava embasbacado.
Depois de um longo tempo, exclamou irritadamente:
- Seu pai é legista de gente e não de bicho! Eu contei o que eu vi! Você acha que eu ia estar
protegendo um assassino de cachorrinhos?
- Não... – Rodrigo fazia um tom de escárnio – ...em absoluto...
- Mas então porque esse papo? – Ed quis saber.
- Boa pergunta... – o outro rapaz meio que suspirou.
- Olha se eu soubesse que você ia me encher o saco e ficar com esse lero-lero eu nem tinha
ligado!!! – e Eduardo fazia o baita drama. Incrível a cretinice do rapaz, pois além de matar Fred,
queria se safar da situação, mesmo tendo o pai de Rodrigo descoberto que a história que Ed tinha
passado não possuía nem um fundo de verdade.
- Calma! Eu só disse o que o meu pai me disse... – falou o outro rapaz como um adulto que se
apazigua diante das birras de uma criança por não ter outro jeito senão concordar somente para
não irritar mais ainda o ser pueril – e acho que ele está enganado também...
- Claro que está! – vangloriou-se Eduardo.
- Mas e aí? – Rodrigo estourou – Você vem aqui ou não?
- Hein??? – Duda se surpreendeu.
.....
Já no quarto do vizinho, sentado na cama e para criar um hábito, de cara a cara com o outro
garoto, Eduardo começava a se indagar porque cargas d’água ele tinha ido ali. Sim, pois receber
um convite, ponderar e aceitar é uma coisa... já outra bem diferente é receber o mesmo convite e ir
logo correndo abanando o rabinho sem ao menos pestanejar.
E fora assim que Ed reagira.
Tão logo Rodrigo repetiu o convite ao telefone, ele não se conteve e disse – estou indo aí –
desligou o telefone e saiu correndo.
Um cachorrinho babão...
Parecia até que sua vontade pessoal não tivesse conexão nenhuma com a vontade moral. Mas a
essa altura do campeonato, ele estava mesmo querendo que um ponto de mudança definitivo se
fizesse plausível. Estava ficando farto de tanta guerra psicológica e nenhuma batalha física.
Ele tinha que sentir o toque.
Tinha que averiguar.
- E então? – fez Dú para Rodrigo, como quem tem pressa de começar a conversar.
Era sensação esquisita que se apoderava de Ed cada vez que ele estava em companhia de
Rodrigo que tornava tudo mais sensual e tão mais natural. Quase não se sentia em algo que “não
podia ser” porque Rodrigo era tão belo que provavelmente a única saída existente para um
confronto com uma criatura desse naipe era se render.
E agora a sensação voltava e seu coração palpitava acelerado. Tão contraditório. Tão idealizado.
Era bom sentir-se assim.
Era bom demais.
Mas puxa, Rodrigo era um homem.
E Eduardo jamais poderia deixar de pensar em uma punição por ir contra alguma convenção pré-
existente. Tudo tinha um molde. Tudo tinha um porque. O homem foi feito para a mulher.
Porque?
Oras!
Porque eram um molde pré-existente.
Um se encaixava no outro.
Mas mesmo assim...
...mesmo assim era ótimo ficar cara a cara com Rodrigo.
Mas mesmo assim...
...mesmo assim tinha algo de ilícito em ficar tão perigosamente perto de uma pessoa fascinante.
Eduardo só não sabia ao certo o que estava errado, afinal nada se passava ali. Rodrigo nunca
dissera nada que se parecesse com uma cantada explícita. E se dissesse, Ed provavelmente não
saberia como lidar com isso... ou talvez, no fundo, soubesse...
E aquele cheiro, o perfume de Rodrigo... causava em Eduardo a vontade de agarrar o outro
moleque e arrancar a camiseta dele, só para afundar a cara no peito de Rodrigo e ficar sentindo o
cheiro.
- Que bom que você veio! – disse Rodrigo botando os dentes à mostra. Era o sorriso que Eduardo
achava belo. Era o deleite dos encontros entre os dois. Sabia que existia uma pureza naquele
sorriso – Queria lhe perguntar algumas coisas...
O modo ambíguo com que Rodrigo usava as palavras sempre deixava Eduardo meio que com um
pé atrás. Lá podia vir uma bombinha, uma bomba ou um mega torpedo.
- Se for sobre o cachorro eu vou embora!
- Não! Não é sobre o Fred! – Rodrigo esclareceu.
E embora o rapaz sorrisse com muita franqueza e seus olhos brilhassem de puro contentamento, o
seu corpo que estava aparentemente leve, denotava um fio de tensão constante.
- Ah! Então o que é? – Ed indagou, tocando o joelho do outro rapaz.
Uma corrente elétrica lancinou a lucidez de Rodrigo, que só pôde morder o lábio inferior, como
fosse um fio terra dissipando o torpor cálido do toque de Eduardo.
- Eu queria saber... – Digo estava sem graça. Desconfortável. Via-se isso nitidamente pelo modo
com que escondia as mãos.
- Diga... – Duda incentivou.
- Pois é! – exclamou Rodrigo num ímpeto de coragem e desembestou – Eu queria saber como é
ser hetero!
Na realidade Rodrigo queria era perguntar aos berros ou sussurros ao pé do ouvido, se Eduardo
cogitaria a idéia de beijá-lo, mas acabou não tendo coragem e soltou essa pergunta sem pé nem
cabeça.
- O que???
- É isso mesmo! – e Rodrigo balançava a cabeça para chamar atenção ao assunto e tentar dar
menos bandeira de que tinha “remendado” a pergunta – Tenho a maior curiosidade em saber como
é ser hetero... sabe? Eu queria saber como é transar com uma garota... será que você poderia
descrever para mim como é? Eu queria tanto saber...
E Eduardo revoltou-se com isso:
- Como assim quer saber? – e levantava as mãos gesticulando loucamente, não acreditava que o
momento pelo que esperava tivesse sido desarmado pela falta de coragem de Rodrigo – Oras!!!
Ser hetero é... – e estancava sem jeito por não ter uma resposta na ponta da língua, vasculhava a
mente toda em busca de um golpe contra que fosse certeiro – é... bem... é... – ainda sim não
conseguia formular uma resposta – ...bem, é ser como EU!!! É ser normal!
Já que Rodrigo dera para trás, porque não avacalhar de uma vez?
Não precisa nem dizer que era o gênio terrível trabalhando.
Sorrindo o outro rapaz se defendeu:
- Mas eu sou normal, veja, sou igual a você! Tenho tudo o que você hetero normal tem! Tenho até
o que muito hetero não tem! Tenho minhas prateleiras com troféus, tenho minha vida saudável de
faculdade com todo o povo, tenho...
- Ok! Ok! – Eduardo concordou logo de cara a fim de evitar toda uma lista de pontos comuns – Eu
entendi! Que você é normal eu sei que é! Mas eu só falei por conta dos gostos, afinal... não é nada
normal um homem sair por aí agarrando outro homem...
- Porque não? – Rodrigo indagou. Tinha os olhos brilhantes fitando a expressão facial de Edu.
Havia um sistema solar rodando pelo quarto.
Tanta energia acumulada.
Tanta beleza construtiva e desgastante. Um paradoxo vertiginoso. Um paraíso possível de se
alcançar com uma trilha dolorosa de se trilhar.
Rodrigo tinha as meninas dos olhos fixas no outro rapaz, como se fossem duas africanas fujonas
amarradas num tronco, cuidavam do patrão para que ele não se voltasse com chibatadas cruéis
sobre elas. Logicamente havia sacado que Eduardo estava afim de beijá-lo.
Ed percebeu que Rodrigo o decifrava em seu silêncio e se inquietou. Por falta de costume da
situação, esquivou-se:
- Porque não... oras!
- Mas é tão bom... – e as mulatinhas sorriram por saberem-se donas da circunstância.
- Isso é você quem diz! – ponderou Eduardo – Assim como alguns gostam de jiló, outros não.
Entenda isso! Não estou te criticando, mas é que para mim, na minha cabeça isso é errado.
- Como se fosse algo proibido? – Rodrigo quis saber, com um ar de malícia rodeando os lábios
perfeitos.
- Lógico!
- Mas se é proibido é mais gostoso.
- Se é proibido é porque não é correto! – Ed bateu na cama ensandecido – pois isso vai contra tudo
o que é moral! A sociedade condena! A igreja condena!
Porque lutava?
Sentia-se um imbecil por tentar levar adiante um papel que não lhe fora dado para interpretar.
- Oras, caros Eduardo, a sociedade e igreja são mais fortes do que a vontade pessoal, não é
mesmo? – Rodrigo subia o tom da voz sem perceber – E o que acontece com o livre arbítrio? O
que acontece comigo quando eu quero ser feliz e não posso por causa dos outros que acham que
isso não está correto? O que acontece com minha vida, minha liberdade de escolha, quando quero
ser quem eu sou e gostar de todas as coisas que gosto, mas não sou permitido fazer isso sem me
achar um monstro, só porque os outros acham que isso não pode ser?
- Puxa... olha Rodrigo, eu não quis colocar as coisas desse jeito... – Dudú desculpou-se – mas
veja... tá escrito na Bíblia! – e acrescentou sem pensar – É pecado!
Uma onda de calor varreu o corpo de Rodrigo, que avermelhou de tal modo que parecia que ia
derreter. Saltou da cama e começou a andar de um lado para outro.
Ouvir aquilo lhe fizera mal.
Algo como palavras em chamas entrando na cabeça e fazendo um incêndio de puro ódio.
- Pecado??? Pecado??? – Rodrigo gritava muito vermelho e soltando gotículas de saliva para
todos os lados – E quanto ao crime que a sociedade e a igreja cometem? Sim, pois eu considero
um crime uma pessoa ter que se anular para poder viver... aliás... a pessoa que se anula nem tem
vida pois está sempre infeliz e desgostosa com tudo! E sabe o que essa pessoa faz então?
Começa a criticar os outros só porque eles não têm medo de tentar buscar a felicidade! Eu acho
que quem tanto critica e desdenha é porque bem na verdade queria era estar fazendo a mesma
coisa!!! – ele respirava rápido – Pecado??!! Eu já te digo o que é pecado!!!
E Rodrigo parou.
Bufava em contorção extrema de seus músculos da face e pescoço. Fitava Ed com os olhos
injetados de indignação. De dedo em riste, começou a fazer o discurso novamente.
- É isso o que sua queridinha sociedade faz! É isso o que sua adorada igreja faz! Mas EU é que
não vou me anular nunca! – e batia com força no peito tentando matar o dragão que cuspia ódio –
Podem fazer o que quiserem de mim! Podem me excluir da sociedade, podem me alienar, podem
me excomungar de todas as igrejas e templos do mundo, que mesmo assim minha cabeça vai
estar erguida, pois eu sou o que sou e não há crime nisso!
Olhou bem para Eduardo, cuja pele alva refletia o evidente espanto pelo rompante ensandecido de
Rodrigo:
- Deus é maior que as intrigas dos homens. Se Deus perdoa branco e preto, se perdoa gordo e
magro, se perdoa hetero porque não iria perdoar homo??? Deus é pai! Ele tem perdão até de
quem é ruim!!! Por dentro somos todos iguais, mas só poucos assumem tudo o que sentem. Todos
nós somos iguais! Você é normal, eu sou normal! Você tem defeitos e eu também! O que muda é a
capacidade de amar!
- Rodrigo, eu acho... – Eduardo tentava se desculpar. Mas não tinha jeito.
- Tá!!! – gritou o rapaz enlouquecido – Acontece que eu consigo amar outro homem, e daí? Cadê o
erro nisso?
- Rodrigo eu... – Ed se viu chocado com a reação do amigo. Tentava acalmá-lo.
- Não Eduardo – e o rapaz lhe dava de dedo – Eu não escutei isso nem dos meus pais, porque vou
ter que escutar de você? Se é para eles que devo prestar contas, porque devo me importar com o
resto do mundo e...
- Porque se importa então? – Eduardo interrompeu.
- É que... é que... – de repente toda eloqüência se foi. As palavras haviam se trancado em seu
recanto mágico e tudo o que os rapazes escutavam era o vento lá fora.
Rodrigo passou a mão pelas costas de Edú. Deslizou-a tão suavemente e com tanta ternura que
ondas de calor penetraram pelos poros de Eduardo, que recebeu o gesto de carinho sem achar
aquilo uma “viadagem”.
- Você curte música eletrônica? – indagou Rodrigo.
- Claro! Na verdade eu gosto de todo tipo de música, contanto que não seja pagode ou sertaneja...
o resto tá valendo!
- Ok! O que acha desse CD? – Rodrigo levantou-se e ligou o rádio. Colocou um CD, apertou play e
em instantes o quarto estava inundado por um ritmo eletrônico alucinante.
- Uau! – Ed exclamou em êxtase – Que tesão de música!!!
Rodrigo sentou-se na cama e olhou para os lábios de Eduardo. Chegou um pouco mais pra perto
do garoto e indagou:
- Tá afim de ir num lugar onde só toca esse tipo de som?
Eduardo, começando a ofegar e sentir o seu sangue ferver de excitação quis saber:
- GrooveLandS?
.....
- Filho, como é lá dentro? – Sônia indagou assim que viu Ed entrar em casa. Estava pintando as
unhas e deixou tudo de lado para sondar informações sobre a grande casa onde Rodrigo morava.
- Normal mãe – o rapaz respondeu com descaso e já ia saindo de perto.
- Eduardo! – a mulher gralhou – Não faça isso com a sua mãe!!! – e levando a mão à testa, Sônia
fez “a cena” – Você sabe que eu morro de curiosidade para saber qualquer coisa que seja daquela
casa, então não me seja ingrato! Você viu os pais do Rodrigo?
- Não mãe, eu ainda não os vi!
- Que pena... – a mãe de Eduardo lamentou-se, inconsolável – ...mas perguntou alguma coisa para
esclarecer o mistério?
Eduardo então resolveu contar o que sabia.
- Perguntei sim mãe.
- E não me disse nada???
- É que esqueci e não tive tempo, mas deixa que eu conto...
E Eduardo contou desde como era o quarto de Rodrigo, com seus troféus e medalhas até sobre o
que faziam os pais dele.
- Mas nossa! – exclamou a mãe toda feliz, concluindo – Então esse Rodrigo é uma ótima
companhia!
No cursinho Eduardo rabiscava uma fórmula na carteira em plena aula de química, sabia a fórmula
de cor, mas tê-la fácil para visualização lhe causava maior segurança. Acabava de virar a página
da apostila com os exercícios da aula em questão, quando um bilhete miúdo chegou na sua
carteira. Era um bilhete de Fábio:
Cara, você anda muito estranho ultimamente... caso você não tenha percebido, a sua blusa tá do
avesso! Você não é disso. O que tem acontecido? Tá precisando conversar? Algo aconteceu
naquele rolo da Camila?
Seguinte: esse final de semana vai rolar uma festa tecno numa fazenda perto de São José dos
Pinhais, tá afim de ir? Vai estar cheio de gatinhas... de repente é bom para desvirtuar um pouco da
Camila, já que vocês estão nesse rolo... a gente se fala no intervalo!
Ed olhou para o amigo Fábio que ficara observando a leitura do bilhete o tempo inteiro. Sentiu-se
reconfortado de um mal que não existia e sorriu como quem diz “ok, a gente conversa depois!”.
Realmente Fábio era um dos únicos pontos que ele tinha para se firmar e não estava afim de
perdê-lo de jeito nenhum. Por essa razão Eduardo decidira que não iria contar nada para o amigo.
.....
“Oi meu diário!
Hoje já é quinta-feira e resisti bravamente! Não liguei para aquele cachorro (e nem ele ligou pra
mim... snif... snif...).
Ocupei-me todo este tempo estudando e dançando. Já tenho calos em meus pés e a sensação de
chifres na cabeça!!! Ai, se o Eduardo aprontou ele vai ver só! Ai que eu saiba que ele andou
olhando para outras garotas – ou sequer ter pensado nelas!!!”
.....
E muito bem!
Capítulo IX
.....
Lá pelas quatro horas da manhã, Eduardo estava apertado e precisava usar o banheiro. Saiu da
pista de dança, onde estava dançando com Rodrigo e seus amigos e passou por um bando de
garotas. Todas olharam espantadas para ele e cochicharam entre si:
- Gente, eu não acredito! É o menino do cursinho! – uma das meninas cutucou a outra, de cabelos
cor de fogo.
- Jesus!!! Ele é gay!!! – esta comentou.
- Que desperdício... – disse a que havia cutucado a ruiva, levando a mão à boca.
- Nem me fale! – disse uma japonesa.
- Coitada da namorada dele... será que imagina por onde anda o amado dela?
- Ele tem namorada? – todas se espantaram.
- Tem! – disse a ruiva.
- Ave Maria! Que cretino!
- Pode ser que ele não seja gay... ele tem namorada, ué! – disse uma garota mais gordinha e de
bochechas vermelhas.
- Se ele não fosse gay, o que estaria fazendo aqui? – quis saber a japonesa.
- A mesma coisa que nós, e nem por isso somos lésbicas! – respondeu em tom de defesa uma
clubber que estava na rodinha.
- Talvez ele esteja aqui com a namorada.
- É verdade! Ou vai ver ele é fashion!!! – concluiu uma loira.
Ao chegar no banheiro, Duda constatou que ele estava lotado. Resolvera então usar os do terceiro
andar. Ao subir as escadas, uma mão o puxou pelo braço:
- Eduardo???
Ele era o que ele era e nem por isso era má pessoa. Continuava a ser o mesmo Eduardo, que
gostava das mesmas coisas, que fazia tudo o que sempre fizera, que sempre tirou as notas boas,
que sempre fez por onde. Era o Eduardo solícito e querido da mãe, era o homem do pai.
Camila andava de um lado para o outro no quarto. Não estava conseguindo dormir. A luz da lua
que entrava em feixe pela janela, chegava entrecortada pelas folhas das árvores e se refletia pelo
chão e no lençol, repartida em milhares de gotas. Esta luz azulada emprestava um tom etéreo à
pele de Camila, que parecia uma estátua de mármore.
Já era tão tarde da noite e a garota era puro fantasma vagando.
Excomungava na penumbra:
- Diabos! Ai dele! Ai dele se ele estiver me aprontando alguma. Ele vai ver só!
E batia os pés no chão veementemente.
Seu sexto sentido lhe dava a certeza de que Eduardo não estava dormindo.
E nem estava em casa.
.....
- O jantar foi delicioso, não foi? – comentou dona Sônia, pendurando o casaco no cabide enquanto
seu Antônio se preparava para dormir.
- Sim, os Toledo são gente muito agradável! – o homem concordava, abotoando o pijama e
rumando para o banheiro.
- Ai, estou tão feliz que finalmente conseguimos conhecer nossos vizinhos. Eu e Sílvia parecemos
amigas de anos!
- Nosso filho também ficou bem amigo do filho deles – seu Antônio observou.
- Formidável né? – disse a mulher, desmanchando o penteado na frente do espelho.
O pai de Eduardo lavava o rosto e analisava a face diante da pia. Pegou a escova de dentes,
passou o creme dental e comentou:
- São rapazes saudáveis, espertos, bonitos e gaudérios. Ambos têm temperamento e caráter
sólido, podem ser amigos para o resto da vida.
- Que ótimo! – comentou Sônia, muito feliz, retirando a maquiagem com o removedor líquido
embebido no disco de algodão – Tomara que vá longe mesmo!
Seu Antônio anuiu com um gemido.
Não podia falar porque estava a escovar os dentes.
Apenas escutou a mulher comentar:
- Ah! Eu vou precisar do seu cartão de crédito amanhã querido... vou no shopping comprar um
lindo brinco, cheio de brilhantinhos. Quero que tenha suporte dourado. Uma jóia.
O marido revirou os olhos, cuspiu na pia e indagou:
- Para que outro brinco? Você tem milhares deles!
- Não é para mim, é para Camila! – a mulher se explicou.
- Camila?
- Sim, ela estará de aniversário semana que vem.
- Ah é? – fez o homem preparando o gargarejo.
- É!
- Âhn... então tá... – Antônio resmungou, entendendo. E botou o líquido de gargarejo de uma só
vez na boca, como alguém que toma uma dose de tequila.
Capítulo IX
“Oi Edú,
Ass: Fábio”
Eduardo sentiu um alívio na alma. Viu o quanto fora injusto com o amigo. Com o Fábio, que era o
seu único e verdadeiro companheiro, aquele que conquistara por ser especial.
Não poderia jogar fora uma amizade tão sincera como esta.
Suspirou e sorriu.
Devolveu o bilhete:
Quando subiram de volta para a sala de aula, Eduardo pegou a apostila. Um papelzinho caiu de
dentro.
Havia caminhado um bom bocado até então para simplesmente não se dar conta que seria um
fracassado se desistisse do que queria.
Rodrigo colocou o telefone no gancho. Mal podia acreditar. Eduardo correspondia o sentimento
sem sombra de dúvidas, acabara de comprovar!
Levantou-se da cama e rumou para a cozinha. Pegou uma garrafa de champanhe que estava na
geladeira e abriu. Comemorava a vitória. Conquistara um rapaz maravilhoso em todos os sentidos.
Eduardo era prêmio de ouro.
Rodrigo também era.
Antes de tomar um gole da borbulhante champanhe, brindou:
- À você, meu amor.
.....
No outro dia, quando voltava do cursinho, Eduardo perdia-se em pensamentos dentro do ônibus.
Tinha certeza que Rodrigo o amava. Então porque diabos o rapaz não se aproximava dele? Afinal,
era mais experiente nessas coisas, seria muito mais descomplicado se Rodrigo tomasse a
iniciativa...
Ou será que Ed estava só pirando? Será que Rodrigo queria só amizade?
Na cabeça de Eduardo, essas questões causavam grande dúvida que acabava virando angústia.
Como queria Rodrigo... o modo com que sentia o frio na barriga ao pensar no outro rapaz era
estranho. Mas era bom.
Rodrigo continuou:
- Eu gosto muito de você! Tanto que às vezes eu até me sufoco só por estar em sua presença e
não poder fazer nada! Você não imagina a vontade que eu tenho de lhe tocar, de lhe fazer o bem.
E acabo em desespero, pois nada posso fazer, não posso forçar nada, não posso quebrar suas
barreiras. Me faz bem estar com você, mas me faz tanto mal não poder beijá-lo, nem tocá-lo e nem
demonstrar todo o carinho que eu sinto por você.
- Rodrigo, eu... – Eduardo sentiu felicidade sem tamanho, queria falar, mas o outro rapaz impedia.
Prosseguia falando e dando a maior bandeira de seu desequilíbrio emocional, sua insegurança.
- Quando você fala Eduardo, sua voz me deixa hipnotizado! É seu cabelo, sua pele, seu caráter... é
tudo isso somado, isso me faz te querer tão bem, isso me faz te querer tanto! Isso me faz te amar
desesperadamente.
- Go, eu...
- O que Eduardo? – o outro indagou, na defensiva.
Sorriu. Balançou a cabeça. Em seu interior, um mecanismo qualquer desencadeou uma reação
instantânea e uma força do além o fez se levantar de uma vez só.
Sentiu como se seus pés seguissem para a casa de Rodrigo. O coração palpitava incrivelmente.
Desceu as escadarias cegamente.
Os pais de Rodrigo ouviam a discussão. Imaginavam o que se passava com os Braschi. Claro que
compreendiam o desespero. Sempre havia um choque.
Ao abrir a porta do hall de entrada, Camila sentiu o coração palpitar mais forte de tanta alegria,
mas conteve-se, tinha sentido muita saudade neste período em que estiveram sem se encontrar,
mas não queria dar o braço à torcer. Engoliu toda a felicidade, ruminou-a e a devolveu para a boca
apenas transformada em branda simpatia:
- Oi Dú, que bom que você veio. Já não agüentava mais todo mundo perguntando por onde você
andava.
- Oi Camila! Feliz aniversário! – entregou o presente da namorada, dando-lhe um leve beijo nos
lábios.
- Entra logo, a festa tá ótima! Tá quase todo mundo aqui.
- Que bom! – o rapaz olhou em volta e constatou que a casa de Camila estava cheia de gente
conhecida, repleta de amigos do colegial, várias pessoas da família e também amigos de Suzana.
Tinha até algumas pessoas que Eduardo não fazia nem idéia de quem fossem.
Todos os cantos da casa estavam cheios e o ambiente festivo entontecia o garoto. Sabia que o
que viera fazer ali era meio sujo e sentiu-se como um lobo vestindo pele de ovelhas a passear pelo
rebanho.
- Camila, eu preciso falar com você...
- Agora não Eduardo... – respondeu a garota, ajeitando a presilha de strass que estava meio frouxa
no cabelo.
- Mas Camila, a gente precisa conversar...
- Agora não Eduardo!
O rapaz irritou-se:
- Lembra que você combinou comigo que não ia falar até nosso trato acabar, bem, está quase
acabado. O prazo vence daqui a pouco, quando der meia-noite já vai ser outro dia, faltam minutos!
Que diferença faz?
- Faz toda a diferença! – disse Camila apertando o pacote de presente contra o colo – Eu sou uma
mulher de princípios!
O rapaz suspirou de tristeza e olhou bem fundo nos olhos da namorada.
- Se você fosse ia notar que estou me sentindo mal e que eu preciso conversar com você. Uma
pessoa de princípios não iria ignorar isso jamais.
Camila fez um muxoxo, e exclamou deixando-se vencer:
- Ok! Certo, você tem razão.Vamos lá! Me conta.
- A-aqui?
- Que há de errado?
- Mas aqui tá cheio de gente, estamos no meio de uma festa. Eu quero falar com você num local
mais reservado.
A garota suspirou pesarosa. Pegou o namorado pela mão e levou-o até o jardim do quintal.
Sentou-se no pesado balanço de ferro branco e os elos da corrente de aço se fizeram ranger
brevemente. A noite estava fria, porém o céu estava pipocado de estrelas cintilantes.
- Como o céu está lindo – o rapaz exclamou.
- É, está mesmo, mas parece que vai chover.
- Não creio que isso aconteça.
- Também acho que é pouco provável, mas quando consultamos a metereologia nos informaram
que por volta da uma da manhã o céu ia ficar nublado e podia chover. Por isso não fizemos a festa
aqui fora.
- Ah, entendi.
- Todo cuidado é pouco.
Eduardo desviou os olhos do céu e mirou a garota. Abaixou-se nos seus joelhos e sentou-se no
chão, perto dela.
Não havia lua no céu.
- E então? – a garota indagou.
- Lembra que você me fez jurar que íamos contar um pro outro qualquer coisa que ocorresse
durante o tempo em que não nos estivéssemos falando?
- Lembro, claro.
- E você me fez prometer que ia ser sincero, que ia contar toda a verdade?
- Sim Eduardo, eu lembro. Fui eu quem propôs isso tudo.
- Pois então... – o rapaz ficou mudo. Ao fundo ouvia-se apenas as vozes abafadas e a música da
festa, chegando suavemente até o jardim.
- Então o que Dú? Você andou aprontando alguma coisa?
- Não... – ele ficou quieto. Depois olhou para um canto do jardim e falou – quero dizer, sim... mais
ou menos!
- Mais ou menos? Como se apronta mais ou menos?
- Deixa-me explicar. Não foi nada planejado! Simplesmente aconteceu! Eu conheci uma pessoa...
Brusca e secamente Camila interrompeu:
- Você quer dizer que você ficou com outra garota?
- Não. Eu não fiquei com outra garota, mas eu estou te deixando...
- Você está me deixando? Você quer acabar comigo e tem a audácia de me dizer que não ficou
com uma sirigaita qualquer por aí?
- Já te falei Camila. Não conheci garota alguma.
- Ah é? E o que ocorreu? Quer fazer o favor de me explicar, porque eu sinceramente não sei como
uma pessoa...
Eduardo interrompeu o discurso:
- Eu fiquei com um garoto!
.....
Rodrigo andava de um lado para outro.
- Tomara que aquele moleque não apronte nada!
- Eduardo? – Sílvia perguntou, olhando para o filho enquanto derramava conhaque nos copos de
uma bandeja.
- Claro! Eduardo, quem mais?
- Porque essa preocupação?
- Simplesmente porque ele é um cabeça dura, tem um gênio terrível! Ele tá na festa de Camila, e
sendo do jeito que ele é, é bem capaz que a esta hora já tenha contado tudo para ela! A esta hora
a aniversariante tá chorando de desgosto porque perdeu o namorado para um homem!
- Bobagem! – disse a mulher, que levava a bandeja com drinks aos amigos na sala de estar – O
que há de ser, será! Tente não parecer tão nervoso e venha para a sala comigo. Afinal, são os
seus sogros que estão lá!
.....
- Garoto? – Camila perguntou, sussurrando, depois de uma eternidade de silêncio.
- Sim...
- Você ficou com um... um... – e uma expressão de nojo, misturada com indignação estampou-se
na cara da menina. Sua boca franzida cuspiu – como você pôde?
- Eu... eu não planejei nada disso, eu não entendia direito o que eu sentia. Não tive controle algum
sobre a situação...
A garota bateu uma mão contra a outra, como quem diz “eureka”.
- Por isso que nunca quis transar comigo! Você era gay desde o princípio!
- Não Camila, eu não...
- Oras... não me venha com essa! Você estava me usando como fachada! Um namoro de
conveniência para você!
- Não Camila! Não pense isso! Jamais faria...
- Não te ocorreu durante nenhum momento que eu poderia me magoar? Eu também tenho
sentimentos!
- Camila, eu já disse, eu não planejei nada disso. Mas, talvez você esteja com razão. Talvez tenha
sido por isso que nunca demonstrei vontade de transar com você...
- Ahá! Taí, eu sabia! Viu só?
- Mas para falar a verdade, eu também não tinha vontade de transar com ninguém mais! Nem com
mulher, nem com homem.
- Ah, tá! Como se eu fosse um cachorro com problema mental! Você acha que eu vou engolir essa
história?
- Camila, por favor, é a verdade! Você me fez jurar que ia te contar a verdade, você sabe o quanto
eu odeio mentiras e falsidades. Você me conhece muito bem. Eu não tinha idéia. Eu não tinha
mesmo. Nunca parei para pensar nisso... até que conheci Rodrigo. Ele me fez entender várias
coisas que antes não faziam sentido para mim... e agora fazem. Eu precisava disso. Eu estava
precisando me encontrar.
- Eduardo, você está me dizendo então que você virou gay? Que você não era, mas virou?
- Entenda como quiser Camila, você é esperta o suficiente para saber que eu não estou brincando.
Você tem o poder de decidir agora, se quer ser minha amiga ou quer que eu suma da sua vida...
pois tudo o que eu sei é que não posso mais ser seu namorado. Não posso fingir agora ter um
sentimento diferente do que realmente tenho. Eu ia estar mentindo e te enganando, e o pior, me
enganando. Diga-me, como poderíamos ser felizes deste jeito?
Para Camila, a imagem do namorado, sentado aos seus pés, com a face perturbada pelo medo de
simples palavras, a fez o comparar com a imagem de algum mártir. E de tal forma isso a
sensibilizou.
Passou um longo tempo pensando. Sua cabeça era como as águas de um rio, que iam rolando os
seixos, tirando-os do lugar, mas de certa forma os moldando de maneira natural. Por fim, sorriu:
- Meu Eduardo... você está certo.
O rapaz voltou sua cabeça em direção à garota. Ouviu as palavras saírem de seus lábios pintados
com cor de rosa pétala:
- Pensando bem, não poderíamos ser felizes tendo um namoro de mentira, não é verdade? Agora
eu entendo. Tudo faz sentido para mim.
- Faz mesmo?
- Faz sim. Mas não vou negar que estou magoada, que estou triste. Se você tivesse descoberto
antes, mais cedo, como outros rapazes que conheço, como o Fábio, por exemplo...
Eduardo se espantou:
- Fábio? Você sabia que ele era?
- Sabia sim.
- E porque não me contou?
- Bem, a Suzana o viu na boate, sabe como ela é, né? Vive atrás de novidades e essas coisas.
Resolveu um dia ir num lugar gay e lá estava o Fábio beijando um outro rapaz. Logicamente
Suzana me contou, mas achei melhor não tocar no assunto contigo, pois ele era seu melhor amigo
e pensei que de repente, você fosse rejeitá-lo por isso e estragar uma amizade de anos... e eu...
bem, eu achei que não tinha esse direito.
- Entendo... – fez Ed reconhecendo o valor da garota. Mesmo Camila sabendo que Fábio não
aprovava o namoro entre os dois, ela permanecera calada e jamais pensara em abalar essa
amizade.
- É verdade. Não tinha esse direito assim como não tenho direito de te rejeitar agora e estragar a
possibilidade de sermos amigos verdadeiros. Mas ainda lamento que você não tenha se definido
antes de me conhecer, iria me poupar de muita coisa...
- Puxa, desculpa...
- Mas nem dá nada! O que importa é que tivemos tempos muito bons juntos.
- É verdade! Isso eu não posso negar.
- Estou feliz que reconheça.
- E eu estou feliz que você me aceite e me entenda.
.....
- Eu acho que já me acostumei com isso! – exclamou Antônio, todo pensativo, bebendo o quinto
copo de conhaque.
- Você acha? – o pai de Rodrigo quis saber.
- Sim, claro! – olhou para o resto da bebida no copo, como se refletisse – Não é tão ruim assim...
- Sim, não há nada de ruim, o seu filho é um garoto normal e...
- Filho? Quem tá falando de filho? Eu tô é falando do conhaque!
.....
Eduardo e Camila se abraçaram fortemente, selando um pacto de amizade. A garota beijou
docemente a face lívida de Edú e convidou:
- Vamos voltar para a festa?
- Vamos!
Ao entrarem em casa, de mãos dadas e tudo, Suzana veio logo perguntando:
- Ai... que bonitinhos!!! Quero saber, se acertaram?
- Sim – Camila respondeu prontamente – nós somos ótimos amigos.
- Como assim?
- Significa que somos apenas amigos... o namoro chegou ao fim.
Camila puxou o garoto pelo braço e ao passar perto de uma garota que dançava com um primo
distante, comentou:
- Olha só que vestido lindo!
Eduardo olhou para a ex-namorada com um ar de “tá me estranhando?”.
.....
Eduardo saiu da festa com alívio em sua alma. Parecia que agora sim, tinha passado a última
pendência a limpo. Estava livre de verdade.
Quando entrou no táxi, pediu para o motorista andar sem pressa. Queria admirar a paisagem
urbana, reparar a cena noturna que se desenrolava na madrugada curitibana. Estava tão perdido
em pensamentos que nem reparou quando o motorista parou na frente da rua onde morava.
- Pronto! Aqui estamos.
- Hein? – o rapaz despertou de seus devaneios.
- Jovem, você está bem? – perguntou o senhor de cabelos grisalhos, com uma mão no volante e
outra no estofado do banco do carona, demonstrando real interesse em saber o que se passava
por debaixo das feições do garoto.
- Estou bem sim, obrigado.
- Sabe, costumo ser um ótimo ouvinte, acho que eu devia montar o primeiro táxi com consultório
psicológico, pois sempre levei jeito para a coisa...
Eduardo riu e agradeceu:
- Muito obrigado, mas eu não tenho nada não, é só um pouco de cansaço com excitação.
- Hum – ponderou o motorista – que estranha combinação!
- É né? – concordou o rapaz que pagou o taxista e desceu do veículo. Enquanto seguia o rumo de
casa, olhou para a janela da família Toledo, as luzes estavam acesas – puxa... já passa das duas
da manhã... o que será que... ah! Deixa para lá!
Ao passar pelo portão da sua casa, Eduardo parou e contemplou o céu.
Estava nublado.
Mas ele sabia que acima das nuvens as estrelas brilhavam belas como nunca.
Ao entrar em casa, pé por pé para não fazer barulho e acordar os pais, o rapaz subiu as escadas
como um gato que se esgueira elegante porém silenciosamente pela noite. Assim que acendeu a
luz do banheiro, reparou pelo espelho que a porta do quarto dos pais estava entreaberta, coisa
totalmente fora do comum, uma vez que seus pais dormiam com a porta fechada sempre.
Resolveu investigar.
Ao meter a cabeça pela fresta da porta, apurou o ouvido para detectar a respiração dos pais que
supostamente deveriam estar dormindo.
Nada. Silêncio absoluto.
Acendeu a luz do quarto e constatou que ali não havia ninguém.
- Ué... onde será que eles estão? – indagou sussurrante e coçando a cabeça.
Apagou a luz do quarto e desceu as escadas. Procurou no andar de baixo em vão. Saiu para a rua
para verificar se o carro estava na garagem. Estava. Aquilo era estranho... o rapaz já ia voltando
para dentro de casa quando lembrou-se das luzes na casa de Rodrigo. Será que os pais estavam
lá?
Delicadamente foi se curvando e beijou os lábios do garoto adormecido. O toque daquela boca
quente contra a dele era tudo o que havia de revitalizante na face da Terra.
- Hein? – fez Rodrigo, despertando confuso.
- Sou eu – disse o garoto, passando a mão pelos cabelos macios do namorado e acariciando a sua
testa com os lábios.
- Edu? – indagou Digo, que instantaneamente sorriu, iluminando ainda mais a escuridão do recinto.
Com voz doce e calma perguntou enquanto pegava na mão de Eddie – O que você faz aqui seu
louco?
- Meus pais estão aqui com os seus.
- Ainda? – o rapaz se espantou.
- É. De se estranhar, não é verdade?
- É mesmo.
- Seus pais não tinham que estar trabalhando a essa hora?
- Deviam sim, mas acho que se não foram antes, é porque vão pegar o turno das quatro da manhã.
- Ah... e eles podem fazer isso?
- Podem, mas eles têm que supervisionar estagiários caso ocorra alguma falha no boletim horário
de outro médico. Tipo um quebra galho amistoso que deixa todo mundo feliz.
- Ah... Entendi! E você? Porque não tá lá com eles?
- Eu estava, mas logo me descartaram da conversa. Seu pai ficou conversando com o meu e a
mesma coisa ocorreu com nossas mães. Daí eu até pensei em dar uma volta para esfriar a
cabeça. Meu garoto, você não sabe a pilha de nervos que eu tava, mas acabei resolvendo mesmo
dormir. Demorei a pregar os olhos. Eu acho que só consegui pegar no sono faz uma hora, por aí.
Estava muito preocupado contigo.
- Comigo? – fez Eduardo estranhando – Porque?
- Porque você estava na casa da sua namorada! Achei que ia armar algum barraco. E não vem que
não tem, que do jeito que você é teimoso era bem capaz de fazer um sururu mesmo.
- Ah é?
- É! Tava com um baita medo que você aprontasse e algo ruim acontecesse com você.
- Pois fique tranqüilo que eu não aprontei nada.
- Sério?
- Verdade. Mas também eu não pude ficar quieto. Eu a levei para um lugar calmo, justamente para
evitar confusão e contei tudo pra ela. Não foi fácil. Disse a ela que eu não podia mais namorá-la
porque havia conhecido outra pessoa.
- Sério? E ela?
- Ela achou ruim, lógico. Ainda mais quando soube que eu a estava deixando por um garoto.
Qualquer um ia pirar. Mas sabe o que é inacreditável? É que no final das contas ela aceitou. Acho
que entendeu tudo. Voltamos para a festa e ficamos como amigos. Todos souberam que a gente
acabou, mas ninguém percebeu nada de ruim no ar e nem desconfiaram o porquê.
- Uau... isso é incrível, você é demais!
Rodrigo foi de encontro ao pescoço de Eduardo e beijou suavemente. Depois beijou a face e
arrastou os lábios para o ouvido do garoto e sussurrou:
- Quer ver uma coisa?...
O sinal para o intervalo acabara de tocar e toda a turma do cursinho levantou-se afoita,
acotovelando-se rumo às escadarias que levavam ao pátio. Fábio esperou Eduardo sair:
- Me conta o que aconteceu! Aquele dia no telefone fiquei super curioso. Queria saber
mais, mas achei melhor esperar um telefonema seu, já que você tava acompanhado e eu não
queria atrapalhar...
- Ah, deixe de besteira. Ele foi embora logo depois. Mas o que aconteceu foi que eu chutei
o balde em casa.
- Oras, mas disso eu já sabia. Muito me faria gosto se você contasse detalhes, seu mané!
Como foi que aconteceu?
- Pensei que Rodrigo já tinha te contado...
- Contou, mas foi só por cima...
- Certo... bem, primeiro a gente tava falando no telefone, eu e o Rodrigo. Eu tinha sentido
uma atração por ele desde o primeiro momento em que o tinha visto e gostava de conversar
com ele, gostava da presença dele, por mais perturbadora que fosse. E então, a cada visita
ou telefonema, íamos ficando cada vez mais íntimos, e nessa conversa surgiu um clima tão
grande, que quando me dei conta a gente tava se beijando!
- Affe! Mas como?
- Sei lá! Ele desligou o telefone na minha cara e veio correndo rua abaixo. Alguma coisa
me fez fazer o mesmo.
- Você fez o mesmo? Parece coisa de cinema! E o beijo?
- No meio da rua! Luz do sol e tudo mais!!!
- Jesus amado... sério?
- Sério, e minha mãe viu tudo!
Fábio estava pasmo:
- Imagino a cara dela!
- É, a coitada empacotou. Sei que depois, lá estava eu, Rodrigo e a mãe dele ajudando a
acordar minha mãe no chão. Jogamos água nela, e a levamos para a cozinha. Ela tremia
tanto que parecia ser feita de Maria Mole. Tive que dar água com açúcar... e ela só
conseguia falar: ai de você quando seu pai souber disso! Ai de você, coitado do seu couro!
- Que engraçado!
- É né? Agora é engraçado, mas na hora eu senti um peso na consciência... tava com a
maior pena dela. Mas também eu não estava arrependido. Se pensar bem, foi até legal!
- Sim, sair do armário pode ser legal...
- Eu sei. Um alívio!
- É, mas pode ser traumático também. Cara, você teve muita sorte que seus pais não tenham
te rejeitado. Acontece bastante e você ia passar a maior barra.
- Você acha mesmo? Acha que meus pais iam me jogar na rua?
- Bem... acontece, né?
- Puxa! Ainda bem que não foi o meu caso, cheguei até a agradecer aos céus por isso... mas,
e você?
- Que tem eu?
- Seu pai... ele sabe de você?
- Sabe, mas finge que não sabe. Eu não contei, mas também não escondo. Eu deixo revistas
espalhadas, cartas, bilhetes que ganho de paqueras... e quando o telefone toca para mim, só
tem macho do outro lado da linha. Bobo meu pai não é, mas acho que prefere não ter
certeza absoluta... mas se um dia ele perguntar, eu falo mesmo.
- Eu acho que ele ia levar numa boa.
- Eu também. Se duvidar ele é do babado também.
- Sério? Você acha?
- Bem, eu não boto minha mão no fogo por ninguém. Até você, que era meu amigo mais
hetero, é da irmandade...
Os dois riram. Eduardo sentiu novamente como era boa a sua amizade com Fábio. Fazia
tempo que queria isso de volta.
- Eu falei para a Camila. Abri mesmo o jogo e acabamos o namoro.
- Bem, no mínimo...
- Mas foi tudo tão legal. No princípio ela estava arredia e eu entendo isso, mas depois se
mostrou tão boa. Nunca pensei que receberia tamanha receptividade da parte dela. Achei
que ela ia me tratar feito lixo, mas era uma coisa que eu precisava fazer. De qualquer modo,
deu certo.
- Deu mesmo. Tô te falando que parece até coisa de filme, que tudo dá certo para o
mocinho da história...
- É, só que no final do meu filme, não tem casamento com a mocinha...
Fábio fez careta e botou a língua para fora:
- Ui! Fora racha!!!
.....
O som da boate fazia os corpos saltitarem felizes. Tudo era mágica no ambiente da
GrooveLandS. Fábio esperava por Rodrigo e Eduardo numa mesa. Olhava para o relógio
com certa impaciência. Onde será que aqueles dois tinham se metido?
Finalmente, depois de quarenta minutos, o casal apareceu:
- Oi, tá faz tempo aí?
- Pior! Tomei um chá de cadeira que não tem tamanho!
- Puxa, desculpa, é que a gente tava na fila da chapelaria.
- Porque não guardaram as coisas no carro?
- É que a gente veio de táxi hoje.
- Ah, ok. Agora já foi mesmo, né?
- Puxa, desculpa – Ed tentou acalmar o amigo.
- Nem dá nada! Vamos curtir!
Os três rapazes rumaram para a pista de dança.
A música estava espetacular e todos dançavam alucinadamente, uns de cara limpa e outros
com ajuda de entorpecentes. Mas no final das contas, o objetivo era o mesmo em todos:
curtir ao máximo a balada.
- Olha o Henrique ali! – Eduardo exclamou e apontou para o garoto.
- É, ele vive por aqui – comentou Fábio.
- E ele nunca veio falar nada contigo na sala de aula?
- Não. Fica cada um na sua.
- Puxa... deixa eu ir falar com ele.
Eddie rumou para o garoto e tocou-lhe as costas:
- Henrique?
O rapaz de grandes olhos pretos se virou e Eddie cumprimentou:
- Tudo beleza?
- Eduardo? – o rapaz estava surpreso, mas abriu um sorriso franco e indagou – Tudo bem?
- Tudo!
- Que você tá fazendo aqui?
- Eu vim com eles – e apontou para Fábio e Rodrigo.
Nisso o garoto arregalou os olhos:
- Você também é?...
- Sou sim!
- É por isso então que tava sendo legal comigo, né?
- Eu não sei. Aliás, não é que eu não soubesse, talvez seja por isso mesmo, no fundo... é que
na época eu nem sabia ao mesmo o que queria...
- Mas como assim na época? Nem faz tanto tempo assim! Semanas apenas.
- É, mas eu não tinha me definido ainda.
- Mas agora você se definiu?
- Sim.
- E tá tudo bem?
- Tá.
- Então isso é o que vale!
.....
Sentado no meio fio, bem em frente ao portão de casa, Eduardo esperava Rodrigo sair da
casa do começo da rua. Assim que avistou o namorado vindo em sua direção, começou a
cantarolar:
Se essa rua, se essa rua fosse minha...
Eu mandava, eu mandava ladrilhar...
Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes...
Só pro meu, só pro meu amor passar...
Rodrigo vinha caminhando com seu sorriso perfeito estampado no rosto. A canção que Ed
entoava chegava-lhe muito gostosa ao ouvido, trazida pela delicada brisa.
Nessa rua, nessa rua tem um bosque...
Que se chama, que se chama solidão...
Dentro dele, dentro dele mora um anjo...
Que roubou, que roubou meu coração...
Eduardo observava Rodrigo, que já estava sentando ao seu lado. Foi a vez de Rodrigo
cantar:
Se eu roubei, se eu roubei seu coração...
Tu robastes, tu robastes o meu também...
Se eu roubei, se eu roubei seu coração...
É porque, é porque te quero bem...
Assim que terminou de cantar, deu um beijo tão forte em Ed que esse chegou a se inclinar
para o lado.
Sorriram.
- Mas só ganho esse beijinho mixuruca?
Ao que Digo responde surpreso:
- Mas tá ficando é muito saidinho esse meu namorado, não acha?
- Com essa boca linda e esse sorriso perfeito, só posso ter essa vontade, não acha?
- Mas assim? No meio da rua?
- Eu não devo nada para ninguém! E por mim eu ficava te beijando para sempre.
- Ah é?
- É sim.
- Então vamos começar desde agora.
.....
Clara chegou ao lado de Carlos no cursinho e disse:
- Aí estão as “provas” que você pediu. As fotos do Henrique na boate.
- Isso é excelente!
- E acho que você vai achar mais excelentes ainda essas aqui... – disse a garota balançando
um maço de fotografias no ar.
- Que tem de especial nestas?
- Veja você mesmo!
De princípio o semblante de Carlos ficou sombrio, e aos poucos foi ganhando o tom
vermelho do inferno.
- Oras, oras! Agora sei porque Eduardo defendia tanto aquela bichinha!
- Não é o máximo?
- É sim Clara! Muito obrigado. Agora sim eu vou acabar com a raça desse Eduardo!
Assim que a aula começou e todos estavam em seus devidos lugares, Carlos cutucou o
colega do lado e disse:
- Olhe bem estas fotos e passe para o lado.
Rumores se faziam ouvir enquanto as fotos iam passando de mão em mão.
Dentro de pouco tempo, já havia uma multidão que olhava para Eduardo. Alguns
balançavam a cabeça reprovando, outros davam um risinho cínico. Poucos olhavam apenas,
sem reação alguma.
Ed não estava entendendo nada e ainda indagou para si mesmo em sussurro:
- O que está acontecendo? Será que eu tô cagado?
Não demorou muito tempo, uma foto veio parae em suas mãos.
E lá estavam ele e Rodrigo, abraçados, um de face para o outro, quase se beijando na pista
de dança da Groovelands.
Eddie ficou branco feito fantasma.
Ouviu o bombar de seu coração tão alto que podia até ficar surdo.
Enquanto todos ao redor começavam a falar cada vez mais alto e comentar, uma das
fotografias veio para Fábio. Ao constatar que a coisa podia ficar feia para Eduardo, lançou
mão do celular e ligou para Rodrigo:
- Cara, vem para cá pro cursinho agora!
- Fábio? Mas o que aconteceu? Eu não posso ir agora, eu estou...
- Meu, não me interessa o que você tá fazendo! O Eduardo vai precisar de você aqui. Já tá
todo mundo sabendo. Alguém tirou fotos de vocês e espalhou pela turma.
- E cadê o meu Eddie?
Fábio olhou para o amigo, que estava muito branco e com a respiração acelerada.
- Rodrigo, vem para cá AGORA!
Desligou o celular e levantou da carteira:
- De quem são essas fotos?
- Do Eduardo, oras! – respondeu Carlos, três fileiras adiante.
- Seu merda! Quem tirou essas fotos?
Nesse instante o professor interveio:
- O que está acontecendo? Que fotos são essas?
A sala inteira ficou em silêncio.
O professor pediu:
- Passem essas fotos para cá. Todas.
Os alunos obedeceram.
Assim que conferiu de que se tratava, olhou para Eduardo e comentou:
- Filho, acho que você não devia ter trazido fotos suas e do seu namorado para a sala de
aula. O amor de vocês pode ser lindo, mas guarde isso para você ou pelo menos espere a
hora do intervalo para compartilhar sua felicidade com os colegas. Após o sinal, venha
pegar essas fotos comigo. Antes disso, concentre-se nos seus estudos.
E a aula teve curso “normal”. Pelo menos aparentemente, porque a mais intrincada trama de
bilhetes fluiu pelas carteiras. Todo mundo comentava, todo mundo opinava.
Eduardo não parava de receber bilhetes contendo “veado” “bicha louca” “boiola” e até um
“você é um gatinho”, provavelmente de um gay enrustido. Ficou totalmente aturdido e já
não atinava com nada.
Não ouvia o que o professor falava, não distinguia o que via, não reconhecia faces, não
respirava mais.
Os colegas que o cercavam perceberam que ele não estava nada bem e resolveram ajudar.
Quando os bilhetes chegavam neles, simplesmente não os passavam para Edú. Rasgavam,
amassavam e guardavam em suas malas.
De algum modo, essa atitude deu um pouco de ânimo à Eduardo, que se sentiu protegido
pela barreira humana, e mais que isso, pela demonstração de humanidade.
- Ninguém tem nada com isso – lhe disse a colega do lado direito.
- É, ninguém tem nada a ver com isso – disse o garoto da carteira esquerda, dando um
tapinha amistoso no ombro de Edú, que não pode deixar de notar a nódoa de suor debaixo
do braço do rapaz. Ele estava tão nervoso quanto Eddie. Talvez tomar parte dessa luta não
fosse fácil para ninguém. Ao parar de passar bilhetes, o garoto tinha tomado seu partido e
perante o resto da classe era “pró-boiolas”.
.....
Rodrigo dirigia a toda velocidade, passando velozmente por radares e o escambau. A única
coisa que lhe importava no momento era ter Eduardo a salvo em seus braços.
Cruzava o coração com o indicador e beijava a ponta do dedo cada vez que fazia isso,
desejando que nada de ruim acontecesse.
Chegou feito louco na portaria do cursinho e pediu para entrar:
- Você é aluno?
- Não.
- É parente de aluno?
Digo parou para pensar. Não ganharia nada dizendo a verdade.
- Sou irmão de Eduardo Braschi.
- Mostre sua identidade.
- Ok – meteu a mão no bolso, tirou a carteira e já ia abrindo quando o cara falou que não
precisava mostrar nada.
- Ok.
- Entre e vá para a diretoria, diga à secretária mandar alguém buscar seu irmão.
- Muito obrigado.
E Rodrigo seguiu para a diretoria. Pediu por Eduardo.
- Faltam apenas quinze minutos para acabar a aula – disse a loirinha simpática – Eu posso
mandar alguém avisá-lo que você está aqui, mas ele só vai poder sair depois que der o sinal.
- Não tem mesmo como falar com ele antes? É muito urgente.
- Eu gostaria muito de ajudá-lo, mas tenho que seguir essas normas.
- Eu entendo.
Rodrigo só disse que entendia porque faltavam apenas quinze minutos. Se tivesse que
esperar mais do que isso já teria derrubado a porta da sala de aula e arrancado o namorado
de lá em seus braços.
.....
Quando o sinal tocou, o professor disse:
- Você rapaz, venha pegar suas fotos e vá para fora. O resto da turma, aguarde um
pouquinho mais.
Eduardo levantou e caminhou para o enorme tablado. Sentia o olhar de todos como dedos
de ferro em brasa sobre sua pele. Mas foi com a cabeça erguida. Preferiu fazer isso do que
se deixar montar por todo aquele sentimento besta de superioridade que lhe dirigiam. A
vida de Henrique era triste. Não queria a mesma coisa para ele.
Subiu no tablado e o professor lhe entregou as fotos, e até o envelope com os negativos,
que alguém havia passado também, o que deixou Clara e Carlos totalmente furiosos.
- Pronto, agora, pode ir para seu intervalo.
Eduardo cruzou a enorme sala de aula, ainda sob os olhares da galera. Ele ainda pôde ouvir
uma voz chorosa reclamar:
- Droga! Ele é tão gato...
Tão logo Dú saiu da sala, o professor começou:
- O que vocês acham que estavam fazendo?
Silêncio.
- Eu sei muito bem que ele não trouxe aquelas fotos. E também sei que ele não gostou nada
do que aconteceu aqui. Vocês deviam ter muita vergonha do que fizeram, seja lá quem foi
que fez essa maldade. Só quero dizer que orientação sexual é algo particular. O que cada
um faz ou deixa de fazer é problema pessoal. Aquele garoto, mesmo sendo “doente”, como
todos vocês acham que é, jamais faria isso com nenhum de vocês, sabem porque? Porque
ele é gente! Ele é humano. Não é igual ao monstro que tirou essas fotos.
Silêncio total.
- Só um monstro faria isso. Uma pessoa sem valor. E com muita, muita inveja daquele
garoto. Porque quem está contente e seguro, não vai se incomodar com a vida dos outros, a
não ser que esse outro esteja ocupando um lugar que de repente... a gente queria estar.
Então, para quem armou isso, tente se resolver antes de machucar um rapaz que não tem
nada a ver com sua mente pequena e com sua vidinha medíocre.
Algumas pessoas concordaram.
Henrique sorria.
Fábio levantou e aplaudiu.
- Obrigado – disse o professor – Agora, vão para o intervalo, e ai de quem eu souber que
andou fazendo qualquer coisa com aquele garoto! Mas ai!
.....
Eduardo saiu da sala e rumou para o banheiro. Sua pele que já era branca por natureza,
ainda estava mais pálida do que de costume. Lavou o rosto, enxugou lentamente. O pátio já
estava cheio de gente e só agora o povo da sala dele começava a sair da sala de aula. Não
demoraria muito, estaria rodeado por sabe-se lá que tipo de pessoa. Sentou-se debaixo do
grande cedro na área da cantina. O vento fresco e a sombra estavam lhe fazendo bem. Seu
pulso já se normalizava.
- Eddie!
- Rodrigo?? Que faz aqui?
- Fábio me ligou, vocês estavam em plena aula.
- Mas...
- Ele me contou o que houve.
- Foi uma droga! Horrível. Todos aqueles olhares. Tanta coisa horrível.
- É normal. Eles não entendem. Eles não sabem que a felicidade vem em medidas e formas
diferentes para cada pessoa.
- Mas isso não é felicidade...
Rodrigo mudou a expressão do rosto:
- Nunca mais diga isso de novo. Eu te amo tanto que só pensar que você existe me deixa
muito feliz. Muito!
Eduardo olhou para o namorado. Como era lindo. E sempre tão verdadeiro.
Pôde sentir o carinho que a respiração dele transmitia.
- Eu queria te abraçar – Eduardo disse finalmente.
- É, eu sei. Mas olha para toda essa gente...
Fábio, que estivera à procura de Eduardo, já chegou falando:
- Rodrigo! Que bom que você já tá aqui! – sorriu e fofocou – o professor soltou o verbo na
galera. Mas pisou mesmo! Como todo mundo sabia que o Carlos que passou as fotos,
enquanto o professor repreendia, ele se encolhia cada vez mais e ia ficando vermelho, roxo,
preto de vergonha. Disse que no fundo quem tinha vontade de agarrar um homem era bem
quem fez essa maldade.
- Mas eu achei que ele pensasse que as fotos eram minhas.
- Claro que não né? Ele só fez isso para te ajudar.
- Pô, esse cara é super gente boa hein?
- Verdade. Segurou a barra legal...
Fábio foi interrompido por uma voz furiosa:
- Mas aí está a bichinha! – era Carlos, de punhos cerrados.
- E aí está o otário – disse Fábio.
- Não se mete cara! Não se mete! – já disse empurrando.
- Quem é esse mané? – Rodrigo perguntou.
- O sujeito das fotos – Fábio informou.
- Ah é??? – disse Rodrigo sorrindo e estalando a junta dos dedos.
- E você? Quem... ah! – fez Carlos, reconhecendo-o pelas fotos – Você é o namoradinho
né? Outra bichinha que eu vou ter o prazer de...
- Vai ter o prazer de que? – indagou Eduardo, levantando-se furioso e peitando Carlos.
- É, ô mané, vai ter prazer de que? – disse Rodrigo, levantando-se também, ficando ao lado
de Ed.
Como os dois eram bem maiores que Carlos, ele se esquivou:
- Olha, isso não vai ficar assim...
No mesmo instante, Jorge e Marcos, os amigos de Carlos, se aproximaram do local. Vendo
que reforços chegavam, o garoto já cantou de galo:
- Você tá muito ferrado na hora da saída!
Eddie olhou para os outros dois rapazes que adentraram a rodinha, ao que Marcos
continuou:
- Agora são três, contra dois!
- Três contra três – disse Fábio.
- Não – corrigiu Marcos – são cinco contra um.
Eduardo olhou com espanto o skatista com cara de mongo, aquele mesmo, que vivia
pedindo as resoluções dos exercícios. Este tinha um sorriso franco e estendia a mão para
Eduardo:
- Pôrra cara! Foi muita sacanagem isso!
Rodrigo sorriu.
- Você é super gente boa – completou o rapaz.
- É sim – fez Jorge – sempre ajudou a gente. Estávamos sentindo a falta da sua companhia
na turma.
- Agora a gente sabe porque você se afastou. Tinha medo que a gente descobrisse né?
- Ainda mais com todas aquelas piadinha que a gente fazia sobre veado e essas coisas.
- Ué Jorge, pensei que gente assim fazia você querer vomitar – disse Fábio.
- Ah não! Era só para eu não perder a pose diante da turma. Coisa ridícula. Mas sabe qual
é? A gente perdeu um grande amigo por causa do preconceito.
- Eu não acredito no que estou ouvindo – bradou Carlos – será que todo mundo é viado?
- Não Carlos, nem todo mundo é veado, assim como nem todo mundo é otário que nem
você! – disse Marcos – E quer saber de mais uma coisa? Some daqui cara! Some! Você foi
muito cuzão!
- É! Te manca cara! – disse Fábio, que já não ia com a cara de Carlos fazia muito tempo.
Henrique chegou na roda, ao que Carlos comentou:
- Pronto! Mais um! Agora são três frutinhas!
- Não são três, são quatro – Fábio consertou.
- Quatro? – Jorge indagou.
- Claro – disse Henrique – O Fábio também é gay.
- Mas era só o que me faltava – Carlos comentou com nojo.
- Não, só o que lhe faltava era um cérebro, sua múmia paralítica! – disse Rodrigo – E tem
mais: a gente já não mandou você cascar os “buios” daqui?
- Se não gosta de mim, nem do Fábio, nem do Henrique, e se a partir de agora não gostar
mais do Jorge e nem do Marcos... não precisa nem falar conosco – deu uma pausa e falou
carregado de veneno – a gente não faz questão!
Os olhos do rapaz furioso latejavam visivelmente. Ele estava sozinho naquela guerra. E era
inútil tentar. Saiu de lá pisando firme e resmungando coisas que ninguém entendeu.
.....
- O que você acha disso? – perguntou dona Sônia ao pai de Eduardo.
- Eduardo mereceu isso! – respondeu o homem.
- É verdade – a mulher anuiu.
- E eu digo que nosso filho é de ouro.
Os dois se abraçaram, contemplando um dos vários outdoors que estampavam Eddie como
primeiro lugar geral do vestibular.
.....
- Como grávida??? – Eduardo se espantou.
- Grávida! Oras!
- Camila! Isso é muito estranho!
- Eu sei, mas Eduardo... depois da seca que você me deu... quando eu arranjei um
namorado, não quis nem saber, eu mandei ver mesmo!
Eduardo riu, mas logo ficou sério:
- Você gosta dele?
- Claro que sim!
- Vão se casar?
- Não, eu sou muito nova. E ademais... casamento não é para mim. Não pelo menos a essa
altura da minha vida. Nem terminei o segundo grau!
- Pois é, e ainda mais com um filho Camila... as coisas não vão ser fáceis.
- Disso eu sei, mas eu tenho o apoio da minha família. Meus pais, que eu pensei que iam
me matar, nem fizeram tanta onda assim. Lógico que teve todo aquele aporrinhamento, mas
normal! – e ela riu.
- Mas embora eu ache loucura, ainda estou fascinado com a idéia de ser titio.
- Não!
- Não?
- Quero que seja padrinho. Quando batizar a criança, quero você lá como padrinho dela.
- Ah Camila! Pode deixar! Eu topo mesmo! Um dia eu vou ter meus filhos!
- Como?
- Sei lá! Partenogênese!
- Partenoquê?
Ele riu largamente até que a garota comentou:
- Não é à toa que passou no vestibular!
.....
- Sabe, um dia eu vou querer ser que nem você – disse Eduardo com a cabeça no colo de
Rodrigo, enquanto esse acariciava seus cabelos.
- Sai fora! Dois de mim não!
- Seu bobo! Eu estou falando do seu jeito de ser. Você conquista todo mundo...
- Eduardo, não me interessa conquistar todo mundo. Eu já conquistei você.
- Puxa, como a gente tá ficando cafona!
- Posso ser cafona, mas se eu estiver contigo... sinto-me o cara mais feliz do planeta.
- Ah é? Então bota a mão na minha cueca que eu tenho uma coisinha para você...
Ao que Rodrigo respondeu:
- Coisinha? Isso é uma coisona!
E foi colocando a mão por dentro da calça de Eddie, até que tirou uma caixinha da cueca do
outro. Abriu e viu a aliança.
- Você quer ser meu noivo?
- Noivo? – os olhos de Rodrigo tinha lágrimas muito brilhantes.
- Eu quero me casar com você...
E o sorriso de Diguinho iluminou o universo.
.....
- Casar Eduardo?
- É mãe. Mas isso só daqui a algum tempo. E fala baixo, que o pai ta na sala do lado e pode
escutar. Não quero que ele pense nisso agora.
- Claro! Seu pai vai ficar desconcertado. Até agora ele aceitou bem, mas acho que se souber
que o filho dele quer casar com um outro homem...
- Eu sei mãe, é difícil para vocês aceitarem, mas tenho que seguir minha natureza. Tenho
que seguir meu coração.
- Mas... como é que dois homens se casam? Como fazer convites para a igreja?
- Ah não mãe! Não digo de casamento em igreja e essas coisas mãe. Só morar junto.
- Ah bom. Isso me alivia. Não consegui imaginar nenhum de vocês usando um vestido de
noiva... aliás... meu filho... uma coisa que me encuca muito... qual de vocês dois é a... – e a
mulher parou por não saber como indagar.
- O que?
- Você sabe, é a mulher...
- Ela quer saber quem come quem! – gritou Antônio, lá de dentro.
.....
Num quarto escuro e abafado de um motel de quinta categoria, uma drag queen de
maquiagem borrada e roupa barata estava de quatro levando ferro por trás. O “bofe” a
penetrava com força e xingava com gosto, puxando a peruca, que saiu da cabeça da drag.
Era Carlos.
.....
- Digam “x”! – Fábio pediu, enquanto apertava o controle remoto da máquina digital –
temos que sair bem na foto. Afinal festa assim é ocasião especial!
- É! Essa vai ficar para a história! – Camila comentou.
Dizendo isso, todos se abraçaram fazendo pose e o flash disparou sobre Eduardo, Rodrigo,
Fábio, Camila e o bebê em seu colo.
Cada um ficou com uma cópia desta fotografia para si.
A de Eduardo está no porta-retrato em que Rodrigo lhe dera o seu número de telefone
escrito no vidro, quando Eddie ainda estava naquele mundo incerto.
Tanta coisa mudara desde então.
Conquistara um amor único e verdadeiro.
Os pais de Edú e Rodrigo estavam orgulhosos de verem os filhos tão felizes juntos, de
estarem se virando sozinhos, de terem construído um bom começo de vida.
Fábio passara a gostar de Camila e eram praticamente melhores amigos. Chegava até querer
ser o pai “postiço” do bebezinho.
Marcos e Jorge foram se chegando cada vez mais nessa turma e agora eram dois incríveis
“heteros sem preconceito”.
Os pais de Rodrigo finalizariam a construção da clínica dentro de dois anos, e já esperavam
Eduardo para integrar-se à equipe médica tão logo fizesse sua especialização.
Rodrigo e Eduardo sabiam que a felicidade não era algo constante. Ela ia e vinha como
sempre na vida. Para todos. Mas saberiam ser fortes para lutar pelo que sentiam e para fazer
de todos os momentos felizes, os mais inesquecíveis de suas vidas, como o dia em que
Fábio tirou a foto da galera.
Seriam momentos como esse, registrados belamente na memória assim como na foto, que
dariam a força de continuar a acreditar que tudo o que se precisa para ser feliz é aceitar que
se pode ser feliz.
A fotografia tirada no dia do casamento dos rapazes, com os amigos reunidos, decorava a
estante da sala do apartamento em que moravam Eduardo e Rodrigo.
Fim...