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Tudo que se nega: O destino trágico da prostituta em Henriqueta Emília da

Conceição, de Mário Cláudio

Evelyn K. A. Silva

RESUMO:

Na peça de Mário Cláudio, apesar da tonalidade melodramática, a equiparação do amor

entre as prostitutas Henriqueta e Teresa à normalidade das relações afetivas, acaba por

conduzi-las a um destino trágico e violento.

A comunicação analisa a reprodução do papel social da prostituição, a objetificação da

mulher e sua utilização como forma de controle da subjetividade, através daquilo que lhe é

negado como ser humano, em especial, o afeto e as ligações românticas.

Palavras-chave: tragédia, prostituição, misoginia

A prostituição nos degrada; nos agride, nos reifica, nos violenta a cada dia e cada

vez. Erroneamente chamada da “mais antiga das profissões”, representa, em especial

para as mulheres, a mais antiga das opressões; o que nos faz entender porque, em um

mundo cada vez mais sofisticado e tecnológico, se mantenha a prostituição intocada,

desumanizante e misógina, corroborando a percepção de que absolutamente tudo, inclusive

a nossa subjetividade, é passível de mercantilização.

Na peça “ Henriqueta Emília da Conceição” de Mário Cláudio, apesar da tonalidade

melodramática, a equiparação do amor entre as prostitutas Henriqueta e Teresa à

normalidade das relações afetivas, acaba por conduzi-las a um destino trágico e violento.
Talvez inspirado por um episódio acontecido no Porto na segunda metade do séc.

XIX, ou, mais característico, pelo romance de A. J. Duarte Júnior, Henriqueta ou uma

heroína do século XIX, (publicado em 1877, um dos expoentes da literatura de horror

portuguesa); Mário Cláudio publica em 1997, a peça Henriqueta Emília da Conceição.

A peça em três atos, conta a história da prostituta Henriqueta, renomada por sua

beleza, sua habilidade em seduzir e pela ausência absoluta de vínculos afetivos, ligações

amorosas para além das prescritas para exercício da profissão. O primeiro ato nos apresenta

a heroína, em seu total esplendor e domínio de seu ambiente; é uma personagem dotada de

certa grandeza, admirada e invejada por seus pares. No segundo ato, revela-se o tormento

do amor por Teresa, sua doença e consecutiva morte. No último e terceiro ato, a loucura de

Henriqueta e a descoberta do horror da decapitação.

O que transforma o melodrama em tragédia é justamente a tentativa de Henriqueta

de humanizar-se através daquilo que lhe é negado. Como mercadoria que é, não é possível

que compartilhe do afeto e das ligações românticas, senão mediados pela relação comercial.

No primeiro ato, Henriqueta é o estereótipo da prostituta bem sucedida: tem algo

de cáften, de atriz, de estrela da Baixa; completamente adaptada àquilo que se espera, é a

rainha reconhecida pelos pares e clientes. Quando da chegada de Teresa, assaltada por uma

quadrilha do bairro, Henriqueta ensina:

HENRIQUETA (tomando-a nos braços): Venha para o pé de mim, que lhe ensino umas

manhas, cá muito minhas, que nunca falharam, nem hão-de falhar... dê-se com todos, mostre

bons modos, faça-se protegida de um senhor de posição, não se exponha de mais, seja humilde e

graciosa... E seja asseada, sobretudo, não só no seu corpo, mas nas suas amizades, evitando meter-
se com a ralé, que disso é que o Porto anda mais cheio. (1º Ato, Cena I)

Teresa, na mesma cena, como oráculo, profetiza seu destino, “o de acabar, um dia,

numa enxerga, como já vi algumas, doentinha do peito, sem que ninguém olhe por mim.”

Cada uma das mulheres reconhece seu lugar social, seu modo de portar-se e ao que

serão conduzidas, em caso de desvio; reconhecem a inexorabilidade de saber-se coisa, e

não gente.

A primeira cena do 2º ato, muito curta, descreve a mudança de posição, a tentativa

de humanizar-se pela descoberta do amor e as dificuldades objetivas que este desejo

começa a trazer. Já no começo, Henriqueta discute com a senhoria, a possibilidade de que

Teresa vá morar na casa, em seu quarto. Dona Carlota, a senhoria, apresenta o primeiro

estranhamento:

D. CARLOTA: Há uma coisa que não entendo, Henriqueta. A menina, que conhece tantas

jovens, que gozam a sua vida e, até, às vezes, a esbanjam, por que motivo, Santo Deus, se lembrou

de se prender a esta? (2º Ato, Cena I)

Para D. Carlota, que conhece sua inquilina e as agruras da profissão, o apaixonar-

se é o estranho, é o alienígena; é o modificar-se de uma estrutura que só pode levar à ruína.

Tanto Henriqueta, quanto Teresa, agora dedicam-se uma à outra; não mais ao trabalho, seu

sustento, guardando seus corpos para o amor, ao invés da prostituição. Essa mudança é,

ao final, a hybris de Henriqueta, sua desmedida, e sua hamartia, a falha trágica do herói.

A cena termina com a morte de Teresa, tuberculosa, confirmando sua predição e o destino

trágico dos desviantes.


A segunda cena do 2º ato, é o funeral de Teresa. Presentes apenas Henriqueta,

D. Carlota e o coveiro, há um que de coro grego, com comentários sobre os estados de

espírito das personagens e descrições daquilo que é poupado à visão da platéia. Entretanto,

é também nessa cena que Henriqueta se utiliza pela última vez como mercadoria: em troca

da possibilidade de ter o corpo de Teresa, Henriqueta entrega o seu próprio ao coveiro:

COVEIRO: ofereça-me a garantia de que me empresta, apenas, pois é um

empréstimo o que lhe peço, uma certa coisa, muito simples. Em troca, minha senhora, o

corpo de Teresa Maria será inteiramente seu.

HENRIQUETA (Muito inquieta): faz-me estremecer, de prazer e de ânsia, Senhor

Coveiro. E que pretende, que pretende, afinal, em troca desse corpo?

COVEIRO: O seu corpo, Henriqueta, nada mais. (2º Ato, Cena II)

O 3º e último ato desenrola-se rapidamente. Inicia –se com uma conversa entre

Henriqueta e D. Carlota, mas é na chegada de Eduardo D´Artayet, seu amigo, que

percebemos que o destino trágico da mulher Henriqueta também concretizou-se:

enlouquecida, mantém conservada “a cabeça de Teresa Maria, num globo de vidro, imersa

num líquido incolor, iluminada por círios bruxuleantes”.

Apesar da brusca retomada do melodrama no final do último ato, com fortes

referências metalinguísticas; a história de Henriqueta e Teresa desenvolve-se como

tragédia, com a morte e a perda da sanidade das prostitutas que quiseram aproximar-se da

vida e da razão permitida aos outros. Ao deslocarem-se dos lugares sociais que lhes foram

designados, por classe ou gênero, são condenadas ao destino trágico e ao rodapé das

crônicas das cidades.


BIBLIOGRAFIA

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