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Editor

Eduardo Galasso Faria

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Eduardo Galasso Faria, Fernando Bortoleto Filho,
Gerson Correia de Lacerda, Shirley Maria dos Santos
Proença e Valdinei Aparecido Ferreira.

Teologia e Sociedade é editada pelo Seminário Teológico de São


Paulo da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil
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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
Teologia e Sociedade / Seminário Teológico de São Paulo / Vol. 1,
nº 5 (novembro 2008). São Paulo: Pendão Real, 2008.

Anual
ISSN 1806563-5

1. Teologia – Periódicos. 2. Teologia e Sociedade.


3. Presbiterianismo no Brasil. 4. Bíblia. 5. Pastoral.
CDD 200

Revisão: Eduardo Galasso Faria


Planejamento Gráfico, Capa e
Editoração eletrônica: Sheila de Amorim Souza
Impressão: Assahi Gráfica
Tiragem: 1000 exemplares

Distribuição: Associação Evangélica Literária Pendão Real


www.pendaoreal.com.br
e:mail pendaoreal@pendaoreal.com.br

As informações e as opiniões emitidas nos artigos assinados são


de inteira responsabilidade de seus autores.
Sumário

4  EDITORIAL

6 QUEM ERA E QUEM É CALVINO? INTERPRETAÇÕES RECENTES


Eberhard Busch

24 GENEBRA, CALVINO E O TRATO COM OS HEREGES


Armando Araújo Silvestre

44 O DISCURSO DO PÃO DA VIDA: FUNDAMENTO BÍBLICO DA


DOUTRINA EUCARÍSTICA DE JOÃO CALVINO
Claude Emmanuel Labrunie

54 CALVINO SOBRE A VIDA CRISTÃ


Eduardo Galasso Faria

68 KARL BARTH, LEITOR DE CALVINO


Adilson de Souza Filho

76 JOÃO CALVINO, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM


E O SEU CONTEXTO
Lysias Oliveira Santos

110 O COMENTÁRIO DE CALVINO AO LIVRO DE DANIEL


José Adriano Filho

130 COMENTÁRIO DE CALVINO A 1 CORÍNTIOS


Paulo Sérgio de Proença

148 JOÃO CALVINO, LEITOR DE SALMOS


Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão

SERMÃO
160  JUBILEU DE CALVINO
Maurice Gardiol





Editorial


















A decisão de dedicar o pre-



 Eduardo Galasso F
sente número e o próximo de

Teologia e Sociedade a João ○


Calvino, vem ao encontro das vos mas que, ao contrário, pro-



comemorações, em 2009, dos piciasse fruto maduro, dig-


no do homenageado e do evan-

500 anos do nascimento do


Reformador. Desde o princí- gelho de Jesus Cristo.



pio, seus discípulos em todo o De modo semelhante, pen-




Faria*
aria*

mundo, embora conscientes da sou-se em evitar que a imagem



importância da data a ser cele- desse humilde e dedicado servo


de Deus se tornasse algo próxi-


brada, pensaram na maneira


mais apropriada de fazê-lo, mo de um “pop star”, contrari-



sem que a oportunidade de tra- ando não só o essencial de seu



zer sua memória viva para o estilo de vida, como também



nosso tempo fosse desper- aquilo que sempre almejou para



diçada. A preocupação dentro si mesmo, ou seja, viver para a


glória de Deus em primeiro lu-


do mundo reformado/presbi-

teriano foi evitar que o calor gar. Tratá-lo também de forma



das celebrações levasse à rápi- idolátrica, como um ícone, de



da evaporação de seus objeti- maneira não crítica e ocultando



suas naturais limitações, pode-


ria ser a outra tentação.



Seria impossível, nesta oca-


O Rev. Eduardo é o editor da Revista Teologia e


Sociedade do Seminário Teológico de sião, esquecer as decisivas pala-


São Paulo








4






vras de Karl Barth, o teólogo do sé- um texto que procura comparar a




culo XX, que nos fez lembrar o sig- obra teológica de Calvino com a de



nificado de Calvino no espectro Barth e um dos sermões vencedo-

EDITORIAL
REVIST
REVISTA


maior da obra do reino de Deus? res no concurso do Jubileu, reali-


Suas palavras ainda hoje ressoam e zado em Genebra, os demais escri-

A TEOL

fornecem diretrizes: “reconhecemos tos são dedicados à obra de Calvino

TEOLOGIA

em Calvino um exemplo e um mo- como intérprete das Escrituras,


OGIA E SOCIEDADE Vol. 1 nº 5 , novembro de 200


delo na medida em que ele mostrou valendo-se de seu trabalho



à Igreja de seu tempo, de maneira exegético sobre livros da Bíblia, em


inesquecível, o caminho da obedi- ○
comentários ou preleções, já publi-
ência, obediência no pensamento e cados em língua portuguesa: Sal-

nos atos, obediência na vida social e mos, Daniel e 1 Coríntios.



política. Um verdadeiro discípulo de O cuidado com que a Igreja



Calvino, pois, só pode fazer o seguin- Presbiteriana Independente do Bra-



te: obedecer, não a Calvino, mas sil, juntamente com calvinistas de


àquele que foi o mestre de Calvino.” outras igrejas de linha reformada,



Teologia e Sociedade no.5 foi pre- tem planejado sua participação neste

parada de forma a não perder de evento de caráter internacional, in-



vista as dificuldades e balizas aci- dica o desejo de superar os entraves



ma mencionadas, contribuindo que entre outras coisas, têm impe-



para que a obra de Calvino, que dido uma conscientização maior e


mais e mais deverá se submeter ao real da contribuição única dada pelo



esforço de contextualização, venha Reformador de Genebra ao protes-


2008

servir de estímulo atualizador à ta- tantismo de origem latina, do qual


8 , São P

refa evangelizadora em nosso país somos parte.



e na América Latina. Pelo menos Nosso desejo é que o esforço aqui


dois dos seus textos fazem uma realizado, que por certo se juntará

Paulo

aulo
aulo,, SP

abordagem direta da crítica passa- ao de muitos outros, ofereça con-



da e atual à obra do Reformador tribuição pertinente para o momen-



francês. Dois outros constituem to que nos é dado viver como Igre-

Eduardo Galasso F

temas preparados para a Semana ja de Cristo no mundo. Soli Deo



Teológica deste ano, no Seminário Gloria!


PÁGINAS 4 E 5 

Teológico de São Paulo. Além de








Faria
aria



5






Quem era e quem é Calvino?


C




Interpretações recentes
QUEM ERA E QUEM É CAL
PÁGINAS 6 A 23, 2008














CALVINO?


1. Interpretações luterana entre a Igreja como

VINO? INTERPET

Eberhard Busch
reo Rodrigues de Oliveira


agente da graça e o Estado como
do passado ○

agente da “lei e da ordem”. As-


INTERPETAÇÕES

Um olhar nas interpretações


sim, Calvino foi capaz de dizer


de Calvino há cerca de cem algo impensável para os




Busch∗

anos, revela uma grande diver- luteranos alemães, ou seja, que


AÇÕES RECENTES


sidade de pontos de vista que toda pessoa é igual diante da lei e




definiram, por décadas, a manei- que a derrubada dos tiranos pelo


ra pela qual o reformador foi


povo é legítima.1 Em tempos mais


compreendido. De acordo com recentes, por volta de 1940,



Albert Ritschl, Calvino confun- Dietrich Bonhoeffer reafirmou



diu e combinou a diferenciação este ponto em sua Ética.2



Contrastando com este pon-



* Eberhard Busch é professor emérito de Teologia to de vista, o historiador da cul-


Sistemática na Universidade de Götingen, na


Alemanha. Entre seus livros está The Great tura Jacob Burckhardt, de Basi-

Passion. An Introduction to Karl Barth´s Theology.


léia, afirmou: “A tirania de um

Michigan: W.E.Eerdmans, 2004. Texto publicado



Eberhard Busch

em Reformed World, vol. 57, no.4, 12.07, “Who único homem nunca foi tão pro-

was and who is Calvin? Interpretations of


recent times”, Geneva. Tradução: Eduardo movida como o foi por Calvino,

Galasso Faria.
que não somente fez de suas con-

Albert Ritichl, Geschichte des Pietismus. Bonn:


vicções particulares uma lei ge-
1

Marcus, 1880, vol. I, 61-80.


ral, oprimindo e banindo todas

2
Dietrich Bonhoeffer. Ethik. Munich: Chr. Kaiser,

1958. Em português: Ética. S. Leopoldo: as outras convicções, como tam-



Sinodal, 7a. edição, 2005.


bém insultava frequentemente a

3
Conforme Werner Kaegi, Jacob Burckhardt: eine

Biographie. Bd 5, Das neuereEurope and das todos por causa das mais inocen-

Erlebnis der Gegenwart .Basiléia: Suttgart:


Schwabe, 1973, 90. tes questões de gosto.”3 O poeta








6






Stefan Zweig em 1937, usou esta com Troeltsch, Charles Hodge, no


 REVISTA

caracterização de Calvino para acu- Seminário de Princeton, disse que



por causa de sua visão de que a igre-

QUEMTEOLOGIA
REVIST
REVISTA
sar Adolf Hitler de ser um demoní-



aco.4 O próprio Karl Barth escreveu ja como igreja nada tinha a ver com


as questões seculares, Calvino se-


que quando alguém conhece os de-

A TEOL

ERA EE SOCIEDADE
talhes da tão admirada maneira de guiu a doutrina luterana dos dois

TEOLOGIA

viver em Genebra no tempo de reinos. Isto é verdade, prossegue


OGIA E SOCIEDADE Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São P


Calvino, palavras como tirania e Hodge, mesmo se os políticos não

QUEM É CAL

farisaísmo vêm quase que automati- silenciassem os representantes da


camente à mente. “Nenhum de nós... ○
igreja que testemunham a verdade
gostaria de ter vivido naquela santa e a lei de Deus.8

cidade (Genebra).” 5 O holandês Abraham Kuyper dis-


CALVINO?

A difundida tese de Max Weber se igualmente que, por um lado, o


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


VINO? INTERPET

de que Calvino foi um dos pais do calvinismo distinguiu nitidamente



capitalismo, foi a princípio repudi- entre estado e igreja, incluindo o


reino da cultura, mas por outro, tan-


ada por Ernst Troeltsch, seguido por

INTERPETAÇÕES

André Biéler. 6 De acordo com to o estado como a igreja estão di-



Troeltsch, as idéias de Calvino leva- retamente sujeitos ao governo de



ram à emergência, dentro da tradi- Deus.9 A verdade sobre a maioria



ção reformada, do “socialismo reli- dessas interpretações é que elas fa-

AÇÕES RECENTES

gioso” no começo do século XX, lam genericamente sobre o chama-


algo muito diferente do que ocor- do calvinismo mais do que sobre o



reu no luteranismo conservador e próprio Calvino, ou, como afirmou



antidemocrático. 7 Em contraste Stanford Reid em 1991, elas fre-



quentemente falam de Calvino “sem



verificar com cuidado o que ele re-


almente disse.”10

4
Stefan Zweig. Castelio Gegen Calvin order ein

Paulo

Gewissen geen die Gewalt. Vien: Reichner, 1936.


aulo
aulo,, SP PÁGINAS 6 A 23

5
“Keiner von us...würde in dieser heiligen Stadt gelebt

haven wollen”.Karl Barth, Die Theologie Calvins 1922. 8


Charles Hodge. Discusions in Church Polity. N. York:

Zürich: Theologischer Verlag, 1993, 163. Em inglês: Charles Scribners, 1898, 104-106.

The Theology of John Calvin. Grand Rapids: MI, W.B.


Eerdmans, 1995.
9
Abraham Kuyper. Calvinism: Six Stone-Lecture. Grand

Rapids: W.B.Eerdmans, 1931. Em português:


6
Ernst Troeltsch. Gesammelte Schriften. Vol. 1 – Die Calvinismo. S. Paulo: Cultura Cristã, 2002. (NT)
Eberhard Busch

Soziallehren der christlichen Kirchen und Gruppen.


Tübingen: JCB Mohr, 1912, 713. Com relação a


10
W. Stanford Reid. “John Calvin – Early Critic of

Biéler, ver nota 63. Capitalism (II)”, in Richard Gamble, Articles on Calvin

and Calvinism. Vol. 11, Garland: New York/London,


7
Op. cit., 721. 1992, 169.






7






2. O centro da ria de Deus, justiça, santificação e


C


redenção.” Ele demonstrou quão


teologia de Calvino


genuína era sua exposição da dou-
QUEM ERA E QUEM É CAL
PÁGINAS 6 A 23, 2008



Provavelmente seja verdadeiro trina da justificação em 1547, na-


que cada época influencia os resul- quilo que foi realmente o primeiro



tados de suas pesquisas pela manei- comentário diferenciado oferecido



ra como as perguntas são formula- por um protestante sobre a doutri-



das. Todavia, alguém deve dizer tam- na da justificação proposta pelo



bém, com Reid, que os especialis- Concílio de Trento e que foi em si



tas em anos e décadas recentes “têm mesmo uma afirmação substantiva.
CALVINO?


feito grandes esforços” para ouvir Embora na época, os decretos do

VINO? INTERPET


mais cuidadosamente “o que ○

concílio não tivessem sido publica-
Calvino realmente disse”, primeiro dos, Calvino estava bem informado
INTERPETAÇÕES


e acima de tudo no contexto da Re- não apenas sobre o texto conciliar,



forma, na França e em Genebra. Isto mas também acerca das discussões



AÇÕES RECENTES

tem resultado em uma progressiva conduzidas pelos veneráveis daque-



compreensão de que a Reforma da le concílio. Seu comentário não apa-



Igreja não deve ser avaliada somen- receu em tradução alemã até a pu-

te pela figura de Martinho Lutero blicação de uma edição de estudos



como algumas vezes se ouve dizer, de Calvino, em 1999. Como de-



especialmente na Alemanha. Assim, monstrou Anthony Lane, Calvino


tem ficado mais claro que a formu- participou do transcorrer do Con-



lação da doutrina da justificação não cílio de Trento, especialmente nas



é a única diferença fundamental en- discussões em Ratisbona entre teó-



tre o protestantismo e o catolicis- logos protestantes e católicos ro-



mo romano. manos, que trataram em primeiro



Eberhard Busch

Calvino com certeza ensinou a lugar da doutrina da justifica-



justificação pela graça somente, ção.11Os especialistas em Calvino



mas ao mesmo tempo insistiu, mais continuam discutindo até que pon-

que o luteranismo de seu tempo, que to a interpretação de Calvino pode



a justificação e a santificação esta-


vam inseparavelmente ligadas. Ele



fez isso ao expor 1 Coríntios 1.30:


11
Herman Selderhuis, ed. Calvinus Praeceptor

“Ele é a fonte da vida em Cristo Je- Ecclesiae. Papers of the International Congress on

Calvin Research. Princeton: agosto 20-24, 2002.


sus, que para nós se tornou sabedo- Genebra: Droz, 2004, 233-264.






8






possibilitar alguma compreensão nas ruas, “hereges” eram “sacrifica-

 REVISTA

comum entre as confissões que vêm dos”, ou seja, eram mortos queima-



a afirmação paulina em Gl 2.6, de dos porque se opunham a esta dou-



que a fé justifica sem as obras e Gl trina do sacrifício.13 Ao definir sua


5.6 sobre a fé que opera pelo amor. liturgia, Calvino, em contraste com

TEOLOGIA E SOCIEDADE

De qualquer maneira, Cal- Zwínglio, não optou pelo serviço de



vino permanece, com sua doutrina prédica medieval tardio, nem con-



da justificação, nos fundamentos da cedeu importância secundária ao



Reforma Protestante. No entanto culto litúrgico. Ao contrário, como


para ele, a diferença decisiva em ○
Christian Grosse recentemente de-
relação a Roma estava em outro lu- monstrou, ele infundiu vida nova na

gar. Bernard Cottret escreve em sua liturgia do culto divino, seguindo o



biografia de Calvino, que o chama- modelo a Igreja Antiga.14


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


do Caso dos Cartazes no fim de No centro do culto divino, o Es-



1534 em Paris, foi para Calvino a pírito Santo, na Ceia, nos comunica

questão decisiva. Estes cartazes, que a reconciliação com Deus realizada



foram colocados em diversos luga- por Cristo e, em gratidão por isso,



res, faziam duras críticas à missa no mesmo evento testificamos que



católico- romana e se basearam na somos sua comunidade. Calvino,



Epístola aos Hebreus. Cristo é o supostamente soberano todo-pode-



único mediador e o único sacerdo- roso em Genebra, era entretanto,


te. Por seu sacrifício único ele torna incapaz de persuadir o governo da

ilusória a dignidade sacerdotal dos cidade a seguir sua convicção pro-



oficiais da igreja humana, tão impor- funda de que a Ceia do Senhor fazia

tantes para o pensamento católico parte de todo serviço de culto divi-



romano.12 no, juntamente com as orações pú-


Esta fundamental diferença ficou blicas, (o Saltério) e a interpretação



gravada na mente de Calvino em da Sagrada Escritura (não como



uma procissão em Paris, na qual o perícopes selecionadas da Bíblia,



rei Francisco I seguia a hóstia con- mas como lectio continua, a exposi-

sagrada ao mesmo tempo em que,




Op. cit., 114.


13

12
Bernard Cottret. Calvin: Biographie. Paris: JC 14
Eberhard Busch et al. Eds. Calvin Studienausgabe.

Lattès, 1995. Em inglês: Calvin - Biographie. Grand


Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlag, 1997. Vol. 2,

Rapids, MI: WB Eerdmans/Edinburgh: T&T Clark,


137-225.

2000, 109.





9






ção de todos os seus livros).15 outros. Nesta parte do livro, Calvino


C


A quantidade de discussão trata de modo extensivo sobre com



dedicada à compreensão correta da a doutrina católico-romana da igre-
QUEM ERA E QUEM É CAL
PÁGINAS 6 A 23, 2008



eucaristia na primeira edição da ja. É interessante que ele trabalha


Institutio Christianae Religionis de fundamentalmente com o mesmo



1536 mostra que do ponto de vista material usado pelo outro lado, mas



de Calvino, naquele tempo esta era o interpreta de maneira diferente,



a questão mais importante na con- tanto formal quanto substancial-



trovérsia com a Igreja Católica Ro- mente. Aí ele ataca o essencial da



mana. Na última edição bastante doutrina católico-romana sobre a
CALVINO?


ampliada da Institutio de 1559, a igreja, doutrina esta que consti-

VINO? INTERPET


crítica se expande para uma dispu- ○

tui a base do sistema de organiza-
ta acerca da compreensão da igreja, ção papal. 17 Não vejo no
INTERPETAÇÕES


à qual é dedicada mais de um terço luteranismo desse período qual-



de toda a obra. Alguém pode dizer quer contribuição substantiva para



AÇÕES RECENTES

que este é o tema da segunda gera- este debate. Para Calvino esta era

ção de reformadores. uma questão substantiva.



Mesmo que concordemos com De acordo com a visão parti-



Wilhem Neuser que a composição lhada tanto por católicos romanos



e estrutura das quatro partes da edi- como por calvinistas, Cristo, como

ção de 1559 são confusas nos deta- o mediador entre Deus e a huma-

lhes16 penso que é bastante claro nidade, comporta um tríplice ofí-



que Calvino, nas três primeiras par- cio, ou seja, como profeta, rei e

tes, quer falar sobre Deus Pai, o Fi- sacerdote. Mas, ao contrário do

lho e o Espírito Santo e que, na lon- lado católico romano, Calvino



ga quarta parte ele trata da igreja, enfatiza que Cristo está vivo e,

Eberhard Busch

ou seja, os meios externos pelos portanto, que ele nem renunciou



quais Deus nos convida para à co- a esses três ofícios em favor de

munhão com ele e de uns com os instituições eclesiásticas, nem que








15
Christian Grosse. “Dogma und Doctrina bei Calvin”
17
Cf. Timothy George ed. John Calvin and the

in: Calvinus Praeceptor (nota 11), 189 et seq. Church:a Prism of Reform.Louisville,: Westminster/

John Kox Press, 1990. Também Stefan Scheld. Media


16
Wilhem H. Neuser. “Einige Bemerkungen zum Stand Salutis zur Heilsvemitlung bei Calvin. Stutgart: F.

der Calvinorschung” in: Calvinus Praeceptor (nota 11), Steiner Verlag, 1989. Veröffentlichungen des Instituts

189. für Euroäische Geschichte Mainz, vol. 125.







10






seja capaz de fazer isso. Sua rela- Cristo, não cabeças da igreja. Isto

 REVISTA

ção para com a igreja é semelhan- ficou evidente pelo fato de que os



te à da cabeça para com o corpo e três ofícios sob sua liderança são



não existem cabeças substitutivas. distribuídos para pessoas diferen-


Somente ele governa a igreja e a tes que conduzem a igreja coleti-

TEOLOGIA E SOCIEDADE

igreja é uma comunidade de ir- vamente. Esta interpretação dá



mãos e irmãs, ligados a ele e uns novo significado aos três ofícios



aos outros em mútuo intercâmbio, exercidos pelo governo da igreja,



como ficou expresso no Catecis- que difere do ponto de vista da


mo de Genebra de 1545.18 Cada ○
Igreja Católica Romana: os pasto-
membro participa no corpo de res incorporam o ensino profético

Cristo, mas apenas como membro de Cristo. Eles não são, de modo

desse corpo. nenhum, sacerdotes e este talvez


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


Pela fé, todos os cristãos parti- seja o ponto de divergência mais



cipam diretamente em Cristo, sem profundo com a Igreja Católica


a mediação de sacerdotes huma- Romana. Os presbíteros incorpo-



nos, como está declarado na Se- ram o ofício real de Cristo. Eles

gunda Confissão Helvética de têm a tarefa de induzir a comu-



1566.19 Dessa forma, pela fé,20 to- nhão e assegurar o cuidado das al-

dos os cristãos participam do mas (cura animarum), mas não



tríplice ofício de Cristo e demons- são os superiores da igreja. Final-


tram isso confessando ativamen- mente, o serviço dos diáconos para



te, como diz Zwínglio em sua afir- com os pobres corresponde ao ofí-

mação de fé de 1530.21 Os líderes cio sacerdotal, que Cristo realizou



humanos da comunhão eclesial de uma vez por todas na cruz.



também são membros do corpo de Todavia a pesquisa sobre


Calvino hoje raramente levanta a



questão do que o reformador de



Genebra percebeu como sendo a


18
Joh Calvin. Catechism of Geneva. Perguntas 34-45.

principal diferença com relação à


19
Heinrich Bullinger. Das zweirw Helvetische

Bekenntnis (Segunda Confissão de Fé Helvética). Igreja Católica Romana de seu tem-


Zürich: Zwingli Verlag, 1966, cap. 5.


po. Creio que a visão a respeito dis-


20
Heidelberg Catechism. Pergunta 31.
so ainda hoje é importante quando

Ernst Friederich Karl Muller. Die Bekenntnisschriften


21

vemos até pastores reformados pro-


der reformierten Kirch (Confissões Reformadas do


século XVI). Leipzig: A Deichert, 1903, 85, 11f.


curando agir como sacerdotes,






11






bem como o dilema no qual se en- que está sendo realizada é dirigida


C


contram os próprios luteranos, a uma nova descoberta de Calvino,



uma vez que o seu conceito de jus- mas caminha em passos lentos. A
QUEM ERA E QUEM É CAL
PÁGINAS 6 A 23, 2008



tificação não mais pressupõe primeira grande tarefa, ou melhor,


separá-los da Igreja Católica Roma- enorme tarefa com relação a isso, é



na. Não estou dizendo que a dou- publicar novamente todos os textos



trina da igreja era o centro da teo- de Calvino e, em alguns casos, pela



logia de Calvino. O centro de sua primeira vez, bem como torná-los



teologia pode ser resumido com acessíveis a todas as pessoas. De



uma frase tirada de seu comentá- fato, existem importantes textos de
CALVINO?


rio sobre Jeremias: “Ubi Calvino que não foram mais im-

VINO? INTERPET


cognoscitur Deus, etiam colitur ○

pressos desde o século XVI ou des-
humanitas”, que significa “Onde de a edição de Leiden, no século
INTERPETAÇÕES


Deus é levado a sério, existe igual- XVII, ou mesmo que nunca foram

mente preocupação com a huma- publicados. Acrescidos à Institutio,



AÇÕES RECENTES

nidade”.22 Esta sentença ressalta que está acessível em diversas edi-



claramente a preocupação de ções, existem muitos outros textos



Calvino, que contrasta com a ten- de Calvino que foram publicados no



dência da teologia luterana em es- século XIX e no começo do século



quecer a diferença entre a divinda- XX, na língua original ou em tradu-



de de Deus e a nossa humanidade ções: comentários bíblicos, cartas e


por causa da natureza tanto huma- documentos polêmicos. A publica-



na como divina de Cristo, ao invés ção mais importante e volumosa é



de afirmar esta diferença na glória. Calvin Opera, iniciada em 1877,



abrangendo 59 volumes e editada em


3. Edições de

língua original.

Eberhard Busch

Mais tarde apareceu a edição


Calvino

menor, Calvini Opera Selecta, edi-



Apesar das aparências, existe nos tada por Peter Barth e Wilhelm

dias de hoje pouco trabalho voltado Niesel, 1929-1936. Entretanto, al-



para a pesquisa dessas questões fun- gumas edições mais antigas têm la-

damentais em Calvino. A pesquisa


cunas, enquanto outras possuem


deficiências científicas, tais como a



edição dos comentários bíblicos em



latim, de August Tholuck (meados


22
Calvini Opera 38, 388.





12






do século XIX). Novas edições, que Calvini Opera. No entanto, uma

 REVISTA

estão aparecendo agora tentam, por audaciosa nova edição foi iniciada.



um lado, garantir textos cientifica- Os textos básicos são a última edi-



mente responsáveis e, por outro, ção de cada obra impressa no tem-


preencher lacunas. Uma inestimá- po de Calvino, ou a última edição

TEOLOGIA E SOCIEDADE

vel visão das novas edições é pro- examinada por ele próprio: Ioannis



porcionada por Michael Bihary em Calvini Opera Omnia, publicada



sua Bibliographia Calviniana, pela Livraria Droz em Genebra,



Calvins Werke und ihre Über- editada por oito prestigiosos pesqui-


setzungen, Praga, 2000. ○
sadores de Calvino e enriquecida
Essa lacuna foi preenchida em por úteis referências literárias com

1961 com o lançamento de uma notas. Até agora oito volumes desta

coleção entitulada “Supplementa edição foram publicados. Ela con-


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


Calviniana. Sermons inédits”. Esta tém também a edição do comentá-



coleção inclui 600 sermões que não rio de Calvino aos Romanos do pes-

haviam sido impressos ainda. No quisador inglês Thomas C.H.Parker.



entanto, de fato, Calvino proferiu É o comentário escrito por Calvino



mais de 2.400 sermões.23 Somente com elaborado cuidado em



esta edição abrangerá 15 volumes Estrasburgo em 1539 e por ele revi-



ou mais. Cada um desses sermões sado em 1551 em Genebra: foi o



consiste de aproximadamente 10 seu primeiro comentário bíblico.


páginas bem cheias, em francês do Diante da dificuldade que mui-



século XVI. Esta edição demonstra tas pessoas têm hoje para compre-

como Calvino trata a interpretação ender o francês do século XVI, e



da santa Escritura no cristianismo principalmente o latim clássico, que



primitivo, na igreja medieval e na Calvino redigia brilhantemente,


forma de exposição judaica.24 seus textos em linguagem original



Quanto a seus comentários bíbli- são inacessíveis a muitas pessoas,



cos em linguagem original, ainda incluindo eminentes estudiosos.



podemos confiar na centenária Consequentemente, estes textos es-



tão limitados a um pequeno círculo



de especialistas. Seria necessário


Hanns Hückert, ed. Supplementa Calvininana. estar tão familiarizado quanto


23

Sermons inédits: Predicten über das 2. Buch Samuelis.


Calvino com estas línguas, a fim de

Neukirchen: K. Moers, 1936-1961, p. XIII.


24
Op. cit., XXXII. compreender “seu rico estilo em






13






detalhe, bem como sua refinada ar- todas as novas publicações desde


C


gumentação.” Mas isto significa que 1971 na bibliografia de Calvino pu-



“quem quer que queira deixar blica no Calvin Theological Journal.
QUEM ERA E QUEM É CAL
PÁGINAS 6 A 23, 2008



Calvino falar hoje terá de traduzi- É notável que, em muitos trabalhos


lo”, como observa Christian Link no recentes, metade do texto é consti-



prefácio à Studienausgabe, que ele tuída por notas de rodapé que fre-



e diversos outros estudiosos têm quentemente se referem ao grande



editado desde 1994. Nesta edição, número de outras monografias que



várias partes representativas da te- frequentemente e infelizmente não



ologia de Calvino, algumas das quais são acessíveis ao leitor. Além disso,
CALVINO?


não foram traduzidas até hoje, apa- não há falta de estudos com teses

VINO? INTERPET


recem em duas línguas: na língua ○

específicas que não conseguem ser
original e em tradução alemã. Seis fundamentadas exceto apelando
INTERPETAÇÕES


volumes foram publicados, incluin- para hipóteses. Três estudiosos apre-



do dois volumes do comentário a sentaram uma obra que, como afir-



AÇÕES RECENTES

Romanos. Na Itália foi lançada uma mam, devido à falta de documen-



nova edição em 2004 publicada por tos, não pode ser mais que um sim-

Claudiana de Turim, Calvino, Opere ples “ensaio que não responde a



scelte, volume I: Dispute com Roma. muitas questões.25



Parece que no futuro essas traduções Existem também muitas obras



serão mais e mais necessárias por examinando com grande empenho


causa do abandono do estudo das lín- o que já é conhecido. Como no caso



guas clássicas. Parece que as tradu- de outras ciências, a pesquisa sobre



ções inglesas estão surgindo na fren- Calvino, além do problema de lin-



te das alemãs. guagem antes mencionado, se depa-



rou com a questão dos crescentes



Eberhard Busch

4. Novas tópicos tratados por grupos de es-



pecialistas cada vez menores, en-


interpretações

quanto o número dos ignorantes



À parte da grande tarefa de pu- nestes assuntos está crescendo mes-



blicar os textos provenientes da mo nos círculos teologicamente pre-


nova pesquisa científica sobre


parados. Não tenho qualquer solu-


Calvino, uma exuberância de estu- ção para esses problemas, mas so-

dos individuais também tem sido



produzida. Peter de Klerk relacionou


25
Calvinus Praeceptor, nota 11, 142.





14






mente uma pergunta que os própri- Esperar que a pesquisa mais re-

 REVISTA

os especialistas precisam responder. cente trate unicamente com estas



Quem é alcançado por seu árduo questões seria incorreto. Na verda-



trabalho? Minha opinião é que isso de, é preciso reconhecer respeito-


só pode ser respondido de modo samente que os múltiplos esforços

TEOLOGIA E SOCIEDADE

relevante quando, em seu zelo por de pesquisa, assumindo muitas di-



compreender Calvino, eles se dei- reções e abordagens, lançaram in-



xarem contagiar por ele de modo a confundíveis novas luzes sobre mui-



compreender com Calvino, ou seja, tos ângulos obscuros de Calvino e


compreender com este falível men- ○
seu mundo, trazendo-o para mais
sageiro o que Deus colocou diante perto de nós. Vemos Calvino em seu

dele e diante de nós. “Calvinus relacionamento com Bucer 26 e



Praeceptor ecclesiae” é o título das Bernardo de Clairveaux, 27 ,


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


minutas publicadas do último Melanchton,28 a Lasco29 e seus co-



Simpósio Internacional de Calvino. legas em Genebra,30 com Agosti-


Mas, foi ele realmente reconhecido nho, 31 Pighius, 32 rei Sigismund



e levado a sério como mestre da igre- August da Polônia33 e assim por di-

ja? ante. Além disso nós o vemos como







26
Marijn de Kroon, Martin Bucer und Johannes 31
Jan Marius J. Lange van Ravenswaay. Augustinus

Calvin. Reformatorische Perspektiven. Einleitung und totus noster. Das Augstinverständnis bei Joahannes

Texte, trad. Hartmut Rudolph. Göttingen: Vandenhoeck Calvin. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1990,

und Ruprecht, 1991. Forschungen zur Kirchen-und Dogmengeschichte, no.


45.

27
Anthony N.S. Lane, Calvin and Bernard of

Clairveaux. Princeton: Princeton Theological Seminary, 32


Harald Rimbach, Gnad und Erkenntnis in Calvins

1996 (Studies in Reformed Theology and History, New Präedestinationslehre. Calvin im Vergleisch mit Pighius,

Series, no.1). Beza und Melachtohon. Frankfurt et al.: Lang, 1996.


Kontexte. Neue Beitr.zur Hist. u. Syst. Theologie, no.


28
Barbara Pitkin. “Redefining Repentance: Calvin and 19.

Melanchton” in Calvinus Praeceptor (nota 11), 275-


285. 33
Mihály Márkus, “Calvin und Polen.

Gedankenfragmente in Verbindung mit einer


29
Wim Janse, Calvin, a Lasco und Beza. Eine Empfehlung”, in Calvinus Praeceptor (nota 11), 323-

gemeinsame Abendmahlserklärung (Mai, 1556?). 330.


Bericht eines Forschungsseminaras mit offenem


Ausgang, in Calvinus Praecetor, 209-231. 34


Jung-Uck Hwang. Der junge Calvin und seine

Psychopannychia. Frankfurt et al.: Lang, 1990.


30
Elsie McKee. Calvin and his Colleagues as Pastors: Europ. Hochschulschriften, Reihe 23, no. 407.

Some insights into the Collegial Ministry of Word and


Sacraments, in ibid. 9-42 and Erik A. de Boer, Calvin


and Colleagues. Propositions and Disputations in the


Context of the “Congrégations” in Geneva, in ibid.


331-342.







15






jovem,34 em seu relacionamento com e assim obter uma idéia razoavel-


C


as mulheres,35 crianças e jovens,36 mente abrangente do reformador de



com os batistas37 ou com a filosofia Genebra e sua obra.
QUEM ERA E QUEM É CAL
PÁGINAS 6 A 23, 2008



grega38. Mas ele, com certeza, nos é Com relação ao conhecimento


apresentado como um teólogo e al- de Calvino e sua teologia, mais



guém ocupado com tópicos teológi- esclarecedora que a longa lista de



cos como a hermenêutica,39 antro- literatura sobre ele é a recente dis-



pologia, 40 a doutrina da predes- ponibilidade de muitos sermões e



tinação,41 a mediação da salvação,42 comentários bíblicos.Resumindo,



escatologia,43 doutrina,44 oração45 e enquanto antigamente Calvino era
CALVINO?


assim por diante. visto à luz de sua Institutio e no con-

VINO? INTERPET


Não precisamos completar aqui ○

texto de seus escritos polêmicos,
a longa lista de contribuições. Cer- hoje os pesquisadores começam a
INTERPETAÇÕES


tamente que nem todos estes estu- lê-lo principalmente através dos ser-

dos concordam completamente um mões e interpretações bíblicas.



AÇÕES RECENTES

com o outro e sem dúvida, nem to- Estamos afunilando em direção ao



dos se referem a cada um. Apesar exegeta mais que em direção ao



disso, podemos colocá-los juntos mestre de dogmática. Na verdade,



como peças de um quebra-cabeças não foi a Institutio, mas as interpre-







35
Jane Dempsey Douglas. Women, Freedom and
40
Mary Poten Angel. John Calvin´s Perspectival

Calvin. Philadelphia: Westminster Press, 1985. Em Anthropology. Atlanta: Scholars Press, 1988. American

Acad. of Religion. Academy series 52; Christian Link.


português: Mulheres, Liberdade e Calvino. O Ministério


“Die Finalität des Menschen. Zur Perspektive der

Feminino na Perspectiva Calvinista. Manhumirim, MG:


Anthropologie Calvins” in Calvins Praeceptor (nota 11),

Didaquê, 1995. (NT)


159-178.

36
Jeffrey R. Watt.” Childhood and Youth in the

Geneva Consistory Minutes”, in Calvinus Praeceptor


41
Cf. nota 31.

Eberhard Busch

(nota 11), 343-350. 42


Stephan Scheld. Media salutis (nota 11).

37
Willem Balke. Calvin und die Täufer. Evangelium oder

43
Raimund Lülsdorff. Die Zukunft Jesu Christi. Calvins
religiöser Humanismus, trad. Heinrich Quistrop.

Eschatologie und ihre katholische Sicht. Paderborn:


Minden: Selbstverl. Quistorp, 1985.

Bonifatius, 1996. Konfessionskundliche und


38
Irena Backus. “Calvin´s Knowleldge of Greek Kontroverstheologische Studien, Bd. LXIII, J.A.

Language and Philosophy.” Calvinus Praeceptor (nota Möhler-Inst.


11), 343-350.

44
Victor E. Assonville Jr. “Dogma und Doctrina bei Calvin

39
Alexandre Ganoczy and Stefan Scheld. Die in einer begrifflichen. Wechselwirkung: Ein Seminarbericht”,

Hermeneutik Calvins. Geistsgeschichtliche Calvinus Praeceptor (nota 11), 189-208.


Voraussetzungen und Grundzüge. Wiesbaden: Steiner,


45
Jae Sung Kim, Prayer in Calvin´s Soteriology, in
1983; Peter Opitz. Calvins theologische Hermeneutik.

op. cit., 265-274.


Neukirchen-Vluyn: Neukirchener, 1994..







16






tações da Bíblia o assunto de suas Max Engammare, por exemplo,

 REVISTA

preleções teológicas, que foram ano- está preocupado com as interpreta-



tadas por secretários oficiais e pos- ções de Calvino sobre o livro do



teriormente publicadas. Para ele, a Gênesis.47 De acordo com ele, a fi-


instrução teológica significava expo- gura de Abraão é exemplar e

TEOLOGIA E SOCIEDADE

sição da Escritura Sagrada. Ele a apre- confortadora para o reformador em



senta tanto como doutrina que, de Genebra. Ele mostra que Calvino



acordo com Victor d´Assomville, viu a si mesmo e sua vida inteira



significa comunicação autorizada por como um refugiado e, nessa condi-


Deus, em oposição ao dogma, que é ○
ção, ele se dirigiu a outras pessoas,
ensino humano.46 ou seja, aos oprimidos na França

Sermão e preleção para Calvino que estavam esperando o estabele-



não são a mesma coisa, mas não di- cimento do senhorio de Cristo em

Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


ferem em princípio. As preleções seu país, àqueles que tinham de fu-



são preparativos curtos para os ser- gir de sua pátria por causa da perse-

mões, que expressam a mesma coi- guição, dentre os quais alguns vie-

sa, mas de modo mais detalhado e, ram para Genebra, e também para

de forma mais ilustrada, mais aqueles que tinham de compreen-



direcionada aos ouvintes. Ambos, der os desafios da fé através desses



sermão e preleção pertencem ao irmãos e irmãs.



exercício do ofício profético na igre- Wilhelmus H.Th.Moehn, duran-


ja, segundo a doutrina de Calvino. te a edição dos sermões de Calvino



E são precisamente estes textos que sobre Atos 1-7, referiu-se especial-

têm sido procurados recentemente mente a Abraão como “o pai da



com maior interesse para a compre- igreja de Deus.”48 Trabalhando com



ensão da teologia de Calvino. Por a exposição de Atos 7, teve em men-


essa razão, seu ensino se apresenta, te, à medida que tratava da figura

talvez não de forma completamen- de Abraão ali, a exposição de



te diferente, mas sob uma nova luz,



em uma interação eficaz por um


46
Cf. nota 44.

lado com observações focalizando 47


Max Engammare. “D´une forme l´autre:

Commentaires et sermons de Calvin zur la Gênese”, in


especificamente o texto em questão Calvinus Praeceptor (nota 11), 107-137.


e por outro, com afirmações que


48
Wilhelmus Moehn, “Abraham – ´Père de l´Église de

falem concretamente a ouvintes ou Dieu`. A Comparison of Calvin´s Commentary and


sermons on Acts 7.1-6”, in Calvinus Praeceptor (note


leitores particulares. 11), 287-301.








17






Calvino sobre Gênesis, que estava 5. A ética de


C


fazendo ao mesmo tempo. De acor-


Calvino


do com Calvino, Abraão é o modelo
QUEM ERA E QUEM É CAL
PÁGINAS 6 A 23, 2008



através do qual a verdadeira fé e o Uma ampliação iluminadora mas


discipulado obedientes se apresen- também uma correção da imagem



tam unidos indissoluvelmente. E, jun- que temos do reformador de Ge-



tamente com Abraão, Calvino tam- nebra aparece em uma questão le-



bém tinha em vista o inevitável pro- vantada por Robert Kingdon, que



blema contemporâneo do consequentemente estimulou mui-



nicodemismo, ou seja, a atitude da- tos estudiosos, especialmente nor-
CALVINO?


queles que criam evangelicamente te-americanos, a empreender estu-

VINO? INTERPET


mas que, em contradição com essa ○

dos interessantes. A questão era: o
fé, viviam vidas aparentes, adaptadas que realmente era novo e diferente
INTERPETAÇÕES


a uma maioria com outra orientação. na Genebra de Calvino em compa-



Baseado no fato de que Abraão ração com o período medieval que



AÇÕES RECENTES

vivia entre pagãos em Canaã, ele o precedeu?49 A questão se aplica



pressentia a tarefa dos genebrinos em particular aos problemas soci-



naturais de “ter de renunciar”, não ais e econômicos de Genebra na



à cidade nem à vizinhança, mas a si época. De acordo com Kingdon, já



mesmos. Ao mesmo tempo, refe- havia, na Idade Média, uma assis-



rindo-se à preocupação de Abraão tência mínima aos pobres.


com sua descendência, Calvino No século XVI a novidade foi que



enfatizava que o amor aos vizinhos a obra social passou a ser realizada

deve se expandir e incluir as gera- mais profissionalmente e por leigos.



ções posteriores. Vejo esses esfor- Mas qual foi a contribuição de



ços como uma indicação promisso- Calvino para isso? Na opinião de



Eberhard Busch

ra de tudo o que virá à luz quando Mark Valeri, para Calvino, a econo-

os sermões e exegeses de Calvino mia e a ética do bem-estar público



se tornarem mais plenamente aces- precisavam estar em harmonia.50 Ao



síveis. confrontar o pensamento competi-



tivo com a idéia de estar juntos soli-


dariamente, ele se colocou contra a


49
Robert Kingdon, “Calvinism and Social Welfare”, in

Calvin Theological Journal, 1982: 212-230. tendência econômica de seu tem-



50
Mark Valeri. “Religion, Discipline and the Economy

in Calvin’s Geneva” in Sixteenth Century Journal, 28/


1, 1997, 123-142.

51
Op. cit. 139.





18






po.51 Ele lutou especialmente con- bros do conselho político e do con-

 REVISTA

tra a usura e já que ela sempre rea- selho da igreja (os presbíteros) rea-



parece, escondendo-se por trás de lizam seu trabalho de responsabili-



diferentes rótulos, sua luta voltou- dade pública.


se contra o mau uso da linguagem Os pesquisadores mencionados

TEOLOGIA E SOCIEDADE

em favor da confiabilidade e inte- mostraram que Calvino tinha duas



gridade de caráter. Todavia ele não preocupações em particular, acerca



luta contra ela com um radicalismo das quais ele insistiu com o povo de



cego, mas como um teólogo que Genebra, no desempenho de seu


tem o bom senso de saber a dife- ○
dever profético. Ou, para dizer mais
rença entre conceder empréstimos claramente, ele reconheceu que ha-

e a usura. via duas formas de pobreza e misé-



Em tudo isso, Calvino promoveu ria que perturbavam a vida da co-


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


a prática da solidariedade social. munidade e desafiavam seriamente



Valeri dá o perfil das intenções de a a responsabilidade e a solidarieda-


Calvino quando este argumenta: “A de social. A primeira referia-se à



dissolução dos laços de comunica- relação da população local com os



ção” isola “os indivíduos uns dos ou- estrangeiros que dentro de um cur-

tros no corpo social, resultando no to período de tempo chegaram a



abuso do próximo como sendo um Genebra buscando refúgio. Até en-



objeto de lucro.”52 E Jane Dempsey tão, a regra era que cada cidade era

Douglas escreve: De acordo com individualmente responsável pelos



Calvino, “humanidade restaurada necessitados em seu meio. Entretan-



não é algo individual, mas social.” to agora, de repente, massas de re-



Todos os homens e mulheres são fugiados franceses que foram expul-



criados iguais, criados uns para os sos de seu país, vieram para Gene-

outros, e quando violamos isto é si- bra. Em poucos anos, a população



nal de pecado, que traz a ira de de Genebra dobrou, o que tornou



Deus.53 Por certo Calvino se preo- praticamente urgente a questão de



cupa com responsabilidade social, seu sustento. Portanto a questão se



mas ao mesmo tempo, está interes-



sado em solidariedade social. Ele


52
Op. cit. 138.
aparentemente as vê como

53
Jane Dempsey Douglass. “Calvin´s Relation to
correspondendo à reciprocidadde

Social and Economic Change” in Church and Society,


março/abril, 1984, 127.


do corpo de Cristo, no qual os mem-






19






o estrangeiro era ou não realmente palavra com o outro, “nosso Senhor


C


próximo se tornou, acima de tudo, mostra-nos hoje que seremos ir-



muito prática. É provável que pelo mãos, porque Cristo é a paz de todo
QUEM ERA E QUEM É CAL
PÁGINAS 6 A 23, 2008



menos parte do ressentimento das mundo e de todos os seus habitan-


antigas famílias estabelecidas em tes. Portanto, devemos viver juntos



Genebra com Calvino tivesse como em uma família de irmãos e irmãs,



base a resposta claramente afirma- que Cristo instituiu com o seu san-



tiva que ele deu a essa questão prá- gue. E ele nos dá a oportunidade de



tica. Por isso ele deliberadamente questionar cada inimizade (que en-



permaneceu durante a maior parte contramos).56
CALVINO?


do tempo que viveu em Genebra O outro embaraço que Calvino

VINO? INTERPET


como um estrangeiro ele mesmo, ○

mostrou ao povo de Genebra como
para mostrar o significado do pro- professor e pregador e que colocou
INTERPETAÇÕES


blema. à prova a comunidade, foi a



Como mostra Valeri, este senti- disparidade entre ricos e pobres.



AÇÕES RECENTES

mento de ira cresceu ainda mais Seguramente, na Idade Média, es-



quando, após algum tempo, por vol- tava bem firmada a idéia de dar ao

ta de 1555, a liderança da cidade caiu pobre como boa obra. O fato de que

nas mãos dos estrangeiros.54 Estes o pobre continuava pobre não era

estrangeiros eram, em sua maior problema, tendo em vista a possibi-



parte, refugiados da França mas, lidade de fazer boas obras. A pobre-


aos poucos, as portas se abriram za podia ainda ser um ideal para os



para os da Itália e Inglaterra tam- santos. Calvino, entretanto, consi-



bém. Kingdon também menciona derou a pobreza das pessoas verda-



que um turco e um judeu foram aju- deiramente pobres como um escân-



dados. 55 Em um sermão sobre dalo insuportável.



Eberhard Busch

Deuteronômio, Calvino fala de um Nicholas Wolterstorff resumiu os



encontro com um estrangeiro e diz: pensamentos de Calvino acerca da



embora eles não possam falar uma pobreza em sua forma terrível com

a seguinte sentença: “A injustiça so-



cial e as lágrimas das vítimas sociais



ferem a Deus também.” De acordo


54
Valeri, op. cit. (nota 50), 128.
com ele, a criação dos seres huma-

55
Kingdon, op. cit., (nota 49), 228.

nos à imagem de Deus significa tam-


56
Calvin, Sermo Deutr. 125, CO 28:16 et seq.; Valeri,

op. cit. (nota 50), 139. bém que Deus vê o seu ser em nos-






20






sos amigos que são vítimas tortura- dariedade seja formada, uma socie-

 REVISTA

das pela desumanidade. Mas, como dade baseada no recíproco dar e re-



confirma Wolterstorff, é exatamen- ceber.



te sobre este vulnerável amor de Estudos recentes têm mostrado


Deus que a luta de Calvino pela jus- que os refugiados ricos da França

TEOLOGIA E SOCIEDADE

tiça foi estabelecida. 57Portanto, o estavam incluídos nesta partilha



dever do rico não termina com o com os pobres. Tudo isso tinha



fazer caridade. Ao invés disso, como como alvo a realização da solidarie-



na citação de Calvino por Valeri “Eu dade social, na qual a pobreza a po-


não posso me separar daqueles que ○
breza não é mais o destino da maio-
se tornaram necessitados, aos quais ria das pessoas como conseqüência

Deus me uniu.”58 Ao contrário, em do sistema de competição errôneo.



nome da solidariedade pode-se re- A ênfase sobre isto confirma aquilo


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


conhecer, como escandalossa a lu- que Ernst Troeltsch já disse, ou seja,



xúria dos ricos nas metrópoles. Esta que o apoio de Calvino a um “equi-

luxúria é uma expressão de “egoís- líbrio entre sociedade e indivíduo”



mo”, como é mostrado por Valeri na “política social” seguiu em dire-



no comentário de Calvino a 1 ção oposta à clássica teoria de Adam



Coríntios. 59 Smith. 60 sobre o capitalismo. E



Quando na Institutio a doutrina acrescentou: enquanto a preocupa-



de Calvino sobre a santificação ad- ção de Calvino foi entendida no


quire o perfil de auto-negação, en- luteranismo como “um ataque aos



tendemos à luz dessas descobertas, fundamentos sagrados da ordem



que ela nem é uma virtude digna em dada por Deus”, a tradição sobrevi-

si mesma nem uma renúncia à ale- ve até o presente na área da Igreja



gria da vida (embora ela não fosse Reformada na forma de pastores


muito visível no rosto de Calvino por



causa de suas doenças!). Ao invés



57
Nicolas Wolterstorff. The Wounds of God: Calvin´s
disso, a autonegação no entender de

theology of social injustice. The Reformed Journal, june


Calvino, representa uma útil contra- 1987, 14-22.



iniciativa face ao “egoísmo” dos ri- 58


Valeri, op. cit., (nota 50), 138.

cos. Isto significa que o rico parti- Calvin, “Argument” zum Kommentar zum ersten
59

Brief von Paulus an die Korinther (1546/1556)


lha suas posses com o pobre e, com

Edinburg, 1960, 6ff, 12ff, CO 49; cf. Valeri, 137.


isso, a esperança e o propósito de Troeltsch, op. cit. (nota 6), 676, 717.

60

que uma sociedade firmada na soli- 61


Op. cit., 721.






21






social-democratas.61 Isso tem sido ou seja, cada homem deve suprir ao


C


afirmado também mais recentemen- necessitado de acordo com a exten-



te por R. C. Gamble e Sephen Reid: são de seus recursos de forma que
QUEM ERA E QUEM É CAL
PÁGINAS 6 A 23, 2008



“O calvinismo de Genebra era mais ninguém tenha demais e ninguém


um ataque à riqueza do que uma de- tenha tão pouco.” 64 “Deus exige”,



fesa da acumulação de capital.”62 declara Calvino aqui. Ele declara isto



Wolterstorff cita um sermão de como um pregador da Palavra de



Calvino sobre Gl 6.9-11, no qual ele Deus. Ele afirma isto em uma igre-



junta ambos os lados, o pobre e o ja cristã, que deveria se entender



estrangeiro, e diz: “Não podemos como uma assembléia de seres hu-
CALVINO?


olhar a pessoa que é pobre e des- manos em comunidade e responsa-

VINO? INTERPET


prezada senão como se fosse o nos- ○

bilidade pessoal sob seu único ca-
so próprio rosto em um espelho... beça, Cristo.
INTERPETAÇÕES


mesmo se fosse ele o estrangeiro do Calvino vê a esfera do estado



lugar mais distante do mundo. Dei- como uma instituição com o pro-

AÇÕES RECENTES

xem um mouro ou um bárbaro se pósito de permitir uma existência de



achegarem a nós, e contudo, visto bem-estar comum e liberdade, não



que é humano, ele traz consigo um bem-estar comum às custas da li-



olhar no qual podemos enxergar que berdade e nem liberdade às custas



é nosso irmão e próximo.”63 Penso do bem-estar comum. Mas ele diz



que este discernimento espiritual é isso como um intérprete da Bíblia


a origem do interesse de Calvino em seus sermões e comentários bí-



pelas questões econômicas e soci- blicos, não o diz com o desejo de



ais. Por conseguinte, na interpreta- usar a Bíblia erradamente ou de acor-



ção de 2 Co 8.13 ss. a que André do com seu gosto particular, mas ao

Biéler já se referiu: “Deus exige que contrário, para usar a Bíblia seria-

Eberhard Busch

haja harmonia e igualdade entre nós, mente, como a palavra autorizada



por Deus para o tempo presente. Ele



diz isso em nome de Deus que vê



Stanford Reid, John Calvin. Early Critic of


não como um tirano, mas como o
62

Capitalism (1). The Reformed Theological Review, 77-


79, e Richard C. Gamble, op. cit., (nota 10) 161-163. Altíssimo, que cuida dos mais hu-

63
Wolterstorff (nota 57) 138 e ss. CO 51:105. mildes, como Deus a si mesmo se

CO 50, 100f; André Biéler. The Social Humanity of mostrou em Cristo.


64

Calvin. Paul T. Fuhrmann, trad. Richond: John Knox


Eu já citei o que disse

Press, 1964, 33; a citação completa está no Prefácio


de W.A.Visser´t Hooft, op. cit. 8.


Wolterstorff sobre o discernimento






22






de Calvino no que se refere às lágri- não aplicaríamos a nós mesmos,

 REVISTA

mas das vítimas sociais que também mas olhando para Deus – “que Deus



vitimam a Deus. Agora gostaria de é misericordioso para conosco, mes-



me referir também ao escrito de mo quando parece estar contra


Randall Zachman entitulado Crying nós”. Calvino também escreve, re-

TEOLOGIA E SOCIEDADE

to God on the Brink of Despair ferindo-se à lamentação que apare-



(Clamando a Deus à beira do de- ce no Salmo 77, onde a pergunta é



sespero) . Ele fala da interpretação se Deus se esqueceu de ser miseri-



que Calvino dá ao Salmo 22: “Deus cordioso: “A bondade de Deus está


meu, Deus meu, por que me desam- ○
inseparavelmente ligada à sua essên-
paraste?” E o reformador de Gene- cia, a ponto de ser impossível para

bra explica com palavras que talvez ele não ser misericordioso.”65


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP






































Randall C. Zachman. “Crying to God on the brink of


65

despair. The assurance of faith revisted” in Calvinus


Praeceptor, 351-358. Aqui, 355 ss.







23





Genebra,





Calvino e o trato com


GENEBRA, CAL
PÁGINAS 24 A 43, 2008



os hereges





CALVINO



VINO E O TRA







Introdução
TRATO

ainda não existia o conceito de



Armando Araújo Silvestre*
reo Rodrigues de Oliveira


TO COM OS HEREGES


tolerância. Dois séculos adiante,
A tentativa do artigo não é ○

Voltaire criticou mordazmente


defender ou acusar Genebra e

aquela situação; porque, para


Calvino, mas apurar os polêmi-

Voltaire, Serveto foi uma pessoa


cos episódios que ainda causam


imolada por Calvino (VOL-


espanto, interpretações apaixo-


TAIRE, 1961, p. 282-283). Es-


nadas ou desarrazoadas, defesas


taria correta a crítica? Em que


e acusações sem qualquer co-


contexto e com quais critérios?


nhecimento de causa etc. Seria

Ao se analisar o contexto em

a Genebra do século XVI uma


que viveu Calvino, é necessário


cidade em tempos de ira? E


lembrar que a polêmica conde-


Calvino, igualmente, seria o in-


nação à morte na fogueira, de


tolerante que costumeiramente


Miguel Serveto, deu-se em 1553


se retrata?

Armando Araújo Silvestre

e, após séculos do ocorrido, ain-


As questões relacionadas

da ressoam as apreensões sobre


com a justiça genebrina, ainda


tal monstruosidade, com os ana-


que en passand, exigem uma


cronismos de julgamentos fora


necessária alusão ao trato de


daquele preciso contexto.


Calvino e Genebra com os he-


Tolerância? Ocorre que nem


réticos, como Serveto, Bolsec,

o conceito nem mesmo a pala-


Castellion etc., mesmo quando


vra existiam no século XVI.



Pode-se até elogiar, como hon-



rosa exceção, o posterior empe-


* O rev. Armando é professor e pastor da Igreja


Presbiteriana do Brasil (IPB). nho do filósofo francês Jean








24






Bodin, que lutou em prol da tole- des de um declarado campeão da


 REVISTA

rância entre católicos e huguenotes, tolerância, das liberdades individu-



ais e dos direitos civis da sociedade.

GENEBRA,
REVIST
REVISTA
na França daquele período. Porém,



é necessário apontar que a tolerân- Infelizmente, nem todo o senso fi-


losófico das atitudes conciliatórias,


cia, de fato, nasceu somente na dé-

TEOLOGIA E SOCIEDADE
A TEOL

cada de 1680, nos ensinos dos do irenismo e da valorização da paz

TEOLOGIA

iluministas e, posteriormente, se entre os cristãos, ou mesmo da in-

CAL
CALVINO

OGIA E SOCIEDADE Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São P


inscreveu na parte nordeste da Eu- diferença que permita a coexistên-

VINO E O TRA

ropa, na Inglaterra e nos Estados cia, nada disso merece o nome de


Unidos. Na verdade, é obra de um ○
tolerância. Nesse sentido, segundo
homem em particular: John Locke, Bainton (1953, p. 7), a lógica de

no século XVIII.1 Calvino não apelaria para uma con-



Como o conceito de tolerância tradição de consciência, mas para

TRATO

Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


inexistia naquele século XVI, pode- uma “transação”.


TO COM OS HEREGES

se recorrer a outro exemplo, de um O sucessor de Calvino em Ge-


nebra, Théodore de Bèze, sempre


período próximo àquele: mesmo o


autor de A utopia, Thomas More, sublinhou a clemência de Calvino:



foi fiel ao seu ideal de humanista para Bèze havia apenas ocorrido

católico, dando preferência à mor- uma execução de um herege:



te ignominiosa de traidores que re- Serveto. Bèze comparou Calvino e



negassem os seus príncipes. Ele ad- Genebra com as outras cidades su-

mitia a morte de hereges na foguei- íças e alemãs, onde foram mortos



ra, pois nada seria possível fazer com muitos anabatistas, e então afirmou

os hereges senão queimá-los.2 que houve casos semelhantes em



Calvino também não foi toleran- que Genebra apenas baniu aqueles

te.3 Mas, poderia ter sido, embora que considerava sectários.


Citou os exemplos de clemência


não se possa esperar dele as atitu-


Paulo
aulo
aulo,, SP PÁGINAS 24 A 43 

Armando Araújo Silvestre




1
A tolerância de Locke ainda é distinta da liberdade 2
Sobre isso, considerar: COTTRETT, Bernard.

de consciência, apregoada por Bayle, segundo o qual Traducteurs et divulgateurs clandestins de la Réforme

essa liberdade repousa sobre o direito de errar. No dans l ‘Angleterre henricienne, 1520-1535. In: Revue

sentido estrito, a liberdade de consciência não admite d’Histoire Moderne et Contemporaine, 1981, n. 28, p.

qualquer restrição, contrariamente à tolerância que 472.


repousa sobre a arbitragem da sociedade. A este


respeito ver: COTTRETT, Bernard. Tolerance et liberté


3
MILLET, O. Le théme de la conscience libre chez

de conscience? Épistémologie et politique à l’aube des Calvin. In: La liberté de conscience: XVI-XVIIe siècles.

Lumières. Études Théologiques et Religieuses, 1990, n. 1991, p. 21-37. BUISSON, F. Sébastien Castellion: sa

65, p. 333-350. vie et son œuvre - 1515-1563.1892, v. I, p. viii.








25






para com Hiérome Bolsec, que ha- Sorbonne – França (apud BECKER,



via blasfemado contra a providên- 1971, p. 401). O texto-resposta de



cia de Deus. Foi clemente com Bèze, datado de 1560, foi o Traité de
GENEBRA, CAL
PÁGINAS 24 A 43, 2008



Sébastien Castellion, que amaldi- l’autorité du magistrat en la punition


çoou livros das Escrituras Sagradas; des hérétiques et du moyen d’y



e ainda com Valentin, que blasfe- procéder – Tratado sobre a autorida-


CALVINO


mou contra a essência divina. Ne- de do magistrado em punir os heré-


VINO E O TRA


nhum deles foi morto: Bolsec foi ticos e do seu modo de proceder.



banido de Genebra. Castellion teve Não se pretende arriscar conclu-



problemas apenas quando saiu de sões, exceto fazer a ressalva de que


TRATO

Genebra e foi para Basiléia. Valentin se deve cuidar mais para não serem


TO COM OS HEREGES

foi colocado no esquecimento, após ○



cometidos anacronismos e compre-
pedir publicamente perdão a Deus ender que o erro de Calvino, foi o

e à Autoridade ou Pequeno Conse- erro de sua época. Atenuante? Em



lho da cidade.4 todo caso, um erro, um grande erro


Diante disso, perguntava Bèze: a ser sempre condenado.



onde está a crueldade? Para ele, so- Porém, respeita-se a própria or-

mente esse único herege, Serveto, ganização política de Genebra e a



foi queimado na fogueira, em mais forma como o Pequeno Conse-



de trinta anos (BÈZE, 1565, p. 23- lho(PC), reservava para si o poder



24 e 39). Ainda foi o mesmo Bèze de decisões. Soma-se a isso o fato


quem respondeu a Castellion, ex- de Calvino ser um estrangeiro na



professor da Academia de Genebra cidade, sem poder decisório. Ape-



e outro acusado de heresia, afirman- nas tinha o poder de levar ao PC



Armando Araújo Silvestre

do a autoridade dos magistrados em assuntos que os próprios síndicos



punir os heréticos. que o compunham resolviam entre


Castellion foi condenado ao si. Então, é muito estranho atribuir



banimento e tornou-se professor da a Calvino outro poder que não ape-



nas esse.

Vale, portanto, analisar cada caso



em que houve a participação direta


4
A esse respeito há um bom trabalho desenvolvido

por Bernard Cottret: Biographie (1990), porém não ou indireta de Calvino para buscar

caberia aqui a detalhada explanação acerca de cada


compreender a sua época, a sua cida-

um desses personagens. A indicação fica para os


textos: Bolsec et la “foutue prédestination”, v. 1551,


de, a sua postura e os limites de sua

p. 218-222; Saint Servet, hérétique et martyr, 1553;


Le bûcher de Servet, p. 223-227, 228-234; Castellion,


atuação, de sua ingerência em negó-

p. 235-241.





26






cios políticos de Genebra e de sua to- livre arbítrio (Opera Calvini, v. 21,

 REVISTA

lerância, ou mesmo de sua falta. p. 481, 15 maio 1551). Com certe-



za, a predestinação se constitui em


1551: Bolsec e a


um dos dogmas mais contestados do


calvinismo doutrinário.

TEOLOGIA E SOCIEDADE
predestinação


De fato, o que causa polêmica é



Esse frade carmelita, parisiense a confusão com a dupla predes-



e médico, Jérôme-Hermès Bolsec, tinação. Quem faz essa confusão



se voltou contra Calvino e a doutri- acaba criticando o Deus que esco-


na da predestinação. Bèze (1565) ○
lheu salvar alguns e também esco-
tratou Bolsec como homem cheio lheu condenar outros. Entender a

de nuances. Genebra assustava-se predestinação requer uma atenção



com o atrevimento desse carmelita maior e um espaço que não existe


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


que, em plena congregação, repre- nesse artigo.



endia a doutrina da providência e Mas, Bolsec foi mesmo impru-


discordava da predestinação. Era dente e anunciava que o Deus pre-



como se os calvinistas estivessem gado em Genebra era mentiroso e



fazendo de Deus o autor do pecado hipócrita, o patrono dos criminosos



e culpado pela condenação dos e pior que Satanás. Publicamente



ímpios (Bèze, 1565 apud atacou Calvino, no dia 16 de outu-


COTTRET, 1995, p. 218).


bro de 1551. Nas igrejas daquela


Calvino chegou a atribuir tal ig- época havia algo como grupos de

norância e insolência à sua forma- estudos bíblicos que permitiam tais



ção monacal. Julgava que Bolsec contravenções e participações dos



merecia punição por seu ato de se- leigos. Bolsec se insurgiu contra a

dição. Mas que poderia ser tratado explicação predestinacionista


com mais doçura pelos magistrados. (KINGDOM; BERGIER, 1964, p.



Afinal, poderia haver cura para esse 80-131). Logo à saída, Bolsec já foi

ignorante sofista. conduzido à prisão do bispado, para



O velho carmelita parisiense aca- aguardar o julgamento.



bou instalando-se efetivamente em As autoridades civis tinham mui-


Genebra como médico. Em pouco


ta dificuldade técnica para julgar


tempo foi convocado perante o PC. questão dessa importância. Não se



Seus erros: recusava a predestinação achavam competentes para dispu-



e tinha idéias controversas acerca do tas tão altas e difíceis (O.C., v. 8, p.








27






176, Registres du Conseil, 27 out. o controle. Esse era o problema que



1553). Restou a Bolsec confrontar um herege representava para a co-



Calvino acerca dessa doutrina que munidade naquele contexto.
GENEBRA, CAL
PÁGINAS 24 A 43, 2008



o médico julgava absurda. Até mesmo entre os ministros


Ele enviou a Calvino um verda- surgiam dissensões. O pastor André



deiro quebra-cabeças metafísico: os Zébédée, de Noyon, e Jean Lange,


CALVINO


“Artigos propostos por Jerome de Bursin, pregaram contra as idéi-


VINO E O TRA


Bolsec ao mestre Calvino, a fim de as de Calvino, em 1555



que ele responda categoricamente (COTTRET, 1995, p. 222, nota 27).



e sem razões humanas nem Iniciando com Bolsec a pregação das


TRATO

similitudes vãs, mas simplesmente teses anticalvinistas tomaram vulto




TO COM OS HEREGES

através da palavra de Deus” (Ibid., ○



nos anos seguintes. Berna precisou
p. 178). Após tentativas e consultas punir Sébastien Foncellet, o autor da

às Igrejas de Berna, Basiléia e Zuri- epigrama que considerava Genebra



que, o PC de Genebra resolveu pelo como Sodoma e os ímpios como


banimento de Bolsec, em 23 de de- reformadores (O.C., v. 21, p. 601,



zembro de 1551 (Ibid., p. 247). Registres du Conseil..., 49, f. 44).



O fato de ter desafiado a autori- Bolsec retornou ao catolicismo,



dade dogmática de Calvino e sua em 1577, treze anos após a morte



dificuldade em receber instruções, de Calvino. Na ocasião, publicou o



levou o PC a optar pelo banimento livro História da vida, modos, atos,


daquele homem que poderia ofere- doutrinas, constância e morte de



cer perigos à própria cidade. Prova João Calvino, antigo pastor de Ge-

disso é que após a expulsão de nebra (ALMEIDA, 1996, p. 71).



Armando Araújo Silvestre

Bolsec, em 1552 ouviam-se nas ta- Levantou, nesse livro, inúmeras fal-

bernas e cabarés os motejos: sidades e calúnias contra Calvino.


“Calvino faz de Deus o autor do pe- Destilou toda a sua raiva contra o

cado” (Ibid., p. 523). reformador. Acusou-o de arrogan-



Também em 1553, Robert te, orgulhoso, cruel, maligno, vinga-



Lemoine, refugiado normando, com- tivo e ignorante. Ainda atreveu-se a



pareceu perante o Consistório por caluniá-lo como sodomita ou ho-



esposar essas teses muito pessoais mossexual, ladrão de prata, partici-


(Ibid., p. 544). Não houvesse o pante de uma falsa ressurreição,



banimento de Bolsec e o PC teria guloso e impuro (Ibid.).



problemas multiplicados até perder Não é difícil rejeitar uma a uma








28






dessas acusações. Nem mesmo é midou, mas continuou desafiando a

 REVISTA

necessário, face aos fatos históricos Igreja, primeiro a católica, agora a



que são comprovados. No entanto, protestante. Naquele século XVI



as falácias colaram e até hoje mui- não poderia esperar-se outro final:


tas dessas infâmias são tidas como foi condenado à morte.

TEOLOGIA E SOCIEDADE

verdadeiras pelos que ignoram a his- Médico, teólogo, filósofo,



tória de Calvino. Como se as fofo- geógrafo, astrônomo e astrólogo,



cas prevalecessem sobre as narrati- este espanhol nascido em Vilanova



vas abalizadas e historicamente de Sigena-Huesca, no norte da


verificadas. O livro de Bolsec circu- ○
Espanha, defendia idéias teológicas
lou bastante. Foi condenado até que contrariavam tanto as doutrinas

mesmo pelos católicos, mas circu- católicas quanto as calvinistas. Acu-



lou. O povo gosta de ler coisas des- sado de heresia, Serveto já havia sido

Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


te nível. Bolsec faleceu por volta de preso e julgado na França. Conse-



1584 (Ibid.). guiu evadir-se da prisão e quando se


dirigia para a Itália, através da Suí-



1553: o polêmico ça, foi novamente preso em Gene-



bra, julgado e condenado a morrer


caso Ser veto
Serveto

na fogueira, por decisão do PC, a


Após toda a difamação iniciada


pedido do tribunal eclesiástico ou


por Bolsec ainda a acusação que


Consistório.

persiste é a de que Calvino pesso- Quando Serveto residiu na re-



almente matou Serveto. Isso con- gião do Dauphiné francês, na cida-



traria a lógica dos fatos e da pró-


pria estrutura de Genebra. No má-



ximo, pode-se atribuir a Calvino a



concordância com a condenação 5


Servet ou Serveto (1511-1553) era um físico

espanhol. Descobriu que a doutrina Nicena da


deste herege. Trindade usava termos não-bíblicos, e após estudar a


Bíblia e os padres anti-nicenos formulou outro ponto


Miguel Servet (1511-1553), ou


de vista, rico em teologia eucarística e batismal.


Michael Servetus em latim, ou

Publicou seus pontos de vista em De trinitatis


erroribus libri VI (1531), e novamente em Cristianismi


aportuguesando-se para Miguel

restitutio (1553), o que ocasionou a sua execução


como herege em Genebra. Ele considerava o Espírito


Serveto, já havia sido condenado

Santo como uma força e não como uma pessoa.


Negou a eterna geração do Verbo etc. Era também um


pela Igreja Católica. 5 Fugiu da pri-

geógrafo e anatomista, e cria que a Bíblia deveria ser


meira condenação, mas acabou des- estudada em seu contexto histórico. (Westminster

Dictionary of Church History, p. 763; Oxford


coberto em Genebra. Não se inti-

Dictionary, p. 1.263).






29






de de Vienne6, trocou correspon- Genebra, acabou preso. Houve um



dências com Calvino sobre assun- processo contra ele, baseado em 38



tos de cunho teológico. Serveto não artigos, condenando-o por heresia.
GENEBRA, CAL
PÁGINAS 24 A 43, 2008



aceitava as doutrinas do batismo Era o mês de agosto de 1553. Era


infantil, da cristologia segundo o uma época sombria e em Genebra



Concílio da Calcedônia, nem mes- havia um grupo de opositores a


CALVINO


mo a doutrina da trindade, segundo Calvino que se aproveitaram da si-


VINO E O TRA


o Concílio de Nicéia. Calvino e tuação para criar polêmica. Entre



Serveto romperam esse relaciona- eles estava o genebrino Philibert



mento epistolar em 1547. Berthelier, do partido político dos


TRATO

O tribunal de Vienne condenou articulantes, anticalvinista, e ele de-




TO COM OS HEREGES

Serveto no dia 17 de junho de 1553, ○



cidiu defender Serveto e confrontar
logo após ele ter publicado Calvino.

Christianismi restitutio. Serveto Calvino compareceu diante do



conseguiu fugir da prisão. Restou aos PC e se declarou contra Serveto.


que o condenaram queimar seus li- Porém, aqui entra um comentário



vros e também queimá-lo em efígie que desmente a sua crueldade, sem



(FARIA, 2008, p. 224)7, ou seja, desculpá-lo de sua intolerância.



queimar um boneco que represen- Calvino pedira a Farel, por meio de



tava o condenado. Como se estives- carta, “Espero que Serveto seja con-

se executando o próprio herege, ain- denado à morte, mas desejo que seja

da que simbolicamente. Serveto já poupado dos horrores da fogueira”



estava morto para a igreja católica. (FARIA, 2008, p. 224).



Morto na fogueira dos hereges. Em O PC decidiu consultar as igre-



Armando Araújo Silvestre

outro país não seria feita a mesma jas das cidades vizinhas, Berna, Zu-

coisa? Obviamente, sim. rique e Schaffhouse. Também con-


Na rota de fuga, passando por sultou a cidade de Vienne, pedindo



cópias da condenação que infringi-



ram a Serveto. Vienne pediu a ex-



Vienne, no Dauphiné francês, é uma comuna


tradição do prisioneiro, para ser sen-
6

francesa do Departamento de Isère. Seu nome é


aportuguesado para Viena, mas isso causa confusão tenciado na fogueira daquela cida-

com a outra Viena, a capital da Áustria. Houve, em


Vienne, o XV Concílio Ecumênico que condenou à de francesa. Serveto não tinha para

extinção a Ordem dos Cavaleiros Templários, entre


onde correr, ou a fogueira vienense

1311 e 1312.

ou a genebrina. A morte era iminen-


7
Efígie é a representação plástica da imagem de uma

pessoa real ou simbólica. te, inescapável.








30






A disputa se acirrou e as autori-

 REVISTA

dades de Calvino e do Consistório



foram desafiadas. Juntamente com os



pastores de Genebra, no dia sete de


setembro, Calvino e os demais pro-

TEOLOGIA E SOCIEDADE

testaram diante do PC solicitando a



independência do poder eclesiástico.



Repetiram o protesto no dia 15. No



dia 18 de setembro, o PC decidiu



“ater-se aos editos como era o costu-
me anterior” (FARIA, 2008, p. 225).

Figura 1. Servet ou Serveto.8


Serveto, por sua vez, não se aqui-

etava e ainda mandou ao PC um pe-


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


O PC de Genebra organizou dido para que Calvino fosse preso.


uma discussão entre Calvino e


Apoiava-se na lei de talião, e deseja-


Serveto para demonstrar a Serveto va retaliar aquele que o acusara “fal-



quais eram os seus erros. Nesse perí- samente”. Acusava Calvino de here-

odo, também Berthelier compareceu sia e exigia a condenação dele: “[...]



no PC pedindo o cancelamento de sua até que a causa seja decidida, pela



própria excomunhão e afrontou o morte dele ou minha, ou outra pena”.


Consistório que lhe infringira tal pena.


Foragido de Vienne, preso em


No dia primeiro de setembro de Genebra, condenado à morte, deu



1553, Berthelier conseguiu sua ad- essa última cartada, contando com

missão à eucaristia já para o domin- a divisão da cidade e com o apoio



go seguinte, dia três de setembro. daqueles que confrontavam Calvino.


Foi nesse dia que Calvino protestou


Serveto colocou em xeque o PC de


e se recusou a servir a santa ceia ao Genebra: “a morte dele ou minha”!



excomungado. Até mesmo pregou A resposta das outras cidades



um sermão de despedida, tal o ca- suíças chegou a Genebra em 18 de



lor da quebra de braços entre outubro de 1553. Todas condena-



Calvino e esses libertinos, do parti- vam Serveto e sua heresia. Apoia-


do dos articulans, os enfants de


vam Calvino e os demais pastores


Genève. de Genebra. A morte de Calvino ou



a de Serveto?

8
Disponível em: http://fr.wikipedia.org/wiki/
No dia 26 de setembro, o PC

Michel_Servet. Acesso em; 23 jul. 2008.







31






de Genebra decretou a condenação Crueldade? Por parte dos execu-



de Serveto à morte na fogueira, já tores houve, sim. Mas, não se pode



para o dia seguinte. Novamente continuar imputando somente a
GENEBRA, CAL
PÁGINAS 24 A 43, 2008



Calvino escreveu a Farel, explican- Calvino a condenação de Serveto,


do-se: “Nós nos temos esforçado muito menos atribuir-lhe crueldade.



para mudar o tipo de morte. Foi Se houve alguém que intercedeu


CALVINO


em vão. Eu lhe direi de viva voz para que não queimassem Serveto


VINO E O TRA


porque nada conseguimos” (FA- vivo na fogueira, esse foi Calvino.



RIA, 2008, p. 225). Depois, as acusações de cruelda-



A sentença foi dada pelo PC de de continuaram sendo dirigidas jus-


TRATO

Genebra, que condenou e executou tamente contra aquele que desejou




TO COM OS HEREGES

Serveto, dando ganho de causa ao ○



poupar Serveto, ainda que este ja-
Consistório. Para fazê-lo, o PC pe- mais desejasse isso para o próprio

diu a opinião da liderança eclesiás- Calvino. Invertendo as posições,



tica das demais cidades suíças e até Serveto seria apoiado por Bethelier

da cidade católica de Vienne. e outros opositores libertinos. To-



Calvino e os demais líderes religio- dos se deliciariam vendo Calvino



sos do Consistório foram confron- arder na fogueira.



tados pelo genebrino Berthelier e Crueldade? Sim, houve mesmo.



demais opositores. Calvino foi acu- Mas, não por conta de Calvino. Po-

sado por Serveto que queria sua rém, como há requintes sempre

condenação à morte. Serveto per- lembrados, atribuem a crueldade à



deu a batalha. Morte? Sim, a dele e pessoa errada. Quem sentenciou



não de Calvino, como ele mesmo Serveto foi o PC de Genebra, apoi-



Armando Araújo Silvestre

sentenciara. ado por Berna, Zurique,



Assim, o PC resolveu o que so- Schaffhouse, Vienne etc. O


mente a ele cabia fazer: executar a Consistório e Calvino ganharam a



justiça própria da época e daquela disputa: era Calvino ou Serveto. O



cidade - executou Serveto. O PC, PC deu ganho de causa a Calvino e



Calvino e os pastores de Genebra, condenou Serveto.



as cidades suíças de Berna, Zurique Após isso, aqueles que desco-



e Schaffhouse, além da católica nhecem a história condenaram


Vienne e do próprio Serveto: todos Calvino e deram glórias de mártir



pediam a sua morte. Intolerância a Serveto. Talvez isso se revista de



típica do século XVI. crueldade histórica ou injustiça pe-








32






rante os fatos. cina oficial.

 REVISTA

Reiterando, houve crueldade Lembram-se da execução e mor-



contra Serveto: uma coroa de espi- te de Serveto. Esquecem a sua vida.



nhos com enxofre foi colocada so- Ele foi um médico de alto nível.


bre a cabeça do sentenciado. Foi Também foi um homem que desa-

TEOLOGIA E SOCIEDADE

usada lenha verde para que a foguei- fiou a sua época, confrontou a lide-



ra durasse mais e para que o suplí- rança eclesiástica católica e depois



cio fosse mais cruel e doloroso etc. a protestante. Insistiu em combater



Depois, some-se a isso o atribuir a doutrina da Trindade e acabou su-


exclusivamente a Calvino a culpa ○
cumbindo, perdendo a batalha. Fin-
por esse erro monumental. Na ver- dou morto e como a constante pe-

dade, foi um erro infeliz e corriquei- dra no sapato de Calvino, como o



ro de uma cidade em seu contexto. pomo de discórdia entre os que ad-


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


Aliás, de várias cidades. miram e os que detestam Calvino.



A católica Vienne já desejara fa- Verdade ou mentira? Antes de per-


zer isso antes. Coube à protestante guntar-se isso, deve-se questionar:



Genebra fazê-lo. Serveto morreu verdade de qual época?



queimado duplamente: pelos cató- Foi condenado pelo catolicismo



licos e pelos protestantes. Calvino ainda medieval e penou sob o poder



foi o carrasco? A sentença foi cum- de um protestantismo ainda nascen-



prida pelo PC de Genebra, num lo- te e que pretendia deixar de lado os


cal chamado Champel, nas proxi- erros religiosos do medievalismo.



midades da cidade, no dia 27 de No caso de Serveto verificou-se que



outubro de 1553. quem de fato o executou foi o PC



O nome de Miguel Serveto de- de Genebra. Era o PC ainda domi-



veria estar definitivamente incor- nado pelos libertinos, pelas famílias


porado à história da medicina. Perrin e Berthelier.



Serveto foi um precursor de Após essa condenação erronea-



Harvey na descoberta da pequena mente conduzida, os libertinos caí-



circulação sanguínea. Foi Serveto ram em descrédito em Genebra. Os



quem primeiro descreveu a circu- guilherminos formavam o partido



lação pulmonar com exatidão, cem que apoiava Calvino. Lutou pela

anos antes de Harvey. Curioso é que volta do reformador à cidade em



até mesmo a sua descoberta foi, por 1541. Agora, após o caso Serveto,

muito tempo, ignorada pela medi- em 1553, acabaram tomando o po-








33






der que pertencera aos libertinos ou demais cidades.



articulans e favoreceram Calvino. O próprio PC de Genebra defen-



Como vingança, parece terem deu e implantou regras e pontos
GENEBRA, CAL
PÁGINAS 24 A 43, 2008



sido os próprios libertinos os pri- importantes que servem até hoje


meiros a difamar Calvino e atribuir como referência mundial de demo-



falsamente a condenação de Serveto cracia representativa. Calvino, em


CALVINO


ao reformador. Os libertinos o ma- particular, defendeu a teoria do di-


VINO E O TRA


taram. Caíram em descrédito. Per- reito civil de resistir aos abusos do



deram o poder do PC. Então, fize- Estado, um problema filosófico-po-



ram de Calvino o bode expiatório lítico de desobediência civil e do di-


TRATO

de sua incompetência. Para muitos reito de revolta. Esse líder protes-




TO COM OS HEREGES

o erro dos libertinos ainda vem sen- ○



tante, cujo destino se cruzou com o
do pago por Calvino. de Genebra, antecipou idéias que o

O caso Serveto custou e ainda colocaram entre os fundadores do



custa muito caro aos protestantes pensamento político moderno.


calvinistas. Até hoje, muitos deixam Como uma pedra que se coloca

de estudar e conhecer a grandeza de sobre a questão, houve a corajosa



Calvino devido ao polêmico episó- atitude de reconhecimento do erro



dio com os hereges, especialmente e o pedido público de desculpas por



com Serveto. Muitos erraram, e parte dos seguidores de Calvino,



somente o calvinismo ainda paga a séculos após o trágico fato de 1553.


conta. Por ocasião dos 350 anos da morte



Tal polêmica correu os séculos. de Serveto, em 1903, os protestan-



Voltaire acusou Calvino por agir tes de Genebra erigiram um monu-



Armando Araújo Silvestre

como o “papa dos protestantes”. mento expiatório:



Porém depois, Montesquieu reco-


nheceu seu gênio e sugeriu que “os Filhos respeitosos e agradeci-



genebrinos deveriam tornar bendi- dos de Calvino, nosso grande



to o dia que Calvino nasceu”. Por reformador, mas condenando



mais contraditório que pareça, ao um erro que foi do seu sécu-



final Calvino se tornou um dos lo, e firmemente ligados à li-



patronos dos direitos humanos, berdade de consciência, se-


principalmente por ter lutado por gundo os autênticos princípi-



algo maior que este erro comparti- os da Reforma e do Evange-



lhado com os líderes de Genebra e lho, erigimos esse monumen-








34






to em 22 de outubro de 1563) era compatriota de Calvino,

 REVISTA

1903.9 natural da região do Dauphiné fran-



cês, da cidade de Saint-Martin-du-


Após 1553:


Fresne, próxima à divisa com a Su-


íça (COTTRET, 1995, p. 237). Es-
a oposição do

TEOLOGIA E SOCIEDADE

tudou no Collège de la Trinité em


amigo Castellion


Lyon. Tornou-se grande conhecedor



Serveto continuou como um de grego, hebraico, italiano, alemão



souvenir em Genebra após o seu e latim.


suplício. Bèze (1565) continuou re- ○
Por volta de 1540 ele aderiu ao
protestantismo em Lyon, onde pre-

latando casos relacionados. Em


1556, Matthieu Antoine foi banido senciara muitas fogueiras contra os



por defender as propostas de hereges. Abalado com isso, procu-


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


Serveto. Em 1558, o porteiro Jean rou refúgio em Estrasburgo, onde



Jacquement condenou aquele fim brilhava o espírito do jovem


reformador Calvino, o autor das


trágico que lhe deram. Catherine


Institutas.

Cop sustentou que Serveto era


“mártir de Jesus”. Após a volta de Calvino para



Bèze o reputou como “espanhol Genebra, Farel indicou a seu amigo



de maldita memória”, “não um ho- o ainda mais jovem Castellion, para



mem, mas um monstro terrível” lecionar na Academia de Genebra.


Castellion foi aceito e acabou tor-


com todas as heresias velhas e no-


vas, blasfemador execrável contra a nando-se também o diretor do



trindade e a eternidade do Filho de Collège de Rive, pertencente à mes-



Deus (apud COTTRET, 1995, p. ma instituição fundada por Calvino,



235). Outros mais se revelaram em 1555. Foi o substituto do dire-


tor Maturin Cordier que retornara


contrários ao suplício de Serveto e


a Neuchâtel e depois iria a Lausanne.


o calvinismo continuou a ser respon-


sabilizado por seu suplício. Entre eles Prosperou rapidamente devido ao



estava uma pessoa que fora muito seu grande talento.



querida de Calvino: Castellion. Em Genebra, inicialmente hos-



Sébastien Castellion (1515- pedou-se na própria casa de Calvino.


Sua competência pedagógica e a di-



vulgação de seu livreto Colloques



9
Disponível em: www.servetus.org.br. Acesso em 03
tornaram-no bem conhecido. Era

jun. 2008.





35






ainda o autor de Dialogues sacrés –



diálogos sacros – em edição bilín-



güe, latim-francês, combinando a
GENEBRA, CAL
PÁGINAS 24 A 43, 2008



educação religiosa com os ensinos


clássicos.



Castellion resolveu candidatar-se


CALVINO


também ao ministério. Tinha mui-


VINO E O TRA


tos filhos e o salário de professor lhe



era insuficiente. Porém, tinha idéias



teológicas que contrariavam


TRATO

Calvino e Genebra. Calvino, então,




TO COM OS HEREGES

pediu que aumentassem seu salário ○


de professor. Mas, não o recomen-



dou para o ministério. Entre os pon-


Figura 2. Sébastien Castellion (1515-1563).10


tos de divergência, Castellion rejei-


tava o livro canônico de Cântico dos



Cânticos, por julgá-lo libidinoso, las-


bra. Além de interditar seu acesso


civo e obsceno. Também rejeitava o


ao ministério, foi-lhe cassado o di-


trecho do Credo Apostólico que reito de pregar. Calvino ainda sim-



menciona ter Cristo descido ao patizava com Castellion, quando



Hades. Ainda discordava da doutri- sugeriu que recebesse um aumento


na da predestinação.

salarial. Mas, Castellion não aceitou


Castellion fez uma tradução do


ter sido reprovado para o ministé-


Novo Testamento em linguagem po- rio e resolveu partir de Genebra.



Armando Araújo Silvestre

pular. Nova rejeição, agora devido a Tinha ainda 29 anos.



erros crassos de linguagem e da pró- Em janeiro de 1554 foi dispen-


pria tradução, inexata e grosseira


sado de suas funções de diretor no


(O.C., v. 11, p. 673-674, carta a Viret,


Collège (O.C., v. 11, p. 439). Diri-


26 mar. 1544). Passou a se compor- giu-se a Basiléia, onde trabalhou



tar feito um enfant terrible. Criticou como auxiliar na imprensa de



os pastores de Genebra (Ibid., p. 719- Oporin. Lá ele reencontrou Thomas



722, carta a Farel, 31 maio 1544). Platter e Francisco de Enzimas, co-


Calvino não suportou a desor-



dem e pleiteou contra Castellion


10
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/

junto às autoridades civis de Gene- Sebastian_Castellion. Acesso em 23 jul. 2008.








36






nhecido como Dryander. Começou caráter e competência pedagógica.

 REVISTA

com eles a tradução da Bíblia Calvino e os demais pastores da



(COTTRET, 1995, p. 238). Venerável Companhia de Pastores



Platter havia sido aprisionado de Genebra assinaram esse docu-


quando apresentou ao rei Carlos V mento honroso recomendando-o

TEOLOGIA E SOCIEDADE

o seu projeto de tradução do Novo para Basiléia. Afinal, era amigo da-



Testamento (1543). Ele buscou re- queles pastores.



fúgio na Inglaterra onde foi nomea- Em Basiléia acabou tornando



do professor de grego na Universi- querido e renomado, como era de


dade de Cambridge (1548). Em ○
se esperar. Porém, iniciou a enviar
1549 partiu para Basiléia e depois suas correspondências que comba-

Estrasburgo. Morreu em 1552, con- tiam indiretamente a Calvino. Logo



taminado pela peste (COTTRET, após a morte de Serveto (1553),


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


1995, p. 239, nota 89). Calvino escreveu o Tratado sobre a



Também Castellion juntou-se ao heresia (1554). Castellion, então,


grande jurista de Basiléia, Boniface saiu a campo atacando severa e di-



Amerbach. Finalmente, após difi- retamente Calvino. Verdadeiros ata-



culdades financeiras que enfrentou, ques de cólera contra a “bûcher de



Castellion conseguiu sua nomeação Servet” – a fogueira de Serveto – que



como professor de grego na Univer- ainda ardia nas consciências.



sidade da cidade. Em 1546 ele usou Castellion acabou escrevendo um


o pseudônimo Moses latinus para texto que apontava para a tolerância



traduzir uma parte do Pentateuco. naquele século XVI. Mas, ainda não

Em 1547 traduziu os Salmos. era a real tolerância que se desejava.



Foi em 1551 que ele resolveu fazer Talvez mais a liberdade de consciên-

a tradução latina da Bíblia para Eduar- cia que propriamente a tolerância. É


do VI. Buscou dar um conteúdo dele a frase: “Quando se mata um



metodológico à distinção entre a letra herege, não estamos matando uma



e o espírito das Escrituras (Buisson, doutrina, mas um homem” (apud



1892 apud COTTRET, 1995, p. 239, ALMEIDA, 1996, p. 71).



notas 90-91). Porém, essa sua refor- Como o PC de Genebra sentiu-



ma ortográfica não foi bem aceita. se atingido, dirigiu-se ao concílio de


Castellion ao sair de Genebra, Basiléia e à sua universidade. Exigiu



havia pedido uma carta de reco- a reparação do caso. Calvino não



mendação que atestasse seu bom tratou pessoalmente a questão.








37






Embora Castellion fosse muito obras de Ochino e todo o seu reno-



prestigiado em Basiléia, a publica- me e lisura caíram por terra.



ção de seu livro atacando Calvino Em 1554 Bèze escreveu sua res-
GENEBRA, CAL
PÁGINAS 24 A 43, 2008



foi impedida. Era o seu Tratado dos posta a Castellion. A resposta teve


heréticos, a saber se devem ser per- sua versão francesa em 1560, com



seguidos, e como se deve conduzir com o título Tratado sobre a autoridade


CALVINO


eles, segundo o conselho, opinião e do magistrado em punir os heréticos


VINO E O TRA


sentença de muitos autores tanto e seu modo de proceder. Não foram



antigos quanto modernos (1554). tomadas providências pela universi-



Castellion usou o pseudônimo de dade de Basiléia. Mas, o Sínodo


TRATO

Martinus Bellius e publicou esse Geral das Igrejas Reformadas da




TO COM OS HEREGES

panfleto condenando as idéias de ○



Suíça o condenou por heresia e fal-
Calvino. Bellius vem de bellum, la- sidade, em 1563. Porém, Castellion

tim, e significa guerra. Ele queria morreu prematura e repentinamen-



combater o erro de terem condena- te, antes de ser executado


do Serveto. Nessa guerra, posteri- (ALMEIDA, 1996).



ormente Bèze incluiu Castellion na


1545: solidariedade

sua galeria de monstros.



Com isso, Calvino partiu para o


no caso do suicida

contra-ataque ferrenho e extrema-


Vachat – um

mente severo. Basiléia sentiu-se ofen-


dida com as acusações feitas por verdadeiro furo de



Calvino ao seu ilustre hóspede e mes-


reportagem somente

tre. Revogou a interdição e autorizou


em 2008
Armando Araújo Silvestre

a publicação do livro de Castellion.



Com muitos insultos violentos Na contramão de tudo que vem


Castellion esconjurou Calvino. sendo apontado com relação ao tra-



Nesse ínterim, descobriram que to com os heréticos, há um verda-



Castellion mantinha relações sigilo- deiro furo de reportagem que res-



sas com um inimigo da causa evan- gata a imagem de Calvino. Tal furo

gélica e reconhecidamente herético: de reportagem é de 2008 e tem re-


lação com a carta escrita por


Ochino, um ex-franciscano conver-


tido ao protestantismo, mas que es- Calvino em 1545.



crevia obras que contrariavam a Essa carta hoje se encontra en-



nova fé. Castellion traduzira uma das tre as preciosidades do MIR – Mu-






38






seu Internacional da Reforma – em nando morais à medida que a

 REVISTA

Genebra. É um manuscrito autogra- pessoa tem a impressão de ter



fado por Calvino, de 1545, que mos- sido abandonada por Deus.



tra o reformador em seu ângulo mais


humano. Para esse museu, o acha- Apesar dos esforços de Calvino

TEOLOGIA E SOCIEDADE

do é mais do que uma preciosidade. e dos barbeiros da cidade, que eram



Ele foi colocado em exposição sob os cirurgiões naquela época, Jean



a proteção de uma vitrine, protegi- Vachat morreu no mesmo dia. Na



do contra a exposição direta de luz, paisagem religiosa e ética da época,


em uma das doze salas do MIR. ○
o suicídio era uma questão grave e
O manuscrito datado de 23 de exigia um procedimento da justiça

janeiro de 1545 é a única carta co- penal que negava ao suicida até mes-

nhecida de João Calvino sobre o mo a sepultura cristã.


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


suicídio. Nela, o teólogo conta que O procedimento penal começa-



havia sido chamado à véspera por va com a entrega da queixa ou da


Jean Vachat, um cidadão que havia constatação do delito. No dia seguin-



perfurado duas vezes o próprio ab- te, Calvino e os outros intervenientes



dômen com uma faca, para acabar no caso – um segundo pastor e dois

com seus sofrimentos de cirurgiões – entregaram, conforme



tuberculoso e asmático. os costumes da época, seus relatóri-



O texto é surpreendente, raro e os ao Tenente da Justiça, que era o


inesperado. “Eu o exortei com mi- representante da polícia de Genebra.



nhas palavras a armar-se de paciên- Mediante a autópsia do corpo, os in-



cia e a consolar-se na graça de Deus”, vestigadores chegaram à conclusão



escreveu Calvino nessa carta. Antes que Jean Vachat poderia ter sobrevi-

de morrer, o suicida foi visitado por vido aos ferimentos se ele já não es-

Calvino e confessou a ele seu erro, tivesse enfraquecido pela asma, da



como revela o documento. O qual sofria e que era origem do seu



reformador tratou a questão do sui- gesto desesperado.



cida de um ponto de vista teológico Apesar desses elementos, o Tenen-



e sua carta apresenta-o: te da Justiça considerou o caso “extre-



mamente escandaloso”. Ele permane-


[...] confrontado à realidade ceu insensível aos pedidos de Calvino



dos sofrimentos físicos, sofri- e ordenou que o corpo do suicida fos-



mentos que terminam se tor- se enterrado sob o cadafalso, sem se-








39






pultura cristã. Isabelle Graesslé anali- mas sem ter sucesso em fazer valer



sa que “O relatório revela um lado hu- seus direitos. A carta terminou sen-



mano de Calvino. Ele mostra que o do comprada por um colecionador,
GENEBRA, CAL
PÁGINAS 24 A 43, 2008



mais severo dos teólogos não era aqui- que morreu em 2005. Os descen-


lo que imaginávamos”. dentes do colecionador decidiram



Mas, esse retrato poderia não ter então revendê-la. Ela foi posta em


CALVINO


sido pintado e essa nova faceta “mais leilão em julho de 2007, na Christie’s


VINO E O TRA


luminosa” da personalidade de de Londres, onde passou para as



Calvino poderia ter permanecido mãos do seu novo proprietário pela



desconhecida para sempre. O moti- soma de 70 mil libras. Foi compra-


TRATO

vo? A carta foi roubada e ficou desa- da pelo grupo de mecenas que


TO COM OS HEREGES

parecida por mais de um século. ○



apoiou a construção do Museu In-
Na primeira metade do século ternacional da Reforma.11

XIX, James Galiffe, um funcioná-



rio auxiliar nos arquivos havia cria-


do uma pequena coleção de peças



não catalogadas. Ele roubou, então,



a carta de Calvino que estava nos



Arquivos do Estado de Genebra,



assim como o dossiê completo do



caso do suicida Vachat.


Os herdeiros do ladrão James



Galiffe devolveram as preciosidades



aos arquivos apenas em 1915. O úni-



Armando Araújo Silvestre

co objeto que faltava era o documen-



to assinado por Calvino, que prova-


velmente havia sido vendido ou dado



a um colecionador particular antes



dessa data. Ele só retornou à tona em Figura 3. O documento inédito mostra a humanidade

de Calvino para com um suicida.12


2003, quando foi leiloado na famosa



casa Sotheby’s, em Paris. 11


Disponível em: http://www.swissinfo.ch/por/

swissinfo.html?siteSect=105&sid=8620853. Acesso

A reaparição do raro documen-


em 23 maio 2008.
to provocou consternação na cida-

12
Manuscrito assinado por Calvino retorna à Genebra.

de de Calvino, onde os Arquivos do Disponível em: http://www.swissinfo.ch/xobix_media/


images/sri/2007/sriimg20071219_8549618_7.jpg.

Estado protestaram com firmeza, Acesso em: 23 maio 2008.








40






Em seus vários salões, o museu Considerações

 REVISTA

lembra sempre da evolução da Ge-


finais


nebra de Calvino, do seu estatuto de



“Roma protestante” ao desenvolvi- O que se sabe de Calvino no Bra-


mento da cidade com grandes cons- sil ainda é muito pouco. Há a triste

TEOLOGIA E SOCIEDADE

truções, promovidas para receber os constatação de que nem mesmo os



huguenotes. E a história vem até os que se dizem fiéis calvinistas conhe-



dias de hoje, como detalha Olivier cem algo de substancial desse



Fatio, presidente do conselho da reformador universal. Isso chega a


Fundação do Museu: ○
estarrecer. Há mesmo alguns que se
dizem guardiães da herança deixa-

Das guerras religiosas até a re- da por Calvino, mas que não conse-

sistência ao nazismo, da guem passar das meras citações a


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


predestinação às mulheres as- favor ou contra, com acusações pe-



sumindo postos na Igreja e sadas ou defesas apaixonadas. Lei-


trabalhando como missioná- tura e compreensão para acusar ou



rias no exterior, dos conflitos defender? Quase nada. Conheci-



dogmáticos até ao ecu- mento? Praticamente nulo.



menismo e o diálogo entre as Há alguns bons conhecedores de



religiões.13 Calvino. Mas, parece que guardaram


tudo isso para si mesmos. Por que



Esta é uma grande realização não pesquisam e escrevem? Por re-



para Genebra, que precisou de ceio ou por descaso, há o risco de se



mais de cem anos até concretizar o perder o rumo da história e o de



seu MIR. O museu não é apenas perder também o norte para o pre-

um local de memória. Sobretudo, sente e para o futuro.


quando as pessoas estão hoje entre Quem sabe alguns retratos aju-

o desencanto com a religião do pas- dem os leitores a visualizarem e a



sado e à procura de novas respos- descobrirem a importância de



tas às questões espirituais, a Refor- Calvino para o seu tempo e para



ma vira um tema extremamente hoje. Retratos de um homem e de


seu tempo. Pois, sem dissociar esse


atual.

homem de seu tempo é possível



aplicar as interpretações de seu


13
Disponível em: http://www.swissinfo.ch/por/

swissinfo.html?siteSect=105&sid=8620853. Acesso
mundo e contextualizá-las na busca

em 10 jun. 2008.





41






de soluções para os problemas de oso e político, bem como as contri-



nossa própria época. buições que posteriormente deu à



A opção por apresentar esse re- cidade e ao mundo. Retratar Calvino
GENEBRA, CAL
PÁGINAS 24 A 43, 2008



trato de Calvino corresponde a ape- é também fazer uma análise de seus


lar para algo não estático, mas sem- escritos. Quando o foco é político,



pre em movimento. No caso de há que se privilegiar o que tange ao


CALVINO


Calvino, seus retratos congelam, seu pensamento político, com todas


VINO E O TRA


condensam, identificam-se com a as nuanças possíveis.



fugacidade do traço e com a verda- Para a fase de elaboração desse



de da alma. Portanto, se estão ainda retrato é preciso buscar um enten-


TRATO

em movimento, estão inacabados, dimento melhor do plano de fundo,




TO COM OS HEREGES

e não poderão ser totalmente fecha- ○



da paisagem ou do palco dos acon-
dos ou concluídos. Calvino merece tecimentos: Genebra e a revolução

esse retrato em movimento. religiosa ocorrida no século XVI.



Existem vários retratos contra- Partindo desse contexto de revira-


ditórios de Calvino. Mesmo que voltas no cenário religioso e políti-



houvesse um só, ainda assim teria co da Europa renascentista, é possí-



várias interpretações, de diferentes vel desvendar alguns traços de sua



observadores. Todo personagem his- personalidade e ainda tentar algumas



tórico passa por este crivo. O que pinceladas sobre o pensamento des-

se pode tentar é desenhar ou insistir se personagem que, por sua vez, foi

em um retrato ainda inacabado do descoberto por Genebra.



reformador. Também é preciso viajar no tem-



Há vários detalhes e traços a con- po e no espaço para pintar melhor o



Armando Araújo Silvestre

siderar. Entre tantos, pode-se deta- plano de fundo: Genebra. A partir



lhar a primeira estada em Genebra da cidade se pode compreender o


e a tentativa fracassada de reforma protagonista dessa história e desco-



por parte de Calvino e seu mentor brir o seu pensamento. A Genebra



Farel; ou a conseqüente expulsão de que ficou conhecida como cidade



Calvino e o traçado de sua peregri- calvinista, no sentido próprio, era um



nação por várias cidades como Ba- lugar de refúgio para onde afluíam

siléia, Genebra, Estrasburgo, até os insatisfeitos, os insaciáveis, os que


regressar novamente a Genebra. amavam a Cristo, desejosos de cons-



Outros traços podem delinear o truir uma sociedade cristã ideal, quin-

amadurecimento desse líder religi- ze séculos após a pregação de Jesus.








42






 REVISTA
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43






O Discurso do Pão da


C




Vida: fundamento bíblico da
Claude Emmanuel Labrunie
O DISCURSO DO PÃO DA VIDA: FUNDAMENTO BÍBLICO DA DOUTRINA EUCARÍSTICA DE JOÃO CAL
PÁGINAS 44 A 53, 2008





doutrina eucarística de João





Calvino







Se perguntarmos a uma as- encontravam-se em grande pe-

Claude Emmanuel Labrunie*
reo Rodrigues de Oliveira


sembléia constituída por ○

rigo. Afinal, todas as tentativas
presbiterianos “Qual seria a dou- de reformar a igreja da Europa

trina sobre a qual Calvino mais


Ocidental, tentativas a partir do


escreveu?”, respostas mais pro- movimento dos Albigenses no



váveis seriam aquelas atinentes sul da França nos séculos XI e



à Predestinação ou à Soberania XII, foram esmagadas pelos re-



de Deus. Apesar de não estarem presentantes do “sucessor de



longe da realidade, só raramen- Pedro”. Constantino (falecido


te alguém votaria na doutrina da no ano de 337) foi o primeiro



Eucaristia. De fato, o Refor- imperador romano a tornar a



mador deteve-se mais na consi- igreja cristã “oficial” em seus



deração da Santa Ceia, e por vastos domínios. A Igreja e o



bons motivos. Estado romano tornaram-se,


Na época em que o jovem


então, o que hoje chamaríamos,


Calvino iniciou seu pastorado mal comparando, as duas insti-



em Genebra, em 1536, as igre- tuições “multinacionais” da Eu-



jas egressas do trabalho ropa. Multinacionais também



reformador dos pioneiros devido a sua amplitude e poder.


Martim Lutero em Wittenberg


No século XVI, no ocidente eu-


e Ulrico Zuínglio em Zurique, ropeu, as duas “multinacionais”




CALVINO

prosseguiam no exercício do


VINO

controle da sociedade. As duas



* O rev. Claude é professor no Centro de Formação


entidades políticas dominantes

Teológica Richard Shaull, em Vitória, E.S., (Igreja


Presbiteriana Unida – IPU). Palestra na Semana ostentavam os nomes de “Sacro


Teológica do Seminário de São Paulo.







44






Império Romano Germânico” e o eucarística que pudesse reaproximar


 REVISTA

de “Igreja Católica Romana”, tam- as igrejas em fase de dispersão. Esta



visão contextual mostra muito bem

JOÃO CAL
O DISCURSO
REVIST
REVISTA
bém presumivelmente santa. As duas



estavam bem determinadas em usar que a teologia de Calvino é o opos-


to de uma teologia de “torre de mar-


sua santidade para exterminar as igre-

TEOLOGIA E SOCIEDADE
A TEOL
CALVINO

jas nascidas da Reforma. fim”. Para o reformador de Gene-

TEOLOGIA

VINO
Os dois potentados do século bra a teologia é atividade encarnada


OGIA E SOCIEDADE Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São P


XVI, o imperador e o papa estavam na realidade histórica e pastoral da

DO PÃO DA Vol.

de mãos dadas neste intento. E comunidade da fé. A teologia é ques-


como se tal ameaça não fosse sufi- ○
tão “de vida ou morte” para o cris-
ciente, Lutero e Zuínglio haviam-se tão e para a igreja.

desentendido seriamente em 1529, Calvino deparava-se com três



durante o único encontro que tive- modelos da eucaristia formulados,


VIDA:

ram, em Marburgo, porque suas e que competiam pelo reconheci-


1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


formulações doutrinárias da euca- mento na igreja ocidental. O primei-


FUNDAMENTO BÍBLICO DA DOUTRINA EUCARÍSTICA DE


ro era o tradicional e oficial na igre-

ristia eram divergentes. Em conse-


qüência, as igrejas dos dois ramos ja medieval. Chama-se transubs-



do protestantismo estavam afastan- tanciação. Como o nome indica, no



do-se umas das outras. A partir des- momento da consagração do pão e



te impasse o movimento do vinho, pronunciadas as palavras



reformador estava estrategicamen- apropriadas pelo padre, o pão deixa


te enfraquecido. Foi uma das ironi- de ser pão e passa a ser o próprio

as da história: o sacramento da co- corpo de Cristo. O vinho igualmen-



munhão e da unidade tornara-se o te, tem a sua sustância substituída



pomo de discórdia entre as famílias pela própria substância do sangue de



luterana e reformada (ou Cristo. Este milagre acarreta con-


Claude Emmanuel Labrunie

seqüências práticas. Entre elas, o uso


presbiteriana). Calvino (1509-1564)


Paulo

pertencia à segunda geração de da hóstia em lugar do pão. Aquela é


aulo
aulo,, SP PÁGINAS 44 A 53 

reformadores. Era 25 anos mais jo- deglutida com facilidade, evitando-



vem do que Lutero (nascido em se a mastigação do pão, o que seria



novembro de 1483-1546) e também magoar o sacro-santo corpo do Se-



de Zuínglio (nascido em 1º de ja- nhor Jesus. A outra inferência é a


neiro de 1484-1531). Calvino per- necessidade de privar o povo do vi-



cebia claramente que era urgente nho. Só o padre tomava o vinho. Por

encontrar uma formulação quê? A transubstanciação tornou-se








45






“de fide” (oficial e obrigatória) no ção de Lutero da presença real de


C


IV Concílio do Latrão de 1215. Na Cristo não pode ser confundida nem



Idade Média não raro os homens com a consubstanciação, nem com
Claude Emmanuel Labrunie
O DISCURSO DO PÃO DA VIDA: FUNDAMENTO BÍBLICO DA DOUTRINA EUCARÍSTICA DE JOÃO CAL
PÁGINAS 44 A 53, 2008



costumavam usar longos bigodes e a interpretação similar de


barbas. Acontecia, então, que após impanação, porque a visão luterana



beberem do vinho sagrado, gotas do concebe a presença como real, po-



mesmo caíam no chão durante o rém não localizada, inclusa nos dois



procedimento de voltar para seu lu- elementos. Tal presença fundamen-



gar. Ocorria então o horror de ou- ta-se na onipresença da pessoa de



tros pisarem inadvertidamente no Cristo, sendo, portanto, uma união


próprio sangue de Cristo! Foi preci- sobrenatural e sacramental, não lo-


so limitar o beber do cálice ao ofici- ○

calizada. “Para provar a possibilida-
ante. Esta providência, que contra- de desta presença deixou-se levar a

ria a ordem de Cristo. “Bebei dele procurar argumentos no arsenal da



todos”, foi instituída oficialmente no escolástica. Em virtude da


concílio de Constança em 1415. communicatio idiomatum, a nature-



O segundo modelo doutrinário za humana de Cristo participa de



do sacramento da Santa Ceia, havia todas as prerrogativas da natureza



sido formulado por Lutero, e rece- divina. Ela também possui a



beu o nome de consubstanciação. O onipresença, a ubiqüidade, e pelo



pão continuava pão e o vinho, vinho. menos, a multivolipresença, a pos-


O modo da presença real de Cristo sibilidade de tornar-se acessível em



era concebido em termos do mila- todo lugar em que ela queria, inclu-

gre, do mistério, da presença do sive na Ceia, segundo as palavras de



corpo e do sangue do Senhor com, instituição”. (STROL, H. La pensée



no, sob os elementos pão e vinho. de la Réforme, 1951, p. 232)


As substâncias tanto do corpo e do O terceiro modelo é adotado por



sangue, quanto do pão e vinho, coe- Zuínglio. Ele não aceitou a visão da

xistem em união íntima. Para ilus- Santa Ceia de Lutero que anuncia-

trar o mistério, Lutero usou a ana- va a presença real do corpo e do san-



logia do ferro inserido no fogo, quan- gue de Cristo no pão e no vinho. No



CALVINO

do ambos, fogo e ferro estão unidos último dia do colóquio em



VINO

no ferro incandescente. Contudo, Marburgo, os participantes estavam



cada qual continua sem alteração. sentados em volta de uma grande



Alguns argumentam que a concep- mesa. Ao iniciarem o diálogo sobre








46






a eucaristia. Lutero pegou um pe- nificativos de ambos os antagônicos

 REVISTA

daço de giz e com ele escreveu na enunciados de Wittenberg e de Zu-



tampa da mesa “Hic est corpus rique. Precisava ser um modelo



meum”, “Este é o meu corpo”. Ou- mediador entre os dois anteriores.


tra ironia, Lutero havia estabeleci- E de fato foi. Tradicionalmente tem-

TEOLOGIA E SOCIEDADE

do antes do inicio do encontro, a se afirmado que a eucaristia



condição de que todas as discussões calviniana (aquela do próprio



teológicas se fizessem a partir do Calvino, por contraste com a tradi-



texto bíblico da tradução da Vulgata ção que o seguiu, à qual atribuímos


Latina, e não dos textos nas línguas ○
o adjetivo “calvinista”) é mais depen-
originais. Ele sabia que Zuínglio era dente da concepção sacramental

um erudito conhecedor do grego, e luterana do que da teoria anti-sacra-



temia a superioridade do colega nes- mental de mera “ordenança”


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


te particular. zuingliana. Isto devido ao fato de que



Acontece que Zuínglio já desco- Calvino mantém a posição sacra-


brira em Zurique a interpretação mental da presença real (porém “es-



simbólica das passagens da Escritu- piritual”!). O próprio Calvino deu a



ra que narram a instituição da Últi- entender que era assim. Esquece-se,



ma Ceia. Esta exegese entendia a contudo, que a contribuição



palavra de Jesus “Este é meu cor- zuingliana avulta quando se leva em



po”, como “Este significa meu cor- conta o aporte dos aspectos: ponto

po”, “Este significa meu sangue”. de partida bíblico em João 6 e a in-



Não mais a interpretação literal es- terpretação simbólica do pão e vi-



crita, mas o entendimento de que a nho. Não é, pois, de se admirar tan-



forma verbal “é” pode e deve ser to, que Bullinger (1504-1575), o

compreendida, nas passagens da ins- sucessor de Zuínglio em Zurique,


tituição da Ceia, como “significa”. acabasse entendendo-se com



O resultado: pão e vinho passam a Calvino a respeito. Os luteranos, ao



ser símbolos, sinais, não incorporan- contrario, no que tange à Ceia, só



do o que significam. se reconciliaram com os calvinistas



Podemos adiantar que Calvino por ocasião da Concórdia de



pertencente à segunda geração de Leuenberg, em março de 1973. É


reformadores, não custa repeti-lo, oportuno citar Calvino que escre-



irá de fato incorporar no seu quarto veu carta a Bullinger em 1º de mar-



modelo da eucaristia, aspectos sig- ço de 1548, “Ainda que eu esteja








47






consciente de uma comunicação Calvino sentir-se autorizado a reivin-


C


maior de Cristo no sacramento, do dicar autoridade superior para o tes-



que aquela que você expressa, nem temunho joanino dado à Ceia, so-
Claude Emmanuel Labrunie
O DISCURSO DO PÃO DA VIDA: FUNDAMENTO BÍBLICO DA DOUTRINA EUCARÍSTICA DE JOÃO CAL
PÁGINAS 44 A 53, 2008



por isso cessaremos de ser um brepondo-se ao ensino dos sinóticos


n’Ele”.1 e de Paulo na primeira epístola aos



Baseado em que a autoridade Coríntios, capitulo 11? Em todos os



Calvino ousava propor o novo en- muitos textos do reformador de



tendimento simbólico? A única au- Genebra sobre a eucaristia, a pri-



toridade aceitável para todos os meira passagem bíblica invocada



reformadores: a Bíblia. Calvino re- neles, como ponto de partida para


conheceu o ensino eucarístico con- tudo o que se vai expor em seguida,


tido no capitulo 6 do Evangelho de ○

é sempre João 6!
João, especificamente o “Discurso É bom ouvirmos o próprio

do Pão da Vida” ou “Discurso do Calvino sobre este aspecto impor-



Pão do Céu”, contido nos versículos tante. “Quanto ao mais, não é por

23 a 7l. Quando Jesus afirma para acaso que as quatro histórias que nar-

seus ouvintes “Eu sou o pão vivo que ram como Cristo desempenhou o ofi-

desce do céu. Quem comer deste pão cio de Mediador, receberam o titulo

viverá para a eternidade. E o pão que de Evangelho... Os outros livros do



eu darei é a minha carne, dada para Novo Testamento expressam melhor



que o mundo tenha vida” – a pre- do que estes (os quatro evangelhos)

sença de Cristo não está nos elemen- a virtude e os frutos de seu advento.

tos materiais, pão e vinho, mas no E mesmo quanto a este assunto, há



coração dos crentes! A questão cen- uma grande diferença entre São João

tral da eucaristia não está mais na e os outros três: é que aquele não faz

relação Cristo-elementos materiais, quase outra coisa senão mostrar a


mas sim na comunhão do Senhor virtude e o oficio de Cristo, em con-



com os seus. O testemunho joanino junto com o beneficio que acarretam



dado à Ceia permitiu, portanto, um para nós. Os outros três detêm-se



salto qualitativo na formulação da mais neste único aspecto: que nosso



eucaristia de Calvino. Cristo é o Filho de Deus, que havia



CALVINO

Qual a razão que permitiu a sido prometido como Redentor do



VINO

mundo”. (“Argumento” no Comen-



tário aos Sinóticos: Commentaires de



1
1- C.f. João Calvino – Textos escolhidos. São Paulo:
Jehan calvin sur le Nouveau

Pendão Real, 2008, p. 203.







48






Testament. Vol 1, Paris: Librairie de tra-se na congregação (reunião dos

 REVISTA

Ch. Meyrueis et Compagnie, 1854- pastores às sextas-feiras) sobre a Di-



55, p. XVIII). vindade de Jesus Cristo, publicada



A discussão mais pormenoriza- em 1558 [Opera Calvini 47, 465-


da sobre a comparação entre o quar- 484)].Encontramos ali o seguinte

TEOLOGIA E SOCIEDADE

to evangelho e os sinóticos encon- trecho:








“Se lemos São Mateus, São Marcos e São Lucas,

não conheceremos tão bem a razão porque Jesus Cristo



foi enviado ao mundo quanto após termos lido São



João. Tendo lido São João, imediatamente conhecere-



Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


mos em que somos beneficiados pelo que o Senhor

Jesus fez... conheceremos, digo, qual é o fim e a subs-


tância de todas essas coisas, ao lermos este Evange-



lho. Eis a razão porque este último não se detém tan-



to quanto os outros na narrativa histórica... o oficio



de Jesus Cristo, a saber, que São João nos declara



como ele foi enviado por Deus seu Pai a fim de perfa-

zer a salvação dos homens. (Opera Calvini 47, 468).












Nesta mesma direção, Calvino reformador de Genebra pelo últi-



em várias passagens, acentua a su- mo evangelho chega ao ponto de


considerá-lo como a chave para a


perioridade do Quarto Evangelho


afirmando que neste encontramos interpretação dos três primeiros.



a doutrina a respeito de Cristo, en- Perfeitamente coerente com esta



quanto nos sinóticos deparamos postura hermenêutica, Calvino vai



mais com a história do Salvador. Ele publicando seus comentários sobre



insiste que João descreve mais a os livros do Novo Testamento até


“alma” do Mediador, e os sinóticos chegar à etapa de estudar os evan-



apenas seu “corpo”. A apreciação do gelhos. Nesta altura as “congrega-








49






ções” dos pastores dedicam-se ao to na Ceia do Senhor. Ele al-


C


exame do quarto evangelho duran- cança este objetivo ao funda-



te os anos de 1551 a 1553, quando mentar-se no Discurso do
Claude Emmanuel Labrunie
O DISCURSO DO PÃO DA VIDA: FUNDAMENTO BÍBLICO DA DOUTRINA EUCARÍSTICA DE JOÃO CAL
PÁGINAS 44 A 53, 2008



Calvino publica seu Comentário de Pão da Vida.


João. Em seguida os sinóticos são



examinados todas as sextas-feiras de 2. A realidade da presen-



1553 a 1555, ano da publicação do ça de Cristo inclui a partici-



comentário calviniano que se intitula pação de seu corpo (ou car-



Harmonia dos Evangelhos (Deux ne) na união redentora do



Congrégations et Exposition du Mediador com o crente, que


Catéchisme. PETER, Rodolphe, ed.. ocorre na eucaristia. Para


Paris: PUF, 1964, pp. IX e XV). ○

Calvino, esta inclusão da car-
Calvino fez questão de conhecer ne redentora de Cristo tam-

bem, primeiro, o Quarto Evangelho bém é requerida por João 6.



para, então, plenamente cônscio da Esta participação da carne de


doutrina cristológica-sotereológica Cristo, contudo, não implica



do mesmo, estar em condições de nenhuma conexão entre seu



interpretar os sinóticos. corpo e os elementos eu-



Seja-nos agora permitido tradu- carísticos. É graças à interven-



zir algumas das conclusões, com ção do texto de João 6 que



modificações, que encerram nossa Calvino pode ser perfeita-


dissertação de doutorado no Semi- mente coerente ao descrever



nário Teológico de Princeton, tese o encontro divino-humano na



redigida em inglês, e cujo titulo tra- eucaristia como “espiritual”



duzido para o português é “O Dis- (esta palavra indica, no voca-



curso do Pão da Vida, fundamento bulário de Calvino, o que se


da doutrina eucarística de Calvino”, expressaria hoje por “comu-



concluída em 1966. nhão pessoal redentora”).





1. O principal objetivo de 3. O mesmo Discurso do



Calvino e sua preocupação Pão da Vida constitui, além



CALVINO

primacial em seus textos disso, a base bíblica que au-



VINO

eucarísticos consistem em es- toriza Calvino a considerar a



tabelecer a realidade da pre- relação de Cristo com o cren-



sença real e espiritual de Cris- te na eucaristia como funda-








50






mentalmente a mesma que do Cristo encarnado, em sua

 REVISTA

ocorre na pregação do Evan- comunicação a nós mediante



gelho, na oração, na leitura a fé, e conseqüentemente,



devocional da Bíblia, no culto mediante a Ceia. A longa aná-


comunitário. Acontece que a lise de João 6 nesta obra não

TEOLOGIA E SOCIEDADE

Ceia é dádiva do Deus que con- foi esquecida por Calvino que,



descende em comunicar-se no ao contrario, a aplicou à eu-



nosso nível. Assim, na Ceia, caristia. A dívida de Calvino



por intermédio do pão e do para com Zuínglio parece,


vinho, todos os nossos senti- ○
antes de tudo, concernir a pos-
dos são convocados a partici- sibilidade exegética de João 6,

par da apreensão do Cristo como base bíblica para enten-



encarnado e ressurreto. der a comunhão entre Cristo


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


e o crente na fé. Esta última é



4. Chegamos agora à con- decisiva para a comunicação


sideração da probabilidade de que ocorre na Ceia.



Calvino dever a Zuínglio a



sugestão de que a adequada 5. Cristo, na qualidade de



base exegética para a eucaris- pão que concede vida eterna,



tia é o discurso de João 6, é a imagem bíblica que me-



mesmo que este último negue lhor sintetiza a Promessa da


esta conexão. Calvino adota Ceia. Este sacramento deve



a descrição de Zuínglio da estar estruturado de acordo



apreensão de Cristo pela fé, com o esquema “símbolo-exi-



segundo consta na principal bição”, porque a revelação de



obra dogmática do refor- Cristo ocorre na Palavra (a


mador de Zurique, intitulada Promessa formulada no dis-



De vera et falsa religione curso de João 6) e na fé, os



(1525). Ali a exegese de João quais pertencem ao cerne des-



6 interpreta o comer do pão te sacramento.



da vida como descrição da fé.



Em contraste com isto, 6. A própria interconexão


Calvino considera esta passa- das realidades soteriológicas



gem como um testemunho da (Deus o Pai, a pessoa encar-



uniformidade da participação nada de Cristo, o Espírito








51






Santo, a fé, o crente) que in- de do ser humano é o concei-


C


tervém no encontro divino- to de “pessoa”. Este conceito



humano descrito pelo Discur- é eminentemente relacional.
Claude Emmanuel Labrunie
O DISCURSO DO PÃO DA VIDA: FUNDAMENTO BÍBLICO DA DOUTRINA EUCARÍSTICA DE JOÃO CAL
PÁGINAS 44 A 53, 2008



so do Pão da Vida, como in- Cada pessoa é o resultado,


terpretado na exegese de além de outras realidades, das



Calvino (Cf. seu Comentário relações interpessoais vi-



in loco), constitui o padrão venciadas por cada um. É pre-



soteriológico que determina a ciso lembrar que este concei-



estrutura e conteúdo da Ceia. to não existia na Antiguida-



de. Os autores do Antigo e do


Concluiremos com quatro con- Novo Testamento não dispu-


siderações finais. ○

nham do vocábulo “pessoa”.
Exegetas de hoje perceberam

A) Quando se analisa a que inúmeras passagens da



contribuição do Discurso do Bíblia, que contêm as palavras


Pão da Vida (João, capitulo 6) “corpo” e “carne”, designam



na compreensão da eucaristia o ser humano integral, e de-



no século XVI é imperioso vem ser melhor traduzidas



destacar a ênfase que Zuínglio por “pessoa”. Um exemplo



e Calvino deram ao versículo seria a tradução que um



63: “A carne para nada serve, exegeta católico propôs para


é o Espírito que vivifica. As “Isto é o meu corpo”: “Isto



palavras que eu vos disse são sou eu”.



espírito e vida”. “A carne para



nada serve”: se é assim, a dis- C) Um estudioso de



cussão escolástica e metafísica Calvino afirma: “Lutero é o fim


sobre a relação entre a subs- da Idade Média, do Esco-



tância (“carne”) do corpo e a lasticismo. Calvino é o desabro-



substancia (“carne”) do pão é char da Idade Moderna” (Cf. o



irrelevante. DVD Jean Calvin – portrait



sensible. REUSSNER, Ca-



CALVINO

B) Não se deve esquecer roline, diretora. Paris:



VINO

que o conceito mais impor- Présense Protestante, 2006,



tante que a antropologia no 183 minutos) esta opinião



nosso século XXI da realida- parece confirmada, ao me-








52






nos em parte, pela concep- Zurique ou Consensus Tigurinus. O

 REVISTA

ção da eucaristia do re- Acordo consistia em texto de 26



formador de Genebra. Ele artigos sobre a Ceia (João Calvino



teria inaugurado a era mo- – textos escolhidos. Pp. 212-214).


derna da compreensão da Dois anos após a celebração desse

TEOLOGIA E SOCIEDADE

Santa Ceia como comunhão consenso, todas as igrejas das regi-



interpessoal de Cristo com ões protestantes da Suíça haviam



o cristão. aderido. Pouco a pouco ocorreu o



mesmo com as igrejas calvinistas


D) Cabe, então, uma inda- ○
espalhadas pela Europa.
gação de cunho pastoral para O Acordo de Zurique atesta que,

hoje. Não seria o caso dos na prática histórica concreta,



presbiterianos cogitarem, na Calvino confirmou o que escrevera


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


celebração da Santa Ceia, de ao bispo anglicano Cranmer em



inserirem a leitura de alguns abril de 1552: “Entre os grandes


versículos do discurso do Pão males de nossa época, precisamos



da Vida, além das palavras da levar em conta o fato de que nossas



instituição? igrejas estão de tal maneira separa-



Zuínglio assim procedeu em sua das umas das outras, que mal sub-

liturgia eucarística (KLEIN, Carlos siste entre nós apenas uma socieda-

Jeremias. Os sacramentos na tradi- de humana. Não se vê triunfar aque-


ção reformada. São Paulo: Fonte la santa comunhão dos membros de



Editorial, 2005, p. 68). Cristo, que todos confessam de



boca, mas que poucos procuram sin-



O esforço ingente de Calvino ceramente. E assim, tendo os mem-



para elaborar doutrina da eucaris- bros retalhados, o corpo jaz sangran-


tia que pudesse unir as igrejas pro- do. No que me concerne, se minha

testantes alcançou parcialmente seu presença fosse considerada útil, não



objetivo. Isso aconteceu quando o temeria atravessar dez oceanos,



mestre de Genebra assinou com caso fosse necessário, para tratar de



Bullinger, em 1549, o Acordo de tal questão” (Ibidem, p. 141).















53





Calvino






sobre a vida cristã
CAL
PÁGINAS 54 A 67, 2008
CALVINO



VINO SOBRE A VIDA CRISTÃ













Falar do ensino de João cado de modo a criar obstácu-

Eduardo Galasso F
reo Rodrigues de Oliveira


Calvino sobre a vida cristã ou a ○

los insuperáveis em sua busca de
vida do cristão é buscar compre- Deus. Em oposição ao ensino

ender seu pensamento teológico


humanista de Erasmo, a razão


e ético, especialmente no que se não tem condições de governar



refere à concepção de piedade a vida humana mas sim o Espí-



dentro da espiritualidade cristã rito Santo.



do século XVI.. Esta imagem distorcida en-




Faria
aria
aria∗

Para o reformador, o tema tretanto, pode ser restaurada


está ligado à história da criação pela comunhão verdadeira com




e queda do ser humano. Pelo o Senhor Jesus. É certo que



pecado a imagem de Deus nele Calvino também afirma a possi-



foi distorcida e, em conseqüên- bilidade do ser humano ainda



cia, não pode fazer um claro possuir noções acerca do bem do


discernimento entre o que é o


mal, que ficaram impressas em


bem e do que é o mal. Ao con- seu coração, possibilitando-lhe




Eduardo Galasso F

trário dos filósofos e teólogos alguma compreensão da lei mo-



escolásticos que afirmavam na ral. Em razão disso, existe uma



razão como guia suficiente para ética natural que se manifesta na


se alcançar a virtude, Calvino


capacidade para cumprir parte


sustentou que a razão havia sido dos mandamentos. Se existe



obscurecida pelos efeitos do pe- alguma possibilidade do ser hu-



Faria
aria

mano realizar a vontade de Deus,



* O rev. Eduardo é professor no Seminário ela está na dependência da ação


Teológico de São Paulo (IPIB). Palestra na Semana


Teológica do Seminário. redentora de Jesus Cristo.








54






O objetivo da vida cristã portan- Deus em nós, um dia corrompida,


 REVISTA

to, é a restauração da imagem de é transformada e recuperada. Por



um lado participamos na morte de

CAL
REVIST
REVISTA
CALVINO
Deus dentro do ser humano. Com



isso, passamos a partilhar a vida do Cristo e, por outro, somos regene-

VINO

rados pelos efeitos de sua ressurrei-


próprio Cristo, sua morte e ressur-

TEOLOGIA E SOCIEDADE
A TEOL

reição, sendo moldados por sua atu- ção. Ao participarmos de sua mor-

TEOLOGIA

SOBRE A VIDA CRISTÃ


ação em nós. É na participação em te, nosso velho homem é crucifica-


OGIA E SOCIEDADE Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São P


sua morte que podemos morrer para do, diz Calvino, e ao participarmos



o pecado, da mesma forma que na de sua ressurreição, somos vivifica-


sua ressurreição experimentamos, ○
dos para uma nova vida. Todavia,
pela ação do Espírito, uma vida nova não estamos livres dos efeitos do

que nos garante a comunhão com pecado e nem possuímos a santida-



Deus, de quem estamos desgarrados. de. Se alguma coisa conseguimos


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


O princípio básico do pensamen- nesse campo, é unicamente pala



to de Calvino sobre as possibilida- ação de Cristo em nós. Tudo o que


podemos ser então, provém da união


des do homem mudar o seu cora-


ção e cumprir a vontade de Deus com Cristo.



está fundamentado naquilo que ele Para o reformador a piedade não



denomina união com Cristo, reali- significa, “em primeiro lugar, um



zada pela ação regeneradora do Es- conjunto de práticas ou exercícios,



pírito Santo. E é pela fé que ela ocor- mas uma disposição interior funda-

re. Só assim os cristãos poderão mental da alma vivendo em contato



gozar os benefícios da santificação com Deus” (GANOCZY,194). Ela



e da graça justificadora. Essa união resulta do amor filial para com



mística resulta da ação de Cristo, Deus que se torna conhecimento



realizada não de uma vez por todas, vivo, direto e confiante nele. É o que

Calvino chama de “religião verda-


mas a cada dia.


Paulo

O impulso para viver uma vida deira” e que consiste na obediência


aulo
aulo,, SP PÁGINAS 54 A 67 

Eduardo Galasso F

cristã é acima de tudo, uma decor- à lei divina que manifesta a glorifi-

rência do viver em Cristo. Partici- cação de Deus, em espírito e verda-



pando do corpo de Cristo, ele passa de. Ou seja, estamos falando de uma

a viver em nós e, pelo seu Espírito, espiritualidade que vem do coração


vivemos nele. Ele toma conta do e que é enfatizada em diversos de



nosso ser e é a partir daí que a rege- seus escritos, seja quando expõe os

neração nos alcança. A imagem de mandamentos, trata dos sacramen-


Faria
aria





55






tos ou comenta o livro dos Salmos. cristão pode evitar o abuso pecami-



Pode-se dizer que a grande deli- noso no trato com a criação, uma



mitação do pensamento teológico lição valiosa quando enfrentamos a
CAL
PÁGINAS 54 A 67, 2008
CALVINO



de Calvino e sua ética é favorecer a devastação da terra e a crise ecoló-
VINO SOBRE A VIDA CRISTÃ


verdadeira piedade, a que as pesso- gica atual. Como diz ele:



as devem ser conduzidas. Fazer bro-



tar o temor filial, a fé salvadora, o “Sobriedade não denota du-



louvor do coração, a justiça divina, biamente tanto a castidade e



o amor filial e reverente é o seu pro- a temperança, quanto o puro



pósito, dentro do objetivo maior de e frugal uso dos bens tempo-


glorificar a Deus pela obediência à rais” (Institutas III, VII, 32).


sua Palavra. ○

Calvino chegou à sua concepção Ela evita a luxúria e o desperdí-



de piedade, desenvolvendo, à seme- cio das riquezas, uma memória



lhança dos demais reformadores, atualíssima diante da crise financei-


uma visão crítica da piedade de seu ra global e a consequente quebra



tempo. Contra a justiça das obras das bolsas de valores.



era necessário afirmar a fé confian- Antes de falar do tratamento



te. Era deplorável o quadro religio- dado por Calvino ao tema da vida

so do século XVI, que não incluía cristã, é bom mencionar a questão



apenas superstição, idolatria, adora- teológica provocada por ele ao tra-


ção do sacramento da eucaristia, tar da regeneração antes de falar da



mas também uma prática comerci- justificação ( Institutas, III, XI), pro-

al, praticada especialmente com a vocando uma ruptura (LÓPEZ,



venda das indulgências, em substi- 187) com o ensino dos demais



tuição ao verdadeiro arrepen- reformadores. No que refere à ação



Eduardo Galasso F

dimento.Era preciso afirmar por do Espírito na salvação, o



conseguinte, contra a justiça das reformador de Genebra primeiro



obras, a natureza divina da adora- trata da vida cristã, colocando-a não



ção “em espírito e verdade”. como fruto da justificação, mas



Também a moderação é elemen- como sucedendo a ela. Enquanto



to importante para a vida cristã. É para Lutero, é o medo provocado


Faria
aria

por intermédio dela que se chega ao pelo pecado que prepara o caminho

uso devido dos dons recebidos de para o aparecimento da fé, para



Deus. É com a moderação que o Calvino, inversamente, a pessoa pri-








56






meiro vive a experiência da fé para damental e de amplo alcance pasto-

 REVISTA

então, se tornar consciente do pe- ral. Em 1550 foi preparada uma



cado e ter consciência da necessi- edição dele como separata, para ser



dade de arrependimento. Em 1536, amplamente lida nos lares e pelas


com a 1ª. edição da Instituição da pessoas. Foram inúmeras as

TEOLOGIA E SOCIEDADE

Religião Cristã (Institutas), ele ain- reedições deste opúsculo publicado



da partilhava a idéia de Lutero de e avidamente lido em várias línguas,



que a penitência abre o caminho onde quer que o interesse pela obra



para o conhecimento de Cristo e de Calvino tenha se desenvolvido.


que o sofrimento causado pelo pe- ○
No Brasil também temos uma edi-
cado o antecede. No entanto, em ção deste livrinho precioso, símbo-

1559, com a edição definitiva da lo maior da espiritualidade desen-



Instituição, seu autor afirma que o volvida pelo reformador francês,


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


homem não pode conhecer sua real publicado pela primeira vez no ano

condição antes de ser alcançado pelo 2.000 e reimpresso algumas vezes.


dom da fé. Se assim não fosse, cer- Discute-se também se ao tratar



tamente a santificação seria utiliza- de questões éticas na forma em que



da pelo ser humano para se justifi- estão colocadas, Calvino não se dei-

car diante de Deus, o que de fato xou influenciar em demasia pela



ocorreu muitas vezes na história da moral estóica. Como sabemos, an-



religião cristã. tes da conversão, Calvino não só foi


O homem é pois, levado à peni- influenciado pelo filósofo romano



tência e renúncia apenas pela fé. É estóico Sêneca como publicou um



interessante observar também o que Comentário sobre De Clementia des-



diz Alexandre Ganoczy (195) sobre se autor, que inclusive é menciona-



o método utilizado por Calvino para do no texto das Institutas.


o desenvolvimento desta matéria, O estoicismo foi um movimen-



recusando-se a dar-lhe qualquer tra- to filosófico do século III d.C., que



ço de sistematização. Na verdade teve entre seus expoentes o impe-



ela é uma questão de vida. Foi notó- rador romano Marco Aurélio. Mui-

ria a importância dada pelo to influente no século XVI, ensina-



reformador a este tópico, que pas- va que a felicidade e a virtude deve-


sou a fazer parte da Instituição des- riam estar centradas na consciência



de a sua segunda edição, em 1539. individual e no hedonismo (o pra-



Na verdade, ele se tornou tema fun- zer é o único bem possível),








57






desconsiderando qualquer oposição a religião cristã. Do estoicismo man-



entre o que é natural e o sobrenatu- teve a noção de direito natural, jun-



ral. Existe uma lei natural que for- tando-o a concepções teológicas e
CAL
PÁGINAS 54 A 67, 2008
CALVINO



nece uma regra de conduta para to- políticas. Evitando os perigos de
VINO SOBRE A VIDA CRISTÃ


dos os seres humanos, que são ir- cada um, ele os colocou a serviço



mãos e provêem de um mesmo do evangelho. O que certamente há



Deus. O dever supremo é seguir a em Calvino é um ascetismo relati-



razão. O mal é relativo e o universo vo em que transparece o desconten-



bom, sendo a indiferença o cami- tamento com este mundo em com-



nho – aí está a felicidade - já que os paração com a vida futura. Todavia,


esforços transformadores da reali- está bastante distante dele o consi-


dade são inúteis. Tanto o estoicismo ○

derar este mundo e seus valores
como o humanismo colocavam em como alheios a nós.

relevância o homem como homem, O grande desafio que vem de



em igualdade, superando divergên- Calvino é muito maior do que sim-


cias nacionais e religiosas. Na ética plesmente nos esmerarmos em fa-



estóica existe a idéia do bem como zer uma apresentação bem elabora-

tranquilidade de espírito, sendo o da das doutrinas cristãs. O empe-



dever e a autodisciplina as virtudes nho para que a fé se expressasse no



maiores. viver diário sempre teve para ele a



Calvino entretanto, não era um primazia, sendo seus ensinos apura-


admirador cego do estoicismo. Os dos pelo crivo da prática cristã a fim



métodos para o estudo dos autores de que a tentação de uma fé elabo-



antigos, empregado por Sêneca e no rada de forma intelectualista não



século XVI por Erasmo, foram subisse à cabeça em um dualismo



aproveitados por ele em suas obras reducionista. A questão de viver



Eduardo Galasso F

e, de maneira especial, em seus co- conforme a Palavra foi a sua preo-



mentários exegéticos. Apesar disso, cupação. Calvino, em seu labor pas-



Calvino manteve sua independência toral, manifestou a preocupação de



e criticava a indiferença estóica, in- que a Palavra se manifestasse clara-



capaz de tornar seus seguidores so- mente na vida das pessoas e da co-

lidários com os que sofrem. Valeu- munidade. Para isso, as pessoas de-
Faria
aria

se sim, tanto da moral estóica como veriam se dispor à autonegação e a



do humanismo, considerando-os levar a cruz. A contrapartida seria a



em muitos pontos harmônicos com falta de fé e a centralização das aten-








58






ções em si. comando... portanto, não nos

 REVISTA

Na elaboração de seu ensino so- pertencemos, e, até onde seja



bre a vida Cristã, Calvino menciona exequível, esqueçamos a nós



em primeiro lugar a apropriação in- mesmos e a tudo que é nos-


terior da fé, que ele chama de so. Pelo contrário, somos de

TEOLOGIA E SOCIEDADE

autonegação. Sua manifestação ex- Deus; logo, vivamos e morra-



terior é o levar a Cruz. A isto se acres- mos para ele Assim deve ser,



centa a ressurreição, que se baseia de sorte que o homem em si



no Cristo glorificado. Em conseqü- já não viva, mas deixe Cristo


ência, passamos a meditar na vida ○
viver e reinar em sua vida (Gl
futura que nos dá horizonte para 2.20)”. (Institutas, III, VII, 1)

perseverar nas situações enfrenta- “...Convém que o homem



das, por mais adversas que sejam. cristão esteja disposto e pre-

Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


parado, que reflita sobre o


Autonegação

que tem a ver com Deus em


toda a vida... Vivamos no pre-


A autonegação é tida como es-


sente mundo sóbria, justa e


tando intrinsecamente ligado à “di-


piamente, aguardando a ben-


mensão sacrificial da piedade” e


dita esperança e manifestação


constitui fruto da união com Cristo.


da glória de nosso grande


Para Calvino o resumo da vida cris-


Deus e Salvador, Jesus Cris-


tã é a renúncia pessoal. Como diz,

to”. (Institutas, III, VII, 2)


seguindo de perto o ensino de Pau-



lo, o primeiro passo é que o homem


A leitura destas palavras, mostra


se desprenda de si mesmo:

que a real perfeição para Calvino está



marcada pela sobriedade, justiça


“estamos consagrados e dedi-


(equidade) e piedade (desvencilha-

cados a Deus, para que não


dos das corrupções do mundo, uni-


cogitemos nada além disso...


dos com Deus em verdadeira santi-


se não nos pertencemos, mas


dade). Para o reformador, nenhuma


ao Senhor, faz-se patente que


regra é mais certa do que esta:


se deva evitar não apenas o


erro... não nos pertencemos


“todos os dons de que somos


em nossos planos e ações,


possuidores são dádivas de


nossa razão não deve estar no


Deus, creditadas à nossa con-








59






fiança com esta condição: que tiças e malefícios, na verda-



sejam administradas em be- de, este não é um motivo jus-



nefício do próximo (I Pe to por que o deixes de abra-
CAL
PÁGINAS 54 A 67, 2008
CALVINO



4.10)”... “Seja a regra para a çar com amor e cumulá-lo
VINO SOBRE A VIDA CRISTÃ


benevolência e beneficência: com os benefícios de tua esti-



tudo quanto Deus nos dispen- ma...” (Institutas, III, VII, 7).



sou com que possamos assis-



tir ao próximo e disso somos A mortificação que se requer



mordomos, mordomos que ocorrerá quando forem cumpridas



estão obrigados a prestar con- as leis da caridade. Entretanto,


ta de nossa mordomia.” “cumpre-as aquele que o faz de sin-


(Institutas, III, VII, 5) ○

cero senso de amor.” (Institutas, III,
VII, 7). Calvino deseja “tratar mais

O cristão, dispensado das preo- plenamente o aspecto principal da



cupações consigo mesmo deve es- negação de nós mesmos, a qual diz

tar pronto para se dedicar à justiça, respeito a Deus” que nos convoca a

bem como ao serviço ao próximo, abdicar de todas as nossas coisas



em amor. para que a “ele tragamos, para se-



rem domados e subjugados, os afe-



“O Senhor preceitua que se tos de nosso coração.” (Institutas,



deve fazer o bem a todos, os III, VII, 8) Aquele que permite que

quais em grande parte são o Senhor cuide de todos os aspectos



muitíssimo indignos... deve- de sua vida, “não importa o que lhe



se levar em conta a imagem sobrevenha, não se considerará de-



de Deus em todos, à qual de- safortunado, nem se queixará com



vemos toda honra e amor.” animosidade diante de Deus acerca



Eduardo Galasso F

Diante do estranho e despre- de sua sorte.” Mesmo que veja sua



zível alguém talvez não faça morada reduzida à solidão ou sub-



o mínimo esforço para o so- traídos os familiares “certamente



correr. No entanto, “digna é nem assim deixará de bendizer ao



a imagem de Deus, pela qual Senhor...” (Institutas, . III, VII, 10)



ele te é recomendado para que Todavia, é necessário esclarecer


Faria
aria

te ofereças, a ti mesmo e a que, como afirma Wendel (248), “a



tudo que tens.” “Mesmo que negação de nós mesmos, na qual



te haja provocado com injus- Calvino baseou toda a sua ética, é








60






impossível exceto pela fé em Cris- afirmar que a vida cristã deveria

 REVISTA

to.” Daí que a renúncia a si mesmo consistir apenas de sofrimento e tri-



não pode ser uma atitude pessoal bulação, mas pode-se notar que



simples e negativa, baseada apenas muitas vezes é o que predomina. A


em esforço próprio. Renuncia-se a luta continua sempre. “Se somos

TEOLOGIA E SOCIEDADE

si mesmo a fim de confiar a condu- banidos de nosso país, estamos mais



ta da vida a Cristo. Além disso a prontos para ser recebidos na famí-



negação de si mesmo deve vir acom- lia do Senhor.” (Institutas, III, 8,7).



panhada de uma atitude positiva de “Se temos opróbrio e ignomínia...


amor para com o próximo. A re- ○
isso não nos traz méritos...”
núncia a si mesmo deve dar lugar a Compartilhamos os sofrimen-

sentimentos de amor fraterno. tos de Cristo da mesma forma que



seremos conduzidos à sua glória. A


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


Levar a cruz

cruz é o melhor meio utilizado por



No capítulo VIII do livro III, Deus para abater nossa arrogância,


mostrando-nos nossa fragilidade.


Calvino trata da mente piedosa que


Na experiência com a debilidade


deve levar a sua cruz, ou seja, aque-


les que o Senhor adotou para parti- “tiramos proveito na humildade



cipar do que é seu “devem prepa- para despojar-nos da indevida con-



rar-se para uma vida dura, laborio- fiança na carne e nos acolhermos

sa, agitada e repleta de muitas e va- na graça de Deus.” (Institutas,. III,


VIII, 2) Nas tribulações é gerada a


riadas espécies de males.” São exer-


cícios para provar os servos de Deus. paciência e, reclinados somente em



Quanto mais sofremos mais parti- Deus, não sucumbimos pois “o Se-

lhamos a condição de Cristo. Aqui nhor, executando o que promete-



Calvino segue a tradicional imitação ra, estabelece sua verdade para o


futuro.” (Institutas, III, VIII, 3).


de Cristo sem dar a ela o caráter


Pela cruz somos adestrados a viver,


meritório, como ocorreu na I. Mé-


dia. Em si o sofrimento não tem “não conforme o próprio desejo,



valor. Para o homem natural sofrer mas segundo a vontade de Deus.”



é apenas ser castigado por Deus. No (Institutas, III, VIII, 4) No entan-



entanto, sofrer por Cristo e com ele to, nas agruras, é preciso reconhe-

cer a benignidade do Pai para


resulta em fortalecimento da comu-


nhão com ele. conosco



Calvino não vai ao exagero de “...O próprio Senhor, quando








61






acha conveniente, se apressa, ser qualificado de incredulidade.



subjuga e refreia a crueldade (Institutas, III, VIII, 9) A causa prin-



da nossa carne com o remé- cipal para suportar e levar a cruz é a
CAL
PÁGINAS 54 A 67, 2008
CALVINO



dio da cruz. .... Daí ser ne- consideração da vontade divina e
VINO SOBRE A VIDA CRISTÃ


cessário que uns sejam pro- rebelar-se contra ela é ir contra a



vados por um tipo de cruz, justiça divina. Na verdade, “o Pai



outros o sejam por outro. boníssimo nos consola, enquanto



(Institutas III, VIII, 5) “por- declara que no próprio fato que nos



quanto aflige não para levar aflige com uma cruz, contempla a



à ruína ou fazer perecer: an- nossa salvação.” Se as “tribulações


tes, para livrar da condena- nos são salutares, por que não as su-


ção do mundo.” ... “Deus cas- ○

portamos com espírito agradecido e
tiga aquele a quem ama e, sereno?” (Institutas, III, VIII, 11)

como um pai ao filho, o abra-



ça.” (Institutas, III, VIII, 6)


A vida futura

Há muitas calamidades que nos


Em qualquer situação, por mais


assolam e a morte é a maior delas,


difícil que seja, é preciso “que nos


“mas quando o favor de Deus nos


acostumemos ao menosprezo da

acalenta, nada há nessas coisas que


presente vida e daí sejamos desper-


não se converta em grande bem e


tados à meditação da vida futura” a

em nossa felicidade.” “Envergo-


fim de que não tenhamos um amor


nhemo-nos, pois, em não estimar o


animalizado por este mundo. Des-


que o Senhor tem em elevada con-


lumbrada pelo fútil fulgor das rique-


ta, como se fosse inferior aos vãos


zas, do poder, nossa mente se en-


deleites da presente vida, que num


torpece e também o coração não


Eduardo Galasso F

instante desaparecem como a fuma-


pode elevar-se mais alto. Por isso,


ça.” (Institutas, III, VIII, 7)



Todavia, levar a cruz “não signi- “o Senhor ensina aos seus acer-

fica tornar-se absolutamente insen- ca da futilidade da presente



sível e ser privado de toda sensação vida” e nos sacode o desânimo



de dor, da maneira como outrora os


Faria

para que, desprezado o mun-


aria

estóicos...” “como uma pedra”. O


do, nos apliquemos de todo o


próprio Senhor lamentou e chorou coração, à meditação sobre a



por seus infortúnios e isso não pode vida futura. Assim, temos pro-






62






veito da disciplina da cruz quan- flácido” que no entanto, será “reno-

 REVISTA

do aprendemos que a vida pre- vado dentro em pouco a uma glória



sente, estimada em si mesma, firme, perfeita, incorruptível, celes-



é inquieta, turbulenta, “em ne- te...” (Institutas, III, IX, 5)


nhum aspecto absolutamente Mesmo que vejamos nessas pa-

TEOLOGIA E SOCIEDADE

feliz...”(Institutas, III, IX, 1) lavras a busca de equilíbrio, é espon-



“ante a imortalidade futura, tânea a associação que fazemos com



desprezemos esta vida e, em as idéias platônicas que influencia-



vista da servidão do pecado, ram o reformador. Teria ele se des-


escolhamos renunciar a ela, ○
cuidado da ênfase paulina na ressur-
sempre que ao Senhor agradar reição do corpo? Ou estaria utilizan-

mais.” (Institutas, III, IX, 3) do essas palavras como decorrên-



cia natural de uma vida marcada por


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


É preciso no entanto, que não nos sofrimentos, especialmente nas en-



apressemos em tirar conclusões fal- fermidades tantas?


sas, que desprezem de forma unila- No capítulo X deste livro III, ele

teral sua apresentação através de um trata do uso correto dos bens ter-

jogo dialético. O fato é que as pala- renos.



vras acima, que parecem indicar o



desprezo a este mundo, são sucedi- “Ora, se é preciso viver, tam-



das por outras bem diferentes, em bém é preciso usar os recur-


uma forma constantemente utiliza- sos necessários à vida, nem



da pelo nosso autor, que concilia tampouco podemos também



verdades aparentemente contraditó- furtar-nos àquelas coisas que



rias: “Com efeito, esta vida, por mais parecem servir mais ao pra-

que seja saturada de infinitas misé- zer que à necessidade.”...


rias, contudo, é merecidamente con- “Seja para o deleite ou neces-



tada entre as bênçãos de Deus que sidade... “que os usemos com



não se deve desprezar.” (Institutas, uma consciência pura.” E, por



III, IX, 3) Outros textos chamam a isso, não é sem razão que Pau-

atenção nessa leitura. Referindo-se lo persuade dizendo que se



ao pavor da morte por parte de deve usar deste mundo de


muitos, fala sobre o corpo: “este modo que é como se dele não

tabernáculo instável, maltratado, usássemos, ou se devem ad-



corruptível, efêmero, descarnado, quirir as posses com a mes-








63






ma disposição de ânimo com de, seria apenas viver a “pão e água”.



que são vendidas (1 Co (Institutas, III, X, 1) Ou seja, atitu-



7.30,31).” Mesmo assim, des extremas desse tipo não
CAL
PÁGINAS 54 A 67, 2008
CALVINO



Deus criou os alimentos le- correspondem ao ensino da Palavra
VINO SOBRE A VIDA CRISTÃ


vando em conta não só a ne- de Deus.



cessidade, mas também o de- Nesta linha dialética, ele continua:



leite e alegria. “Assim, na



indumentária, além da neces- “onde ficam as ações de gra-



sidade, foi seu propósito fo- ças, se com iguarias ou com



mentar o decoro e a dignida- vinho a tal ponto te fartas que


de.” (Institutas, III, X, 1, 2) ou te embotes ou sejas deixa-




do inapto para os deveres da
Nesta questão, a experiência his- piedade e de tua vocação? “A

tórica mais prejudicada do purita- primeira regra é ...que os que



nismo com usos e costumes, não usam deste mundo sejam dis-

pode deixar de ser associada. É bom postos exatamente como se



considerar no entanto, a opinião do dele não usassem... os que



reformador ao mencionar a simples compram, como se não com-



condenação por parte de alguns ti- prassem...” A lei é esta: “am-



dos por bons e santos acerca da putar toda ostentação exces-



imoderação e da suntuosidade. Es- siva e supérflua abundância...”


tes ensinavam que apenas as neces- (Institutas, III, X, 3, 4)



sidades materiais deveriam se im-



por. Embora Calvino visse nessa Todos devem aprender com Pau-

opinião até um certo aspecto piedo- lo “a desfrutar da fartura, a passar



so, considerou seus conselhos “rí- fome, a ter abundância, a sofrer pe-

Eduardo Galasso F

gidos demais, pois feriram as cons- núria.” Deus é aquele que “como

ciências com laços mais apertados tanto recomendou a abstinência, a



do que aqueles de que seriam estrei- sobriedade, a frugalidade, a mode-



tados pela Palavra do Senhor, o que ração, também abomina o luxo, a



é muito perigoso.” Com tal orienta- soberba, a ostentação, a vaidade...



ção o que se possibilitaria na verda- (Institutas, III, X, 5)


Faria
aria












64






Conclusão O ascetismo medieval e as ên-

 REVISTA

fases puritanas acerca da vida cris-



tã, em termos de atitudes


Sem dúvida, o desafio é grande.


proibitivas e negativistas acabou


Como nos valer do ensino de
marcando a história dos seguido-

TEOLOGIA E SOCIEDADE
Calvino e confrontá-lo com um


res do reformador de Genebra, in-


mundo que caminha irresponsavel-


clusive favorecendo críticas sobre o


mente em direção oposta, muitas


“medo à liberdade” (Erich Fromm)


vezes voltado apenas para a


ou sua atuação ditatorial, contrá-

“curtição” da vida presente com os

ria à vida e à livre consciência
confortos e prazeres do mundo ○

(Stefan Zweig).

consumista? Em uma época ligada


Além de uma incontida reação


à exaltação do provisório, como va-


prevenida à desconhecida mas ro-


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


lorizar a vida futura? Como supor-

tulada proposta de Calvino para a


tar o sofrimento quando em tudo


vida cristã, será que teríamos a pos-


se busca a fuga dele?


sibilidade de levantar pertinentes

Mais e mais o ser humano de


questões face aos prejudiciais exa-


hoje afirma-se a si próprio e se ape-


geros e mal-entendidos do passa-


ga egoisticamente aos seus direitos.


do? Poderíamos nos valer de uma


Persegue o prazer e foge do sacrifí-


nova chave interpretativa para sua


cio. Muitas vezes os cristãos são le-


proposta ética, que levasse em con-


vados a tomar decisões face a situ-

ta os diversos entraves enfrentados


ações ambíguas e pouco salutares,


no mundo contemporâneo, que se


mas bastante atrativas. O dilema


impõem pela pressão social, prin-


entre ceder aos apelos do tempo,


cipalmente aos jovens em sua tan-


ajustando-nos às suas seduções de


tas vezes tímida afirmação de per-


maneira pouco responsável no tra-


sonalidade?

to com o próximo necessitado pa-


Mesmo assim, se por um lado


rece se justificar e aparenta tocar


temos uma posição sustentada e


nos limites da resistência – afinal,


confirmadora dos ensinos tradici-


também merecemos! - e então a


onais sobre a vida cristã na igreja e


fuga para um mundo próprio, sec-


no mundo, por outro somos sensi-


tário, acomodado e egoísta se mos-

bilizados para ouvir e dialogar com


tra sedutor e imperioso. E com co-


os questionamentos dos mais no-


res religiosas!







65






vos. Muitas vezes desorientados, mativo, pleno de alegria, mas tam-



buscam os seus próprios caminhos bém sujeito aos sofrimentos ine-



de vida no mundo competitivo que vitáveis, à semelhança do Jesus de
CAL
PÁGINAS 54 A 67, 2008
CALVINO



os cerca e que pede eficiência a Nazaré, como forma de servir ao
VINO SOBRE A VIDA CRISTÃ


qualquer custo. Como considerar próximo e ao mundo. Embora



a questão de se ajustar ao mundo essa expressão de fé de modo ge-



das competições egoístas diante de ral tenha se tornado rara, não é



uma proposta que aparenta ser ir- difícil encontrá-la. Nos últimos



racional, mística, normativa e me- cinqüenta anos, especialmente na



dieval? Como tornar válida uma América Latina, o mundo cristão


espiritualidade que foi tão vigoro- pôde contemplá-la com alguma


sa no século XVI, mas que hoje re- ○

freqüência, mesmo em sua forma
quer um novo entendimento, com mais dura, ou seja, no martírio.

todos os riscos envolvidos neste Embora, como cristãos protes-



processo? tantes e reformados, nos falte o


Evidentemente, ao considerar a principal, que é o estudo aplicado



seriedade desta pertinente proble- e popular, a discussão conjunta e a



mática, estamos diante dos gran- busca de um conhecimento maior



des desafios para a fé. No entan- do pensamento do reformador de



to, como evitar questionamentos Genebra, fica o registro da carên-



que se impõem se eles poderão cia de uma nova e séria leitura de


constituir os passos iniciais para a suas obras, renovadora e



renovação da contribuição de responsiva às necessidades do mun-



Calvino para a vida no mundo con- do atual. Nem é preciso ressaltar



temporâneo, marcado pelo acen- quanto o leitor atento é surpreen-



tuado traço pluralista que o acom- dido pela encontro direto com os

Eduardo Galasso F

panha? escritos deste mestre e pastor teó-



A pertinência do pensamento logo, servo do Senhor Jesus Cris-



de Calvino quanto à vida cristã só to.



será reconhecida quando, moti- Atualmente temos acessíveis



vados por força espiritual interi- vários de seus escritos em língua



or, estivermos sob o poder do Es- pátria. É preciso que nos aproprie-
Faria
aria

pírito na conversão diária e no ar- mos de seu legado, que lamentavel-



rependimento. Só isto trará liber- mente conta no mundo ocidental,



tação para um viver diário afir- ao lado do reconhecimento de sua








66






obra, com uma visão estereotipa- pontâneo para glorificar a Deus por

 REVISTA

da e preconceituosa. O que senti- esta notável proposta de compre-



mos, ao lê-lo, mesmo que de ma- ensão da prática da fé, que brota



neira necessariamente crítica, em do mais puro evangelho de Cristo.


um novo tempo, é o impulso es- Portanto, Soli Deo gloria!

TEOLOGIA E SOCIEDADE














Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


























REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

CALVINO, João. As Institutas. Edição clássica. vol.3. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 2a.

edição.

GANOCZY, Alexandre. The Young Calvin. Philadelphia: Westminster, 1987.


LEITH, John H. John Calvin’s Doctrine of the christian Life. Louisville: Wstminister / John

Knox Press, 1989.


LÓPEZ, Salatiel Palomino. Introducción a la vida y teologia de Juan Calvino. Nashville:


Abingdon Press, 2008.


MCKIM, Donald K.(ed). The Cambridge Companion to John Calvin. Cambridge: N. York,

2004.

WENDEL, François. Calvin. The origin and development of his religious thought. London/

N.York: Colins, Harper, 1965.









67






Karl Barth,





Leitor de Calvino
KARL BAR
PÁGINAS 68 A 75, 2008





BARTH



TH
TH,, LEITOR DE CAL









Na efervescência dos prepa- recebeu o título de graduação

CALVINO

Adilson de Souza Filho*


reo Rodrigues de Oliveira


rativos para a comemoração dos ○
em teologia. E também neste
VINO

500 anos do nascimento de João ano, no próximo dia 10 de de-


Calvino, que se dará em 2009, zembro, completará 40 anos de



certamente precisamos dar ca- sua morte.



rona à memória de Karl Barth Karl Barth era filho de um



para participar desta grande ce- pastor reformado que também



lebração. Nenhum teólogo leu e foi catedrático nas áreas de his-



interpretou os escritos de tória eclesiástica e Novo Testa-


Calvino melhor que Barth. mento, em Berna. O desejo de



Neste ano de 2008 há pelo estudar teologia nasceu ao ficar



menos três datas marcantes que intrigado com as aulas do curso



nos fazem lembrar teólogo da de catecúmenos, em 1901. De-



Basiléia. O dia 23 de agosto lem- cidido e orientado pelo pai a es-


bra os 60 anos de existência do tudar teologia, Barth cursou o



Conselho Mundial de Igrejas, de primeiro semestre em Berna e



cuja assembléia de fundação em depois outro semestre na vizinha



Amsterdã, no ano de 1948, Alemanha, precisamente em



Barth participou. No próximo Tübingen. Logo após, foi para


mês de dezembro deste ano com- Berlim onde teve entre os mais

Adilson de Souza Filho

pleta 100 anos que Karl Barth expressivos mestres o ilustre



Harnack. Mais tarde, ainda



como estudante, foi atraído pe-



las obras de Kant e Schleier-



* O rev. Adilson é pastor da IPIB. macher. Neste período conheceu








68






Eduard Thurneysen, o colega que va em derrocada. O otimismo de


 REVISTA

também se tornaria grande amigo e seus mentores liberais parecia des-



locado numa Europa dilacerada pela

KARL TEOLOGIA
REVIST
REVISTA
confidente ao longo de sua carrei-



ra1. Conhecedor e apreciador da te- guerra5. Resguardado pela neutrali-


dade suíça frente à guerra, Barth se


ologia liberal efervescente na épo-

A TEOL
BAR
BARTH

ca, após receber o título de bacha- vê abalado a cada explosão das

TEOLOGIA

rel em teologia em 1909, foi orde- bombas,com os gritos dos moribun-

TH
TH,

OGIA E SOCIEDADE Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São P


E SOCIEDADE
nado pastor da Igreja Reformada. dos e participa, mesmo à distância,

, LEITOR DE Vol.


Designado pastor auxiliar em ativamente de cada fase da luta6.


Genebra, aproveitou para ler minu- ○
Frente ao caos estabelecido
ciosamente as Institutas de Barth, em conversa com o amigo

Calvino2. Em 1911 assumiu a paró- Thurneysen em 1916, conclui que



quia na vila de Safenwil, Suíça. Tra- chegara o momento de fazer teolo-


CAL
CALVINO

tava-se de uma comunidade de cam- gia com outro enfoque e a melhor


1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


VINO

poneses e operários e Barth passou maneira de se fazer isso seria voltar


ao texto das Escrituras7. Aí se en-


a interessar-se e a lutar por melho-


res condições de vida daquela vila. contram duas das mais importan-

Ele pastoreou a comunidade de tes características da teologia que



Safenwil por dez anos. A experiên- Barth começava então a elaborar:



cia pastoral lhe mostrou a incongru- profunda inspiração bíblica e ilimi-



ência entre o que havia aprendido tada abertura para os problemas do


de modo entusiasmado com os homem moderno8. Vale lembrar que



grandes mestres liberais e as exigên- esta postura de Barth em retroce-



cias da vida cristã. Quando subia ao



púlpito, percebia a inutilidade dos



estudos histórico-críticos sobre a 1


GONZALEZ, Justo, L. A Era inconclusa. S. Paulo:

Vida Nova, p. 67.


vida de Cristo e o Evangelho3. A


Paulo

2
Idem.
necessidade do povo era da prega-
aulo

aulo,, SP PÁGINAS 68 A 75 
Adilson de Souza Filho

3
BOSC, J. & CARREZ, M. & DUMAS, A. Teologos
ção que correspondesse aos proble-

Protestantes Contemporaneos. Salamanca: SIGUEME,


1968, pp.50-51.
mas colocados pela industrialização,

MONDIN, Battista. Op.cit., p.17


pela socialização, pela luta de clas-


5
GONZALEZ, Justo, L. A Era Inconclusa. Op.cit.

ses4. A irrupção da guerra em 1914 p.68.


destruiu suas esperanças políticas e


6
MONDIN. Op.cit. p.17.

sua teologia. O mundo novo ideali-


7
GONZALEZ. A Era Inconclusa, p.68.

zado pelos social-democratas esta-


8
MONDIN. Op. cit..p. 17.





69






der especialmente ao texto bíblico sição substancial entre Deus e tudo



para dar resposta aos questiona- aquilo que é humano, vale dizer, a



mentos de sua época é semelhante razão, a filosofia, a cultura12. Diz
KARL BAR
PÁGINAS 68 A 75, 2008



à atitude tomada pelos reforma- Barth que os teólogos liberais, com


dores por ocasião da efervescência sua pretensão de tornar a fé popu-


BARTH


religiosa do século XVI. Barth se- lar com a ajuda da ciência das reli-


TH
TH,, LEITOR DE CAL


gue a trilha dos reformadores, in- giões, do método histórico crítico e



clusive usando a mesma fonte ainda da filosofia, injuriaram a



metodológica de Calvino, isto é, o transcendência de Deus13. Barth



Proslogion 9 de Anselmo de afirmou que Deus é o totaliter alter


Cantuária. (totalmente outro), sendo inútil pen-

CALVINO


O texto preferido para suas me- ○
sar em alcançá-lo com a razão, com
VINO

ditações era o da Carta aos Roma- a filosofia, com a religião ou com a



nos. A assídua leitura deste texto cultura: Deus é o Deus absconditus;



teve sobre Barth o mesmo efeito que o totalmente outro não pode ser

tivera sobre Lutero. Ali ele reencon- encontrado por nenhum conceito e

trou substancialmente a mesma nenhuma realidade humana14.



mensagem: sola fide, mas, desta vez, À semelhança dos reformadores,



não enquanto contraposta às obras, Barth interpreta incisivamente os



mas sim enquanto oposta à razão10. textos bíblicos para formular sua

A obra Der Römerbrief11 (Carta aos teologia. Na sua obra Römerbrief


Romanos), originalmente escrita insiste na necessidade de se retornar



para uso pessoal de um pequeno



grupo de amigos e depois, o estudo



minucioso da Carta aos Romanos 9


PROSLOGION. Anselmo de Aosta (1033-1109).

ligou ainda mais Barth aos 10


Idem..

reformadores Lutero e Calvino.


11
BARTH, Karl. Die Römerbrief. München, 1919. No

Brasil, foi publicada em 1999 pela editora Novo


Inspirando-se em Kierkegaard,

Século, com o título Carta aos Romanos.


para quem existe uma “infinita di-


12
GIOVANNI, Reale , DARIO, Antiseri. HISTÓRIA DA

FILOSOFIA.. S. Paulo: Paulinas, Vol.3, p.742. Cabe


Adilson de Souza Filho

ferença qualitativa” entre Deus e o


aqui dizer que esta obra de REALE e ANTISERI, cita


os ditos dos autores entre aspas, porém, não é


homem, Barth profere um protesto

indicada a fonte. Esta obra não trabalha com


apaixonado, denunciando todas as citações bibliográficas.


tentativas de aprisionar a Palavra de


13
Idem.

Deus dentro das grades da razão 14


ILLANES, José, Luis & SARANYANA, Josep, Ignasi.

Historia de la Teología. Sapientia Fidei. Madrid:


humana. Barth ainda afirmou a opo- Biblioteca de autores cristianos, 1995, p.344.






70






à exegese fiel, em lugar das inter- se no próprio Deus e não na razão

 REVISTA

pretações baseadas nos métodos his- humana. Para Barth, contrariando



tórico-crítico e filológico. Barth re- a analogia entis (analogia a partir do



agiu contra o subjetivismo religioso ser), a fé deixa de ser fé quando pro-


que aprendera de seus mestres e cura suportes racionais. Ele parte da

TEOLOGIA E SOCIEDADE

seguindo a mesma idéia de Calvino, analogia fidei (analogia a partir da



diz que o Deus das Escrituras é fé), afirmando que só assim será



transcendente e jamais será objeto possível compreender as verdades



de especulação humana; somente cristãs18. Barth estudou exaustiva-


por meio do Espírito Santo é possí- ○
mente a obra de Anselmo, intitulada
vel fazer teologia. Afirmou que sem Fides Quaerens Intellectum (Fé em

o auxílio do Espírito Santo a teolo- busca da compreensão) e até publi-



gia acaba girando em torno de si cou em 1931 um ensaio sobre tal


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


mesma, ou seja, historizando, ou obra19. Semelhante a Calvino, Barth



psicologizando, ou racionalizando rejeitou completamente a idéia da


etc15. Para Barth, por mais corretas teologia natural. Calvino aplicava a

que sejam as teses teológicas, cer- Deus a palavra numem (numinoso),



tamente serão mortas se não forem significando um Deus inatingível.



sustentadas pelo Espírito Santo16. Rudolf Otto redescobriu esse mes-



Ao introduzir a função do Espírito mo conceito de numem e o empre-



Santo no labor teológico, Barth está gou magistralmente em sua obra O


também afirmando que a fé é Sagrado20. Barth, na Römerbrief,



basilar para o exercício teológico.



Ao contrário dos teólogos libe-



rais, seus ex-mestres, Barth dizia que 15


BARTH, Karl. Introdução à Teologia Evangélica. São

Leopoldo: Sinodal, 1996, p.39.


a fé não se apóia na força da razão;


16
Idem, p.40: Barth nesta afirmação repete a mesma
ela é muito mais o milagre da inter-

idéia de Calvino quanto ao auxílio do Espírito Santo


para se fazer teologia. Ver: INSTITUCION de la


venção radical de Deus na vida do

RELIGION CRISTIANA. Buenos Aires: Nueva Creación,


homem17. Esta idéia de que Deus é 1967, Libro I, Cap. VII, 33.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA. Op.cit. p.742.


quem vai ao encontro do homem é
17

18
Idem, p.743.
mais um elemento característico na

19
BARTH, Karl. FIDES QUAERENS INTELLECTUM.

teologia de Calvino acerca do conhe- Traduzido por: Fé em busca de Compreensão,


cimento de Deus, do qual Barth se publicado em português pela editora Novo Sécuylo,

São Paulo, 2000.


utiliza peculiarmente. A possibilida-

20
OTTO, Rudolf. O Sagrado. São Bernardo do

de do conhecimento de Deus baseia- Campo: IEPG-Metodista, 1985.








71






utiliza o mesmo conceito de numem A partir da influência de



extraído de Rudolf Otto para falar Anselmo, Barth passou a estudar



do Deus absconditus, o totalmente melhor a função e a natureza da te-
KARL BAR
PÁGINAS 68 A 75, 2008



outro. ologia. Compreende que sua tarefa


Nos moldes da teologia de não era tanto acentuar a distância


BARTH


Calvino sobre a majestade de Deus, entre homem e Deus, mas, penetrar


TH
TH,, LEITOR DE CAL


Barth diz que a história do homem no significado do conhecimento de



é história de pecado e de morte e Deus colocado à disposição do ho-



está sob o juízo de Deus, sob o não, mem na Revelação23. Com a publi-



mas trata-se do não dialético, supe- cação de seu ensaio Fides Quaerens


rado no sim que Deus pronuncia em Intellectum, sobre o Proslogion de

CALVINO


Jesus Cristo21. Esta afirmação de ○
Anselmo, Barth define sua
VINO

Barth quanto à dependência do Es- epistemologia teológica, que deve-



pírito Santo para fazer teologia cor- ria guiá-lo em seu novo empreendi-

robora ainda mais para justificar- mento, isto é, na elaboração de sua


mos a sua ligação com a teologia de obra intitulada Die Kirchliche



Calvino. Aliás o próprio Barth, ci- Dogmatik24 (Dogmática Eclesiásti-



tando Calvino, dizia que o evento ca), publicada em 13 volumes, con-



teológico fundamental se inicia e se tendo mais de 9.000 páginas, não



encerra por meio do seguinte dado: tendo chegado ao seu final. Nessa

Omnis recta cognitio Dei ab obra volumosa, maior até que a


oboedientia nascitur (todo conheci- Suma Teológica de Tomás de



mento reto de Deus nasce da obe- Aquino, Barth elaborou sistemati-



diência22). Logo, entendemos que a camente seus conceitos sobre a Re-



preocupação de Barth é pastoral, ou velação, utilizando-se do método da



seja, ele quer fazer teologia para analogia fidei25. A obra consumiu

atender as demandas de suas mui-



tas dúvidas em meio às crises soci-



ais de sua época. Daí se justifica a



21
GIBELLINI, Rosino. A teologia do Século XX. São
Adilson de Souza Filho

sua repulsa ao método racionalista


Paulo: Loyola, 1998, p.23.


para o labor teológico. Mas, por 22


BARTH, Karl. Introdução à Teologia Evangélica. São

Leopoldo: Sinodal, 6ª edição, 2001, p.19.


mais que Barth quisesse relutar con-


23
MONDIN, Battista, op.cit.p.18.
tra a razão, ele dependia dela para

24
BARTH, Karl. Die Kirchliche Dogmatik. München:
fazer teologia, mesmo a sua teolo-

1932.

gia evangélica.

25
Idem, p.19.





72






o resto do tempo teológico de Barth, lica a idéia expressa nas seguintes

 REVISTA

que começou a escrevê-la em 1932 palavras-chave 27: Nação, Raça,



e foi até 1968, ano de sua morte. Führer. Muitos protestantes liberais



Outro ponto que destaca a seme- apoiaram a absurdidade da


lhança teológica e pastoral de Barth perfectibilidade da raça humana.

TEOLOGIA E SOCIEDADE

com Calvino é o fato de que a sua Isso soava como apoio incondicio-



Dogmática Eclesiástica tenha se nal à semelhante idéia nazista defen-



prestado ao papel de expressar à dida e levada a sério por Hitler.



comunidade da Igreja Reformada, Havia a crença, em razão da mistu-


assim como as Institutas se pres- ○
ra de evangelho e cultura, de que a
taram ao papel de guia bíblico e te- Alemanha fora chamada a civilizar

ológico da nova comunidade cristã o mundo. Essa idéia ecoou em mui-



do século XVI. Ataques verbais tos púlpitos alemães e cátedras aca-


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


também são semelhantes entre dêmicas28. No projeto político de



Barth e Calvino pois ambos pro- Hitler incluía-se a unificação de to-


nunciavam frases radicais atacan- das as igrejas protestantes na Ale-



do a fé católica romana. Barth dis- manha, o que resultou em aumen-



se que a analogia entis praticada to da força do partido dos chama-



pela teologia católica era uma in- dos “cristãos alemães”.



venção do anticristo, e dizia que por À medida que a Igreja Evangéli-



causa disso não era possível tornar- ca se misturava cada vez mais com

se católico26. a força política e anti-semítica ale-



Em 1933, ano em que Hitler su- mã, os teólogos contrários a tal pos-

biu ao poder, Barth era professor de tura tendiam ao afastamento. Em



teologia em Bonn, Alemanha. O 1934, Barth e Bultmann assinaram



acontecimento teve repercussão um protesto contra os rumos que a


entusiástica, até mesmo no meio dos Igreja Evangélica havia tomado.



responsáveis pela Igreja Evangélica Neste mesmo ano, precisamente, de



da nação alemã.. Barth denunciou 29 a 31 de maio de 1934, o Sínodo



tacitamente tal postura de uma ala



da Igreja Evangélica. Crescia tam-



bém nessa época, por força do na-


1
BARTH, Karl. Die Kirchliche Dogmatik. I/1 (1932).
zismo, o movimento dos “cristãos

2
MONDIN, Battista. Op.cit. p.19.
alemães” que impulsionava para a

3
GONZALEZ, Justo, L. A Era Inconclusa, .p.71.

nova e recém criada Igreja Evangé-








73






Confessional da Igreja Evangélica ração de apoio incondicional ao



Alemã reuniu-se na cidade de Reich. As aulas deveriam sempre



Barmen. Faziam-se presentes ainda começar com a saudação nazista e
KARL BAR
PÁGINAS 68 A 75, 2008



representantes de todas as igrejas a manifestação de fidelidade a


confessionais alemãs, reformadas, Hitler. Mas Barth recusou todas es-


BARTH


luteranas e unida em um concílio sas imposições do Führer e por isso


TH
TH,, LEITOR DE CAL


livre. Não havia interesse por parte foi expulso da Alemanha,



das igrejas confessantes, conforme retornando à Basiléia, Suíça. Seu



declarado na introdução da Confis- retorno à Alemanha se deu logo de-



são de Barmen, de romperem com pois da segunda Guerra em 1945,


a Igreja Unida Alemã mas havia o para participar de algumas reuniões

CALVINO


incômodo devido aos rumos toma- ○
eclesiásticas30. É também neste mes-
VINO

dos por causa da influência do mo ano que ele publica o terceiro



Führer sobre esta Igreja. Desta reu- volume de obra Dogmática Eclesi-

nião sinodal nasceu à chamada Con- ástica, sobre a doutrina da criação.


fissão de Barmen, redigida com a Em 1946 Barth se tornou pro-



colaboração de Barth e Martin fessor visitante em Bonn. Neste ano



Niemöeler. foi novamente concedido a ele o tí-



A Confissão de Barmen reafir- tulo de doutor honoris causa pela



mou teologicamente o Credo de que Universidade de Münster. Em 1948



Jesus Cristo é o único Senhor da participou na Assembléia de funda-


Igreja. Dentro das declarações ali ção do Conselho Mundial de Igre-



encontradas temos a rejeição à fal- jas. Em 1952 recebeu a Condeco-



sa doutrina de que o Estado poderia ração Britânica do Mérito pela Paz.



ultrapassar sua missão específica, Em 1954 recebeu mais uma vez o



tornando-se diretriz única e totali- título de doutor honoris causa pela


tária da existência humana, buscan- Universidade de Budapest, Hungria.



do cumprir, desse modo, a missão Em 1956 recebeu o mesmo título



confiada à Igreja 29. A reação do pela Universidade de Edinburgo,




Adilson de Souza Filho

Reich não demorou muito. Prisões



foram efetuadas e quase todos os



pastores que criticavam o governo


1
O LIVRO DE CONFISSÕES. S. Paulo: 1969. Missão
foram recrutados pelo exército.

Presbiteriana do Brasil Central, capítulo 8.23.


Exigiu-se de todos os professores das


2
BARTH, Karl. Dádiva e Louvor. Artigos Selecionados.

universidades que assinassem decla- São Leopoldo: Sinodal, 1986, p.5.








74






Escócia. Em 1959 recebeu nova- coisa, porém, tenho certeza: em seus

 REVISTA

mente esse título pela Universidade momentos de lazer, certamente tocam



de Estrasburgo, França. Em 1961 foi Mozart, e então até o Senhor se



jubilado, mas ainda foi encarregado compraz em ouvi-los31. Cabe ainda


das preleções que deram origem ao mencinonar a homenagem feita por

TEOLOGIA E SOCIEDADE

seu livro Introdução à Teologia Evan- Hans Küng por ocasião do funeral



gélica. Em 1962 viajou aos Estados de Barth, na Catedral de Basiléia;



Unidos e recebeu novamente o mes- falando como teólogo católico: Nos-



mo título pela Universidade de Chi- so tempo precisa urgentemente do


cago. Em 19 de abril de 1963, lhe ○
doctor utriusque theologiae, perito em
foi concedido o Prêmio Sonning, em ambas as teologias, evangélica e ca-

Kopenhagen, Dinamarca, por mé- tólica. E se alguém agiu de maneira



ritos especiais em favor da cultura exemplar em nosso século, este é


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


européia. Neste mesmo ano rece- Karl Barth32.



beu o título de doutor honoris cau- É por causa da brilhante biogra-


sa pela Universidade da Sorbonne, fia de Karl Barth, um dos mais ex-



Paris, França. Em 1966 foi nomea- pressivos teólogos reformados do



do Senador Honorário da Univer- século XX e ainda por causa de sua



sidade de Bonn, Alemanha. Neste aproximação teológica com o



ano Barth viajou ao Vaticano. reformador João Calvino, que pre-



Em 1968 Barth ainda proferiu cisamos nos lembrar dele nesta fes-

uma palestra acerca dos “Discursos” ta que está sendo preparada para

de Schleiermacher. Neste mesmo Calvino em 2009.



ano, já sofrendo por longa data de



várias enfermidades, em 10 de de-



zembro, faleceu na cidade da Basi-


léia, Suíça. Cabe ainda acrescentar



sobre a sua paixão pela música clás-



sica. Em 1956, quando proferiu uma



palestra sobre “A Humanidade de



Deus”, Barth assim escreveu sobre



a música clássica: Talvez os anjos,


1
BARTH, Karl. Wolfgang Amadeus Mozart. (1956),
quando desejam entoar louvores a

pp.14-15.

Deus, executem a música de Bach,


2
Encontram-se registradas tais palavras, também, na

obra de GIBELLINI, já citada anteriormente, p.31.


mas tenho minhas dúvidas; de uma






75






João Calvino
Calvino,, intérprete das




Escrituras: o homem


JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008



e o seu contexto



CALVINO



VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM








“A respeito da minha

No curto período que vai do

L ysias Oliveira Santos
reo Rodrigues de Oliveira

doutrina, ensinei fiel- ○




seu Prefácio à tradução do Novo
mente e Deus me deu a Testamento, a primeira tradução

graça de escrever. Fiz reformada da Bíblia, feita por


seu primo Olivetano (1535), até


isso do modo mais fiel


a sua morte (1564)2, Calvino


possível e nunca cor-


“passou a sua vida trabalhando,


rompi uma só passagem



Santos∗

com o uso de vários instrumen-


das Escrituras, nem


tos, na exposição da Bíblia ...”3.


conscientemente a Ele expôs as Escrituras em seus




distorci.” sermões, conferências e comen-


E O SEU CONTEXTO


Calvino 1 tários. Comentou quase todos os



livros do Novo Testamento e,



nos sermões e conferências,



além de alguns comentários pro-


priamente ditos, tratou também



de quase todo o Antigo.


* O rev. Lysias é pastor e professor do Seminário


Teológico de São Paulo (IPIB). Para uma avaliação de tão




Lysias Oliveira Santos

1
Apud Costa, Hermisten M. P. “Prefácio” in grande produção é preciso con-

Calvino, João. Comentário de Romanos. S. Paulo,


Paracletos, 1997, p. 17. siderar as condições nas quais


realizou seu trabalho. Ela se re-


2
Claude E. Labrunie, “Cronologia de João

Calvino” in João Calvino, textos escolhidos.Eduardo


ferem às suas limitações pesso-

Galasso Faria (ed). S. Paulo: Pendão Real, 2008.


ais: seu estado de saúde, dispo-


3
Holder, R. Ward, “Calvin as commentator on the

Pauline epistles” in McKim , Donald K. e outros,


nibilidade de tempo, conheci-

Calvin and the Bible. N. York : Cambridge U.


Press, 2006, p. 255. mentos específicos no desempe-








76






nho de seu trabalho, recursos para antes de nós esta tarefa e nos depa-


 REVISTA

a produção e edição de suas obras, ramos com a obra minuciosa e far-



tamente documentada de T. H. L.

L ysias Oliveira Santos


JOÃO TEOLOGIA
REVIST
REVISTA
decisão sobre as prioridades das ta-



refas a cumprir. Têm a ver igual- Parker, exposta nos livros Calvin’s


New Testament Commentaries 4,


mente com as condições culturais

A TEOL

CAL
CALVINO

próprias de seu tempo, ou seja, as Calvin’s Old Testament Commen-

TEOLOGIA

VINO
VINO,
encruzilhadas para os que pretendi- taries5 e Calvin’s Preaching6. Estes


OGIA E SOCIEDADE Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São P

E SOCIEDADE
am aventurar-se na pesquisa e ex- livros serão as principais referênci-

, INTÉRPRETE

posição da Bíblia: a encruzilhada en- as mas outras obras, logicamente,


tre o medievalismo e o humanismo; ○
serão também usadas.
entre a especulação filosófica e a

exposição pragmática; entre a aná- As limitações



lise histórica e a atualização


pessoais

Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


interpretativa, entre o estilo erudito


DAS ESCRITURAS: O HOMEM


e a simplicidade de expressão, en- Os problemas com a saúde - É do


conhecimento de todos o estado de


tre a liberdade de expressão e o com-


prometimento político. As condi- saúde de Calvino. Basta lembrar



ções referem-se finalmente à situa- como estava nos últimos quinze anos

ção em que se encontrava no seu de sua vida (1550-1564), quando se



tempo o material específico de seu dedicou ao estudo sistemático do


Antigo Testamento. Para dar cum-


trabalho: a posição da crítica textu-


al, os métodos de exposição bíbli- primento às aulas e sermões era



ca, as exigências da tradução, a es- muitas vezes transportado pelos



colha das formas nas quais iria ex- amigos a pé ou a cavalo até ao local

pressar o seu pensamento. do seu trabalho. Quando não mais



Sabemos que para desenvolver teve condições de ir até à Igreja de



um trabalho pessoal e independen-


E O SEU CONTEXTO
Paulo

aulo
aulo,, SP PÁGINAS 76 A 109

te sobre os Comentários de Calvino



é, logicamente, necessário lê-los.


Parker, T.H.L. Calvin’s New Testament Commentaries.


Mas este texto pretende ser realmen-


London: SCM Press, LTD, 1971 (a partir daqui:


Parker, New Testament).


te um material introdutório ao es-

5
Parker, T.H.L. Calvin’s Old Testament Commentaries.

tudo da literatura do grande Edinburgh: T & T, Clark Ltd, 1986 (a partir daqui:

Reformador na sua tarefa de inter- Parker, Old Testament).



Parker, T.H.L. Calvin’s Preaching. Louisville:


pretar a Bíblia. Por isso procuramos
6

Wesminster / John Knox Press, (a partir daqui: T. H.


os autores que já empreenderam L Calvin´s Preaching).








77






São Pedro, onde pregava ou à Aca- tarefas dificilmente conciliáveis para



demia onde proferia suas conferên- ele. Mesmo assim, Farel que moral-



cias, ele recebia os alunos em seu mente constrangeu-o a trabalhar em
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008



leito de enfermidade e ali transmi- Genebra, ordena agora friamente


tia suas lições. Colladon, amigo de para que ele continue com suas es-


CALVINO


Calvino, dá estas informações, com critas: “Continue, diz ele, a tornar


VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM


referencia aos comentários dos Pro- Paulo familiar a todos, de acordo



fetas Menores: “Estavam faltando com a graça que lhe foi dada”.



apenas duas ou três aulas sobre Calvino responde pacientemente:



Malaquias. Quando o impressor ter- “Quanto a sua exortação para eu


minou o seu trabalho. Calvino, para continuar a escrever, somente dese-


que a tarefa não ficasse incompleta, ○

jo que eu tenha mais tempo e me-
deu estas aulas em seu quarto para lhor saúde”.8

o número de alunos que o espaço Apesar destas dificuldades,



comportava ( por causa de sua fe- Calvino continuava a escrever em


bre, e por ser inverno, não seria bom um ritmo que espantava a todos os

para ele sair ao ar livre) e assim es- seus amigos. Vendo com que rapi-

tas aulas foram anotadas enquanto dez saiam as Epistolas Paulinas,



ele as proferia, reunidas e impres- Teodoro Beza escreveu admirado:



sas junto com a parte que já estava “Calvino não sucumbe a nenhum

E O SEU CONTEXTO

pronta”.7 destes transtornos mas escreve co-


Como o comentário de Roma- mentários cada vez mais profundos,



nos permaneceu por anos como uma como se tivesse muito tempo para

promessa solitária do anúncio de isso”.9



Calvino, de escrever comentários, E até o final da vida continuou



primeiramente das Epistolas de Pau- enfrentando seu precário estado de


lo, até completar todos os livros da saúde. Durante muitos anos sofreu

Bíblia, seus amigos ficaram horro- constantemente com febres, enxa-




Lysias Oliveira Santos

rizados ao perceber, mais tarde, que quecas, gota. Mas trabalhou sem

Genebra e o ato de escrever eram cessar até o fim. Em 1559, já em



grande sofrimento, preparou a últi-



ma edição em vida das Institutas,


em latim, bastante ampliada e em


7
Parker, Old Testament, p. 17.

seguida a verteu para o francês.


8
Parker, New Testament, p 12.

9
Parker, op. cit.. Quatro meses antes da sua morte,






78






ocorrida em 27 de maio de 1564, po necessário para o preparo destas

 REVISTA

deu sua última aula na Academia e tarefas. Colladon observa que ele



pregou seu último sermão na cate- não dispunha de tempo suficiente



dral de São Pedro.10 para preparar suas aulas. Por mais


que quisesse, ele não tinha oportu-

TEOLOGIA E SOCIEDADE

 As limitações do tempo dis- nidade, geralmente dispondo de



ponível - Em carta ao rei Eduardo menos de uma hora para se prepa-



VI da Inglaterra (1551), Calvino de- rar. Atividades estas por si mes-



clara: “Ainda que o desempenho de mas suficientes para “fazer com que


minhas obrigações me deixe muito ○
uma pessoa sentisse que havia cum-
pouco tempo, contudo, por mais prido um dia completo de traba-

curto que seja este tempo, determi- lho”.14



nei devotá-lo a este tipo de trabalho Além disso havia a preocupação


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


escrito (os comentários das Escri- no atendimento à igreja e à forma-



turas)”.11 Contudo, confessa: “Eu ção de pastores aptos ao desempe-


não tenho muito tempo para escre- nho de seu trabalho. A política ecle-

ver”.12 siástica e todas as atividades do ser-



Na verdade, o tempo de Calvino viço pastoral, a correspondência



era todo tomado. No período entre excessiva que tinha necessidade de



1539 e 1541 esteve envolvido nas manter, envolvendo réplica nas po-

discussões entre os católicos e pro- lêmicas mantidas com os adversá-


testantes em Frankfurt, Hagenau, rios, deixavam-lhe realmente pou-



Worms e Ratisbona, atividade que co tempo para escrever sobre aqui-



tomava muito tempo nas viagens e lo que não era imediatamente ne-

na preparação dos temas das confe- cessário. Um de seus secretários,



rências. De volta a Genebra prega-


va duas vezes todo o domingo, e, em



semanas alternadas, durante todos



10
“Cronologia de Calvino”, in João Calvino: Textos
os dias da semana. Proferia aulas

Escolhidos. S. Paulo: Pendão Real, 2008.


também em semanas alternadas,


11
Parker, New Testament, p. 4.

com mais de uma hora de duração. Parker, New Testament, p. 20.


12

Considerando que ministrava seus 13


“Quando estava lecionando, ele tinha apenas o

texto da Escritura, e, contudo, vejam quão bem


sermões e suas aulas sem anota-

ordenava o que dizia!” Colladon, in Parker, Old


ções13, é de se imaginar, apesar de Testament p. 21, nota 225.



sua extraordinária memória, o tem- 14


Id. ib. p.. 21, notas 25,26.






79






Nicholas des Gallars disse que para dos. “Não há qualquer dúvida de que



conferir seus trabalho com Calvino o que foi dito por Moisés era por si



era preciso aproveitar as poucas mesmo excelente e adaptado perfei-
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008



horas de folga que dispunha, e mes- tamente para a instrução do


mo assim após ler dois ou três ver- povo...Não tive outra intenção ao


CALVINO


sos, Calvino já era importunado pe- estabelecer esta ordem, a não ser a


VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM


los seus colegas.15 de ajudar aos leitores inexperientes



Por isso escrevia sobre mais de a se familiarizarem de maneira mais



um assunto ao mesmo tempo. Por clara, conveniente e aproveitável,



exemplo, em 1538, em Estrasburgo com os escritos de Moisés”.18


ao mesmo tempo em que redigia seu Os críticos estão lembrando


comentário sobre Romanos, prepa- ○

sempre as suas deficiências em al-
rava também as conferências sobre gumas áreas específicas, necessári-

1 Corintios, que seriam proferidas as para o bom entendimento do tex-



no ano seguinte.16 to bíblico. Põe-se em dúvida, por


exemplo, os seus conhecimentos em



 Estava Calvino preparado geografia. Ele mesmo confessa: “Eu



para ser um comentarista da Bíblia? já disse que não sou muito diligente

- Fala-se da capacidade de Calvino na procura e na identificação de



no cumprimento específico da ta- nomes e lugares Particularmente



E O SEU CONTEXTO

refa de comentarista da Bíblia. Ele confesso, não me especializei em


mesmo reconhece as limitações de topografia e geografia, principal-



seu trabalho. No prefácio das Epís- mente porque tal esforço de minha

tolas Paulinas avisa: “Não tomem parte seria de pouco proveito para

nossos comentários como oráculos o leitor”.19 Igualmente tem-se dis-



divinos. É humano errar.” Declara cutido a sua competência no cam-


ainda que tem em vista preparar os po da história. Uma avaliação pon-



que vão se iniciar no estudo das Es- derada contudo, é que “embora


Lysias Oliveira Santos

crituras e por isso seu trabalho pode



pecar pela brevidade e pelo esforço



em seguir de perto as Palavras do 15


Id. ib. p 24.

apóstolo.17 Por isso age com muita 16


Id. ib. p 11.

humildade e pede desculpas por ten-


17
Parker, New Testament, p. 41.

tar por em ordem os textos bíblicos


18
Parker, Old Testament, pp. 93, 94.

a fim de que sejam melhor entendi- 19


Parker, id,.ib. p.36, nota 71.






80






Calvino não tenha atingido os que ele traduz o mesmo verso bíbli-

 REVISTA

cânones da historiografia moderna, co. Com respeito, por exemplo, às



e esperar tal coisa seria um anacro- traduções dos comentários de



nismo, ele usa instrumentos de Gênesis e Isaias, fica-se em dúvida


grande poder no esforço de chegar se ele mesmo traduziu, se alguém

TEOLOGIA E SOCIEDADE

ao conhecimento das Escrituras no anotou de suas conferências, se fo-



seu sentido pleno, bem como a tra- ram tomadas de uma edição impres-



dição da interpretação da Igreja”.20 sa, tal é a profusão de versões nos



Calvino está ciente de que o co- comentários, nas conferências e nos


mentarista tem de possuir uma ○
sermões.23
mente enciclopédica para poder tra- Contudo, dada a sua formação

tar dos variados assuntos presentes humanista e sua experiência no co-



no texto analisado, mesmo sem ser mentário de clássicos latinos24, con-


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


um especialista na matéria em ques- segue bom domínio nas línguas gre-



tão. Ao tratar, por exemplo, do caso ga e hebraica e no latim, língua na


da lepra no Antigo Testamento, fala qual redigiu a maior parte dos seus

da doença declarando, porém, escritos. Sobre este assunto escre-



“Confesso que não sou médico, ca- ve R. Ward Holder: “Fica claro tam-

paz de discorrer a respeito dos pon- bém que Calvino sente-se em casa

tos mais exatos. Por isso, no trato com o grego, discutindo



deliberadamente esquivo-me de frequentemente com Erasmo a res-


uma investigação mais precisa por peito da apropriada tradução para



estar seguro de que a forma parti- o latim”.25 Seu grande aprendizado,



cular da doença aqui mencionada foi porém, aconteceu enquanto comen-



muito espalhada entre os israelitas,



mas é hoje desconhecida”.21 Tem


igualmente coragem suficiente para


20
Holder, R. Ward, “Calvin as commentator on the

declarar suas dúvidas e seu desco- Pauline epistles” in McKim, D. K. e outros, Calvin and

the Bible. Cambridge: Cambridge University Press,


nhecimento na hora de optar por

2006.

uma interpretação.22 21
Parker, Old Testament,p. 96.

Discute-se também o seu domí- 22


Parker, New Testament, pp. 132,134.

nio das línguas originais, principal- 23


Parker, Old Testament, p. 37, nota 72.

mente o hebraico, porque as suas


24
Por exemplo, o seu comentário a De Clementia de

Sêneca ,publicado em 1532, Parker, New Testament,


traduções são aparentemente im-

p. 49.

provisadas e podem variar cada vez Holder, R. W, op. cit., p. 247.


25





81






tava26, aí demonstrando possuir as dos chegavam a Genebra. Na falta



qualidades próprias de um grande de trabalho, eram também chama-



comentarista: respeito à fala do au- dos para auxiliar Calvino na reda-
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008



tor, percepção do sentido total do ção dos textos.29 Até alunos eram


texto analisado e sua relação com aproveitados nesta atividade.30


CALVINO


as partes componentes e a habilida- Os secretários seguiam um pla-


VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM


de em comunicar o que ele mesmo no: cada um estava a postos com o



ouviu.27 E estas qualidades foram se papel e tinta necessários e tomava



completando com a experiência de as notas em grande velocidade e se



quem passou a vida examinando o uma palavra escapava de um deles,


texto sagrado, discutindo, trocando era conferida depois com o outro.


informações com os colegas e mes- ○

Imediatamente após a leitura, um
tres que se mostravam mais capa- deles pegava as anotações dos ou-

zes nas diversas áreas das atividades tros dois e as comparava com as suas

que envolvem a interpretação de próprias e depois ditava para um


textos, lendo e revisando para que outro secretário aquilo que eles es-

tudo saísse da forma a mais perfei- creveram apressadamente. Lia mais



ta possível. uma vez antes de conferir o texto



com Calvino, queixando-se do pou-



 Precariedades da época no co tempo que o Reformador dispu-



E O SEU CONTEXTO

campo da editoração - Eram gran- nha para fazer este acerto final.31

des também as limitações relacio- Enquanto Calvino redigiu prati-



nadas à produção e impressão do camente a totalidade dos comentá-



material escrito. Quando escreveu rios do Novo Testamento, quase to-



o Comentário de Romanos, tudo dos os do Antigo Testamento foram



indica que ele mesmo redigiu o tex- redigidos com a ajuda de secretári-

to completo. Multiplicando, porém,



suas atividades e com o agravamen-




Lysias Oliveira Santos

to de suas enfermidades, Calvino



teve de lançar mão de auxiliares 26


Holder, R. W, op. cit., p. 225.

para registrar sua volumosa produ- 27


Parker, New Testament,p. 26.

ção.28 Ele contava com o auxílio de 28


Parker, New Testament, p. 20.

secretários contratados para esta


29
Parker, Old Testament, p. 11.

tarefa. Devido à guerra e às perse- 30


Parker,id.ib, p.26.

guições religiosas, muitos refugia- 31


Parker, New Testament, pp. 21, 22.






82






os. Calvino queixava-se e até mes- com os outros comentários. Calvino

 REVISTA

mo se desculpava por não poder ter passou em seguida a imprimir seus



apresentado o trabalho como32 gos- livros em Genebra, com João



taria de fazer. Curiosamente chega- Girard, que, entre outras vantagens,


va a censurar o excesso de fidelida- possuía tipos em caracteres

TEOLOGIA E SOCIEDADE

de dos escribas, achando que deve- hebraicos.34



riam melhorar a qualidade literária



do texto.33  Dificuldades na definição



A estas dificuldades acrescem os das prioridades - Mediante tantas di-


problemas ligados à publicação de ○
ficuldades, Calvino relutou durante
seu trabalho. Seu primeiro editor, bom tempo a dedicar-se à produção

ainda em Estrasburgo era de comentários bíblicos. Embora



Wendelinus Rihelius, o qual socor- consciente de que suas atividades


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


reu Calvino em uma época de pri- literárias, desde quando abraçou a



vações financeiras, ajudando-o não causa da Reforma, o encaminhas-


apenas na publicação de seus livros sem para uma dedicação específica



mas também na solução de seus na exposição da Bíblia35, somente



compromissos. Em gratidão ao mais tarde é que se rendeu ao apelo



amigo, Calvino ofereceu a ele a pu- de sua vontade. Algumas razões ali-

blicação dos comentários que ainda mentaram a sua indecisão.



viria a escrever. A primeira foi a sua profunda


Mudando, porém, para Genebra, convicção de que estava a serviço da



a mais de duzentas milhas de dis- Igreja. Ele tinha no pastorado a sua



tância, as dificuldades de comuni- tarefa imediata e relutava em assu-



cação dificultaram em muito as pu- mir outra atividade que não estives-

blicações. Exemplo disto é o que se ligada imediatamente às necessi-


aconteceu com o comentário da 2ª. dades da Igreja. Só quando sentiu



Carta aos Corintios, cuja copia ex- que a Igreja necessitava de uma ex-

traviou-se por um período de mais posição clara das Escrituras para



de um ano. Por conta disto aconte-



ceu algo que os historiadores ainda



não sabem explicar, O Comentário Parker, Old Testament, p. 25.


32

de 2ª. Corintios foi publicado pri- Parker, id.ib. p. 27.


33

Parker, id. .ib. pp. 12-16.


meiro em francês e depois em la-
34

35
Parker, New Testament, p.6.
tim, ao contrário do que aconteceu






83






alimentar nos fiéis a fé propagada Bucer antecedeu-me neste trabalho,



pela Reforma é que sentiu a impor- com a sua sólida cultura, diligência



tância de uma exposição clara e ob- e fidelidade e, então, não havia mui-
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008



jetiva da Bíblia.36 ta necessidade de minha participa-


Nesta perspectiva estava preocu- ção nesta tarefa”. 38 Igualmente,


CALVINO


pado com o tipo de exposição bíbli- quanto ao comentário de Romanos,


VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM


ca que era mais útil para a instrução está consciente do valor dos comen-



dos fiéis. Procurou então em seus taristas da Igreja Antiga, Idade Mé-



sermões e aulas desenvolver uma dia e dos seus contemporâneos



atividade doméstica, em linguagem como Melanchthon, Bullinger e so-


simples e adaptada às circunstânci- bretudo Bucer. “De inicio temi ser


as de vida de suas igreja locais. Para ○

tomado por imprudente e arrogan-
isso em vez do latim, a língua dos te se tentasse tal empreendimento

grandes tratados, optou pela língua depois de outros tão excelentes tra-

do povo, o francês, pois o que ensi- balhos”. De início pensou em escre-


nasse era para ser entendido e era ver apenas resumos mais

nesta língua que o povo entendia. simplificados,mas depois tomou



Optou também por uma exposição coragem e seguiu em frente com o



que ele mesmo considerava de qua- seu projeto.39



lidade literária inferior à dos gran- Logo que tomou ciência dos “es-

E O SEU CONTEXTO

des tratados.37 Mais tarde, quando plêndidos e duradouros dons”40 ou-


passou a produzir em latim a sua torgados por Deus a Calvino, no



obra, procurava mesmo assim tra- entendimento das Sagradas Escritu-



duzi-la para o francês a fim de que o ras, a liderança do movimento re-



povo também dela participasse. formado começou a cobrar dele a



Várias vezes também ele fez re- publicação dos comentários. Eles

ferência ao fato de já existir desde esperavam impacientes que Calvino



os primeiros tempos do cristianis-




Lysias Oliveira Santos

mo e, principalmente nos seus dias,



grandes eruditos que deixaram im-



portantes exposições dos livros do 36


Parker, id. ib.

Antigo e do Novo Testamento. Ele 37


Parker Old Testament, p 30.

hesitou em escrever um comentá-


38
Parker, op.cit. p. 30.

rio dos Salmos, “porque o mais fiel 39


Parker, New Testament, pp. 9 e 27.

doutor da Igreja de Deus, Martin 40


Parker , op. cit. p 24.






84






saísse de sua indecisão e iniciasse de vas experiências no campo do co-

 REVISTA

imediato tão importante tarefa. Fi- nhecimento recebem o nome geral



cavam horrorizados ao testemunha- de humanistas. O humanismo, no



rem o desperdício de tão urgente contexto do século XVI busca uma


oportunidade. Perceberam que o aproximação do estudo às fontes e

TEOLOGIA E SOCIEDADE

material produzido por Calvino era não a um axioma particular de uma



excelente subsídio para a difusão dos dada disciplina. 42 Os ideais



princípios da Reforma, especial- humanistas estão bem ilustrados nas



mente nos redutos de resistência. instruções de Bullinger, amigo e su-


Diante de tal pressão, Calvino per- ○
cessor de Zuínglio a um jovem que
cebeu que a sua produção seria deseja se preparar de acordo com

publicada sem a sua supervisão e até os ideais da Renascença. A respos-



mesmo sem o seu consentimento, ta, em resumo, é que o jovem deve


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


e por isso assumiu definitivamente dividir os seus dias com prudência,



a tarefa.41 reservando tempo para alimentar-


se, dormir e descansar. Sua leitura



deve ser seletiva, os melhores assun-



As limitações tos e os maiores autores, com des-



taque para Sêneca e Cícero. Se-


culturais

guem instruções de como ler filo-


Para uma avaliação do trabalho


sofia, poesia, oratória, etc., para che-


de Calvino na exposição da Bíblia gar à orientação sobre o estudo da



tem de se levar em conta as grandes Bíblia.



mudanças que se operavam em seu “Calvino foi treinado por



tempo em todos os ramos da cultu- humanistas, usou os instrumentos



ra e do conhecimento. É preciso dos humanistas e nunca deixou o


notar as transformações no campo campo dos humanistas”.43 Contu-



da história, do pensamento, da in- do nem todos os estudiosos de



terpretação da religião cristã, da Calvino concordam que ele se com-



política e do desenvolvimento ético porta como um autêntico humanista



e social.


 Encruzilhada histórica. Os

41
Parker, op cit. pp. 25, 12 e 18.

intelectuais que estavam saindo da


42
Holder, R. W, op. cit. p. 238.

milenar cultura medieval para no- Holder, R. W, op. cit, p. 236.


43





85






em suas exposições e comentários em vez de tentar o enquadramento



da Bíblia. Alguns acham que ele ba- de Calvino bem como de outras au-



lança entre dois pólos, um profun- toridades da Reforma dentro de
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008



do impulso tradicional representa- uma definição acadêmica, é preciso


do por um esforço no sentido de saber o que cada reformador lia, em


CALVINO


construir instrumento de controle que foram formados, para quem


VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM


cultural e espiritual e, do outro lado, estavam escrevendo, qual a posição



trabalha contra isto, com obstinada anterior da igreja sobre o que esta-



originalidade, rebelando-se ao ex- vam interpretando,45 incluindo a in-



tremo contra estas mesmas estru- terpretação medieval. Ao aplicar


turas. Outros pesquisadores, ao exa- este teste a Calvino concluiremos


minar o humanismo de Calvino e ○

com Bernard Cottret, biógrafo do
sua maneira de comentar a Bíblia, Reformador, que ele tinha “um pé

acham que ele opta conscientemente no século quinze e outro no século



por uma retórica de interpretação dezesseis”.46


bíblica que critica a retórica



humanista. Outros acham que em Encruziliada filosófica - Com



sua hermenêutica Calvino limita-se respeito ao posicionamento filosó-



a uma postura mental essencialmen- fico, Calvino, junto com os outros



te medieval.44 intelectuais da Reforma usa os



E O SEU CONTEXTO

Contudo é difícil colocar Calvino ensinamentos dos filósofos de uma


em uma moldura cultural determi- forma prática, aplicando-os em si-



nada, por causa da variedade for- tuações específicas de seus comen-



mal e qualitativa de sua produção tários. Aristóteles é lembrado por



escrita. Esta variedade em primeiro causa de seu método que é larga-



lugar está implícita no próprio ma- mente usado pelos intelectuais do


terial examinado, quer seja o con- Resnascimento.47 Melanchthon o



teúdo dos textos bíblicos ou as dife- usa desde seus tempos de juventu-


Lysias Oliveira Santos

rentes interpretações que ele preci- de, nos seus documentos bíblicos e

sa comentar, refutar, complemen-



tar. Também decorre das diferentes


44
Holder, R. W, op cit. p. 250.

origens de seus comentários, vindas


45
Holder, R. W. op. cit p. 245.
de seus sermões, aulas, pesquisas di-

46
Holder, R.W. op. cit. p. 251, nota 105.
retas e criadas também em situa-

47
Parker, New Testament, p. 29.

ções diversas de produção. Por isso








86






seculares.48 Em seu livro de teolo- Platão e a outros clássicos para a

 REVISTA

gia sistemática, Loci Communes, interpretação de alguns textos gre-



aplica-o na sua análise de Roma- gos.53



nos.49 Bucer alia este método com O uso que Calvino faz das cate-


outros para explorar os axiomas gorias filosóficas pode ser ilustrado

TEOLOGIA E SOCIEDADE

(loci) presentes nos textos 50. com o termo substância. Ele define



Calvino não rejeita o método substância assim: “Por ‘substancia’



aristotélico em si, mas critica seu eu entendo o ensino (doctrina ), pois



uso indiscriminado, pois leva o co- no Evangelho Deus traz às claras


mentarista a concentrar-se apenas ○
nada mais do que aquilo que está
nos pontos principais (loci), deixan- contido na Lei”54. A partir daí ele

do de lado muitos pontos que po- emprega o termo no sentido platô-



dem ser de interesse do leitor.51 Os nico para explicar que a Lei era a

Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


intelectuais do Renascimento viam sombra de uma realidade posteri-



em Sócrates uma autoridade em fi- or55 Ao tratar das diferenças entre


losofia, assim como Paulo foi uma o Antigo e o Novo Testamentos ele

autoridade em teologia. Calvino re- emprega o termo para opor as for-



jeita esta comparação, afirmando mas de exposição e o sentido único



que a autoridade do Apóstolo vem dos dois Testamentos56; usa ainda



da iluminação que recebeu do Espí- como o oposto da forma57; no sen-



rito Santo.52 Os pensamentos de tido espiritual em oposição ao rito


Platão são usados no mesmo pé de cerimonial58 e à natureza intrínseca



igualdade com porções bíblicas nos do ser humano.59



livros para o ensino da língua grega. Calvino introduz na exposição



Calvino recorre muitas vezes a das Escrituras o termo “filosofia








48
Parker, op. cit. pp. 29, 30. 54
Parker,op. cit.p. 51.

49
Parker,op. cit. p. 34. 55
Parker,op.cit; p. 52.

50
Parker,op. cit. p. 45. 56
Parker,op.ct, pp. 50, 62.

51
Parker,op. cit. pp. 49, 50. 57
Parker,op cit. pp. 137, 151.

52
Parker, op.cit p. 75. 58
Calvino, João. Romanos. São Bernardo do Campo:

Paracletos, 1997, p. 103.


53
Parker, op. cit.p. 81.

59
Id. ib. p. 117.







87






Cristã”. Já Erasmo fala de uma entre uma posição marcionita de



philosophia Christi, uma forma de aceitar só o Novo Testamento e uma



misticismo e faz uma chamada a supervalorização do Antigo.62
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008



todas as pessoas para estudar a filo- Calvino, já que se decidiu por ser


sofia cristã, uma aproximação a um intérprete da Bíblia, tinha de


CALVINO


Cristo, o verdadeiro professor. O tomar posição sobre o assunto. Em


VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM


Cristo de Erasmo é filosofo divino linhas gerais, como os demais



que expõe a sabedoria do Pai.60 Em- reformadores, sustentou a posição



bora não tenha este pensamento, tradicional da aceitação dos dois



Calvino entende a filosofia cristã Testamentos. Quanto à composição


como uma sorte de hermenêutica.. do Cânon ele é menos crítico do que


Ele declara que escreveu as ○

seus contemporâneos Erasmo e o
Institutas para resumir os principais próprio Lutero, não reconhecendo

assuntos da filosofia cristã. Para os a autoridade dos Concílios para de-



que estudam as Escrituras é crucial finir a matéria63 e deixando ao Es-


que se armem com o conhecimen- pírito Santo não apenas a delimita-



to da filosofia cristã, com todos os ção do Cânon, mas também a solu-



seus axiomas, pois “o conhecimen- ção de problemas mais complicados



to de todas as ciências não passa de como a autoria de Hebreus. Por isso



fumaça quando separado da ciência as razões para não comentar alguns



E O SEU CONTEXTO

celestial de Cristo”.61 livros da Bíblia nada têm a ver com


a sua aceitação ou não como



 Encruzilhada teológica - A canônicos.64



análise bíblica se defrontou, desde Quanto à linha interpretativa,



os seus inícios, com o problema da Calvino, seguindo também a ten-



relação que a comunidade cristã ti- dência dos reformadores, aproxima-


nha de estabelecer entre os dois Tes- se mais dos Pais e dos teólogos con-

tamentos, polarizada de um lado




Lysias Oliveira Santos

pela posição marcionita e do outro



pelos judaizantes. No século


60
Parker, New Testament, p 67.

dezesseis a questão estava mais ou


61
Holder, R. W. op. cit. pp. 234, 252, 255; Calvino,

menos assim: a tradição cristã ofi- Romanos, pp. 13, 109.


cial aceitava os dois Testamentos, os Parker, OLd Testament, p. 44.


62

Parker, New Testament, p. 71.


livre pensadores desconfiavam de
63

64
Parker, op. cit. p. 73.
ambos e os anabatistas oscilavam






88






temporâneos, opondo-se em geral reinado, os preceitos morais, tudo,

 REVISTA

ao pensamento da Escolástica.65 Isto aponta, de uma maneira ou de ou-



reflete-se mais claramente em dois tra para Cristo.70 O procedimento



posicionamentos quanto ao comen- metodológico de Calvino para de-


tário da Bíblia: o estudo em seqüên- senvolver esta interpretação teoló-

TEOLOGIA E SOCIEDADE

cia dos livros completos e não de gica da Bíblia, principalmente o con-



pequenas porções do texto e a ex- fronto entre a interpretação literal



posição direta do conteúdo dos li- e a interpretação alegórica será ana-



vros e não sua redução aos chama- lisado na terceira parte deste traba-


dos axiomas da fé. Os Pais preferi- ○
lho. É importante observar aqui que
dos são: Crisóstomo, Agostinho, a as próprias prioridades esta-

Orígenes, Jerônimo e Ambrósio. belecidas por Calvino nos seus Co-



Para ele, Orígenes é o maior dos mentários revelam esta posição te-

Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


comentaristas66. Isto não o impede, ológica. Ele começa pela parte cen-

porém, de discordar dos Pais ou de tral do “tutano” da Bíblia, na lingua-


aceitar a interpretação de um gem de Lutero, o livro de Roma-



escolástico67. Seus contemporâne- nos,71 passando aos outros livros do



os preferidos são Bucer, Bullinger e NT Para depois chegar ao AT. Além



Melanchton, embora também elo- disso escreveu os comentários com-



gie largamente a Escolampádio.68 pletos do NT, ao passo que a maior



Quanto a estes comentaristas, vol- parte do AT foi composta por se-


taremos na parte final ao comparar- cretários a partir de notas.



mos o trabalho de Calvino com o



dos outros comentaristas do século   Encruzilhada política -



dezesseis. Logicamente o ambiente tumultua-



A opção pela leitura cristológica do pelo panorama político da Euro-


da Bíblia, Calvino já a manifesta no



plano de composição das Institutas.



Não é sem propósito que o título 65


Parker, op cit. p. 88.

do Segundo Livro é Sobre o Conhe- 66


id. ib. p 62.

cimento do Deus Redentor em Cris- 67


Parker, op. cit. pp.. 73 e 90.

to, primeiro manifestado aos Pais sob 68


Parker, op cit. pp. 87, 88.

a Lei e em seguida a nós no Evange- Parker, Old Testment, p. 45.


69

Id. ib.
lho. 69 Assim toda a Lei: os sacrifíci-
70

71
Parker, New Testament, p.71.
os, as cerimônias, o sacerdócio, o






89






pa na época de Calvino interferiu no “cristianíssimo rei da França”, ele



desempenho de seu trabalho. Para dedicou os seus comentários tam-



ficarmos com três exemplos, pode- bém a pessoas importantes. Um
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008



mos lembrar os transtornos causa- caso curioso refere-se à dedicatória


dos com o seu exílio forçado em do Gênesis. Quando publicado em


CALVINO


Estrasburgo (1538-1541) e a sua separado (1554) foi dedicado a João


VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM


volta para Genebra, o que dificul- Frederico, João Guilherme e a um



tou principalmente o serviço de im- segundo João Frederico, duques da



pressão de seus comentários.72 Saxônia e à eterna memória de ain-



As guerras que agitavam a Euro- da outro João Frederico, também


pa também interferiram diretamen- duque da Saxônia. Mas quando,


te em seu trabalho. Calvino queixa- ○

mais tarde, foi publicada a coleção
se a seu amigo M. de Falais, resi- do Pentateuco, as necessidades de

dente em Estraburgo: “Se a guerra apoio político mudaram e a obra foi



não tivesse dado umas férias às ca- dedicada ao duque de Navarra, o


sas impressoras, eu já teria enviado futuro Henrique IV da França.75 No



(para Rihelius, seu editor em Edim- caso de 1 Corintios, contudo, não



burgo) Gálatas. Mas como houve motivação política, pois o li-



Corintios ainda está dormindo pre- vro foi dedicado a Melchior Wolmar,

guiçosamente em sua mesa, não há seu antigo professor de grego em



E O SEU CONTEXTO

necessidade de pressa de minha par- Bourges.76


te”.73 Um acontecimento de ordem Suas preocupações políticas apa-



político-religiosa, porém, foi favo- recem no tratamento de diversos



rável à produção dos Comentários. temas relacionados com o assunto.



Algumas pessoas perseguidas que Ao falar da honestidade de José no



acharam abrigo em Genebra servi- Egito, no cumprimento de seus de-


ram de secretários na compilação veres, comenta “Meu desejo é que



de seus sermões e aulas. 74 os nobres de hoje mostrem o mes-




Lysias Oliveira Santos

Calvino, utilizando-se de um re-



curso comum nos tempos de per-



seguição, dedica os seus livros a pes- 72


Parker, New Testament, p. 14.

soas de grande prestigio político, no 73


id. ib.

intuito de conquistar simpatia e pro-


74
Parker, Old Testamen, p. 11.

teção. Na esteira da dedicatória das 75


Parker, op. cit, p. 32.

Institutas a Francisco I, 76
Parker, New Testament, p. 14.






90






mo espírito”.77 Ele recorre ao Direi- A encruzilhada ético- social -

 REVISTA

to Romano para condenar a Três aspectos, pelo menos, estão



corrupção, o não cumprimento de presentes hoje, na avaliação do mo-



contratos, os falsos pesos e medi- delo da Reforma implantada sob a


das, as atitudes que “destroem a so- liderança de Calvino em Genebra:

TEOLOGIA E SOCIEDADE

ciedade dos homens”.78 Há diferen- a orientação sócio-econômica, os



ças entre os tributos devidos na le- rigores da moral exigida da popula-



gislação mosaica e os impostos pa- ção e a atitude em relação às mino-



gos ao Estado. Aqueles são provas rias marginalizadas.


do reconhecimento do senhorio de ○
Os assuntos relacionados com a
Deus e devem ser feitos com plena economia sempre despertaram o

consciência e consentimento. Estes interesse de Calvino.82 Um exem-



nem sempre apresentam tal reco- plo, extraído de seus comentários,


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


nhecimento da autoridade superior é o tratamento que dá à questão da



e em conseqüência nem sempre são posse da terra na lei mosaica. Aqui


um ato voluntário.79 parece que Calvino apresenta duas



Com respeito à forma de gover- interpretações diferentes. Por um



no que tenta imprimir em Gene- lado trata o assunto dentro da reali-



bra, Calvino pensa em um Estado dade do seu tempo: Deus é senhor



“cujas leis políticas não se referem da terra, um investidor, e os judeus



aos problemas terrenos, pois elas seus arrendatários, daí a necessida-


existem para que as pessoas sejam de lógica do pagamento de tributos.



treinadas para a veneração de Por outro lado, Deus é o pai amo-



Deus”. Assim ele não separa as leis roso que dá a seus filhos a boa terra

do Estado das Leis da Igreja. As leis para nela livres viverem e dela se

políticas mosaicas que ainda fazem


sentido na realidade contemporâ-



nea devem ser aplicadas por este


77
Parker op. cit. p. 111.

Estado Cristão, pois, “Leis políti-


78
Parker, op. cit. p. 158.

cas não se relacionam apenas com


78
Parker, Old Testament, p. 139.

os afazeres terrenos”. 80 Enfim,


79
Parker, op. cit. p. 152.

Calvino queria fazer com que a Bí- 80


Parker, op. cit. p. 39.

blia parecesse muito com a sua


81
Parker, Old Testament, p. 139.

Genebra.81

82
Parker, op. cit. p. 141.







91






alimentarem.83 Na prática, Calvino O rigoroso modelo de conduta



aceita a situação vigente, concorda, cristã imposta por Calvino na comu-



por exemplo, com a cobrança de nidade de Genebra, contudo, pare-
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008



juros, exigindo, porém, o fiel cum- ce estar mais longe desta lei


primento dos contratos estabeleci- conduzida pelo amor e que leva a


CALVINO


dos, condenando os falsos pesos e um ambiente de alegria e de liber-


VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM


as falsas medidas, o desrespeito à dade. Aproxima-se, isto sim, mais



propriedade do outro, o enriqueci- do rigor imposto pela Lei mosaica,



mento às custas do próximo ou por com o seu tom ameaçador, que in-



meio de artimanhas ilícitas. 84 duz as pessoas ao seu cumprimento


Tratando-se das observâncias da pelo medo da condenação. Um


lei moral, Calvino declara que o ○

exemplo tirado de seus Comentári-
amor é o centro da sua interpreta- os: sobre a purificação da mulher

ção biblica,85 pois o amor é o fim da após o parto, embora, por um lado

Lei5, e, portanto, a livre afeição é o condene como estúpida e fora do


fundamento, a forma principal da contexto, a interpretação da



perfeita observação da Lei, e aquilo Escolástica segundo a qual Deus as-



que é arrancado pela força ou por sim o exigia porque a prática sexual

temor servil não pode agradar a era apenas por prazer e não para a

Deus,86 embora em alguns casos es- procriação, por outro lado, afirma

E O SEU CONTEXTO

tabeleça restrições à lei do amor que a relação sexual por si mesma


priorizando os direitos individuais.87 sem o ideal da procriação é obsce-



Além disso, o Novo Concerto, com na e vergonhosa.89



o livre perdão em Jesus Cristo trans- Calvino analisa os textos bíblicos



forma a consciência de quem, se- que falam dos marginalizados, os



gundo a Lei sentia-se transgressor


da lei moral, assustado pelas amea-



ças de punição com a consciência Parker, op. cit. pp.. 157-159.


83

Lysias Oliveira Santos

atormentada, impossibilitado de 84
Parker, op. cit. p. 157.

obter a vida eterna, em uma situa- Parker, op. cit. p. 156.


85

ção onde a alegria substitui o medo, Parker, op cit. p. 121.


86

Parker, op. cit. p. 159.


a consciência passa ver na Lei uma
87

88
Parker, op. cit. pp. 54, 124.
bênção e um livre dom do amor de

89
Parker op. cit. p. 141.
Deus.88








92






órfãos, as viúvas, o escravo, o lepro-  Calvino entre a exegese e a

 REVISTA

so, mais em seu sentido espiritual. hermenêutica – Os críticos estra-



Quanto à situação da mulher, por nham que, na análise dos documen-



exemplo, ele explica que o tempo tos bíblicos, Calvino se encontre bem


da purificação da mulher é maior avançado para a sua época, ao pas-

TEOLOGIA E SOCIEDADE

quando ela dá à luz uma menina, e so que, na interpretação dos mes-



isto não por questões médicas, mas mos pareça bastante conservador.91



religiosas. E ele cita três interpreta- A exegese, entendida como a tarefa



ções correntes, todas, realmente, de de alcançar o mais completo senti-


sentido religioso.90 ○
do do texto,92 consistia, dadas as li-
mitações a serem expostas nas pá-

Restrições no ginas seguintes, em tarefa árdua



para Calvino, ao passo que a


campo da

Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


hermenêutica (do grego hermeuein,


exposição bíblica

explicar, interpretar), também en-


tendida como o conjunto de princí-


Além das limitações impostas


pios desenvolvidos para a exposição


pelas suas condições de trabalho e


da Bíblia,93 exercia uma forte pres-


pelo universo cultural que o rodea-


são sobre Calvino e todos os que se


va, Calvino enfrenta também as li-


aventuravam a explicar a Bíblia no


mitações dos instrumentos de tra-


começo do século XVI.


balhos à disposição no seu tempo.

Esta pressão começa com o pró-


Dada a complexidade da Bíblia: li-


prio texto bíblico, que propõe ser


vro escrito em outras línguas, há al-


uma mensagem aplicada a cada si-


guns milênios atrás, com um sem


tuação. Sobre Paulo, Calvino escre-


numero de interpretações já feitas,


ve que o apóstolo “seguiu a versão


as tarefas a serem enfrentadas e os

grega (Septuaginta), a qual também


instrumentos à disposição referem-


adaptou ao seu melhor propósito.


se: à relação entre exegese e


Sabemos que ao citar a Escritura,


hermenêutica, à determinação dos



melhores textos nas línguas origi-



nais, aos métodos de tradução, aos 90


Parker, op. cit. p. 142.

métodos de interpretação exegética


91
Holder, R. W. op. cit. p. 250.

e à linguagem a ser adotada no tra- 92


Holder, R. W. op. cit, p. 252, nota 113.

balho. 93
Holder, R. W. op. cit. p. 251, nota 110.







93






os apóstolos às vezes usavam uma Calvino. Embora os dois níveis se



linguagem mais livre do que a do interpenetrem, eles se desenvolvem



original, desde que ficassem satis- separadamente. É como se o nível
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008



feitos se o que citavam se aplicasse interpretativo se apresentasse qua-


bem ao seu tema, e daí não se preo- se inconscientemente, como um


CALVINO


cupavam muito com o uso (rigoro- pressuposto para o resultado final


VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM


so) das palavras”.94 Este costume é da análise. Assim, na hermenêutica,



já encontrado na Patrística, até em Calvino mostra-se mais conserva-



Agostinho um dos dois Pais preferi- dor, mais próximo de Agostinho,



dos de Calvino95 e se torna de largo seu teólogo preferido, ao passo que


uso na Escolástica, quando em ge- no afazer exegético Calvino escolhe


ral a exposição direta do texto é ○

conscientemente seus instrumentos
substituída pelos axiomas de fé. de trabalho, aproximando-se mais

Melanchton, o grande comentaris- de João Crisóstomo, seu intérprete



ta bíblico da Reforma, exercitava os preferido da Patrística.98


seus alunos na procura dos breves



tópicos (loci) que representassem  Manuscritos bíblicos à dis-



genuinamente o significado do do- posição de Calvino - Desde os tem-



cumento.96 pos de Orígenes, colecionador de



O papel que Calvino desempe- manuscritos do Antigo Testamen-



E O SEU CONTEXTO

nha na implantação da Reforma e to,99 a crítica textual bíblica, tarefa


na administração da cidade de Ge- de colecionar, comparar e avaliar do-



nebra faz com que seus escritos es- cumentos antigos da Bíblia, vai apre-

tejam profundamente marcados sentar um grande impulso, princi-



pela polêmica religiosa e pela sua palmente na área do Novo Testa-



atuação pastoral e administrativa.


Por exemplo, ao comentar Dt 23.



9-14, fala da importância da cons-




Lysias Oliveira Santos

trução de latrinas como treinamen- 94


Calvino, João, Exposição de Romanos. S. Bernardo

do Campo: Pasracletos, 1997, p 110.


to para o combate às impurezas fí-


95
Holder, R. W., op. cit. p. 251.

sicas, morais e espirituais.97


96
Parker, New Testament, p. 32.

R. W. Holder propõe uma solu-


97
Parker, Old Testament, p. 147.
ção para se entender o porquê da

98
Holder, op. cit., pp. 251, 252.

diferença entre os níveis herme-


Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica. S. Paulo:


99

nêutico e exegético na obra de Novo Século, 1999, p. 206.








94






mento, exatamente nos tempos de vreiros da Basiléia aproveitando a

 REVISTA

Calvino quando, depois do burocracia papal na aprovação da



pioneirismo de Lourenço de Valla obra, fizeram com que Erasmo se



(1405 -1457), 100 aparecem três apressasse na preparação do seu tex-


grandes especialistas empenhados to, no qual reconhece, ele mesmo,

TEOLOGIA E SOCIEDADE

na publicação do texto grego do muitas falhas. Além disso ele, cum-



Novo Testamento: Erasmo de prindo promessa aos editores, in-



Roterdam, cujo texto de seu Novo cluiu o famoso “coma joanino” so-



Testamento Grego alcançou 29 edi- bre a Trindade (I Jo 5. 6-8), presen-


ções no período de 1516 a 1560,101 ○
te só em alguns manuscritos do seu
Roberto Estêvão, o qual “editou o tempo.104 Beza, que em uma edição

primeiro Novo Testamento Grego ge- própria do Novo Testamento Grego,



nuinamente crítico”102 e Simão não incluiu os Maiúsculos que co-


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


Colineu, que publicou em 1534 “o nhecia, fez duras críticas ao traba-



mais interessante e avançado texto lho de Colineu, impedindo sua di-


grego do Novo Testamento no sécu- vulgação. Posteriormente as grandes



lo XVI”.103 Além disso, começa o autoridades no assunto, Bengel e



tempo do aparecimento dos grandes Gregory afirmaram que se não fos-



manuscritos Maiúculos, com os dois se a intervenção de Beza, a crítica



documentos divulgados por Beza textual teria encurtado caminho e



(“D”) em 1582, tempo que só será produzido um bom texto grego há


superado com a descoberta dos pa- cem anos atrás.105 Calvino criticou

piros do Novo Testamento a partir o Concilio de Trento por oficializar



dos fins do século XIX aumentando a Vulgata como a tradução autori-



também a preocupação com o de- zada da Bíblia, 106 contudo uma edi-

senvolvimento do aparato crítico


para o estudo dos manuscritos.



Contudo, interferências de or-


100
Epp, E. J, “Textual Criticism!”, in The New

Testament and his Modern Interpreters. Atlanta:


dem econômica e de política eclesi-

Scholars Press, 1989, p.76.


ástica dificultaram o livre aprovei-


101
Parker, New Textament, p. 93.

tamento de todas estas oportunida- Parker, op. cit, p. 38.


102

des. Desde 1522 estava pronta a 103


Parker, op. cit. p. 97.

chamada Poliglota Complutense, re-


104
Parker, op. cit. p. 96.

conhecida como excelente texto tan-


105
Parker, op. cit, p. 100, nota 2.

to hebraico como grego. Mas os li- Parker, op. cit. p. 3.


106





95






ção da obra iniciada por Erasmo convivido com três fatos importan-



(1633) foi considerada o texto ofi- tes ligados à sua vida e à sua obra.



cial (textus receptus) para as tradu- Ele veria na sua França nascer um
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008



ções nas Igrejas Reformadas.107 movimento que iria revolucionar a


Quando Calvino começou a es- prática da tradução e contribuir


CALVINO


crever seus Comentários havia vá- para que a língua e a literatura fran-


VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM


rias edições impressas do texto gre- cesas se tornassem universais. Foi o



go: cinco de Eerasmo, a movimento das chamadas “belas



Complutense, a de Colineu, além de infiéis”, uma tradução livre que des-



mais algumas, e outras foram im- tacava a beleza do texto original, em


pressas ao longo do período do seu oposição à tradução “palavra por


trabalho. Parker faz um apro- ○

palavra”, ou seja, uma tradução es-
fundado trabalho de comparação tritamente literal. O outro fato era

para concluir que, apesar das difi- a aproximação deste movimento



culdades de verificação, Calvino se- com o calvinismo do século


guiu mais de perto o texto de dezessete. O principal nome nesta



Erasmo, com quem mantinha diá- revolução da tradução, Pierre



logo sobre o assunto, divergindo às D’Ablancour, tornou-se adepto da



vezes deste e se aproximando dos Reforma e foi convidado para assu-



outros textos. Calvino, além dos tex- mir o lugar antes ocupado por

E O SEU CONTEXTO

tos impressos, ia também direta- Teodoro Beza em Genebra. O ter-


mente aos manuscritos. A dificul- ceiro fato, porém, era que o



dade é saber quais os manuscritos calvinismo iria exercer forte pres-



que usou e como os usou, em época são sobre os tradutores, ao ponto de



anterior ao desenvolvimento das os mesmos abrirem uma exceção



técnicas como a determinação das no método para a tradução da Bí-


famílias de manuscritos e separação blia e se dedicarem à tradução de



dos diferentes tipos de texto. Ape- textos religiosos, justificando que os




Lysias Oliveira Santos

sar das dificuldades, podemos dizer textos profanos eram traduzidos



que Calvino fez um trabalho avan- para o ensino escolar. Mesmo assim

çado para a época em que viveu. sua profissão era considerada mun-

dana e o método das “Belas infiéis”,


Calvino e as dificuldades de

um tradutor – Se Calvino tivesse



vivido um século mais tarde, teria 107


Epp, F. J., op. cit., p. 7.






96






uma tentação diabólica.108 Septuaginta e foi aprender hebraico

 REVISTA

Calvino vai iniciar seu trabalho para traduzir o Antigo Testamento.



com a Bíblia diante de si. Mas qual Em suas aulas Calvino lia o texto



Bíblia? A francesa, a latina, a grega, primeiro em hebraico e depois em


a hebraica?109 Isto dá a dimensão de latim, procurando ao vivo mostrar

TEOLOGIA E SOCIEDADE

Calvino como tradutor. Aparecem a sua preocupação com uma boa



questões a resolver tanto na língua tradução do hebraico.



de partida como na de chegada. Ele Qual é a língua de chegada nas



vai traduzir a língua de Deus ou a traduções de Calvino, o latim ou o


dos homens? Calvino crê na inspi- ○
francês? Calvino escrevia seus co-
ração da Bíblia e chega falar em mentários e fazia as suas conferênci-

Deus como o seu autor, mas não crê as em latim e os sermões geralmen-

em uma interpretação inspirada di- te em francês. Havia questões teoló-


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


retamente pelo Espírito Santo, por gicas e culturais para determinar a



isso tem de estudar muito para fa- superioridade de uma língua sobre a

zer uma boa tradução.110 Mas, com outra. Os tradutores das bíblias

sua formação humanista, ele não castelhanas do século XVI112 e os eru-



pensa em separar um método para ditos franceses do século XVII se es-



traduzir a língua de Deus e outra forçaram para provar que as línguas



para traduzir a língua dos homens, castelhanas e francesas estavam à al-



como vai acontecer no século seguin- tura de receber o conteúdo da litera-


te. Ele precisa da bíblia hebraica? tura clássica religiosa e secular. Para

Seus companheiros desde há mil Calvino, porém, as opções entre o



anos atrás abandonaram os judeus latim e o francês vêm das duas tare-

e a sua língua, como um povo des-



prezado, e adotaram o latim, língua


nobre do Império, para falar das



coisas de Deus.111 Os contemporâ-


108
Santos, Lysias O. Qual das Bíblias é a certa?

Dissertação de Mestrado junto ao Instituto Metodista


neos usavam diretamente a Vulgata

de Ensino Superior, 1987, inédita, pp. 47 e 48.


latina. E ele mesmo se dedica a tra-


109
Parker, Calvin´s Preaching, Westminster, John

duzir e escrever em latim. Mas, ad- Knox Press, Louis ville, EUA, p.80.

mirador que era mais da Patrística Parker, op. ci.t. p. 81.


110

do que da escolástica, segue o mes- Parker, Old Testament, p. 4.


111

Stokwell, B. Foster (ed). Prefacios a las Biblias


tre Jerônimo que não aceitou a su-
112

Castellanas del Siglo XVI. B. Aires: Aurora, 1939,


gestão de Agostinho para usar a pp.24, 25.








97






fas. Seu trabalho de origem em Ge- guns humanistas rejeitaram este



nebra era o de conferencista, defen- método por razões teológicas ou li-



sor dos principais pontos da Refor- terárias. Calvino afirma que a Bíblia
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008



ma. Aí a sua formação humanista o tem um só sentido, objetivo


levava a priorizar o latim em suas ex- (germanus), simples (simplex e não


CALVINO


posições. Mas na verdade ele veio a duplex) e ancorado no próprio texto


VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM


se identificar como pastor da cidade (literalis).114



e por isso era preciso ensinar em fran- Mas os eruditos da Reforma não



cês, a língua do povo. puderam livrar-se totalmente das



alegorias. Erasmo penetrou profun-


 A interpretação da Bíblia no damente na pesquisa do Novo Tes-


tempo de Calvino – Pelo que foi vis- ○

tamento, mas na hora de comentar
to, Calvino participa da interpreta- o sentido do texto prendia-se a este

ção cristológica da Bíblia. Mas como método, o que levou Parker a



ver Jesus e a sua igreja nos textos tão qualificá-lo como figura central nos

estranhos aos propósitos de Cristo, estudos do Novo Testamento, des-



tanto do ponto de vista histórico temido acadêmico, mas um tímido



como teológico? A explicação que teólogo.115 Comentando Gl 4. 22-



começou a surgir nos primórdios da 24, Calvino redige um longo perío-



Igreja era que, além do sentido lite- do contra o método alegórico, que

E O SEU CONTEXTO

ral do texto, há um outro sentido es- a partir de Orígenes continuou até


piritual ou místico, pelo qual os fa- ao seu tempo, dando liberdade para

tos, por mais absurdos que pareçam os comentadores, instigados por



ser, transformam-se em ensina- Satã, diz ele, inventarem jogos de pa-



mentos racionais, morais e religio- lavras que substituem as objetivas e



sos.113 Este procedimento atravessa simples palavras do texto sagrado.


a Escolástica esquematizado no mé- Ele quer ser um instrumento de



todo dos “quatro sentidos” das Es- Deus para enterrar esta distorção


Lysias Oliveira Santos

crituras. Além do seu sentido literal interpretativa.116 Mas ele admite as



e histórico, há aquele que Deus trans-



mite diretamente à alma do indiví-



duo (tropológico), o que Deus trans- 113


Parker, Old Testament, p. 70.

mite à Igreja (alegórico), e o que se


114
Parker, New Testament, p. 64.

refere às coisas eternas, no céu


115
Parker, op. cit., pp. VIII, 62 e 70.

(anagógico). Os reformadores e al- 116


Parker, op. cit. pp. 63, 64.






98






alegorias que saem diretamente do Alguns tipos da interpretação de

 REVISTA

texto. Na prática, porém ele se dei- Calvino: Israel é a Igreja; Moisés, o



xou levar pela “serpente que nos profeta, corresponde a Cristo; a



atrai à primeira vista”,117 e é inven- Páscoa e o cordeiro pascal são tipos


tor de algumas interpretações bem da Santa Ceia; os sete braços do

TEOLOGIA E SOCIEDADE

engenhosas. castiçal e o óleo de oliva puro para a



Vejamos como Calvino usa al- lâmpada são figuras para o Espírito



guns termos consagrados dos mé- Santo, o tabernáculo é o tipo da Igre-



todos interpretativos: Analogia: ja. O princípio que conduz a deter-


deve ser usada como uma rápida ○
minação de todas estas figuras
lembrança de que, no texto bíblico bíblicas é este: sendo Cristo o fim,

estamos diante de um sentido úni- o alvo da Lei, tudo na Lei, entendi-



co, mas sentido que oscila dentro de da como um sistema religioso, com

Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


um “escuro e claro” (umbra- sacerdotes e cerimônias, seu reino



veritas), e que só se faz entender se sagrado centrado em Davi e seus


tomado dentro deste conjunto. Sig- descendentes e o ofício profético que



nos, símbolos, Calvino admite que interpreta o todo do sistema, devem



alguns textos só podem ser enten- ser entendidos a partir de Cristo.118



didos com o auxílio de algumas



comparações e escolhe dentre as Os condicionadores do estilo



interpretações já dadas, por outros de Calvino - Holder afirma ser


teólogos, aquela que mais se ajusta Calvino possuidor de um estilo ad-



a sua compreensão. Anagoge, figu- mirável. “Ele é criativo, sua lingua-



ra simbólica e alegórica dos livros gem é tanto precisa como melíflua



sagrados, que Calvino entende como e sua gama de expressão enorme,



uma transferência ou aplicação de abrangendo desde uma larga e amar-


um evento ou personagem bíblico ga sátira, uma franca discussão da



para alguma verdade teológica, apli- fragilidade humana e uma ternura



cação esta demandada pelo próprio apaixonada. Calvino demonstra aqui



texto. Tipos, figuras, imagens. Al- e ali ser um excelente estilista.”119.



gumas pessoas e instituições judai-



cas são visões antecipadas de Cris-


Parker, Old Testament, 71.


to e daquilo que se inclui na sua
117

118
Parker, op. cit., pp. 72-75.
missão redentora: O Espírito Santo

119
Holder, R. W., op. cit, p. 243.
de Cristo, O Evangelho, a Igreja.






99






Um exemplo desta “amarga sátira” continua sendo palavra de Deus e



pode ser sua investida contra os pre- deve ser tratada com toda a serie-



lados católicos, qualificados como dade devida.124
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008



“cães raivosos, cuja mitra, bastão e Em seus Comentários, Calvino


pretensões similares são as suas úni- procura penetrar nesta linguagem


CALVINO


cas marcas distintivas, mas cuja de Deus, para desvendar todos os


VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM


vanglória consiste em que são eles recursos, todas as figuras de lingua-



os sucessores dos apóstolos”.120 gem nela contida. Uma figura da



Como todos os demais aspectos qual Calvino gosta é a hapálage, que



da obra de Calvino até aqui exami- consiste no intercâmbio de dois ele-


nados, seu estilo também é profun- mentos de uma proposição, rever-


damente marcado pelas circunstân- ○

tendo a relação normal entre am-
cias do seu trabalho. Ele tem de di- bos. 125 Embora inspirados por

alogar com o texto e com seus lei- Deus, os autores bíblicos conservam

tores, tarefas nem sempre fáceis de a sua maneira própria de escrever e


conciliar. Referindo-se à primeira Calvino precisa dialogar com eles



tarefa Calvino diz que o intérprete também. Ainda bem que eles tam-

tem de revelar a mente do escri- bém se expressam em linguagem



tor.121 Quanto aos leitores e ouvin- acessível. “Moisés acomoda-se a si



tes ele é um pregador e professor mesmo em estilo simples e cru,



E O SEU CONTEXTO

que tem de falar para os auditórios adaptado à capacidade comum”126.


mais heterogêneos e ensinar para os Paulo é às vezes confuso, como os



diferentes graus de sua escola.122 Ele demais apóstolos também. Mas é



tem também de conversar com preciso aceitar o “estilo literário sin-



Deus e sabe que o “Espírito Santo gelo, carente de refinamento e bus-



usa livremente figuras de lingua-


gem, metáforas, alegorias,



metonímias, parábolas, imagens”123.


120
Calvino, Exposiçao de Romanos, p. 40.

Lysias Oliveira Santos

Mas a doutrina da “acomodação”,


121
Parker, New Testament, p. 55.

adotada por Calvino ensina que


122
Parker, Old Testament, pp. 15 e 63.

Deus “traduz” o seu pensamento e 123


Parker, New Testament,p. 44.

a sua linguagem para o pensamento 124


Parker, op. cit., p. 58.

e a linguagem das pessoas visando o


125
Holder, R. W., op. cit. p 249, nota 96. Calvino,

Exposição de Romanos. Pp. 43, 63, 102.


cumprimento de sua revelação. Mas

126
Parker, op. cit., p. 100.
esta palavra, assim “acomodada”,






100






car tão somente a sabedoria espiri- nárias.130 O mesmo não podemos

 REVISTA

tual”.127 Um dos inibidores de um dizer da uniformidade e conseqüente



estilo mais livre na comunicação de qualidade de seus Comentários.



Calvino com os leitores é a necessi- A primeira razão para que isto


dade de se fazer entender. Ele mes- aconteça vem da própria natureza

TEOLOGIA E SOCIEDADE

mo declara que “a principal virtude dos livros bíblicos. Percebendo isto,



do intérprete é a clara brevidade”. Parker pensou em iniciar seu traba-



Ele prefere agradar a mente dos lho sobre os Comentários do Anti-



ouvintes com bons ensinamentos do go Testamento, de Calvino, compa-


que os seus ouvidos com um amon- ○
rando cada Comentário com um
toado de palavras vazias.128 Ele es- outro escritor que o antecedeu na

creve em latim e francês. O latim é interpretação do mesmo livro da



um desafio para que ele se expresse Bíblia. Assim ele compararia os Sal-

Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


em linguagem mais refinada. Mas, mos com Lefrèvre e Agostinho, o



com Erasmo, ele prefere que a sua Gênesis com Lutero, e alguns ou-

língua não seja tão elegante, mas que tros com Nicolau de Lira e André

seja lúcida e fiel. Então esforça-se de São Vítor, mas desistiu da idéia

para que os autores bíblicos falem a porque o livro se tornaria muito



língua familiar ao seu povo e tratem extenso e fugiria dos objetivos que

dos problemas peculiares ao século ele traçou.131



XVI. Alem disso, como vimos, os Co-


mentários de Calvino têm três ori-



Avaliação do gens diferentes. Eles podem ter sido



aproveitados de anotações de seus


trabalho de Calvino

sermões, de resumos de suas aulas


como comentarista

e de escritos propriamente intenci-


onais. Também grande parte dos


das Escrituras


Se é possível dizer que em todos



os escritos de Calvino encontramos



uma uniformidade na forma de apre- 127


Calvino, op. cit., p. 85..

sentação, na abordagem da matéria,


128
Parker, Old Testament, p 20.

no estilo129, podendo dizer também 129


Parker, New Testament, pp. 49, 50.

que desde 1539 até 1559 sua mente Parker, op. cit, p. 89.
130

não muda sobre as questões doutri- Parker, Old Testament, p. 2.


131






101






seus textos foram redigidos por alu- tender cada vez mais o seu signifi-



nos, secretários e amigos, nem sem- cado. Assim lia e levava em consi-



pre com uma boa revisão de sua deração outras interpretações dadas
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008



parte. E o próprio Calvino reconhe- ao texto. Como resultado, ele fazia


ce esta diferença qualitativa. constantes revisões na medida em


CALVINO


Há textos que ele faz questão de que seu pensamento mudava sobre


VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM


publicar e se contraria com as difi- interpretações dadas anteriormen-



culdades relacionadas à sua edi- te. Por isso é possível que haja sen-



ção.132 Há alguns a respeito dos síveis mudanças entre a primeira e



quais ele pede desculpas por não ter a última edição de um texto por ele


saído do jeito que gostaria que fos- publicado. Por exemplo, na revisão


se.133 E há outros ainda cuja divul- ○

que fez em 1556 ele corrige a inter-
gação ele lamenta. Quanto à publi- pretação que dera para Gl 4.25:

cação do Comentário de Oséias, ele “Porque Paulo compara a presente



faz uma longa reclamação, dizendo Jerusalém com o Monte Sinai? Mes-

que até mesmo os textos que ele mo que em outra ocasião eu manti-

preparava com cuidado, com tem- ve opinião oposta, concordo agora



po para melhorar os pensamentos e com Crisóstomo e Ambrósio, os



a linguagem, eram acusados de ino- quais disseram tratar mesmo da Je-



portunos. Por isso, as anotações fei- rusalém terrena”.135



E O SEU CONTEXTO

tas apenas para o uso de suas aulas


nunca, por sua iniciativa, deveriam  Calvino e os biblistas de seu



ser divulgadas. Ao deixar que suas tempo – Parker bem observou que

palavras transmitidas diretamente o século XVI foi a idade da Bíblia.



para os seus ouvintes fossem Ele viu o nascimento dos modernos



publicadas ele já prevê que os maus estudos bíblicos, firmados na neces-


e invejosos iriam acusá-lo de crime. sidade do melhor exame das lingua-



Mas, por insistência dos amigos e gens originais, na busca pela recu-


Lysias Oliveira Santos

por falta de tempo de fazer uma peração de textos sólidos, no levan-



nova redação deixou, a contra gos-



to, que o Comentário chegasse ao



público134. 132
Parker, New Testament, p. 7.

Calvino foi, ao longo de sua car-


133
Parker, Old Testament, pp. 24, 25.

reira, um constante estudioso da 134


Parker, op. cit., p. 28.

Bíblia como alguém que deseja en- 135


Parker, New Testament, p. 90.






102






tamento das circunstâncias históri- suas intepretaçoes, 137 e por isso

 REVISTA

cas, na necessidade de uma teologia prendeu-se mais à exegese do texto



firmada na Bíblia, na tradução para do que sua reformulação represen-



diferentes línguas modernas. Isto fez tada pelos loci.


ressurgir grandes estudiosos que, a A interpretação bíblica de

TEOLOGIA E SOCIEDADE

partir do pioneirismo de Erasmo de Henrique Bullinger é a menos co-



Roterdã, se dedicassem à interpre- nhecida dos Reformadores. Em



tação do texto sagrado. Faremos Zurique a partir de 1525, publica



uma rápida comparação entre farto material didático, ensinando os


Calvino e três dos que mais se des- ○
alunos a estudar os assuntos secula-
tacaram como estudiosos da Bíblia res e a Bíblia. Seus comentários são

na época: Melanchton, Bullinger e mais dogmáticos do que exegéticos,



Bucer. embora faça questão de dizer que


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


Felipe Melanchton lecionava gre- nada há de sagrado em suas opini-



go em Witemberg em 1518 e logo ões. Cuidadoso com a linguagem,


depois começou a lecionar sobre substituiu muitos hebraísmos por



Romanos, e se dedicou com tal afin- paráfrases elucidativas.138 Calvino,



co, que esta é a sua obra principal prendendo-se, como vimos, mais à

para a observação da metodologia exegese, separa-se em muitos pon-



que empregou em suas interpreta- tos da interpretação de Bullinger.



ções. Como apareceu algum mate- Os comentários de Bucer são


rial publicado a partir de anotações considerados sua principal obra te-



de alunos, sem seu consentimento, ológica. Em exposições bíblicas fei-



ele resolveu, a partir de 1529 editar tas em Estrasburgo (1523-1529) e



os seus Comentários. Por redação em Cambridge (1559-1561) ele co-



direta ou a partir de anotações, no mentou os Evangelhos, Salmos,


todo ou em partes foram publica- Sofonias e Efésios. Pretendia comen-



dos comentários seus sobre Rm, 1 tar todas as Epístolas, mas qual se-

e 2 Co, 1 e 2 Tm, Mt e Jo. Aproxi- ria a extensão de suas obras, se os



mando-se dos escolásticos João



Damasceno e Lombardo, tornou-se



adepto do método aristotélico que 136


Sobre Melanchton, Parker, NewTestament, pp. 28-

36.
resume o conteúdo bíblico em pe-

137
Parker, op. cit., 49.
quenos tópicos (loci.).136 Calvino

138
Sobre Bullinger, Parker, op. cit, pp. 36-42.
não fez do método o ponto de alto






103






três primeiros capítulos de Roma- biógrafo de Calvino, compara o seu



nos tomaram mais de 500 paginas! humanismo com os Comentários



Bucer combateu veemente mente as que escreveu e conclui que ao esco-
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008



alegorias, mas usou paráfrases para lher conscientemente um diferente


esclarecer os hebraísmos e as estilo de retórica, ele critica a retóri-


CALVINO


idiossincrasias. O trabalho de Bucer ca do humanismo com uma retórica


VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM


é ao mesmo tempo comentário e bíblica. R. C. Gamble, outro crítico



teologia sistemática, diferentemen- de Calvino, procurando definir a sua



te de seus colegas que publicaram escolha hermenêutica, conclui que



em textos separados a interpretação ele estava comprometido com uma


bíblica e a suma de seus pensamen- propensão mental essencialmente


tos da teologia reformada.139 Neste ○

medieval.140
sentido Calvino trilhou também ca- As críticas a Calvino, porém, já

minho inverso. Primeiro escreveu as aparecem logo após a publicação de



Institutas, para depois produzir os seus Comentários. É verdade que


seus Comentários. estas são bem mais contextualizadas,



envolvendo motivos que ultrapas-



Críticos dos Comentários de sam as normas devidas a um crítico



Calvino – A principal crítica que a literário. O Luterano Hunnius pu-



moderna interpretação faz á blicou um livro (1593) acusando



E O SEU CONTEXTO

Calvino é que ele não soube se equi- Lutero de judaizante por causa das

librar na encruzilhada em que se suas interpretações do Antigo Tes-



encontrava, entre o antigo e o mo- tamento, as quais, segundo ele, con-



derno. Muller, autor de The trariam alguns pontos básicos do



Unacommodated Calvin, vê o pensamento cristão como a doutri-



Reformador premido por duas for- na da Trindade. É possível inquirir


ças, um impulso profundamente tra- sobre a influência do Antigo Testa-



dicional que o pressiona a produzir mento na teologia e na prática de




Lysias Oliveira Santos

elementos de controle cultural e es- Calvino, mas a impressão que se tem



piritual, enquanto o outro estimu- é que a sua interpretação no geral



la-o à forte originalidade e rebeldia



contra aqueles instrumentos, o que


gera algumas dificuldades para a sua



compreensão à luz do pensamento Sobre Bucer, Parker, op. cit. pp. 42-48.

139

do século XVI. B. Cottret, recente 140


Holder, R. W., op. cit., p. 150.






104






dissolve o Antigo Testamento pela tuas prostituições”.144

 REVISTA

leitura cristológica, mesmo que se Uma das dificuldades para ava-



possa percorrer muitas páginas de liar as falhas dos Comentários de



seus Comentários do Antigo Testa- Calvino, precisamente os do Anti-


mento encontrando só interpreta- go Testamento, refere-se à precari-

TEOLOGIA E SOCIEDADE

ções históricas sem aparecer o nome edade de suas edições. A uma gran-



de Cristo.141 de falta de notas de rodapé, ou quan-



Calvino ficava feliz quando sou- do as há, são ingênuas e irrelevantes,



be que um casal ilustre havia apre- salvando-se raras exceções. As tra-


ciado seu Comentário de 1 Corín- ○
duções são insatisfatórias, não tan-
tios. Mas houve alguém que não o to quanto a incorreções, mas quan-

apreciou tanto assim. João Hooper, to a sua imprecisão. O pior é que



futuro bispo de Gloucester e estas imprecisões muitas vezes pa-


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


Worcester, queixou-se a Bucer: “O recem ser liberadas para enquadrar



Comentário de Calvino sobre Calvino em um contexto que não é


1 Coríntios desagradou-me profun- mais o seu, notas são inseridas para



damente.” Possivelmente porém, restaurar o “verdadeiro” sentido da



porque, como bom zuingliano, ele passagem exposta. Há, por exem-

discordava de Calvino a respeito da plo a possibilidade de um esforço



eucaristia.142 Crítica curiosa vem do deliberado para identificá-lo como



editor do Gênesis. Ele diz que um dos “evangelicais” dos meados


Calvino omite aqueles textos que do século dezenove.145



podem ruborizar os rostos dos mais



jovens. Diz que ele omite totalmen-  Admiradores da obra de



te os textos sobre a relação sexual Calvino - Apreciações positivas aos



das filhas de Ló com o pai e sobre o Comentários de Calvino aparecem


pecado de Onã. (Gn 19. 31ss; 38. ainda no século XVI. O título do pre-

10).143 Na verdade esta não parece



ser uma prática definitiva de



Calvino, porque, comentando


141
Parker, Old Testament, p. 2 e Parker, New

Rm 1.32, ele transcreve Ez 16. 25: “ Testament, p. 66.



A cada canto do caminho edificaste 142


Parker, New Testament, p. 13, nota 4.

o teu altar e profanaste a tua for-


143
Parker, Old Testament, pp. 2 e 3.

mosura, abristes as tuas pernas a 144


Calvino, Exposiçao de Romanos, p. 77.

todo que passava e multiplicaste as 145


Parker, id. ib.






105






fácio de Teodoro Beza ao Comentá- o seu material de forma clara, lógi-



rio a Romanos, de Calvino é: “O mais ca e simples, o chamou de príncipe



excelente Comentário de Calvino dos expositores. Os editores das
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008



entre todas as Epístolas, incluída a obras de Calvino em Brunswick con-


Epistola aos Hebreus”.146 Um alu- cordam com ele. Comparando


CALVINO


no de Reuchlin, de Bratislava, que Calvino com outros reformadores


VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM


procurou Calvino para resolver al- concluem que com justiça ele pode



guns problemas de exegese, assim ser chamado de “príncipe e guia dos



se expressou. “Ainda que Erasmo teólogos”. Jorge P. Fisher reconhece



seja considerado o príncipe dos te- que Calvino é o exegeta por excelên-


ólogos, em muitos aspectos parece cia da Reforma. “A palma pertence a


não ter atingido como o senhor o ○

Lutero como tradutor; a Calvino,
pensamento de Paulo. Eu o felicito como intérprete da Palavra”. 149

pelo dom notável que Deus lhe deu T. H. L Parker, declara que em todos

para interpretar as Escrituras com os aspectos Calvino é o maior dos


tanta facilidade. Tenho lido e relido exegetas do século dezesseis, lem-



seus trabalhos e nunca me canso. O brando que “a época produziu vários



senhor adornou os escritos de Pau- estudiosos que nos surpreendem pela



lo com os seus mais santos pensa- sua energia intelectual, pelo seu

mentos”.147 Jacó Armínio (1560- discernimento, seu incrível conheci-



E O SEU CONTEXTO

1609), professor da Universidade de mento da Bíblia e acima de tudo, pela


Leiden, que se opôs ao pensamento aproximação humilde e reverente da



de Calvino em vários pontos, sur- Escritura, pela faminta busca da ver-



preendentemente aconselha: “Eu dade, pela confiança e certeza em seu



exorto aos estudantes que, depois trabalho”.150



das Escrituras, leiam os Comentá- Espaço especial é aqui reserva-


rios de Calvino, pois eu lhes digo que do para a opinião de Karl Barth so-

Calvino é incomparável na interpre- bre Calvino, a sua atividade cons-




Lysias Oliveira Santos

tação das Escrituras”.148



Dos autores mais recentes,


146
Parker, New Testament, p. 19.

Donald McKim, declara que Calvino


147
Id. ib.

usou, como ninguém, de todas fer- Maia, Hermisten M. P., Prefácio de: Calvino,

148

ramentas disponíveis no seu tempo


Exposiçao de Romanos, p. 18.


para uma boa exegese. C. Greeg 149


Id. ib.

Singer, pelo fato de Calvino dispor Parker, Old Testament, ps 6, 7.


150






106






tante e o grande acúmulo de suas mesma dúvida.

 REVISTA

obras. Barth Diz que Calvino é”uma  A importância dos Comen-



catarata, uma floresta primitiva, um tários de Calvino - Desde tempos



poder demoníaco, alguma coisa vin- antigos ecoa o grito: Calvinus homo


da diretamente do Himalaia, abso- unius libri, Calvino, o homem de

TEOLOGIA E SOCIEDADE

lutamente chinês, um estranho, um um único livro, Calvino, o Tomás



ser mitológico”.151 Sobre a atualida- de Aquino protestante.153 Nesta



de dos comentários de Calvino ele perspectiva os Comentários seriam



diz: “Por exemplo, colocando lado a leituras dispensáveis para uma com-


lado os trabalhos de Jülicher e de ○
preensão do pensamento de
Calvino, quão energicamente Calvino. No que pese, porém, a

Calvino, depois de estabelecer o que grande importância das Institutas,



o texto contém, começa, ele mesmo a “obra prima da teologia protestan-


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


a repensar o material em seu con- te”, segundo Albrecht Ritschl,154 os



junto e discutir com ele até as pare- Comentários de Calvino desempe-


des que separam o século dezesseis nham um papel fundamental na for-



do primeiro tornarem-se transparen- mação do pensamento protestante.



tes! Paulo fala e as pessoas do século Esta importância pode ser resumi-

dezesseis ouvem. da na grande contribuição que dá



A conversa entre o documento de para uma compreensão mais pro-



origem e o leitor circula em torno funda do tão falado e também tão


do objeto em questão, até que a dis- distorcido princípio da Reforma, a



tinção entre ontem e hoje se torne doutrina da Sola Scriptura. Calvino,



impossível. Se alguém persuadir-se com os seus Comentários, contri-



de que o método de Calvino se des- buiu para o aprofundamento da



faz com o antiquado moto “A Sola Scriptura em três direções di-


Compulsão da Inspiração”, ele trai a ferentes. Primeiro, ao mostrar a se-



si mesmo como alguém que jamais riedade e o comprometimento da-



trabalhou na interpretação da Escri- queles que optam por ter na Escri-



tura”.152 Barth ainda declara ter fi-



cado em dúvida se deveria escrever



alguma coisa sobre Romanos depois 151


Parker, op. cit. p. 7.

do estupendo trabalho de Calvino. Holder, R. W. op. cit. p. 249.


152

Nesta atitude, Barth segue o grande 153


Parker, New Testament, p. 2.

Reformador que também teve a Costa, Hermisten P. C., op. cit. p. 9.


154






107






tura a base de sua fé. Segundo por Scriptura aquele que penetra nos



apontar a estreita ligação da escri- seus meandros de língua, de histó-



tura com toda e qualquer definição ria, de cultura, de conhecimentos, e
JOÃO CAL
PÁGINAS 76 A 109, 2008



dos princípios da fé cristã. Tercei- só homens que se dedicam como


ro, por defender o comprometi- Calvino conseguem fazer isto.


CALVINO


mento pastoral da mensagem que Calvino é herdeiro de um passa-


VINO
VINO,, INTÉRPRETE DAS ESCRITURAS: O HOMEM


vem da Bíblia. do que, na ânsia de extrair da Bíblia



As páginas anteriores deste arti- o seu pensamento teológico destruiu



go tentaram mostrar o que era para a Bíblia, ficando só com o pensa-



Calvino passar a vida expondo a Bí- mento teológico. Ao começar tam-


blia. São suas palavras: “Se eu diri- bém pelo pensamento teológico,


gir-me ao púlpito sem ter olhado ○

Calvino logo descobriu que por trás
para um livro e imaginar frivolamen- de tudo está a própria Bíblia. Ao

te: ‘Muito bem! Quando chegar a escrever primeiro as Institutas e



hora Deus me dará o suficiente so- passar o resto da vida comentando


bre o que eu devo falar’, e não me as Escrituras, ele percorre um ca-



dedicar a ler, ou a pensar a respeito minho aparentemente inverso, mas



daquilo que eu tenho de declarar, e que é o caminho do grande desco-



chegar sem ponderar cuidadosa- bridor. Passando por todos os loci,



mente como eu devo aplicar a San- todos os axiomas, todos os dogmas



E O SEU CONTEXTO

ta Escritura para a edificação do ele chega à fonte de todo este amon-


povo, então eu serei um presunço- toado de resumos e conclusões. Este



so charlatão e Deus me porá em é o caminho que na prática percor-



confusão por causa da minha audá- reu seu amigo Bullinger, como vi-

cia”155 Infelizmente não muito tem- mos páginas atrás. Infelizmente logo

po depois este principio tão caro aos também seus seguidores continua-

reformadores tornou-se base para ram no caminho que conduziu à



uma visão superficial da Bíblia, para Escolástica e puseram na base de sua




Lysias Oliveira Santos

uma adoração de suas letras, para fé princípios rígidos, fechados,



pretexto de acusações e condena- dogmáticos. Os Comentários de



ções recíprocas. Só atinge o âmago Calvino são um apelo para voltar-



do pensamento contido na Sola mos a uma teologia bíblica onde a


pesquisa documentária, a exegese,



as boas traduções são serviços dire-



tos na definição dos princípios que


155
Parker, Preaching, 81.





108






norteiam a vida cristã. língua da Bíblia não é a língua do

 REVISTA

Mas acima de tudo, os Comen- povo, o tempo da Bíblia não era o



tários de Calvino são uma demons- tempo do povo, os interesses da



tração de que a exegese é um ser- Bíblia não eram os interesses do


viço para a Igreja. Às voltas com as


povo, tempos enfim, em que o

TEOLOGIA E SOCIEDADE

múltiplas atividades, sem saber o mundo da Bíblia não era o mundo



que escolher, se pregar, escrever, do povo. O reformador, ao contrá-



pastorear, polemizar, administrar, rio, vive este vai-e-vem entre a Bí-



Calvino talvez não estivesse dando blia e o povo, entre a cátedra e o


conta de que penetrar nos mistéri- ○ púlpito, entre o estudo e o
os da Sola Scriptura é engajar-se de

pastorado, entre o hebraico, o gre-


corpo e alma no serviço da Igreja. go, o latim e o francês. Infelizmen-



O lugar da Escritura é dentro da te, os seus seguidores optaram por


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


Igreja, pois para Calvino a Igreja é uma erudição que não mais serve à

a Schola Dei e o seu currículo são igreja, não mais serve ao povo. É

as Escrituras.156 Calvino viveu tam-


tempo de pensarmos com Calvino


bém tempos em que por séculos a que toda a interpretação da Escri-



Bíblia havia sido tirada do povo. A tura deve ser feita para a Igreja.






























156
Holder, R. W., op. cit. pp. 252, 253.






109






O Comentário de Calvino





ao livro de Daniel
O COMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 110 A 129, 2008












CALVINO



VINO AO LIVRO DE DANIEL


Considerações mento não é tão cristológica

José Adriano Filho
reo Rodrigues de Oliveira


quanto a de outros teólogos. Na
iniciais ○

verdade, ele se opõe a uma in-


João Calvino foi grande co-

terpretação do Antigo Testamen-


mentarista das Escrituras, o que to que enfatize somente o aspec-



se esquece freqüentemente.1 to cristológico, pois a exegese bí-




Filho∗

Sua primeira atividade em Ge- blica é somente um aspecto do



nebra foi Lecteur de la Sainte processo de interpretação. Há



Ecriture. A tarefa principal do


passagens do Antigo Testamen-


seu ministério era a exegese bí- to que podem ser lidas como re-

blica e, segundo ele, se quiser- ferências a Cristo, mas nem por



mos aprender quem é Deus e o isso perdem seu valor histórico.



que somos, devemos buscá-lo Calvino, assim, dá continuidade



nas Escrituras. Calvino afirma a uma tradição anterior, pois os


também que a Escritura deve


teólogos católicos e os

ser lida com o objetivo de nela reformadores antes dele viam o



encontrarmos Cristo, mas sua Antigo Testamento como ima-



interpretação do Antigo Testa- gem e sombra de Cristo, neste



ponto seguindo os autores do



Novo Testamento que interpre-


José Adriano Filho

taram Jesus a partir do Antigo



* José Adriano é professor no Seminário


Testamento e o Antigo Testa-

Teológico Rev. Antonio de Godoy Sobrinho, de


Londrina (IPIB). mento a partir de Jesus.2 Os pro-



1
BERG, Jan van den. “O trabalho exegético de blemas trazidos a Genebra pe-

Calvino”, pp.46-49; PUCKETT, David L. John


Calvin’s Exegesis of the Old Testament, pp.56-59. los anabatistas e antinomistas,








110






que afirmavam que o tempo da Lei Calvino. Tanto em suas prédicas


 REVISTA

passara e rejeitavam toda Igreja e dis- quanto preleções, podemos falar de



um projeto de interpretação dos

O COMENTÁRIO
REVIST
REVISTA
ciplina, levaram-no a demonstrar que



a redenção de Cristo, a Lei e o Evan- profetas. Seus comentários aos pro-


fetas do Antigo Testamento estão


gelho não eram antitéticos, pois há

TEOLOGIA E SOCIEDADE
A TEOL

unidade entre o Antigo e o Novo Tes- entre suas últimas publicações

TEOLOGIA

tamento, na medida em que não há expositivas. A série começa com o


OGIA E SOCIEDADE Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São P


senão uma única revelação de um comentário a Isaías, publicado pri-



único Deus. meiro em 1550, mas revisado sub-

DE CAL

Nas Institutas da Religião Cris- ○
seqüentemente, em 1559. Então,
após Gênesis (1554) e Salmos

CALVINO
tã, no capítulo “Da Similaridade

entre Antigo e Novo Testamento”, (1557) seguem as exposições a


VINO

Calvino demonstra que os dois Tes- Oséias (1557), aos doze Profetas

Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


tamentos apresentam uma mesma Menores (1559) e Daniel (1561),


AO LIVRO DE DANIEL

substância, que Cristo está presen- Jeremias e Lamentações (1563) e,


publicado postumamente, os pri-


te no Antigo, mas de longe e de for-


ma obscura, que há vida espiritual e meiros vinte capítulos de Ezequiel



esperança de imortalidade por ado- (1565). Destes, somente a exposi-



ção no Antigo Testamento, e que a ção de Isaías é um comentário no



Aliança estabelecida por Deus com sentido moderno do termo. Os ou-



os Pais não se baseia nos méritos tros não foram escritos por Calvino,

deles, mas na sua misericórdia. A mas são compilações que seus ami-

Aliança feita com os pais é seme- gos fizeram das Preleções feitas na

lhante à Aliança feita conosco, pode- Academia de Genebra. Eles são



se dizer uma mesma com ela, pois transcrições, publicadas nas Prele-

difere somente na ordem em que foi ções, não Comentários. Dessa for-

ma, os comentários de Calvino so-


outorgada.3 A diferença maior per-


Paulo

aulo
aulo,, SP PÁGINAS 1

cebida por Calvino entre o Antigo e



o Novo Testamento pode ser resu-



mida na seguinte afirmação: o An-


José Adriano Filho


2
AUERBACH, Erich. Figura, pp.13-64; DAWSON,
tigo Testamento faz conhecer a pro-

John David. Christian Figural Reading and the


messa que o Novo Testamento apre- Fashioning of Identity, pp.83-137.


senta como realidade presente.4 Institutas da Religião Cristã, Livro II, capítulo 10,

3

parágrafo 2.
Os profetas do Antigo Testamen-
110

10 A 129 

4
PUCKETT, David L. John Calvin’s Exegesis of the Old

to tinham grande significado para Testament, pp.88-91.








111






bre os profetas do Antigo Testamen- retornar à França, para ali trabalhar



to estão à parte de suas outras ex- em favor da Igreja Reformada.7



posições das Escrituras que foram A preocupação com a evan-
O COMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 110 A 129, 2008



publicadas. Com exceção do co- gelização da França era própria não


mentário de Isaías, seu caráter como só dos estudantes, mas também dos



Preleções e a natureza particular do “ministros” e “outros ouvintes”. A



público ao qual foram dirigidas re- Companhia dos Pastores de Gene-



velam-nos como era a leitura feita bra era dominada por franceses du-



por Calvino dos profetas.5 rante o período da liderança de
CALVINO



Calvino na cidade, de forma especi-
VINO AO LIVRO DE DANIEL


1- A audiência de al entre 1555-1564. Além disso, os



“outros ouvintes” deviam pertencer
Calvino

ao mesmo círculo, já que havia um



As preleções de Calvino, especi- massivo influxo de refugiados em



almente sobre os profetas (1555- Genebra na década de 1550-1560,


1564), tinham como principal pú- seguindo o exemplo do próprio



blico “os estudantes”, “os ministros” Calvino. Sem dúvida, foi a Igreja

e “outros ouvintes”, grupos que es- Reformada que atraiu a maior par-

tavam associados aos esforços em- te desses imigrantes para a cidade.



preendidos na difusão da pregação Embora a assistência regular às Pre-



reformada na França.6 É provável leções não fosse compulsória, é pro-


que os estudantes fossem os ouvin- vável que muitas pessoas que vieram

tes primários, especialmente no pe- da França para Genebra depois de



ríodo posterior à inauguração da 1555 estivessem, ocasional ou até



Academia de Genebra, em 1559. A mesmo regularmente, entre os ou-



Academia pretendia “preparar jo- vintes de Calvino.8


vens para o ministério e para o go- Após 1555 e, especialmente de-



verno civil”, especialmente os futu- pois de 1559, os ministros treina-



ros líderes da Igreja na França, e o dos em Genebra foram enviados à



registro dos alunos matriculados


José Adriano Filho


após 1559 indica que muitos deles


deixaram a Academia para servir


5
WILCOX, Pete, “The Prophets”, pp.107-108.

como pastores nas igrejas da Fran- 6


WILCOX, Pete, “The Prophets”, p.111.

ça; os primeiros que estudaram na WILCOX, Pete, “The Prophets”, p.112.


7

Academia tinham como objetivo WILCOX, Pete, “The Prophets”, pp.112-113.


8






112






França, por exigência das congrega- vinham de todas as partes da Euro-

 REVISTA

ções reformadas de lá. No final de pa, como Itália, Alemanha, Inglater-



1561, um desses enviados a Gene- ra, Escócia, sendo a maior parte



bra, que esperava uma indicação deles composta por franceses envol-


para trabalhar numa igreja na Fran- vidos como Calvino na

TEOLOGIA E SOCIEDADE

ça, escreveu uma carta a Guilher- evangelização de sua terra natal. As



me Farel, em Neuchâtel, onde afir- preleções de Calvino lhes foram



ma que havia várias pessoas em dirigidas primariamente. O caráter



Genebra provenientes de muitos desse público nos informa quem


lugares da França, recrutando tra- ○
eram eles, sendo fácil imaginar o que
balhadores para a colheita na Fran- uma aplicação imediata da exposi-

ça. A carta centraliza-se na ção da Escritura ocasionaria nos seus



evangelização da França, mas assi- ouvintes quando, no outono de


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


nala que é “maravilhoso ver os ou- 1559, na décima quinta preleção



vintes das preleções de Calvino, es- sobre Daniel, Calvino afirma: “Por-

timando haver mais de mil pessoas tanto, quem realmente tira provei-

cada dia”. Isso sugere que os “ou- to da Palavra de Deus é aquele que

tros ouvintes” formavam um gran- aprende que sua vida está sob os

de grupo, não regularmente matri- cuidados do Senhor e que sua pro-



culados na Academia, ou não eram teção nos basta. Qualquer um que



membros da Companhia dos Pas- tenha alcançado esta fase será ca-

tores. Indica também que muitos paz de enfrentar centenas de riscos,



desses ouvintes estavam comprome- pois não hesitará em marchar para



tidos com a empresa de onde tenha sido chamado”.10



evangelização. Eles vieram a Gene-



bra de toda a França, recrutando


trabalhadores (isto é, pastores), e



tinham a oportunidade de ouvir as



preleções de Calvino no período em



que estavam em Genebra realizan-



do suas tarefas.9

Nem todos os ouvintes de


Calvino eram missionários que es-



tavam em treinamento ou france-


9
WILCOX, Pete, “The Prophets”, pp.113-114.

ses, mas também estudantes que CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.208-109.

10





113






2- A Igreja de to. Nesses capítulos, formados por



visões que se referem “particular-


Cristo no mundo e


mente à Igreja de Cristo, o Senhor
O COMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 110 A 129, 2008


a proteção do


prediz o futuro, e esse aviso prévio


era mais do que necessário”.12


Senhor


No início da exposição ao capí-



O comentário de Calvino ao li- tulo 7, Calvino declara:



vro de Daniel estabelece uma rela-



ção entre a situação de sofrimento Aqui Daniel começa ofere-
CALVINO


vivida pelo povo de Deus na época


cendo instrução peculiar à
VINO AO LIVRO DE DANIEL


de Daniel com aquela das igrejas na Igreja. Pois Deus anterior-


França, no momento em que a Re- ○

mente o designara como in-
forma lançava ali suas raízes e nos térprete e instrutor de reis pro-

primeiros anos do seu desenvolvi- fanos. Agora, porém, ele o



mento. É um período cruel e difícil designa como mestre da Igre-


que deve ser aplicado à igreja de seus ja, para que exerça nela seu

dias, pois ambas as circunstâncias, ofício e sua instrução destina-



do povo judeu lá e da igreja cá, são dos aos filhos de Deus em seu

similares.11 Dessa forma, a primei- seio. É mister que notemos



ra parte do comentário, Daniel 1-6, esse fator, antes de tudo, por-


descreve a situação de perseguição


que até aqui as suas predições


vivida pelo povo de Deus, que é re- se estenderam para além dos

lacionada com a vida da igreja na- limites da família da fé; aqui,



quele momento. Ela relata também porém, o dever de Daniel se



como “Daniel ganhou autoridade restringe à Igreja. (...) Antes



até mesmo entre os perversos, pois de tudo, devemos tentar en-


era necessário que ele fosse coloca- tender o desígnio do Espírito



do no ofício profético de forma ex- Santo; ou seja, o fim e o uso



traordinária, num período de gran- para os quais ele revelou a



de confusão, no qual era difícil crer


José Adriano Filho


que houvesse algum profeta no meio


do povo de Deus”. A segunda parte,



capítulos 7-12, por sua vez, mostra


11
CRISTOFANI, J. R. “Hermenêutica de Calvino e

Lutero”, p.20.
como Deus prediz, através de

12
CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.35-36.
Daniel, o que aguardava o povo elei-






114






Daniel o conteúdo deste ca- ataques dos inimigos em duas fren-

 REVISTA

pítulo. Todos os profetas in- tes e depois fala sobre as muitas



sistiram com o povo eleito mudanças. O que ele apontou foi tão



sobre a esperança de livra- verdadeiro, que é óbvio que Deus


mento, depois que Deus hou- estava falando por sua boca. Daniel

TEOLOGIA E SOCIEDADE

vera castigado neles sua ingra- foi um instrumento do Santo Espí-



tidão e obstinação. Ao lermos rito e nada proclamou baseado em



o que outros profetas anunci- suas próprias idéias”. Sua inteligên-



aram concernente a sua re- cia era divinamente evocada a


denção futura, presumiría- ○
discernir eventos futuros.14
mos que à Igreja fora prome- A grande preocupação de

tido um estado feliz, tranqüi- Calvino em estabelecer uma relação



lo e completamente pacífico, entre o texto bíblico e a situação da


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


depois que o povo houvesse Igreja na França fica clara na dedi-



regressado do cativeiro. A his- catória, quando afirma:


tória, porém, testifica quão



diferente foi tal regresso. Pois Mesmo assim, tenho plena



os fiéis teriam caído exaustos consciência de quantas indig-



e teriam apostatado, a menos nidades vós tendes sofrido



que fossem admoestados so- durante os últimos seis me-



bre as diversas perturbações ses – não contando os inúme-


que estavam por vir.13 ros fogos que passastes duran-



te trinta anos. Sei que, em



Segundo Calvino, o livro de muitos lugares, já conhecestes



Daniel é de grande utilidade para a a violência de turbas revoltas,



vida da Igreja, porque seu autor não o bombardeio com pedras, os


falou com suas próprias idéias, mas ataques com aço puro. Reco-

tudo o que proclamou havia sido nheço que vossos inimigos



ditado pelo Espírito Santo. Além têm sondado e esperado e,



disso, declara que “mais confiança repentina e inesperadamente,



ainda pode ser adquirida através de



outras narrativas – quando avisa


quantas misérias a Igreja enfrenta-



13
CALVINO, João. Daniel, vol. 2, pp.9-10.
ria nas mãos dos cruéis inimigos”.

14
CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.36-37.
Daniel lista seus pactos, relata os






115






interromperam suas reuniões advento de Cristo. No entan-



pacíficas com violência. Sei to, isso contém uma analogia



que alguns foram mortos em temporal; essas mesmas coi-
O COMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 110 A 129, 2008



suas casas, outros nas ruas; sas são verdadeiras para nós –


corpos foram arrastados isto é, devem ser adaptadas



como num mero esporte; para nosso uso.



mulheres foram estupradas; Daniel regozijou-se pela Igre-



até mesmo uma mulher grá- ja em miséria, por tanto tem-



vida e seu bebê não nascido po submersa num profundo
CALVINO



foram traspassados; casas fo- dilúvio de maldades, quando
VINO AO LIVRO DE DANIEL


ram quebradas e roubadas. deduziu, a partir de um cálcu-


No entanto, apesar de atroci- ○

lo dos anos, que o dia da liber-
dades ainda piores serem pas- tação previsto por Jeremias

síveis de acontecer no futuro, estava próximo. Mas o profe-



vós deveis mostrar que sois ta recebeu a resposta de que o


discípulos de Cristo, bem trei- destino do povo seria mais



nados em sua escola. Precisais duro quando fossem libertados



cuidar para que nenhuma e, como resultado, mal teriam



ação furiosa e intemperada tempo de recuperar-se da con-



dos perversos vos tire da mo- tínua sucessão de terríveis ca-



deração que até o presente lamidades.15


mostrastes e que sozinha tem



superado e quebrantado to- A declaração da dedicatória, re-



dos os seus assaltos. E se ferente à confiança na intervenção



vierdes a sentir-vos cansados de Deus para salvar seu povo, do-



por causa da longa batalha, mina o comentário. Calvino afirma


lembrai-vos da grande profe- que Deus demonstra desvelo por sua



cia que retrata exatamente o Igreja, até mesmo quando parece



estado da igreja. Naqueles haver-se descartado dessa preocupa-



dias, Deus mostrou a seu pro- ção. Por essa razão, a igreja de Cris-
José Adriano Filho


feta quais conflitos, ansieda- to não deve, de forma alguma, sen-



des, dificuldades e perigos os tir-se desanimada:


judeus enfrentariam desde o



fim do exílio e sua volta triun-



fante à própria nação até o 15


CALVINO, João. Daniel, vol. 1, p.27.






116






O profeta não nos encorajou belecer uma relação entre a situa-

 REVISTA

a ter esperança e paciência uti- ção enfrentada por eles e a situação



lizando apenas os exemplos da igreja da sua época, refere-se à



daqueles dias. Somou a isso proteção que o Senhor dispensa aos


uma exortação, ditada pelo fiéis, afirmando:

TEOLOGIA E SOCIEDADE

Espírito, que se estende a todo



o reino de Cristo, pertencen- Mas o que Daniel relata so-



do também a nós. Portanto, bre aqueles três também é



não se nos permita que se tor- pertinente a nós. Portanto, é


ne difícil sermos incluídos no ○
certo inferirmos esta doutri-
número daqueles que se afir- na geral quando o perigo nos

ma que serão testados pelo ameaça em virtude do teste-



fogo e se tornarão puros (bran- munho da verdade: em pri-


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


cos e alvos); pois todas as difi- meiro lugar, que aprendamos



culdades da cruz foram mais que nossas vidas estão nas


que compensadoras pela feli- mãos de Deus; em, segundo



cidade e glória inestimáveis lugar, que nos preparemos co-



que ela carrega. A maioria das rajosa e destemidamente para



pessoas pensa que essas coi- encontrar a morte. Quanto ao



sas não têm sentido algum. primeiro ponto, a experiência



Não sejamos contaminados nos ensina que grande núme-


por sua preguiça e enfado, mas ro se afasta de Deus e invali-



mantenhamos firme em nos- da a confissão de fé, já que



sos corações aquilo que o pro- não conseguem crer que há



feta logo declara, isto é, que em Deus força suficiente para



os ímpios se comportarão nos livrar. Obviamente, é ver-


impiedosamente porque não dade que todos dirão: ‘Deus



compreendem. No entanto, tem cuidado de nós, e nossas



os filhos de Deus serão dota- vidas estão colocadas em suas



dos de compreensão para que mãos e vontade’. Raramente,



possam apoiar-se no percurso porém, um em cem terá esta



certo do chamado divino.16 afirmação gravada de forma


Referindo-se aos companheiros



de Daniel, quando foram jogados na



fornalha ardente, Calvino, ao esta- 16


CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.29-30.






117






profunda e segura em seu co- As preleções sempre terminam



ração. Pois cada um procura com uma oração estreitamente rela-



uma maneira de preservar sua cionada com o tema que está sendo
O COMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 110 A 129, 2008



própria vida, como se Deus exposto. Tendo sempre em mente a


não possuísse poder algum. situação de perseguição a que a igre-



Portanto, quem realmente ja estava sujeita, destaca-se no co-



tira proveito da Palavra de mentário uma das orações que de-



Deus é aquele que aprende clara a confiança em Deus, que ja-



que sua vida está sob os cui- mais permitirá que os fiéis sejam atin-
CALVINO



dados do Senhor e que sua gidos pelos tiranos desse mundo:
VINO AO LIVRO DE DANIEL


proteção nos basta. Qualquer


um que tenha alcançado esta ○

Deus Todo-Poderoso, visto
fase será capaz de enfrentar que nos encontramos em pe-

centenas de riscos, pois não rigo todos os dias e em todos



hesitará em marchar para os momentos, não só da sel-


onde tenha sido chamado. vageria de um único tirano,



A única coisa que nos livrará mas todo o mundo é incitado



de todo temor e apreensão é contra nós pelo diabo e os



o fato de Deus poder livrar a príncipes deste mundo estão



seus servos de mil mortes, armados e prontos para nos



conforme está escrito nos destruir; permite que possa-


Salmos: ‘A ele pertencem os mos sentir e que possas mos-



problemas da morte’ (Salmo trar-nos através da própria ex-



68.20). A morte parece con- periência que nossas vidas es-



sumir tudo, mas é desse abis- tão em tuas mãos e que tu



mo que Deus resgata a quem serás um fiel guardião e não


ele quer. Esta convicção de- permitirás que um só cabelo



veria bastar para encher-nos de nossas cabeças caia; mas



de inabalável e inexpugnável que nos guardarás de tal ma-



constância.17 neira que os ímpios também


José Adriano Filho


saberão que hoje não nos glo-



riamos em teu nome em vão,


não te invocamos em vão. E



quando tivermos experimen-



tado teu cuidado paternal em


17
CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.208-209.





118






todo o curso de nossas vidas, Daniel declara que não existe

 REVISTA

permite que, por fim, alcan- sabedoria nos homens, exceto



cemos a bendita imortalida- aquela advinda de Deus. Al-



de que nos prometeste e que guns, é claro, são sábios; po-


está guardada para nós nos dem ser até mesmo muitíssi-

TEOLOGIA E SOCIEDADE

céus através de Jesus Cristo, mo inteligentes. Entretanto,



nosso Senhor. Amém.18 deve-se perguntar se ela vem



deles próprios. Daniel mostra



que os homens são engenho-
3- A verdadeira ○


sos e invejosos quando reivin-
sabedoria é dom dicam para si alguma coisa,

principalmente quando todos


de Deus

se sentem dominados de ad-


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


Calvino destaca a sabedoria miração por eles; pois nada



dada por Deus a Daniel na explica- possuem de si mesmos.


ção do significado das visões bem Quem se gabará de ser sábio



como na decifração de sonhos, ao por meio de suas próprias for-



contrário dos magos caldeus, cha- ças? Aquele que criou a sabe-

mados por Calvino de charlatães, doria a qual assume? Já que,



que lançam mão de um falso conhe- então, Deus é o único autor



cimento na interpretação de sonhos, tanto da sabedoria quanto da


e iludem as pessoas com falsos pre- erudição, dons com os quais



textos.19 Contrariamente à sabedo- ele adorna o homem, elas não



ria “deste mundo”, a “sabedoria de obscurecem sua glória, e sim



Deus não está oculta na escuridão, deveriam enaltecê-las.20



senão que nos é revelada”:


Daniel recebera o espírito profé-



Pois Deus diariamente nos dá tico, ao contrário dos sábios segun-



disso claras e seguras evidên- do “este mundo” que não possuem o



cias. Aqui ele corrige a ingra- dom da revelação e prometem mais



tidão humana; toda vez que


retratem o louvor da excelên-



18
CALVINO, João. Daniel, vol. 1, p.110.
cia de Deus e o atribuem a si

19
CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.91, 97-99.
próprios, se chegam bem pró-

20
CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.117-118.
ximos do sacrilégio. Por isso,






119






do que podem comprovar.21 A co- tacou-os com uma porção



mentar a sabedoria de Daniel e seus dobrada do Espírito. Entre-



amigos, Calvino afirma: tanto, é importante que man-
O COMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 110 A 129, 2008



tenhamos os nossos olhos em


Aqui o profeta apresenta o Daniel, pois, como já menci-



que já mencionamos – a ra- onamos, o Senhor antes de-



zão porque ele obteve autori- terminou que fosse ele profe-



dade foi para que cumprisse ta, e queria, por assim dizer,



mais as tarefas de profeta. Ele condecorá-lo com sua insíg-
CALVINO



precisava destacar-se com nia oficial, para que seus
VINO AO LIVRO DE DANIEL


marcas nítidas, para que os ensinamentos já encontras-


judeus, primeiramente, e de- ○

sem uma recepção de ante-
pois os estrangeiros, ficassem mão preparada. Diz ele, por-

cientes de ser ele dotado com tanto, que a estes quatro jo-

o espírito profético. Parte des- vens (isto é, rapazes) foram


sa graça foi concedia a seus dados conhecimento e cultu-



três amigos. (...) Devemos ra em toda erudição e sabe-



tomar nota desse propósito, doria; Daniel, porém, foi do-



pois seria fútil dizer que essa tado com o singular dom da

foi uma recompensa a eles interpretação de sonhos e



paga por Deus em virtude de discernimento de visões.22


sua frugal e até mesmo míni-



ma ingestão de alimento, e de No comentário sobre Daniel



sua voluntária abstinência dos 2.21: “ele dá sabedoria aos sábios e



prazeres da corte. entendimento àqueles que são do-



O propósito de Deus era bem tados de entendimento”, Calvino


diferente. Ele queria, como já declara que Deus é autor da sabe-



dissemos, exaltar a Daniel doria e da erudição, dons com os



para que este pudesse mostrar quais ele adorna os homens e que

eficazmente que o Deus de Is- não obscurecem sua glória:


José Adriano Filho


rael era o único Deus. E tam-



bém porque tencionava que


os amigos de Daniel, no futu-



ro, ocupassem altos cargos na CALVINO, João. Daniel, vol. 1, p.103.


21

CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.75-76.


política governamental, des-
22






120






(...) a sabedoria de Deus não cem sua glória, e sim deveri-

 REVISTA

está oculta na escuridão, se- am enaltecê-las.23



não que nos é revelada. Pois



Deus diariamente nos dá dis- A sabedoria e o entendimento,


so claras e seguras evidênci- portanto, são dados por Deus para a

TEOLOGIA E SOCIEDADE

as; Aqui ele também corrige glória do seu nome, como diz a ora-



a ingratidão humana; toda vez ção que finaliza a quarta preleção:



que retraem o louvor da ex-



celência de Deus e o atribu- Deus todo Poderoso, de


em a si próprios, se chegam ○
quem procede todo dom per-
bem próximos do sacrilégio. feito – e embora alguns ho-

Por isso, Daniel declara que mens superem a outros em



não existe sabedoria nos ho- inteligência e clareza mental,


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


mens, exceto aquela advinda ninguém possui nada de si



de Deus. Alguns, é claro, são mesmo, mas distribuis a cada


sábios; podem ser até mesmo um de acordo com tua graci-



muitíssimo inteligentes. En- osa liberalidade – permitas



tretanto, deve-se perguntar se que usemos qualquer enten-



ela vem deles próprios. dimento dado por ti para a



Daniel mostra que os homens verdadeira glória de teu



são engenhosos e invejosos nome. Permitas também que


quando reivindicam para si al- o que quer que nos seja dado

guma coisa, principalmente possamos, com humildade e



quando todos se sentem do- modéstia, entender que vem



minados de admiração por de ti e que cuidemos bem



eles; pois nada possuem de si para nos mantermos em so-


mesmos. Quem se gabará de briedade, não desejando de-



ser sábio por meio de suas mais ou corrompendo o co-



próprias forças? Aquele que nhecimento verdadeiro e ge-



criou a sabedoria a qual assu- nuíno das coisas, mas perma-



me? Já que, então, Deus é o necendo na simplicidade para



único autor tanto da sabedo- a qual nos chamas. Permitas


ria quanto da erudição, dons também que não mais nos



com os quais ele adorna os



homens, elas não obscure- 23


CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.117-118.






121






prendamos a coisas terrenas, a um rei do que ver suas or-



mas que aprendamos a elevar dens rejeitadas. Querem que



nossas mentes à verdadeira todos sejam obedientes, até
O COMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 110 A 129, 2008



sabedoria de conhecer-te mesmo quando o que ordenam


como o verdadeiro Deus, e seja em extremo injusto. No



dá-nos a obediência à tua re- entanto, tudo indica que, de-



tidão. Que estejamos conten- pois, o rei consegue dominar-



tes com apenas esta coisa, se, quando pergunta a



obedecer-te e nos consagrar Sadraque, Mesaque e Abede-
CALVINO



inteiramente a ti, para que teu Nego se estão ou não prepara-
VINO AO LIVRO DE DANIEL


nome seja glorificado duran- dos para adorarem seu deus e


te toda a nossa vida, através ○

a imagem de ouro. Ao falar-lhe
de Jesus Cristo, nosso Se- em tom hesitante, oferecendo-

nhor. Amém. lhes ainda um escolha aparen-



temente espontânea, é possível


4- Poder e idolatria
Poder antever certa moderação nas

palavras. Pois é como se os li-


As exposições dos capítulos que


bertasse da acusação sob a con-


relatam as perseguições sofridas por


dição de deixar-se persuadir no


Daniel seus companheiros (Daniel


futuro. Não obstante, sua fúria


3-6). Nesse momento, Calvino men-


ainda refervia sob a enganosa


ciona freqüentemente o arbítrio dos

aparência de moderação, por-


governantes. Ele não desvincula a


quanto logo em seguida ele


interpretação do texto bíblico da si-


acrescenta: ‘Se não obe-


tuação vivida pelas igrejas reforma-


decerdes, sereis lançados numa


das da França frente aos governantes


fornalha de fogo ardente’. Fi-


naquele período.
nalmente, ele se prorrompe em

Na preleção sobre a recusa dos


horrível sacrilégio e blasfêmia,


amigos de Daniel em obedecer à or-


dizendo que não existia deus


dem do rei de adorar a estátua que


capaz de livrar esses homens


José Adriano Filho

este mandar construir, ele afirma:


santos de sua mão.24



Em primeiro lugar, Daniel re-



lata que o rei ficou furioso, en-



raivecido. Pois nada irrita mais


24
CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.200-201.






122






Calvino reflete sobre o poder ao sejos de todos estarão soltas.

 REVISTA

se referir ao rei Nabucodonozor, É por essa razão que afirmo



quando afirma: que uma tirania é melhor, e



pode prevalecer mais facil-


Em primeiro lugar, sob a fi- mente, do que a anarquia, pois

TEOLOGIA E SOCIEDADE

gura de uma árvore, o próprio onde não há governo, tam-



Nabucodonozor é bém não há ninguém para rei-



prefigurado. Não que ele nar e manter o restante preso



corresponda ao rei em todos aos seus deveres. (...) Em se-


os aspectos, mas porque ○
gundo lugar, ele desejava mos-
Deus estabeleceu impérios no trar que, embora os tiranos e

mundo com o fim único de outros governantes que se es-



que fossem como árvores, quecem de seus deveres não


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


cujos frutos todos os mortais exibam o que Deus pôs sobre



pudessem comer e sob cuja eles, ainda assim a graça de


sombra pudessem descansar. Deus sempre brilha sobre to-



No entanto, esse desígnio di- dos os impérios.



vino triunfa para que os tira- Os tiranos lutam para apagar



nos, não importa quão distan- completamente toda e qual-



tes estejam de um reinado quer luz de retidão e justiça e



moderado e justo, sejam for- para tudo confundir. Todavia,


çados, queiram ou não, ser o Senhor os sustenta de uma



‘árvores’; pois é preferível vi- forma secreta e incompreen-



ver som o mais selvagem dos sível, para que se vêem força-

tiranos do que sem nenhum dos a fazer algo proveitoso em



governo. Podemos imaginar prol da humanidade, quer


que somos todos iguais; mas, queiram quer não. Eis que o

afinal, qual é o resultado de que devemos guardar dessa



tanta anarquia? Nenhum dará figura ou imagem da árvore.25



lugar ao outro; cada um ten-



tará qualquer coisa que pos- Ao comentar o episódio em que



sa. O resumo de tudo será a Daniel foi lançado na cova dos le-

licenciosidade para pilhagem



e saque, fraude e assassinato.



Em suma, as rédeas dos de- 25


CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.249-250.






123






ões, Calvino afirma que muitas ve- de temer que tal desacordo viesse a



zes os reis e seus conselheiros são estremecer o governo”. Nesse sen-



brutos e ignorantes: tido, os príncipes, quando querem
O COMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 110 A 129, 2008



legislar acerca da adoração a Deus,


Notamos nas cortes dos reis costumam olhar para o que lhes



que os lugares mais elevados agrada, e não para o que Deus or-



são ocupados por bestas sel- dena. Tal audácia e imprudência é



vagens. Pois, sem querer re- que leva aqueles investidos de auto-



petir velhas histórias, os reis ridade a fabricar deuses e ordenar a
CALVINO



de hoje são todos estúpidos e sua adoração:27
VINO AO LIVRO DE DANIEL


brutos; são como cavalos e ju-


mentos entre os animais sel- ○

É oportuno observarmos a di-
vagens; de modo que, quanto visão de três tipos de deuses:

mais ousado for e mais des- os ‘filosóficos’, os ‘políticos’



caradamente empurrar al- e os ‘poéticos’. Os deuses aos


guém, mais autoridade se quais chamam de ‘filosóficos’



granjeia nas cortes. Entretan- são aqueles em quem há al-



to, quando Daniel afirma que guma razão natural para ado-

era mais excelente, ele nos ração. Obviamente, é verda-



apresenta um duplo benefício de que os filósofos se mos-



provindo de Deus: que ele era tram completamente insensa-


dotado de um espírito supe- tos quanto disputam tanto



rior; e que Dario, aqui, reco- sobre a essência quanto sobre



nheceu esse espírito, e portan- a adoração devida a Deus. Ao



to, assim que percebeu nele seguirem suas próprias idéi-



um homem diligente e dota- as, necessariamente não che-


do de sabedoria incomum, gam a parte alguma. Porquan-



então o magnificou.26 to Deus não pode ser apreen-



dido pela mente humana (...)



Segundo Calvino, “Nabucodo- Contudo, também havia uma


José Adriano Filho


nozor queria estabelecer a religião religião entre os gentios, fun-



entre todas as nações sob as quais


então ele reinava, afim de que ne-



nhum distúrbio ocorresse no meio 26


CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.361-362.

de uma sociedade pluralista, sendo 27


CALVINO, João. Daniel, vol. 1, p.185.






124






dada na autoridade de gera- sado, os aprovam e pensam que es-

 REVISTA

ções passadas. Chamavam a tão certos. Mas nada disso é firme,



esses deuses de ‘políticos’, pois tais pessoas não foram instruí-



porque eram recebidos por das na escola de Deus, a verdadeira


uma ‘política’ de consenso religião. Como as folhas se movem

TEOLOGIA E SOCIEDADE

comum (...) quando o vento sopra por entre as



No que diz respeito ao poe- árvores, todos os que não estão en-



tas, os filósofos foram força- raizados na verdade de Deus oscila-



dos a ceder ao capricho das rão e serão lançados para frente e


massas, mas, ao mesmo tem- ○
para trás quando algum vento so-
po, ensinar que era nocivo o prar. O decreto régio é como uma

que os poetas aparentavam e violenta tempestade e os que não se



inventavam sobre a natureza acham solidamente plantados na


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


dos deuses. Portanto, havia no Palavra de Deus, e não entendem



mundo quase que uma só re- nada do que é absolutamente ver-


gra de adoração a Deus; essa dadeiro, são arrastados pela investida



era, por assim dizer, o alicerce de tal tempestade.29



da piedade. (...) “a autoridade Portanto, quando as Escrituras



augusta dos anciãos é tudo o pretendem distinguir o verdadeiro



de que você precisa’ (...) o ápi- Deus de todos os deuses inventados,



ce da sagacidade entre os gen- declara que Deus governa todas as


tios é que o consenso reinava coisas por sua mão, que as mantém

em lugar da razão.28 debaixo do seu domínio e que nada



fica escondido dele. São coisas que



Nabucodonozor ergueu um novo não podem ser separadas quando a



Deus, pretendendo introduzir uma majestade de Deus está sendo con-


nova forma de religião, sob o pre- siderada:



texto de que sua memória seria ce-



lebrada pelas gerações futuras, Vemos os homens fabrica-



como o fazem também os rem-se coisas para si, e então



governantes atuais, que não pergun- chegam a possuir uma



tam o que é consistente com a Pala-


vra de Deus e o que é piedade genu-



28
CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.185-187.
ína. Eles consideram apenas os er-

29
CALVINO, João. Daniel, vol. 1, p.190.
ros legados pelas gerações do pas-






125






incontável miscelânea de deu- turas desejam assegurar o que



ses, atribuindo a cada um seu é próprio de Deus, juntam



próprio ofício. Isso porque estas duas coisas insepara-
O COMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 110 A 129, 2008



não conseguem contentar-se velmente: que Deus prevê to-


com uma simples unidade no das as coisas no sentido em



tocante a Deus. Outros in- que nada há que se possa ocul-



ventam uma espécie de tar de sues olhos; e, então, que



semideuses. (...) Confessam ele mesmo determina o que



que nada podem ocultar-se de há de vir, governa o mundo
CALVINO



Deus, mas que ele prevê to- de acordo com sua vontade;
VINO AO LIVRO DE DANIEL


das as coisas; e a isso atribu- nada acontece por acaso, se-


em todas as previsões que são ○

não unicamente em conso-
feitas nas Escrituras. O que nância com seu governo. Por-

dizem é verdade. Não tanto, Daniel agora toma esse



obstante, com isso ofuscam a princípio, ou estes dois princí-


glória de Deus – não, ele o pios, a saber, que somente o



esmiúçam completamente; Deus de Israel merece o nome



pois fazem dele um mero de Deus, pois somente a ele



Apolo, cuja função nos tem- pertencem a sabedoria e o



pos antigos era a de prever o poder. Lembremo-nos, por-



futuro (...) tanto, de que Deus é defrau-


Há muitos hoje crendo que dado se seu justo louvor quan-



Deus é assim, que ele prevê do esses dois princípios não são

todas as coisas; mas, ou ele mantidos intactos – que ele



guarda seus segredos, ou tem diante dos olhos todas as



deliberadamente se retrai do coisas, e que ele governa o


governo do mundo. (...) a mundo para que nada aconte-



“presciência de Deus”, por ça alheio à sua vontade.30



esse prisma, é insípida e cons-



titui uma especulação infun-


José Adriano Filho


dada. Como disse, roubam a



Deus uma parte de sua glória


e, o quanto são capazes, o par-



tem em pedaços (itálico meu).



Entretanto, quando as Escri- CALVINO, João. Daniel, vol. 1, pp.112-113.


30






126






Considerações possibilidade de aplicá-lo ao mo-

 REVISTA

mento atual da igreja.


finais


Nesse sentido, Calvino estabele-



Calvino utilizou todos os meios ce uma relação constante entre a


históricos e filológicos à disposição situação de sofrimento vivida pelo

TEOLOGIA E SOCIEDADE

para alcançar uma exegese bíblica povo de Deus na época de Daniel e



contextual, cujo objetivo último era a situação similar das igrejas na Fran-



provocar a fé, a qual surge quando ça, no momento em que a Reforma



o Espírito Santo prepara o caminho lançava ali suas raízes e nos primei-


para tal. Importa, pois, para Calvino, ○
ros anos do seu desenvolvimento.
o testemunho interno do Espírito Tanto nas exposições da primeira

Santo. Opondo-se à interpretação parte, Daniel 1-6, quando apresen-



medieval alegórica, afirmava que o ta a situação de perseguição do vivi-


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


sentido histórico do texto é o sensus da pelo povo de Deus e a relaciona



verus (“sentido verdadeiro”), sendo com a vida atual da igreja, quanto


o fio condutor da interpretação da na segunda parte, Daniel 7-12,



Escritura 2 Timóteo 3.16-17: “Toda onde, segundo ele, Deus prediz, atra-

a Escritura é inspirada por Deus e vés de Daniel, os sofrimentos que



útil para o ensino, para a repreen- aguardavam o povo eleito. As expe-



são, para a correção, para a educa- riências amargas vividas pelo povo

ção na justiça, a fim de que o ho-


de Deus no passado e pela Igreja dos


mem de Deus seja perfeito e perfei- seus dias são similares.



tamente habilitado para toda boa A menção freqüente do arbítrio



obra.” dos governantes não pode ser



Para Calvino, o comentário de desvinculada da situação vivida pe-



um texto bíblico deve ser breve, las igrejas reformadas da França


transparente. A interpretação do frente aos governantes da época de



texto bíblico deve esclarecer o con- Calvino. Os santos enfrentariam



texto histórico do texto, dar a devi- sofrimentos, mas, segundo Calvino,



da atenção às circunstâncias histó- os que dominam sem admitir o Deus



ricas em que se originou e investi- único o usurpam de sua honra pe-


gar de forma meticulosa a gramáti-


culiar, sendo antes ladrões que reis.


ca do texto. Importa o sentido lite- Apesar disso, ele não deixa de men-

ral do texto, porém a ênfase no con- cionar, em nenhum momento, a



texto original não deve excluir a confiança em Deus, que jamais per-






127






jetória de nossa luta e por fim



mitirá que os fiéis fossem atingidos alcancemos aquele feliz des-



pelos tiranos desse mundo, além de canso que nos está prepara-
O COMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 110 A 129, 2008



afirmar que Deus dá sabedoria e do no céu por Cristo nosso


Senhor. Amém.


entendimento aos fiéis, para a gló-


Deus Onipotente, visto que


ria do seu nome.


Esta confiança está presente nas outrora permitiste que teus



orações que encerram a trigésima servos mantivessem sua cora-



terceira e a trigésima nona preleções: gem em meio a tantas e tão
CALVINO



variadas comoções, faz com
VINO AO LIVRO DE DANIEL


que extraiamos a mesma

Deus onipotente, visto que

outrora admoestaste teus ser- ○

edificação dessas profecias; e
vos de que teus filhos, enquan- visto que temos chegado à

to forem peregrinos neste plenitude dos tempos, faz com



mundo, devem estar bem a que tiremos proveito dos


exemplos da Igreja antiga e


par de bestas horríveis e cru-


das piedosas e santas admo-


éis, caso a mesma coisa vier a


suceder-nos, que estejamos estações que puseste diante



preparados para todo e qual- de nós. E assim possamos



quer combate. Que suporte- permanecer firmes e



mos e vençamos todas as ten- invencíveis contra todos os


ataques de Satanás, do mun-


tações, e que jamais duvide-


do e dos ímpios, e assim nos-


mos de teu intuito de defen-


der-nos por tua proteção e sa fé permaneça inexpugná-



poder; consoante tua promes- vel, até que, por fim, desfru-

sa. Que prossigamos pelos temos o fruto de sua vitória


em teu reino celestial, por


meandros de inumeráveis pe-


Cristo nosso Senhor. Amém.


rigos, até que se conclua a tra-





José Adriano Filho
















128




“ ○

 REVISTA



Nabucodonozor ergueu um novo Deus,



pretendendo introduzir uma nova



forma de religião, sob o pretexto de

TEOLOGIA E SOCIEDADE


que sua memória seria celebrada pelas



gerações futuras, como o fazem



também os governantes atuais, que


não perguntam o que é consistente

com a P alavra de Deus e o que é


Palavra

piedade genuína. Eles consideram



apenas os erros legados pelas


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP



gerações do passado, os aprovam e



pensam que estão certos. Mas nada



disso é firme, pois tais pessoas não



foram instruídas na escola de Deus, a



verdadeira religião. Como as folhas se



movem quando o vento sopra por



entre as ár vores, todos os que não


árvores,

estão enraizados na verdade de Deus



oscilarão e serão lançados para frente




e para trás quando algum vento



soprar
soprar.. O decreto régio é como uma

violenta tempestade e os que não se



acham solidamente plantados na



Palavra de Deus, e não entendem



nada do que é absolutamente



verdadeiro, são arrastados pela



investida de tal tempestade.












129






Comentário de Calvino




a 1 Coríntios


OCOMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 130 A 147, 2008












CALVINO



VINO A 1 CORÍNTIOS


Introdução guto; de outra foi defensor ina-


Paulo Sérgio de P
reo Rodrigues de Oliveira



balável. A bíblia, para ele, esta-
Calvino, passados 500 anos ○

va a serviço da igreja.
de seu nascimento, ainda tem

Já sabemos a importância de-


algo a dizer. É necessária uma

cisiva que a bíblia teve para a Re-


reavaliação de seu legado, na cir-


forma. Nos embates religiosos da


cunstância especial e festiva da


época destacou-se como comen-


data, o que não deixa de ser um


Proença

tarista fiel das Escrituras, cuja


roença
roença*

exercício prazeroso. Calvino é o


porta de entrada era o corpus


mesmo, cristalizado na memó-

paulino. Assim, comentou pri-


ria – muitas vezes tirana e ingra-



*

meiramente Romanos, que ocu-


ta; poucas vezes familiar e ami-


pa primazia entre os teólogos;


ga – da história. O mundo, con-


depois, 1 Coríntios, escrito de


tudo, é outro, daí a possibilida-


importância ética para o cristão,


de de dirigirmos, para sua obra,

apresentado neste trabalho, da


novo e inquieto olhar, de quem

seguinte forma: primeiramente,


não quer perder referências. Esse



Paulo Sérgio de Proença

serão comentados a influência do


olhar pode descobrir coisas no-


Humanismo e os recursos

vas – e atuais!

exegético-hermenêuticos usados

Calvino foi homem de seu


por Calvino; depois, as estratégi-


tempo, apaixonado pela bíblia e

as para a elaboração do comen-


pela igreja. De uma foi leitor ar-


tário e alguns temas da epístola.



Leitoras e leitores ficam desafia-



* O rev. Paulo Sérgio é pastor, deão e professor dos a lerem, na íntegra, o comen-

no Seminário Teológico de São Paulo (IPIB).


tário.






130






I. Influência do afetaram sua teologia. A interpre-


 REVISTA

tação das Escrituras não dependia


Humanismo


apenas da capacidade humana, mas

COMENTÁRIO
REVIST
REVISTA


Renascimento e Reforma são principalmente da eficácia do Espí-


rito, que é a garantia da compreen-


distintos movimentos, embora haja

TEOLOGIA E SOCIEDADE
A TEOL

aproximações entre eles. Se o são de seu conteúdo.

TEOLOGIA

humanista enfatiza a grandeza do


OGIA E SOCIEDADE Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São P


homem, o reformador foca a honra
Princípios

DE CAL

e a grandeza de Deus, conforme

acentua Boisset: “... enquanto o ○
exegéticos e

CALVINO

humanista há de fazer prodígios de


hermenêuticos

VINOVol.A 1 1nº 5,

erudição para compreender, o



reformador procurará abrir-se à ins- Como exegeta e intérprete das



piração divina, persuadido de que Escrituras, Calvino usou o texto gre-


go, conhecimentos de crítica textu-


somente ele será capaz de tornar


CORÍNTIOS
al e valorizou o contexto histórico.

compreensível o sentido de sua Pa-

novembro de 2008, São Paulo, SP


lavra para aqueles que o procuram” Não deu importância à distinção



(1971, p. 17). entre letra e espírito, porque rejei-



Calvino aceitou o princípio tou a alegoria, diferenciando-a do


sentido literal (natural). Foi Orígenes


humanista segundo o qual um texto


quem valorizou a alegoria para dar


antigo depende, para ser interpre-


tado, do conhecimento do original. conta de pontos difíceis do texto bí-



Ele levava os originais para o púlpi- blico. Por exemplo, na narrativa da



to. Seus interesses críticos foram criação, o que importa para Orígenes

além das questões de autoria, con- é o sentido espiritual, revelado por


Deus, para benefício da igreja, e não


texto histórico, filologia e retórica.


Nenhuma dessas questões se sobre- a historicidade do texto. Uma difi-


Paulo

aulo
aulo,, SP PÁGINAS 1

punha ao seu objetivo maior: a culdade sugeria a leitura alegórica.


Paulo Sérgio de P

edificação da igreja. Agostinho tomou rumo um pou-



Calvino foi um humanista, sim. co diferente. Para ele, a bíblia foi dada

para a edificação da igreja; contudo,


Mas não a ponto de aceitar qualquer


não estava preocupado com as difi-


esperança na regeneração moral ou


espiritual do ser humano. Adotou culdades do texto, mas com suas



princípios teóricos e ferramentas de possibilidades para edificar, a partir


130

30 A 147 

Proença

análise do Renascimento que não da fé, da esperança e do amor. Quan-


roença





131






do algum texto falhava em edificar, Dificuldades textuais podem ser



devia-se olhar sob ou além da “letra explicadas pela noção de acomoda-



que mata”, para o sentido espiritual ção, que se refere ao ajustamento
OCOMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 130 A 147, 2008



que “dá vida”. A igreja medieval divino às limitações humanas, das


estruturou a proposta de Agostinho quais algumas são permanentes e



e a chamou “quadriga”. Além do sen- outras variáveis, sujeitas a circuns-



tido literal, havia outros três, corres- tâncias históricas. A bíblia ilustra a



pondentes às virtudes teológicas (fé, acomodação a culturas cambiantes,



CALVINO

esperança e amor): 1) alegórico (fé), porque Deus não tratou Israel de



aquilo em que se deve crer; 2) forma única em circunstâncias di-
VINO A 1 CORÍNTIOS


tropológico (amor), o que a igreja versas e tratou a igreja de forma


deve fazer; 3) anagógico (esperança), ○

diversificada. A Revelação aconte-
o que a igreja deve antecipar. Por ce em tempo e espaço diferentes e

exemplo: Jerusalém não era somen- sob condições de finitude.



te uma cidade do antigo Israel, mas A acomodação é significante ele-


alegoricamente a igreja; tropolo- mento na interpretação de Calvino:



gicamente, a alma crente; anago- é o “processo pelo qual Deus ajusta



gicamente, a cidade celestial. Poste- às capacidades humanas o que ele



riormente, foi feita distinção entre quer revelar dos infinitos mistérios

sentido literal, dividido entre literal- do seu ser, o que, por sua própria

histórico (referente a eventos do pas- natureza, está além dos poderes da


sado) e literal-profético (eventos do mente humana compreender”



porvir). Ambos são literais. Isaias 53, (Holder, 2006, pp. 248-9). Revela

por exemplo: Israel como servo so- algo da própria bíblia, que não ofe-

fredor corresponde ao sentido lite- rece completo entendimento da na-



ral-histórico; Jesus Cristo, como re- tureza de Deus, mas uma concep-

Paulo Sérgio de Proença

dentor, ao literal-profético, ambos ção parcial apenas, própria à habili-



ocorridos na história e entendidos dade da compreensão humana.



como tipo e antítipo (Steinmetz,



2006, p. 284). Calvino aceitou a lei-


1
Em seu comentário de 1 Coríntios 9.8-9, Calvino dá

tura tipológica (sentido literal-duplo, uma mostra de sua apreciação do método alegórico:

“... não devemos cometer o equívoco de imaginar que


acima); não teve disposição para Paulo pretenda explicar este mandamento alegorica-

mente; pois algumas criaturas cabeça-oca fazem disto


aceitar a leitura alegórica, que pro-

uma justificativa para transformar tudo em alegoria,


de modo que convertem cães em homens, árvores em


move ampliações cujas relações não

anjos, e convertem toda a Escritura num divertido


têm suporte no texto. 1 jogo” (p. 270).








132






Deus fala aos homens como uma pretação da Escritura deve ser feita

 REVISTA

mãe fala ao bebê. Exemplo de aco- para a igreja, toda interpretação é



modação foi a encarnação, pela qual subordinada ao julgamento da igre-



Deus trouxe salvação aos seres hu- ja. Calvino simplesmente assume


manos; testemunha a condescen- que o lugar da Escritura é dentro da

TEOLOGIA E SOCIEDADE

dência divina em se revelar em con- igreja, sua esfera própria é dentro



ceitos humanos. Segundo Rogers, “a da igreja e os membros da igreja cor-



noção de acomodação capacitou os retamente lêem, consideram, obe-



teólogos a fazerem a exegese das decem e vivem a Escritura”


Escrituras de uma forma que o mé- ○
(Holder, pp.252-3).
rito de Deus foi preservado e as li-

Calvino intérprete-

mitações humanas puderam ser



aceitas”. (1998, p. 36). Desdobra-


comentarista da

Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


mento da acomodação é a assunção


Bíblia

de que a linguagem da bíblia é crua


e não refinada, pois sua autoridade


A bíblia sustentou, por assim di-


não era baseada no estilo nem na


zer, a Reforma. Os reformadores


perfeição material, mas no conteú- foram leitores atentos das Escritu-



do salvífico. ras. Alguns não somente a leram,



Enfim, sintetizam-se os princípi- mas a traduziram e comentaram.



os hermenêuticos: epistemologia Comentando Romanos, Calvino per-


hierárquica (a mente humana tem


cebeu que Paulo reinterpretou os


um limite, além do qual não pode escritos do AT, à luz da morte e res-

ir); autoridade da Escritura (ação do surreição de Jesus. Por isso, ele acre-

Espírito e não perfeição textual); ditava que o coração da Escritura



acomodação; unidade do testemu- está nas epístolas paulinas. 3 Teólo-


nho da Escritura (AT e NT contêm



a mesma doutrina); a mente do au-



tor; 2 o círculo hermenêutico (con- A linguagem era representação do pensamento, idéia


2

que tem origem por volta do século XIII, com os


texto do livro, de outros livros do chamados gramáticos especulativos: “... (do latim

speculum, que significa espelho)... a linguagem reflete


autor, da bíblia; a leitura da igreja – os traços fundamentais do nosso pensamento e do


mundo”. Para a gramática especulativa, a língua é


da tradição e da comunidade atu- espelho da organização do raciocínio (Silva, s/d.


al); a edificação da igreja. Calvino


Disponível na internet: www.unicamp.br).


assume a importância da igreja na 3


Termina as epístolas (exceto 2 e 3 Jo) e se volta

para os Evangelhos e Atos; não comentou o


tarefa de interpretação: “Toda inter- Apocalipse.








133






go paulino, para ele, o trabalho do mentarista da bíblia. Entre 1540 e



intérprete é captar a mente do au- 1546, trabalhou no comentário de



tor; no caso, a mente de Paulo, ou o 1 Coríntios. O período coincide
OCOMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 130 A 147, 2008



senso de sua teologia. com o seu retorno a Genebra, em


As Institutas nasceram para ser que estava preocupado com suas



um guia a todos os que quisessem próprias atividades pastorais e com



estudar a bíblia.4 A igreja era uma a qualidade dos pastores:



verdadeira escola, a schola Dei (es-



CALVINO

cola de Deus), cujo perfeito currí- Nossos colegas são mais obs-



culo era a Escritura. Contudo, avan- táculos do que ajuda para nós:
VINO A 1 CORÍNTIOS


çar nesse estudo sem um guia seria eles são rudes e personalistas,


partir para uma viagem sem um ○

não têm zelo nem preparo.
mapa. Ele não esconde sua intenção Mas, o que é pior de tudo, eu

de que os comentários sejam utili- não posso confiar neles, mes-



zados conjuntamente com as mo que eu quisesse muito


Institutas, que funcionam como um isso; por muitas evidências



guia hermenêutico e propedêutico.5 eles demonstram que são es-



tranhos a nós e dão muito di-



Influência de ficilmente alguma evidência



de uma disposição sincera e


atividades

confiável (p. 237).


pastorais

Essa preocupação explica a in-



sistência em seguir o modelo pasto-


O comentário a 1 Coríntios

ral de Paulo e se reflete na quantida-


ocorreu num tempo em que


de de exortações pastorais contidas


Calvino teve desafios como pastor.

Paulo Sérgio de Proença

no comentário, que interagem com


Os conselhos pastorais nos dois pri-


as Institutas, como já foi notado.


meiros comentários indicam que



Paulo foi modelo de pastor, sobre-



tudo porque as circunstâncias da



vida de Paulo interferem de forma 4


No prefácio das Institutas de 1559 ele afirma:

“Ainda mais, tem sido meu propósito preparar e


significativa em seus escritos.

instruir candidatos à santa teologia para a leitura da


divina Palavra”.
Isso ocorre, de igual forma, com

5
Calvino adotou a tendência dos teólogos medievais
Calvino. Circunstâncias de sua vida

de ensinarem os livros bíblicos, capítulo por capítulo,


interferiram em seu trabalho de co- versículo por versículo.







134






II. Estratégias e “Ele poderia ter-se expresso assim...”

 REVISTA

(p. 474); “É como se dissesse...” (p.


temas desenvolvidos


484); “Este, portanto, será o senti-



Serão apresentadas, primeira- do...” (p. 488). 6 É comum o recur-


mente, algumas estratégias presen- so ser usado em seqüências sintáti-

TEOLOGIA E SOCIEDADE

tes no comentário abordado e, em cas truncadas, em partes que acu-



seguida, uma seleção de alguns te- sam divergências de leituras prove-



mas da epístola. nientes de traduções ou de apoio de



manuscritos diferentes ou, ainda,

1. Estratégias ○

quando há dificuldades de fundo
doutrinário.

identificadas

Apresentação de

O reformador seguiu o ensino de


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


contra-argumentos por

Cícero, o de combinar esmero com


meio de perguntas

brevidade (brevitas): ir direto ao


ponto, embora “brevidade” não fos-


Apresentação de argumento con-


se uma medida fixa para ele; ela va-


trário, 7 com acréscimo da opinião


ria de acordo com a dificuldade do julgada correta. Vejamos este exem-



assunto. Também primava pela cla- plo, em que se apresentam apenas



reza (claritas). Para assegurá-la, ele os termos que marcam a seqüência


se serviu de alguns outros recursos,


dos elementos assinalados e a evo-


para que seus leitores pudessem


lução do comentário, que dá ênfase


compreender não somente pontos aos argumentos contrários, para



obscuros da bíblia, mas também melhor refutá-los: “Algumas pesso-



seus argumentos e pontos de vista. as... A objeção deles... Sua segunda



Os exemplos não têm a intenção objeção... Já afirmei que... Ainda


de compromisso com a exaustão.


resta outra questão...” (p. 294-5).



Este outro exemplo também refor-


Reelaboração por ça a importância do recurso: “To-



perífrases

É comum haver perífrases de


6
Para fazermos referência ao comentário de Calvino a

1 Coríntos, mencionaremos apenas o número da


passagens bíblicas difíceis ou ambí-

página.

guas. Essas perífrases são sempre


7
É provável que isso seja influência do estilo do

introduzidas por “fórmulas” de próprio Paulo. Sabe-se que Paulo usava a diatribe

para apresentação de seus argumentos, o que tem


reelaboração, cujas principais são:

grande valor persuasivo.







135






davia, alguém poderá chegar à se- necessária para a interpretação mais



guinte inferência... Minha resposta correta. Além de fatos históricos,



é que...” (p. 486). são citados historiadores também.
OCOMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 130 A 147, 2008



As perguntas são poderosas ar-


mas de envolver o leitor no raciocí- Polêmica com o



nio apresentado, além de exigir re- “papismo” e princípios



ação e elaboração mental deles. Às católicos



perguntas elaboradas, todas em tor- São freqüentes as referências à



CALVINO

no do texto comentado, são apre- polêmica com o catolicismo,



sentadas respostas esclarecedoras.
VINO A 1 CORÍNTIOS

identificada pelo termo “papismo”


Um exemplo: “Como esta cláusula

e derivados. Citamos, a título de

se harmoniza com o que Paulo ensi- ○
○ exemplo, o comentário de 13.8: “Os
na em Efésios 2.3...? A isso respon- papistas torcem este versículo a fim

do que...” (p. 216). de buscarem apoio para o dogma



que, sem qualquer autoridade


Uso de dados

escriturística, inventaram, a saber:


históricos

que as almas dos mortos estão oran-


do a Deus em nosso favor” (p. 399).


Não é desprezível a importância


dada à história como terreno para A polêmica deve ser entendida à luz

interpretação dos textos antigos. A do momento histórico. Em todo



aplicação desse princípio levou à caso, para ser um bom polemista, é



contextualização histórica dos even- preciso ter inabalável convicção de


idéias e forte desapego ao que os


tos, pois, dependendo do contexto,


homens mais prezam. Não é preci-


uma passagem poderia ter diferen-


tes sentidos.8 so dizer que a polêmica tem alto



São muitas as referências a da- valor apologético e se sustenta por



Paulo Sérgio de Proença

dos históricos para reforço dos ar- momentos de tensão insuperáveis,



gumentos e idéias. Em 1 Co 11.14 às vezes.



(p. 338) há um sumário histórico


sobre o corte de cabelo, que escla-



rece o ponto em discussão. É co-



mum haver comentários que de-


8
Além do contexto histórico, há o contexto literário

monstram aguda percepção da in- que, uma vez considerado, impedia o erro da

atomização (separação de palavra ou versículo do


serção no contexto histórico como contexto) no processo de interpretação.









136






Bíblia, tradição reconhecer as ligações entre partes

 REVISTA

exegética e literatura seqüenciais do texto, identificar as



rupturas e seqüências naturais de
não bíblica



boa coesão. O sólido conhecimento


É sabido que Calvino, como
das línguas originais pode ser per-

TEOLOGIA E SOCIEDADE
humanista, tinha sólida formação.


cebido nas inúmeras remissões a


Conhecia não somente bíblia e teo-


elas, cujos termos são analisados sob


logia, mas os principais autores do


o ponto de vista semântico e a com-


patrimônio cultural conhecido na


preensão do encadeamento sintáti-

época. Além dos autores ligados à

co não era de forma alguma despre-
teologia, ele cita historiadores, filó- ○

zada, a julgar por algumas frases que,


sofos e escritores, entre outros. Por


por necessidade de “clareza”, são


exemplo, ao comentar o cap. 5.1,


comentadas. Questões relativas à


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


cita uma tragédia de Sófocles, Édipo

tradução sempre ocuparam sua pre-


Rei (p. 153).


ocupação, principalmente em virtu-


São mais numerosas, contudo, as

de de comparação entre a Vulgata,


menções aos Pais da Igreja, a outros


manuscritos e textos estabelecidos.9


reformadores e citações bíblicas.


Múltiplas são as observações de


Crisóstomo, Cipriano, Ambrósio,


divergências entre esses testemu-


Agostinho e Jerônimo são alguns


nhos, que são avaliados com inde-


importantes nomes da exegese que


pendência, segurança de filólogo e


ele cita, dos quais os seus preferi-

competência lingüística. Calvino ti-


dos são Crisóstomo e Agostinho. Os


nha consciência dos percalços a que


versículos bíblicos constituem, sem


a transmissão do texto estava sujei-


dúvida, as citações muito mais nu-


ta, pela interferência dos copistas.


merosas, principalmente em conse-


Para isso, vejamos estas duas passa-


qüência de seus princípios

gens. Em 15.31, diz: “A Vulgata traz


hermenêuticos.



Línguas originais e

9
Os teólogos medievais não liam grego nem hebraico;
questões textuais

por isso, usavam a Vulgata, aumentada com glosas


de tipo interlinear e marginal. As glosas, em sua


Revestem-se de grande interes-

maioria, eram breves citações dos primeiros Pais da


Igreja ou resumo do ensino deles. Parece que Calvino


se para o comentário, em virtude de

não deu muito valor a essas glosas. Ele usou a


sua natureza, as evidências de gran- Vulgata, é verdade, mas sob o rigor de um exegeta

consciente e competente. Tinha ele consciência de que


de exegeta que Calvino foi. Sabia ele a tradução era interpretação.








137






‘por causa de’, mas isto é obviamen- Divisão e unidade na



te devido à ignorância dos copistas, Igreja



pois não existe qualquer ambigüida-
OCOMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 130 A 147, 2008

Às divisões que podem ocorrer



de na partícula grega...” (p. 474). Em na igreja não se aplicam a diferen-


1 Co 15.51 menciona que não há


ças de opinião, que, por si mesmas,


variantes nos manuscritos gregos,


não causam necessariamente divi-


embora haja três diferentes redações


sões. Estas se insinuam por meio da


no latim. Depois de apresentá-las,


ambição, “a fonte de todos os ma-


CALVINO

Calvino conclui: “Minha conjetura les... a mais danosa de todas as en-



é que estas diferenças são oriundas
VINO A 1 CORÍNTIOS

fermidades... Resumindo: a unida-


do fato de que alguns revisores, sen-

de da igreja repousa principalmen-

do um tanto obtusos, e achando a ○

te nesta única coisa: que todos nós
redação genuína um tanto

dependemos unicamente de Cristo”


desenchavida, tomaram a iniciativa (p. 46). Calvino é um severo defen-



de substituí-la pela que entendiam sor da unidade da igreja, porque nin-


ser a mais provável” (pp. 489-90).


guém tem o direito de reivindicar



autoridade nela e sobre ela, a não


2. Temas de
Temas

ser Cristo mesmo.



1 Coríntios

Retórica e “artes”

Pretende-se, agora, ouvir o gran-


em geral

de reformador falar. Esta breve se-



leção de temas e apresentação de Ao comentar 1 Co 1. 17 (p. 53),


Calvino diz que Paulo não usou os


poucos excertos, ainda que preten-


recursos retóricos que dominava


da ser significativa, não foge ao dano


para evangelizar os coríntios, mas


a que toda escolha provoca: perdas.


apresentou, de forma simples, o


Paulo Sérgio de Proença

Apresentamos alguns temas de



1 Coríntios com pequenos trechos poder da cruz de Cristo. Ele formu-


la então a pergunta seguinte: “Pau-


reproduzidos. É claro que a expan-


lo, neste versículo, condena comple-


são, própria do comentário, fica pre-


tamente a sabedoria de palavras


judicada, aqui, pela brevidade deste


trabalho. O critério para apresenta- como algo que se acha em oposição



ção dos temas é a possibilidade de a Cristo?”. Ao que ele responde di-



maior relevância atual. zendo que as artes são










138






esplêndidos dons de Deus, Disciplina moral e

 REVISTA

dons estes que poderíamos tirania



chamar instrumentos para O caso de incesto do capítulo quin-



auxiliarem os homens no de- to merece atenção. A gravidade da


sempenho de suas atividades

TEOLOGIA E SOCIEDADE
situação exige remédio amargo e ime-


nobres. Portanto, não há nada


diato. Deve-se ser vigilante para afas-


de irreligioso nessas artes,


tar a “imundícia”. Devia-se recorrer à


pois são detentoras de ciên- exclusão. O poder de excomunhão foi



cia saudável, e estão subordi- dado à igreja; quando, por necessida-


nadas a princípios verdadei- ○

de de preservação de sua pureza, o


ros; e visto que são úteis e

recurso deve ser usado (p. 155). 11 O


adequáveis às atividades ge-


colégio de anciãos (nosso atual Con-


rais da sociedade humana, é


selho) deve ser incumbido da respon-

Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


indubitável que sua origem sabilidade. No entanto, a exclusão



está no Espírito (pp. 53-54; deveria ter o consentimento do povo


grifos nossos).

e não ficar sob a responsabilidade de



uma única pessoa, para evitar o peri-


A idéia é reforçada no comentá-


go da tirania:

rio em 3.19, acrescida de uma exor-



tação significativa. As artes huma- Portanto, notemos bem que,



nas, por melhor que sejam, são ser- em se tratando de uma ques-

vas e não senhoras, e devem se sub-


tão de excomunhão, esta or-


meter à soberania de Deus (p. 120).


dem regular deve ser mantida,


Observe-se quão significativa é a


a saber: que esta disciplina


concepção de todas elas como ori- particular deve ser exercida



ginadas no Espírito.10 pelos anciãos consultores,



reunidos, e com a anuência do



10
Harrisville e Sundberg, ao sintetizarem o pensamen- povo. E notemos ainda que

to de Calvino, enfatizam este aspecto do pensamento


do reformador: “Que um antigo jurista pudesse este é um remédio preventi-


estabelecer os princípios da ordem civil e um filósofo


vo contra a tirania. Porque

descrever de forma precisa o mundo natural não são


coisas que devam ser temidas pelos cristãos, nem as nada existe em mais frontal

conquistas da medicina e da matemática. Devemos


admirar esses avanços e dar graças a Deus e


agradecer a Deus os conhecimentos que recebemos...



O divino Espírito dispensa benefícios [dons] ‘a quem


ele quer, para o bem comum da humanidade’” (1995, 11


Ele encontra apoio ao princípio da exclusão

p. 20). Note-se que não se diz “para o bem comum também nas epístolas pastorais, principalmente em 1

da Igreja”. Timóteo.





139






oposição à disciplina de Cris- admiração pelo estado de solteiro,



to [...] do que a tirania; e a tratavam (sic) com desdém o sagra-



porta se abre amplamente do estado matrimonial” (p. 194). O
OCOMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 130 A 147, 2008



para ela quando todo o poder ato sexual com a esposa jamais pode


fica circunscrito a um único ser considerado impuro (p. 199). A



homem (p. 157). virgindade, pensaram alguns, era a



maior das virtudes, daí que o celi-



O reformador de Genebra foi bato passou a ser valorizado. Com



CALVINO

extremamente zeloso em defender isso, proibiu-se o matrimônio aos



a pureza moral da Igreja e integri- ministros da igreja, o que Deus mes-
VINO A 1 CORÍNTIOS


dade das Escrituras, para o que não mo reprova, pela própria instituição


media esforços nem tinha medo de ○

do casamento. O celibato é um dom,
se expor a riscos. Em seu testamen- uma questão de consciência e não deve

to, em que se identifica como mi- ser nunca imposição externa, desres-

nistro da Palavra, já à beira da mor- peito à liberdade (crítica ao celibato


te, isso é confirmado: “De igual católico). Uma síntese bem feita so-

modo, em todas as disputas que hei bre o matrimônio é a seguinte:



travado contra os inimigos da ver-



dade jamais usei de dolo nem (1) o celibato é preferível ao



sofismática, ao contrário, procedi matrimônio, visto que ele nos



sempre com toda lisura...” (Beza, mantém livres e, em conse-


2006, p. 88). qüência, nos propicia melhor



oportunidade para o serviço



Matrimônio e de Deus. (2) Todavia, não se



lugar da mulher deve usar qualquer atitude



Calvino desenvolve o tema do compulsória com o fim de



Paulo Sérgio de Proença

impedir os indivíduos de con-


casamento ao comentar o capítulo


traírem o matrimônio, caso


sétimo. São citados princípios con-


queiram fazê-lo. (3) Além do


trários, que inclusive ridiculariza-


vam o matrimônio; menciona-se mais, o matrimônio, intrinse-



também que, desde que a igreja ti- camente falando, é o antído-



nha sido fundada, “uma falsa cren- to que o Senhor providenciou


para as nossas fraquezas; e


ça infiltrou-se nela através das arti-


todo aquele que não é aben-


manhas de Satanás... uma grande


çoado com o dom da castida-


proporção, mantendo uma infantil







140






de, deve valer-se dele (p. 242). mem pode ter e, sim, da pre-

 REVISTA

eminência que Deus confere



O matrimônio é interpretado ao homem, de modo a fazê-



à luz do momento histórico que via lo superior à mulher. A glória


o mundo ordenado por posições de Deus é percebida num es-

TEOLOGIA E SOCIEDADE

comandadas pela hierarquia, o que tado mais excelente através



garantia a estabilidade. Sobre o co- do homem, assim como é re-



brir ou não a cabeça, se é próprio fletida em cada autoridade



ou não à mulher, Calvino diz que “o superior (p. 334).


pai de família é considerado rei. ○
É presunção da mulher qualquer
Portanto, ele reflete a glória de tentativa de elevação a uma posição

Deus... Se o homem cobre sua ca- que não lhe é de direito. Esta foi a

beça, ele se rebaixa daquela pree- porção atribuída por Deus; elas de-

Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


minência na qual Deus o colocou” vem estar contentes com isso e,



(p. 331). Cobrir a cabeça é sinal de como a vida solitária não faz bem

sujeição, esse é o critério de avalia- ao homem, a mulher é uma



ção, o costume então adotado. Em ajudadora indispensável (p. 337).



todo caso, deve-se notar que, para



Paulo, a adequação às circunstânci- Ceia e sacramento



as era o que importava. Mas, am- “Deus nos traz à comunhão com

bos, homem e mulher, não são ima- ele por meio dos sacramentos” (p.

gem de Deus (v. 11.7)? Sobre isso,


314). Participar da ceia é participar


Calvino diz: do corpo de Cristo:





... ambos os sexos foram cri- O pão é o corpo de Cristo por-



ados segundo a imagem de que ele presta indubitável tes-


Deus, e Paulo insiste que as


temunho do fato de que todo


mulheres, tanto quanto os


o corpo, que o simboliza, nos


homens, são recriados segun- é comunicado... aqui a reali-



do essa imagem. Porém, ao dade é associada ao sinal; em



falar desta imagem, aqui, ele outras palavras, realmente



está a referir-se ao estado con- nos tornamos partícipes do


jugal... Paulo não trata, aqui,


corpo de Cristo, no tocante


da inocência ou santidade que ao poder espiritual, da mes-



a mulher, tanto quanto o ho-








141






ma forma que comemos pão meio do poder secreto do Espírito



(p. 353). Santo.



Os sacramentos são “testamen-
OCOMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 130 A 147, 2008



A doutrina da transubstan- tos” e nos despertam a certeza da


ciação, segundo a qual, após a con- salvação. Na ceia, o vinho deve ser



sagração, o pão deixa de ser pão em distribuído com o pão. A celebra-



sua essência, permanecendo apenas ção adequada da Ceia contempla a



os acidentes externos e passa a ser declaração de fé do crente (p. 360)



CALVINO

o corpo de Cristo, não é aceita por e “comer indignamente” é não se



Calvino12. O pão é alimento e, para submeter ao poder de Deus:
VINO A 1 CORÍNTIOS


isso, deve ter a substância e não a


aparência de pão. Além disso, se o ○

Ora, se alguém não possui se-
corpo de Cristo está no céu, como quer um leve vestígio de fé

pode ser oferecido na terra? 13 Pen- vigorosa ou de arrependimen-



sam alguns que o corpo de Cristo to autêntico, e nada do Espí-


está em todo lugar, pois, como es- rito de Cristo, como poderia

sência divina, é onipresente. Os receber o próprio Cristo?



escolásticos diziam que “Cristo Mais que isto, visto que o tal

deve ser encontrado no pão, como se acha completamente sob o



se estivesse encarcerado nele” (p. controle de Satanás e do pe-



355). Presta-se, neste caso, adora- cado, como estaria apto a re-

ção e isso não passa de idolatria. ceber Cristo? (p. 362).



Calvino assume que a presença de



Cristo se faz, de fato, na ceia, por Algumas pessoas, mesmo sendo



fracas na fé, recebem Cristo na ceia.



Isso porque a eficácia dos sacramen-



Paulo Sérgio de Proença

tos não depende da participação



humana. O que significa fazer um



12
Para Calvino, a transubstanciação era uma espécie
“auto-exame”? Os “papistas” diziam

de mágica, influenciada pelo paganismo. A bênção do


cálice proporciona comunhão, pela incorporação a que era a confissão auricular. Para

Cristo. Somente assim - podem os crentes ser unidos


uns aos outros. Calvino era simplesmente o cultivo



13
Esta pergunta de Calvino, citando uma objeção de fé e arrependimento:

conhecida, é um recurso de construção textual muito


poderoso, sob o ponto de vista da argumentação,


porque, além de dialogar com idéias contrárias, refina


Daí, para que o leitor se apre-

o ouvido do leitor para a explicação que ele quer dar


e enfatizar. sente bem preparado, o exa-








142






me precisa estar baseado e sóbria. Vejamos sua concepção de

 REVISTA

nestes dois elementos. No profeta. “Profeta” é o mensageiro de



arrependimento incluo o Deus; é ele quem explica os misté-



amor, pois é indubitável que rios de Deus para a instrução dos


a pessoa que aprendeu a ne- que ouvem:

TEOLOGIA E SOCIEDADE

gar-se a fim de devotar-se a



Cristo e ao seu serviço, tam- ... Paulo conceitua estes pro-



bém se entregará de corpo e fetas, não como dotados com



alma à promoção da unida- o dom de profetizar [=vatici-


de que Cristo nos recomen- ○
nar, predizer], senão que
dou. Aliás, o que se exige não eram abençoados com o dom

é fé perfeita ou arrependi- único de ocupar-se da Escri-



mento perfeito... Mas se o tura, não só de interpretá-la,


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


leitor é sério em sua inten- mas também na demonstra-



ção em aspirar a justiça de ção de sabedoria em usá-la


Deus, e se, humilhando-se para satisfazer as necessida-



ante a consciência de sua pró- des do momento (p. 390).



pria miséria, você recorre à



graça de Cristo, e descansa A diferença em relação aos



nela, esteja certo de que é um mestres é que estes deveriam pre-



convidado digno de aproxi- servar e propagar a sã doutrina.


mar-se desta Mesa. Ao afir- Em todo caso, sempre a finalida-



mar que você é digno, estou de dos dons, cuja origem comum

dizendo que o Senhor não o é o Espírito, deve ser a edificação



deixa fora, ainda que em ou- da igreja.



tros aspectos você não este- O dom de línguas foi entendido


ja como deveria. Porque a fé, por Calvino de forma muito inte-



ainda que imperfeita, trans- ressante; não como “glossolalia”



forma o indigno em digno (p. (forma de expressão que não se con-



364). funde com nenhuma linguagem hu-



mana), mas como diversidade de


Os dons do Espírito

línguas humanas: “Paulo está a re-


ferir-se a todas as línguas humanas,


Particularmente interessante é o

comentário sobre os capítulos que sem distinção, as quais eram de gran-



tratam dos dons do Espírito. É atenta de valia na proclamação do evange-








143






lho entre as nações” (p. 411).14 Ao liberdade concedida a mulheres, Pau-



cabo, Calvino achava que não se lo as proíbe de falar em público; de-



devia dar muita atenção às línguas, vem elas se restringir ao que é “con-
OCOMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 130 A 147, 2008



uma vez que à profecia cabia priori- veniente”, pois, se à mulher cabe a


dade. E, ainda, o dom de línguas submissão, ela não tem autoridade



exigia interpretação, o que o fazia para falar em público. (p. 438).



equivaler à profecia e, por outro



lado, não participa da comunhão da Ressurreição



CALVINO

igreja quem não se expressa de for- Pela sua morte, Cristo se fez par-



ma compreensível.
VINO A 1 CORÍNTIOS

ticipante da natureza humana mor-



tal. A sua ressurreição nos faz parti-

Deus não é [autor] de ○
○ cipantes, juntamente com Ele, da
confusão: a liturgia natureza divina, pois pela expiação

em foco de nossos pecados somos reconcili-



ados com Deus, nesta e na outra


14.33 é importante. Para Calvino,


o serviço verdadeiro que se pode vida. A ressurreição é o fundamen-



prestar a Deus é o cultivo da paz, pois to do evangelho; sem ela, resta-nos


o logro do nada, a ruína total, a


“onde os homens amam a disputa,


maldição do pecado. Nós, contudo,


estejamos plenamente certos de que


“temos plenos direitos, pois, de


Deus não está reinando ali” (p. 436).


A sensação que a paz provoca não motejar da morte como um poder



exclui luta bendita contra os inimi- vencido, porque a vitória de Cristo


é a nossa própria vitória” (p. 496).


gos de Deus e da igreja. Parece que


Qual será a natureza do corpo


não havia paz nas celebrações


ressuscitado? Paulo não se ocupa


litúrgicas em Corinto, possivelmen-


te porque havia tagarelice feminina. desta questão, uma vez que, para

Paulo Sérgio de Proença

Para administrar eventual excessiva ele, Deus fará tudo de acordo com

sua vontade e poder – e isso é sufi-


ciente saber e crer. Como e quando



isso se dará é um mistério (p. 489).



14
A igreja pode sobreviver sem o dom de línguas; mas
A nós nos cabe sermos abundantes

elas podem ser cooperadoras da profecia; surpreen-


dentemente, ele cita como exemplo deste caso o (15.58), pois move-nos a esperança

hebraico e o grego (p. 430). A diversidade de línguas


não impediu que os apóstolos promovessem avanço de que uma vida melhor nos está

na evangelização primitiva, pois são sinal para os


preparada, “pois a esperança na res-

incrédulos. Afinal, isso é próprio à “acomodação”


divina.
surreição produz o efeito de fazer-






144






nos incansáveis na prática do bem” Conclusão

 REVISTA

(p. 497).


Calvino foi um homem de seu



tempo, com os aspectos positivos e
Adoção de práticas



negativos nisso implicados. Mas sua


externas

TEOLOGIA E SOCIEDADE
obra ainda fala, com relevância ao



Uma última observação, referen- “nosso” tempo.



te ao mau costume de se admitirem A família reformada ainda con-


práticas externas e nocivas à igreja.


serva, de forma geral, formação con-


Calvino, comentando o v. 11.1, ad-

sistente para seus pastores, com ên-

mite conseqüências negativas que ○


fase nas disciplinas bíblicas e históri-


essa imitação poderia acarretar à cas, principalmente o estudo das lín-

igreja. Sua crítica ainda hoje – prin- guas originais da bíblia e metodologia

cipalmente hoje! – permanece váli-

Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


exegética apropriada. Isso tudo é con-

da, quando a Igreja corre o risco de


seqüência da centralidade da bíblia


descaracterização completa na

para a Reforma em geral e para


liturgia, na doutrina, no ensino, na Calvino em particular.



ética. Não precisamos copiar nada Além disso, deve-se ressaltar seu

nem devemos ter vergonha de ser- zelo pela pureza moral da Igreja, de

mos reformados:

que deriva uma disciplina compatí-



vel. Deve-se evitar a tirania, fonte de


E as pessoas mundanas tam- divisão e ausência de Deus. A igreja



bém possuem uma tendência é a schola Dei, para a qual o único



mui natural de seguir toda sor- currículo válido é a Palavra de Deus.



te distorcida de exemplos... e, Em nossa volta ao reformador de


assemelhando-se aos símios,


Genebra, não podemos exigir, de


esforçam-se por fazer precisa-


forma anacrônica, respostas a per-


mente o que vêem fazer aque- guntas então não formuladas, como

les que exercem grande influ- emancipação feminina e sua respec-



ência... Além do mais, estamos tiva influência na ética matrimoni-


a par do volume de mazelas


al, participação de crianças na ceia


trazidas para dentro da Igreja


etc. Contudo, o conjunto de sua


por esta irracional avidez de obra nos ajuda a elaborar, de forma



imitar-se tudo...” (p. 326). adequada, respostas compatíveis











145






com nossa herança de fé. mirado seu trabalho pela



Como comentarista das Escritu- mesma razão. Em um sécu-



ras, deixa-nos um legado que não lo que produziu mais do que
OCOMENTÁRIO DE CAL
PÁGINAS 130 A 147, 2008



se pode perder: uma justa divisão de interes-



santes e originais comen-


Os comentários de Calvino tadores da Escritura, católi-



foram lidos em sua própria cos e protestantes, Calvino



época porque foram conside- permanece como um dos



CALVINO

rados uma genuína compre- melhores. Na época, achou-



ensão do significado da Es-
VINO A 1 CORÍNTIOS

se que valia a pena lê-lo. Ain-


critura. Desde então, novas

da hoje vale (Steinmetz,

gerações de leitores têm ad- ○
























○ 2006, p. 291).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Paulo Sérgio de Proença

BEZA, Theodoro de. A vida e a morte de João Calvino. Campinas: LPC, 2006.

BOISSET, Jean. História do Protestantismo. S. Paulo: Difusão Européia do Livro, 1971.


CALVINO, João. 1 Coríntios. S. Bernardo do Campo: Paracletos, 1996.


——————————. As Institutas. S.Paulo:Cultura Cristã, 2006.


HARRISVILLE, Roy A. e SUNDBERG, Walter. The Bible in Modern Culture. Grand Rapids: B. Erdmans,1995.

HOLDER, R. W. “Calvin as commentator on the Pauline epistles”. In: MCKIM, Donald. K. (Ed.). Calvin and

the Bible. N. York: Cambridge University Press, 2006.


LEITH, John H. A tradição reformada. S. Paulo: Pendão Real, 1996.


ROGERS, Jack B. “Autoridade e Interpretação da Bíblia na Tradição Reformada”. In: MCKIM, Donald K.

(Ed.). Grandes Temas da Tradição Reformada. S. Paulo: Pendão Real, 1998.


SILVA, S. R. A precursora e a sucessora da gramática de Port-Royal.(s/d). Disponível na internet:


www.unicamp.br/ iel/ site/alunos/publicacoes/textos/p00006.htm. (Acesso em 19.7.2008).


STEINMETZ, David. C. “John Calvin as an interpreter of the Bible”. In: MCKIM, Donald. K. (Ed.). Calvin and

the Bible. N.York: Cambridge University Press, 2006.








146






 REVISTA






TEOLOGIA E SOCIEDADE

“ ○






Os comentários de Calvino

foram lidos em sua própria época



porque foram considerados uma



genuína compreensão do

Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


significado da Escritura. Desde



então, novas gerações de leitores



têm admirado seu trabalho pela



mesma razão. Em um século que



produziu mais do que uma justa




divisão de interessantes e

originais comen tadores da


comentadores

Escritura, católicos e

protestantes, Calvino permanece



como um dos melhores. Na



época, achou-se que valia a pena



lê-lo. Ainda hoje vale (Steinmetz,



2006, p. 291



















147





João Calvino
Calvino,,





leitor de Salmos


JOÃO CAL
PÁGINAS 148 A 159, 2008





CALVINO



VINO
VINO,, LEITOR DE SALMOS









Em seus quase 55 anos de quanto a Instituição.

Marcos P
reo Rodrigues de Oliveira


vida, o reformador francês João ○

A exegese para Calvino tinha
Calvino escreveu comentários a um único objetivo: a edificação

muitos livros da Bíblia e sobre


do povo de Deus. Ele se opunha


Paulo ○

outros muitos textos das Escri-


aulo Monteiro da Cruz Bailão

a todo o tipo de tratado, muito



turas trabalhou de maneiras di- comum em sua época, que ser-



ferentes. Ele é considerado um visse apenas para a demonstra-



dos grandes comentaristas da ção da erudição do autor, mas



Bíblia de todos os tempos. Não que em nada ou pouco acrescen-


obstante, há quem veja tanta tasse à vida do povo de Deus.



importância na Instituição da Neste artigo pretendemos



Religião Cristã que o seu traba- examinar o labor exegético do



lho de interpretação e exposição reformador de Genebra especi-



da Bíblia passa a ser considera- almente no que tange ao Antigo



Bailão∗

do uma obra de menor relevân-


Testamento, particularmente o
Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão

cia. Porém não era assim que en- livro de Salmos. Faremos uma


tendia o próprio Calvino. Para vista geral sobre as questões en-



ele, a tarefa de interpretação e volvidas sempre procurando



aplicação das Escrituras era, no aplicar ao citado livro vétero-


mínimo, de tanta importância


testamentário e no fim, obser-


varemos mais de perto a leitura



que Calvino faz do Salmo 1. Ini-



ciaremos observando os modos



* O rev. Marcos é professor no Seminário pelos quais Calvino expôs os es-


Teológico de São Paulo.


tudos que fez da Bíblia.








148






As formas de dia após dia, cuidadosamente anota-


 REVISTA

va cada palavra pregada para seu pró-


exposição


prio proveito espiritual. Após a sua

JOÃO TEOLOGIA
REVIST
REVISTA


Tradicionalmente é muito morte, outros compiladores deram


seqüência a esse mesmo trabalho.


enfatizado o trabalho do reformador

A TEOL
CAL
CALVINO

de Genebra em comentar os livros

TEOLOGIA

VINO
VINO,
da Bíblia. De fato, essa face de sua  2. Congregações. São muito

OGIA E SOCIEDADE Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São P


E SOCIEDADE
obra não pode ser esquecida. Porém, conhecidas as reuniões realizadas to-

, LEITOR DE

realçar apenas este lado não faz jus- das as sextas-feiras lideradas por


tiça a Calvino. Sua leitura da Bíblia, ○
Calvino. A presença era obrigatória
e particularmente do Antigo Testa- a todos os pastores da cidade e

mento, abrange quatro formas de apelava-se aos pastores do campo



exposição: para que também comparecessem,


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


sempre que possível. Outros inte-

SALMOS

 1. Sermões. Como pastor na


ressados poderiam participar. Nes-


cidade de Genebra, Calvino teve


sas reuniões chamadas de Congre-

uma intensa atividade no campo da


gações e realizadas em francês,


proclamação da palavra na forma de


cada um poderia expor seu comen-


homilias. Em 1541 esta atividade


tário sobre um determinado texto


compreendia dois cultos dominicais


bíblico e, certamente, Calvino ex-


e outros três em dias da semana.


punha o seu próprio.


Porém a partir de 1549, além dos

cultos dominicais, eram realizados

Marcos P

 3. Preleções. Uma outra for-


cultos diários em um horário antes


ma de exposição e que nem sempre


da maioria das pessoas iniciarem os


é tão lembrada foram as preleções


seus trabalhos. Calvino pregava nos


Paulo

que Calvino apresentava regular-


aulo Monteiro da Cruz Bailão

dois cultos dominicais e na maioria


Paulo

mente aos estudantes e outros estu-


aulo
aulo,, SP PÁGINAS

dos dias da semana.


diosos interessados. Eram proferi-


Seus sermões eram basicamen-


das em um latim simples e exigia


te exposições das Sagradas Escritu-


que os ouvintes tivessem algum co-


ras, quase sempre apresentando em


nhecimento das línguas bíblicas, gre-


seqüência a exposição de um livro


go e hebraico, visto que nelas se co-


bíblico. Como Calvino pregava sem

mentava a respeito do sentido de al-


nenhum tipo de notas, o registro de


gumas palavras nesses idiomas. Sua


148 A 159 

seus sermões era feito por um refu-


audiência devia ser formada por


giado francês, Dennis Raguenier que,







149






adolescentes de cerca de quinze cês a fim de que um maior número



anos de idade. Tinham, portanto, de pessoas pudesse ter acesso a eles.



um tom mais acadêmico. Seus comentários observam uma
JOÃO CAL
PÁGINAS 148 A 159, 2008



É Importante notar que o co- ordem muito simples. Tomando uma


mentário ao livro de Salmos de parte do texto para discussão, ele


CALVINO


Calvino (1557) surgiu após o primeiro explica detalhadamente o


VINO
VINO,, LEITOR DE SALMOS


reformador francês apresentar pre- significado daquela porção e depois



leções sobre este livro e enquanto faz uma não menos rica aplicação



discutia o texto das unidades deste daquele ensino na vida dos leitores.



livro nas Congregações. A princípio No caso dos Salmos, ele inicia com


ele não pensava em publicar outro uma discussão sobre a autoria, o con-


comentário, mas devido a insisten- ○

texto histórico e outras questões re-
tes pedidos de seus amigos e diante ferentes ao poema específico.

da ameaça de ver publicada uma


Pressupostos da

versão não autorizada, decidiu por


tal empreendimento. Se as prele-


exegese de Calvino

ções não foram exatamente a fonte



para o comentário de Salmos, cer-  1. Dois lados das Escrituras:



tamente foram a sua inspiração. o lado divino.





 4. Comentários. Não só o co- Para Calvino não há a menor


mentário aos Salmos foi escrito em sombra de dúvida de que a Bíblia é



concomitância com as exposições Palavra de Deus e o que foi nela es-



feitas nas Congregações. Os comen- crito não aconteceu por vontade




Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão

tários a Deuteronômio e Josué tam- humana, mas por ação do Senhor



bém o foram, o que mostra que a através do Espírito Santo. Moisés e


preocupação e o ambiente que de- os profetas falaram impulsionados



ram origem a esses trabalhos foi o por Deus e eles não tinham condi-

pastoral. Comentários a alguns dos ções de escrever o que escreveram



salmos e ao de Deuteronômio se se pela boca do Senhor não lhes fora



transformaram em sermões. falado. As Escrituras Sagradas têm


autoridade porque foram dadas por


Na maioria das vezes os comen-


tários foram escritos em latim, sen- Deus. Em última análise, o Espírito



do que o reformador tinha a preo- Santo é o autor das Escrituras.



cupação de traduzi-los para o fran- A divina inspiração da Bíblia é tão








150






clara e forte para Calvino que ele sam o texto bíblico e influenciaram

 REVISTA

chega a dizer que a Bíblia foi ditada a sua redação e até mesmo o seu



por Deus. Porém, não se deve pen- ensino.



sar que Calvino tomava a expres-


são “ditada por Deus” como o fize-
Princípios da

TEOLOGIA E SOCIEDADE

ram os fundamentalistas séculos


exegese


mais tarde. A análise do método



exegético e mesmo a leitura dos Calvino tinha alguns princípios



comentários e sermões em que o de trabalho que não são explicitados


reformador de Genebra expõe os ○ em nenhum texto específico, mas
textos bíblicos, mostra que ele não

que são observados como pano-de-


negou a influência de fatores huma- fundo de seus escritos.



nos na redação bíblica. Mesmo


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


quando afirma que a Bíblia foi dita-  1. O princípio de clareza e



da por Deus e que nada de origem brevidade.


humana foi adicionado a ela, ele está



se referindo ao seu ensino, pois em


Calvino entendia que o comen-


seu labor exegético considera ques- tário a um texto bíblico deveria pri-

tões históricas e literárias. mar pela clareza e brevidade. Estas



não eram, por certo, as qualidades


 2. Dois lados das Escrituras:


mais importantes de um trabalho


o lado humano.

exegético, mas princípios decisivos.


Como o objetivo da exegese era a



Em nenhum escrito Calvino ex- edificação da igreja, considerava vãs



plicou devidamente qual o seu con- as elaborações interpretativas que



ceito de inspiração da Bíblia. Seja pouco acrescentavam à compreen-


qual for, ele nunca negou a partici-


são do ouvinte ou leitor e serviam


pação humana nesta tarefa. A sua


apenas para demonstrar a erudição


análise de questões que envolvem o do exegeta. Mesmo a necessidade



estilo literário, o pensamento e a de refutar posições de outros co-



intenção de um ou outro autor, os mentaristas deve estar submetida a



contextos históricos e geográficos este princípio. A fim de que o co-


nos quais os autores bíblicos esta-


mentário fosse claro para quem o


vam envolvidos mostram claramen- ouvisse ou lesse, ele deveria ser o



te que as questões humanas perpas- mais breve possível. A explicação








151






deveria estar clara e concisa para que como quando indica que 2 Pedro



fosse facilmente entendida. não poderia ter sido escrita pelo



Entretanto, é preciso salientar mesmo autor de 1 Pedro, dadas as
JOÃO CAL
PÁGINAS 148 A 159, 2008



que a brevidade que ele defendia não diferenças entre o vocabulário e es-


pode ser confundida com demasia- tilo literário de ambas as epístolas.


CALVINO


da simplificação ou superficialida- Os escritores do Antigo Testa-


VINO
VINO,, LEITOR DE SALMOS


de no trato do texto bíblico. Simpli- mento, porém, viveram na escuri-



cidade de ensino não pode ser en- dão, pois ainda não havia se levan-



tendido como pouca profundidade tado o Sol de justiça. Eles viveram



na análise e no uso dos instrumen- na fé e esperança, mas limitados


tos de pesquisa. pelo fato de estarem ainda sob uma




religião obscura e incompleta. As-
 2. O princípio de buscar de- sim, o propósito e a intenção des-

terminar a intenção do autor. ses escritores eram restritos pelas



suas próprias condições e limita-


Calvino escreve na carta que en- ções.



via a Grynaeus que a única manei- No caso do livro de Salmos uma



ra de se compreender o real senti- posição particularmente interes-



do de um texto é conhecer qual a sante de Calvino deve ser aponta-



intenção do autor que escreveu de- da. Reconhecendo que Davi era o

terminada passagem bíblica. Para autor de muitos salmos, recusava


o reformador francês, essa tarefa a tese, muito aceita na sua época,



era considerada tão essencial à in- de que o rei belemita era autor de

terpretação bíblica que os exegetas todos eles. Ele percebia por trás de


Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão

não deveriam discordar no mínimo alguns salmos circunstâncias histó-



que fosse desse princípio. ricas de épocas como o exílio ou o


Para se conhecer a intenção de pós-exílio. E, embora Calvino clas-



determinado autor é necessário co- sifique os salmos como profecia



nhecer inclusive o vocabulário co- (seguindo citações do Novo Testa-



mum e o modo como esse autor mento) e reconhecesse que a pala-



costumava escrever. Esses elemen- vra profética poderia se referir ao



tos podem ajudar a reconhecer se futuro, ele entendia que o autor dos

um texto foi ou não escrito pelo re- salmos não aplicaria referências

ferido autor. E Calvino expressa históricas tão concretas profetica-



muitas observações nessa direção, mente.








152






Na verdade, com relação aos  4. O princípio de análise

 REVISTA

salmos, Calvino se preocupou mais lingüístico-gramatical e literária.



com as circunstâncias históricas em



que cada salmo foi escrito do que O significado empregado pelo


com a autoria especifica das uni- autor de uma passagem bíblica ao

TEOLOGIA E SOCIEDADE

dades. escrevê-la, é chamado de significa-



do original, ou significado simples.



 3. O princípio de que a Bíblia Para se chegar a ele, é necessário um



explica a própria Bíblia. conhecimento sólido das línguas



originais, grego e hebraico. Esse co-
Calvino considerava que um tex- nhecimento é necessário porque o

to bíblico só poderia ser explicado reformador de Genebra dedicava



em concordância com o restante da especial atenção ao significado de


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


Bíblia e considerava esta como um cada palavra e, nos muitos casos em



instrumento privilegiado para a ex- que esse significado era incerto, ele

plicação de cada passagem em par- não se furtava a apontar as diferen-



ticular. Graças ao grande conheci- tes opções empregadas por cada



mento que tinha das Sagradas Es- comentarista.



crituras e à sua prodigiosa memó- Calvino fazia tanta questão de



ria, ele conseguia estabelecer rela- salientar o sentido literal dos textos

ções entre diferentes textos bíblicos. bíblicos que para isso chega a dizer

Nestas relações ele não firmava as- que esses textos – ou seu sentido li-

sociação de idéias, mas procurava a teral – foram ditados por Deus. Po-

explicação de expressões, conceitos rém, é preciso esclarecer que esta



e doutrinas. ênfase era feita em oposição à inter-



Como homem de seu tempo, pretação de sentido alegórica, mui-


Calvino defendia o retorno às fon- to usada em seu tempo e da qual



tes. Portanto o estudo da Bíblia de- iremos tratar mais adiante. Não há,

veria ser feito – ao menos pelos que em Calvino, qualquer tentativa de



a estudassem em um grau mais tratar o texto bíblico desvinculado



aprofundado - nas línguas originais, de sua humanidade.



grego e hebraico. Ele rejeitava a No caso específico de Salmos, o


Vulgata como versão autorizada da significado de algumas palavras de-



Bíblia. sempenhava um outro importante



papel. Calvino observou que apare-








153






cia no início de alguns salmos como, sesse referir. Calvino não aceitava



por exemplo, os salmos 38, 70 e esse sentido alegórico do Antigo



100, uma palavra que estava relaci- Testamento. Para ele, o Antigo Tes-
JOÃO CAL
PÁGINAS 148 A 159, 2008



onada com o conteúdo daquele sal- tamento deveria permanecer em si


mo. Assim, salmos que apresenta- mesmo e não ser dissolvido em


CALVINO


vam conteúdo semelhante tinham espiritualidade atemporal e


VINO
VINO,, LEITOR DE SALMOS


no seu cabeçalho a mesma palavra. descontextualizada.



Calvino entende que entre os



 5. O princípio de análise das israelitas do Antigo Testamento e os



metáforas e alegorias. cristãos há uma similaridade. E que,


apesar da similaridade, entre os dois


Mas não só na observação do sig- ○

grupos, porém, há uma lacuna que
nificado das palavras se baseava a precisa ser transposta por uma trans-

exegese de Calvino. Ele dedicava ferência de aplicação. Mas esta trans-



tempo e reflexão para a observação posição tem seus fundamentos no tex-


e determinação do verdadeiro sig- to e no contexto histórico e não em



nificado das metáforas e de outras qualquer relação alegórica arbitrari-



figuras de linguagem. amente estabelecida pelo intérprete.



Um caso específico é a questão



das alegorias. Antigos intérpretes  6. O princípio de investigar o



cristãos da Bíblia tinham tentado contexto.


superar as dificuldades de interpre-



tação de certas passagens do Anti- Para se conhecer a intenção do



go Testamento pelo uso de um sen- autor não é suficiente conhecer o




Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão

tido alegórico. Esse método enten- sentido das palavras e das figuras de

dia que os textos possuem um sig- linguagem e o seu uso. É também


nificado escondido que é revelado a necessário investigar as circunstân-



medida que se entende as pessoas, cias e as razões pelas quais esses ter-

ações, objetos, etc. e que são como mos foram aplicados. Para isso, o

símbolos de outra realidade qual- reformador de Genebra fez uso de



quer, uma realidade espiritual, pre- todos os meios disponíveis em sua



ferencialmente. A interpretação ale- época para entender essas circuns-


górica permitia relacionar arbitra- tâncias. Calvino dedicou-se ao estu-



riamente o que fosse citado no tex- do da história, da geografia e das



to com qualquer coisa a que se qui- instituições do antigo Israel para








154






compreender o contexto histórico preende também o sacerdócio, o

 REVISTA

dos textos bíblicos, especialmente os cerimonial, a profecia e até a mo-



do Antigo Testamento. narquia) é Cristo, não era inadequa-



Em seu comentário aos Salmos do reconhecer nela o Senhor. Por


é notória a preocupação pela inves- isso Calvino aceita, ao contrário da

TEOLOGIA E SOCIEDADE

tigação das diferentes instituições alegoria, a interpretação tipológica



cultuais em que determinados sal- que reconhece nos textos do Anti-



mos deveriam ter sido empregados. go Testamento tipos de Cristo, do



Calvino relacionou alguns deles a Espírito Santo e da igreja anterior-


instituições como “assembléia sole- ○
mente já estabelecidos por Deus.
ne”, “pública ação de graças” e ou- Calvino não nega a realidade histó-

tras ocasiões como essas. rica dos personagens e eventos nar-



rados, mas afirma que o seu signifi-


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


 7. O princípio da visão cado primário é serem figuras, ti-



cristológica. pos e imagens de Cristo.


Como é de se esperar, Calvino



Para Calvino, o propósito de se foi muito cuidadoso com a interpre-



ler as Escrituras Sagradas é o de en- tação tipológica. Ele só admitia al-



contrar nelas a Cristo. Qualquer ou- guns tipos e figuras muito



tra tentativa de leitura da Bíblia não abrangentes, como o antigo Israel



alcançará o conhecimento da verda- representar o povo da nova aliança,


de, pois nele está toda a verdade. Moisés ser um tipo de Cristo, e al-

Isso não significa que Cristo será guns poucos outros. Qualquer ten-

o critério que explica todos os tex- tativa de detalhar muito essas ima-

tos ou que todo o Antigo Testamen- gens era rechaçada até com ironia.

to venha a ser simplesmente uma


João Calvino,

contínua previsão do Messias. Mas



a sua interpretação conduz a uma Salmos e o



perspectiva histórica pela qual a


Salmo 1º

encarnação cumpriu todos os desíg-



nios de Deus para a humanidade,



estabelecidos desde a sua criação. Antes de nos determos no co-


Assim sendo, e considerando mentário de um salmo especifica-



que o objetivo da Lei (entendida mente, cabe uma palavra sobre o



como sistema religioso que com- comentário como um todo, ou mais








155






propriamente sobre a introdução, a espaço e analisa com mais cuidado e



qual Calvino chama de Dedicatória. detalhadamente, é a primeira.



O comentário aos Salmos foi escri- Demonstrando a importância
JOÃO CAL
PÁGINAS 148 A 159, 2008



to entre 1553 e 1557 e Calvino con- conferida à intenção do autor, a pri-


siderou esta uma tarefa muito difí- meira frase de seu comentário diz


CALVINO


cil. Mas a sua introdução contém que o salmista queria afirmar que


VINO
VINO,, LEITOR DE SALMOS


uma bela surpresa. Mais do que dis- tudo estará bem com aqueles que



cutir questões metodológicas, por servem a Deus e que buscam incan-



exemplo, o reformador faz uma bre- savelmente estudar a lei do Senhor.



ve autobiografia e relaciona muitas Este texto serve para incentivar os


passagens do livro à suas experiên- filhos de Deus a perseverar na fé


cias pessoais. Chega a se colocar ○

mesmo em meio ao escárnio e des-
como um seguidor de Davi, a quem prezo dos muitos que consideram a

chama de profeta e considerava virtude cristã algo inútil e sem sen-



como o autor de muitos salmos, tido. Para Calvino, o Salmo 1º. mos-

comparando as situações que en- tra que o homem só pode perma-



frentou em sua própria vida com necer em uma atitude de constante



aquelas supostamente vividas pelo meditação na Lei do Senhor se esti-



belemita. ver afastado dos ímpios e perversos.



Antes de iniciar o estudo do Sal- A análise literária da estrutura do



mo 1º, Calvino apresenta uma nota v.1, enfatiza a diferenciação progres-


afirmando que, fosse quem fosse o siva dos verbos e dos substantivos

redator de Salmos, a colocação da- que nele aparecem. O reformador



quele poema logo no início não fora faz uma análise detalhada dessas


Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão

acidental, mas obedecia a um crité- palavras, preocupando-se menos



rio que é o de fazer dele uma espé- com seu significado particular, e

cie de prefácio. O Salmo 1º. ali co- mais com o sentido no texto e sua

locado serve para lembrar a todos aplicação. Para isso, faz uma dife-

os leitores a necessidade de medi- renciação entre “conselho”, “vereda”



tar na lei do Senhor pois todos os e “assento”, relacionando-as com



que assim procedem são felizes. um crescente aprofundamento da



Para sua análise, Calvino divide o vida pecaminosa.


Salmo 1º. em quatro partes: v.1-2; Continuando a análise dos ter-



v.3; v.4 e v.5-6. Para ele a parte mais mos, lança mão dos termos

importante, à qual ele dedica mais hebraicos para explicar que não vê






156






a mesma graduação crescente nos vo digno de Deus. Da submissão

 REVISTA

substantivos que qualificam os pe- amorosa nasce o desejo de contínua



cadores. Nesse sentido, o meditação na Lei do Senhor.



reformador é de extrema honesti- No comentário à segunda e à ter-


dade para com o texto hebraico. ceira partes do salmo, Calvino ana-

TEOLOGIA E SOCIEDADE

Afirmar o mesmo incremento no lisa as metáforas destes dois



grau de impiedade dos personagens versículos com ponderação, evitan-



deste primeiro verso seria perfeita- do exageros e relações que o texto



mente aceito exegeticamente e de não apresenta. Ele cita outros dois


grande interesse para a aplicação ○
textos bíblicos (Sl 37.35 e Jr 17.6)
feita pelo comentarista. Mas Calvino para melhor explicar as metáforas.

usa o entendimento da língua Elas servem apenas para indicar o



hebraica na medida certa. Por um quão diferentes são os fins do justo


Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


lado não se perde em meio a e do injusto, do que teme ao Senhor



elucubrações petulantes e inúteis, e e observa sua lei e do ímpio.


por outro lado não fica em uma aná- Na análise da última parte,

lise superficial, sem buscar o senti- Calvino comenta que o ímpio pode

do dos termos originais e a inten- alcançar sucesso e prosperidade nes-



ção do autor. ta vida, mas que o ele não entrará



Comentando o segundo versí- na assembléia dos justos, a qual o



culo, salienta o lado positivo da lei, texto faz referência. Deste modo,

como ensinamento de Deus que Calvino interpreta a instituição –



conduz o homem que se aplica ao congregação dos justos – que é cita-



seu estudo no correto serviço do da no salmo, como a vida futura na



Senhor. Calvino não interpreta a lei presença de Deus. Por isso, o ímpio

aqui apresentada como mandamen- terá o seu fim de perdição a seu tem-

tos que foram superados em Cristo po, se nesta vida ou não.



ou que conduzem o ser humano à Por sua vez, os servos de Deus



escravidão. Pelo contrário, a lei, ex- não extraem, eles mesmos, qual-

pressa em toda a Bíblia, incluindo o quer benefício de obedecer aos man-



Antigo Testamento, era para ele, a damentos do Senhor, mas o Pai mi-

maneira pela qual Deus poderia ser sericordioso os recompensará por


servido. Somente aquele que se sub- sua retidão, oferecendo-lhes sua



mete voluntária e amorosamente proteção e segurança.



aos mandamentos do Senhor é ser-








157






Conclusão bíblicos foram escritos por pessoas



que foram influenciadas por seu


Calvino empreendeu um inten-


contexto histórico, que escreveram
JOÃO CAL
PÁGINAS 148 A 159, 2008


so trabalho de estudo e exposição


segundo determinadas intenções e


da Bíblia. A importância que ele con-
que nas suas linhas deixaram suas


CALVINO

feria a essa tarefa pode ser constata-


marcas.


VINO
VINO,, LEITOR DE SALMOS

da através do tempo que dedicava a


Calvino se dedicou tanto à tare-


esse exercício e das diversas formas


fa de estudar e expor o texto bíblico


que usava para sua exposição.


porque cria que ali havia algo mais


Para esta tarefa ele se utilizou dos


que um livro qualquer, algo mais
conhecimentos mais aprofundados


que uma oportunidade para satisfa-

que estavam à sua mão. Ele buscou


zer a vaidade dos eruditos. Na ver-
um retorno ao texto trabalhando-o ○

dade ali estava a Palavra de Deus,


com honestidade. Não negou ao tex-


suficiente para edificar a vida de to-


to bíblico o seu caráter sagrado, sua


dos aqueles que desejam servir ao


origem divina. Mas também recu-


Senhor. Em todos os tempos.

sou esquecer que os diversos livros


















Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão





REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

CALVINO, João. O livro dos Salmos. São Paulo: Edições Paracletos, 1999.

GREEF, Wulfert de. “Calvin as commentator on the Psalms”, in: McKIM, Donald K. (ed.) Calvin and

the Bible. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. pp.85 – 106.



KRAUS, Hans-Joachim. “Calvin´s exegetical principles”, in: Interpretation, [31/1:8-18], Richmond:


Union Theological Seminary, 1977.


PARKER,T.H.L. Calvin´s Old Testament Commentaries. Louisville: Westminster/John Knox, 1986.


PARKER, T.H.L. Calvin´s New Testament Commentaries. 2a. edição. Louisville, Westminster/John

Knox, 1993.

PUCKETT, David L. John Calvin´s Exegesis of the Old Testament. Louisville: Westminster/ John Knox,

1995.







158






 REVISTA






TEOLOGIA E SOCIEDADE

“ ○





Calvino fazia tanta questão de

salientar o sentido literal dos



textos bíblicos que para isso



chega a dizer que esses textos



Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


– ou seu sentido literal – foram



ditados por Deus. P orém, é


Porém,

preciso esclarecer que esta



ênfase era feita em oposição à



interpretação de sentido

alegórica, muito usada em seu



tempo e da qual iremos tratar



mais adiante. Não há, em



Calvino, qualquer tentativa de




tratar o texto bíblico



desvinculado de sua

humanidade”.





















159






Sermão


 SERMÃO






Jubileu de Calvino










À semelhança das massas po-


Maurice Gardiol

Leitura bíblicas pulares presentes em Jerusalém



a) Deuteronômio 15.7 no dia de Pentecostes, nós tam-


b) Lucas 16.19-31 ○
bém podemos perguntar: qual é
Gardiol∗
c) Atos 2.1-13 o significado para hoje, no con-

texto da globalização, deste even-



to que fala da formação de uma




multidão em que cada um era


A Palavra de Deus

capaz de compreender o outro


não é para nos ensinar apesar de suas diversas origens e



a tagarelar, nem para línguas? Ou melhor, como pode-



mos entender a palavra de Jesus


nos tornar eloqüentes


prometendo-nos vida abundante


e sutis, mas para


enquanto inúmeras pessoas vi-



vem na pobreza, vítimas de vio-


reformar nossas vidas.

lência e injustiça?

(Calvino) Jesus apresenta suas palavras



juntamente com sinais de cura.



PÁGINAS 160 A 164, 2008

Mas ele também denunciou, al-



gumas vezes com palavras duras,


aqueles que, baseados em sua



interpretação da Lei, mantinham



os pobres na marginalidade. O

*Maurice, diácono da Igreja Protestante de


Genebra, foi um dos vencedores do concurso


Espírito Santo congrega as pes-

realizado para premiar os melhores sermões


referentes à celebração dos 500 anos do soas mas, ao mesmo tempo, con-

aniversário de João Calvino (www.calvin09.org).


Tradução: Eduardo Galasso Faria. vida-as a viver no caminho da









160






 REVISTA
reconciliação, que destrói as barrei- e o “bom” delineados por ele em seu



ras do ódio e da discriminação. projeto. O Espírito é aquele que nos



Calvino, fiel à mensagem do permite realizar esta obra comum


evangelho, fundou o Hospital Ge- de sabedoria. Ele liberta do rigor da


TEOLOGIA E SOCIEDADE
ral de Genebra para atender às ne- Lei, mas nos torna responsáveis pela



cessidades dos empobrecidos e ofe- elaboração de uma ética que com-



recer acolhida aos sem-teto de seu bine visão e missão em relação à



tempo. No entanto, ele também criação. Em conseqüência, Calvino



atuou considerando as causas da insiste no fato de que o mandamen-

pobreza nas áreas urbanas. Uma das ○


to “não furtarás”, refere-se primei-


causas mais importantes da miséria ramente e acima de tudo aos ricos

em sua época era a ignorância que caso falhem em suas responsabili-



prevalecia na maioria das famílias dades, roubando assim os destituí-



pobres. Em contrapartida, ele abriu dos da parte que lhes é devida. Nes-

Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


escola gratuita para todos, criando ta mesma linha, sendo o trabalho

o Colégio e a Academia para os jo- uma vocação de Deus e o salário si-



vens a fim de lhes oferecer meios nal de sua providência, privar al-

especiais para adquirir novos conhe- guém de seu trabalho com o propó-

cimentos, capacitando-os para saber sito de aumentar o próprio lucro é


falar e se conduzir. algo considerado um crime pelo



Em seu Catecismo e Comentá- Reformador!



rios sobre as sagradas Escrituras, Calvino não condena os ricos.



Calvino ressaltou diversos elemen- Pelo contrário, ele os considera



tos que no seu entender, deveriam como pessoas a quem Deus confiou

fazer parte da fidelidade a nosso grandes responsabilidades, julgan-


Senhor Jesus Cristo. Apesar da cer- do-as capazes de desempenhá-las.



teza de que somente a graça nos sal- Ao redistribuir uma parte de suas

va, sua Lei continua a ser o pedagogo riquezas, ainda que por meio de

capaz de orientar nossas decisões. impostos, eles são chamados a ser



Como disse ele, somos os lugar-te- despenseiros da graça de Deus. En-


nentes de Deus no centro de sua tretanto, se por uma infelicidade eles



criação, isto é, somos responsáveis se omitem na prestação deste servi-



por sua sustentabilidade e desenvol- ço e buscam apenas acumular os



vimento, a fim de defender o “belo” bens recebidos, eles se tornam se-









161







 SERMÃO

melhantes aos israelitas no deserto tariamente a verdadeira auto-nega-



que, por avidez ou desconfiança, ção e nada atribui a si mesmo... Esta



esconderam o maná. Assim, a pro- pessoa, digo eu, é abençoada...”


visão cuidadosa de Deus para aten- Estas poucas reflexões nos en-



der sua necessidade de alimento corajam a refletir sobre a maneira



apodreceu em suas bolsas (cf. de considerarmos nossa riqueza e



Êxodo 16). nossa pobreza. Entretanto, ao mes-



No entanto, Calvino não consi- mo tempo, elas nos levam a per-


guntar sobre o atual funcionamen-


dera que os pobres sejam justifica-


dos em todas as suas palavras e atos to da economia, suas motivações e



simplesmente por causa de sua po- propósitos.

breza. Ele censura aqueles que re- ○


Quando sabemos que a água


clamam sem se esforçar ou que sa- está sendo privatizada em alguns

queiam e roubam tudo o que po- países latino-americanos, africanos


dem. Fazendo isso, eles cometem o e asiáticos, e o resultado tem sido a



sacrilégio de tentar tirar da mão do quadruplicação de seu preço; quan-



próprio Deus aquilo que ele reser- do lemos que a saúde e a economia

vou para outras pessoas. da população de Camarões estão



Somente o equilíbrio entre as ameaçadas pela importação


massiva de frangos congelados em


responsabilidades de cada um pode


garantir os bens comuns e os bens condições impróprias para o con-



pessoais. Estas responsabilidades só sumo; quando sabemos que com-



poderão ser realmente exercidas se panhias privam milhares de pesso-



todos reconhecerem que elas nada as de seu trabalho somente para



são sem a graça de Deus. No co- aumentar seus lucros e contentar


mentário ao Sermão do Montanha, seus acionistas; quando assistimos



PÁGINAS 160 A 164, 2008

o Reformador diz: “Portanto, tenha- a destruição de florestas tropicais



mos em conta a necessidade de que para a fabricação de móveis de luxo



a port do...” para si mesmo... então, realmente temos razões para



erdadeira auto-negaçpobreza pene- estar exasperados. Reconhecemos


tre em nós e elimine todo orgulho e primeiramente e sobretudo, que



presunção, até compreendermos não honramos as obras da criação.



que nada somos. Aquele que se jul- Pelo contrário, estamos envolvidos

ga pobre, isto é, que exerce volun- em um trabalho de “des-criação”,









162






do qual todos, ricos ou pobres, se- Estes exemplos e muitos outros

 REVISTA

remos vítimas um dia. ao nosso redor, não são sinais de que



Mesmo assim, todas as informa- o Espírito do Pentecostes continua



ções que recebemos não farão sen- soprando? Esta é exatamente a di-


tido se nos desanimam ou nos cul- reção a ser seguida. De nada adian-

TEOLOGIA E SOCIEDADE

pam. Bem ao contrário, devemos tará reclamar dos custos dos encar-



ouvir as palavras bíblicas que nos gos sociais se nossas empresas não



lembram também a força que te- levam suas responsabilidades mais



mos para agir. a sério, pelo menos concordando em


Há uns trinta anos, os pastores ○
manter os postos de trabalho dos
André Biéler e Lukas Vischer junta- menos capacitados que no entanto,

mente com outros cristãos da Suíça necessitam de um trabalho e um



de fala francesa, lançaram a Decla- salário. Quando será que a Bolsa, da



ração de Berna. Aqueles que aderi- mesma forma como busca resulta-

ram se comprometeram a fazer um dos financeiros, poderá levar em

Vol. 1 nº 5, novembro de 2008, São Paulo, SP


pagamento sistemático de 3% de conta essa atitude construtiva das



suas rendas para sustentar projetos empresas?



de desenvolvimento. Voltando a nossas perguntas ini-



As notícias sobre a Declaração ciais sobre o significado do evento



de Berna serviram também como do Pentecostes ou ao modo de con-



uma oportunidade para diversas or- siderarmos as promessas de Jesus,


ganizações públicas aumentarem podemos nos maravilhar porque o



sensivelmente sua participação em sentido da mensagem do evange-



projetos semelhantes. Posterior- lho recupera para nós o ponto cen-



mente, outros membros de nossas tral de uma ética que coloca a co-

igrejas constituíram um grupo de munidade humana no centro de


acionistas críticos em meio à As- nossas preocupações e atividades.



sembléia Geral de uma empresa Indo direto a este ponto central,



multinacional. Estas iniciativas, se- convidamos Calvino novamente,



guidas de outras do mesmo gênero, por meio de uma “oração antes de



levaram a maioria dos bancos a pro- iniciar o trabalho”, escrita em 1562,



por sistemas de investimento cole- da qual, penso que um trecho é


tivo com critérios éticos ou de de- apropriado para a conclusão de



senvolvimento sustentável. nossa meditação:










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 SERMÃO





“...Senhor
“...Senhor,, que te agrades em assistir
assistir--



nos com o teu Espírito Santo a fim de



que possamos estar aptos a exercer




nossa profissão e chamado com



fidelidade, sem qualquer fraude ou



engano; que possamos da nossa parte



seguir antes a tua direção que


satisfazer nossa cobiça por mais ○

riqueza; que te agrades ainda em



tornar próspero o nosso trabalho,



dando-nos a coragem para atender aos



necessitados, pelo poder que nos




garantirás, preser vando -nos


vando-nos

verdadeiramente humildes, de forma



que não nos consideremos superiores



àqueles que não receberam tal



generosidade e liberalidade.”








PÁGINAS 160 A 164, 2008



REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA


Jean Calvin. Commentaire sur les cinq livres de Moïse.


_________ Commentaire du Nouveau Testament.


_________ Institution de la religion chrétienne.



André Biéler. La pensée économique et sociale de Calvin. Georg ,Genève, 1959. Em


particular, o capítulo IV: “As riquezas e o domínio do poder econômico.” Em


português: O Pensamento Econômico e Social de Calvino.S.Paulo: Casa Editora


Presbiteriana, 1990.








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