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XXV Simpósio Nacional de História

IDEIAS, PRÁTICAS E INSTITUIÇÕES:

qual a direção da causalidade?

Adriano Nervo Codato

Universidade Federal do Paraná

adriano@ufpr.br

Simpósio Temático 80: História Política: Ideias, Práticas e Instituições

UFCE

Fortaleza (CE)
Julho de 2009
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Ideias, práticas e instituições: qual a direção da causalidade?


Adriano Codato*

Resumo: O discurso oficial do Estado Novo inspirou a concepção e a criação das Interventorias
Federais e dos Departamentos Administrativos dos estados. Esses aparelhos, e em especial os
Departamentos Administrativos, foram uma manifestação eloqüente da ideologia autoritária e da
sua forma de conceber e exercer a política. Por outro lado, eles são também o canal privilegiado
por onde a ideologia de Estado se manifesta. Esse aspecto, que a relação linear postulada entre
discurso, instituições e práticas administrativas negligencia, é inclusive mais importante para
entender o sucesso do autoritarismo no Brasil. A comunicação apresenta alguns elementos
empíricos para entender porque os Departamentos Administrativos podem ser, nesse contexto, o
meio eficiente de integração entre as oligarquias tradicionais e as idéias do regime estadonovista.
Palavras-chave: Estado Novo; Departamentos Administrativos; ideologia autoritária.

Abstract: The official discourse of the Estado Novo inspired the conception and creation of the
Administrative departments of the states and the Federal Interventorships. These apparatus and
especially the Administrative departments had been an eloquent manifestation of the authoritarian
ideology and its form to conceive and exercise politics. On the other hand, they were also the
privileged canal through which the state ideology manifests itself. This aspect, which is unseen by a
linear interpretation of the relation among discourse, administrative practices and institutions, is
even more important to understand the success of the authoritarianism in Brazil. The
communication presents some empirical elements to understand why the Administrative
departments can be, in this context, the efficient way of integrating the traditional oligarchies and
the ideas of the estadonovista regimen.
Key Words: Estado Novo; Administrative departments; authoritarian ideology.

*
Adriano Codato é Doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), professor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná.
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Introdução

A disposição antiliberal das classes dirigentes brasileiras no pós-1930 não


implicou na renúncia a um aparato institucional próprio em nome do governo
carismático ou da ligação direta líder-massa, o único traço do regime apreendido
por certa (a)versão do populismo. Esse estado de espírito autocrático estava,
aliás, na base de uma aspiração até certo ponto oposta: isto é, no governo
burocrático dos institutos, conselhos, comissões e autarquias disso e daquilo. Daí
que assim como foi feito para tocar “racionalmente” a política econômica, dois
aparelhos políticos foram concebidos e instituídos para administrar as alianças
políticas interelites: as Interventorias Federais e os Departamentos Administrativos
dos estados.

É justo imaginar que o discurso oficial do Estado Novo (a doutrina teórica


elaborada pela trinca Francisco Campos, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral)
inspire e dirija a criação de ambos aparelhos e especialmente os Departamentos
Administrativos sejam a decorrência necessária, até por suas características
desejadas (um apetrecho técnico, apartidário e antipolítico), das opiniões políticas
predominantes nos anos 1930 e hegemônicas no regime de 1937. Nesse sentido
não há muitas dúvidas se eles são ou não uma manifestação eloqüente da
ideologia autoritária.

Ocorre que os Departamentos são também o canal por onde a ideologia de


Estado, facilitada na fórmula política corrente, se manifesta e se impõe como a
doutrina oficial da classe política. Esse aspecto subterrâneo e invertido, que a
relação um tanto linear e automática postulada entre discurso, instituições e
práticas administrativas (cf. LOSSO, 2006) dissimula, é inclusive mais importante
para entender a eficiência desse sistema de governo. Paradoxalmente, o efeito da
ideologia torna-se a causa da sua própria supremacia. O Departamento
Administrativo é, nesse sentido, tanto um meio eficiente como o modo possível de
integração entre as práticas das antigas elites e as idéias do novo regime.

O objetivo deste paper é expor, resumidamente, a extensão na qual a


ideologia política autoritária converteu-se em crença socialmente útil, produziu
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uma coesão inédita da elite governante e impôs um sentimento de “unidade


psicológica” à classe dirigente (WRIGHT MILLS, 1981:30), fato muito próximo
daquilo que Terry Eagleton chamou de “sentimento de camaradagem” entre os
membros de um círculo comum (EAGLETON, 1997:172). Tomo aqui como
exemplo as manifestações públicas de dois políticos que ocuparam cadeiras no
Departamento Administrativo do estado de São Paulo (DAESP): Marcondes Filho
e Marrey Junior.

Note que a constatação do processo de assimilação da fórmula autoritária


pela elite (paulista, no caso) e de conformação ideológica à nova estrutura de
dominação, apresentado aqui através de dois instantâneos, não capta,
evidentemente, a seqüência de conversões, a distância entre o pretendido, o
planejado e o executado pela estrutura de poder, os ajustes consecutivos entre a
estrutura e os agentes (e, em função do caráter autoritário do processo, muito
mais dos agentes à estrutura) etc. Do mesmo modo, a apropriação e a defesa
militante da ideologia do Estado autoritário pela elite liberal paulista, problema que
tende a aparecer nas análises mais apressadas como decorrência da
reformulação das regras do jogo e da adaptação “racional” a ele, não pode abstrair
um fato básico: a predisposição dos políticos da oligarquia para combinar, em
proveito próprio, o recente autoritarismo “varguista” e o antigo elitismo
característico da sua visão oligárquica do mundo.

Esse casamento ideológico, consumado definitivamente apenas no pós-


1937, tende a reforçar a idéia da política como um privilégio social, a
incompetência social das massas populares para exercer uma cidadania plena e
não tutelada e as soluções tecnocráticas de governo. Por isso mesmo, a ideologia
explicitamente antiliberal e a fórmula autoritária dela decorrente não provocariam
indigestão naqueles que estavam desde sempre preparados para aceitá-las e que
poderiam inclusive, a partir de agora, beneficiar-se das suas invenções
institucionais.
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Mas ainda assim esses dois fatos – a afinidade ideológica prévia e o


oportunismo do Homo politicus – não explicam a intensidade da aceitação
normativa da nova visão do mundo político verificada nos anos 1940.

I. A impressão das consciências

Não é segredo que as formas práticas de vencer as reservas de São Paulo


diante de Getúlio Vargas envolveram os procedimentos tradicionais ao universo
político nacional, baseado em negociações, destituições, depurações, expulsões,
reabilitações e nomeações de indivíduos, partidos e cliques partidárias. Esses são
expedientes que sinalizam aos agentes, em especial aos derrotados, as cláusulas
vigentes para firmar um compromisso pragmático com a nova estrutura política.
No entanto, a assimilação do autoritarismo – a idéia e sua prática – é um processo
mais complexo e não pode ser descrito nem explicado pelas noções de adesão ou
cooptação.

De fato, as racionalizações presentes nas palavras dos Conselheiros do


DAESP, analisadas mais adiante, são uma forma pragmática de acatar a nova
situação política – uma jogada realista e “racional”, cujo objetivo, entretanto, não
controlavam, uma vez que essa ordem burocrática coroada pelo Departamento
Administrativo poderia ou não corresponder objetivamente a seus interesses. Por
isso mesmo, por exemplo, não há como estimarem, em função da divisão política
do trabalho administrativo do Estado ditatorial, a quantidade de poder que reúnem
a priori.

Por outro lado, até pela amplitude da adesão ocorrida, as racionalizações


(na forma de homenagens ao Chefe Nacional, proselitismo das idéias do regime,
louvação do desenho institucional etc.) sugerem uma maneira mais normativa de
aceitar a dominação política, ou seja, uma forma propriamente ideológica de
assumir as idéias de outrem. Nesse contexto, o Departamento Administrativo
torna-se, entre outros, um mecanismo eficaz de auto-ilusão acerca da
possibilidade de realizar os interesses “subjetivos” dessa elite, tais como:
permanecer na carreira, manter o status social, avançar uma posição na
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hierarquia política. Dessa perspectiva, esse aparelho pode ser visto não como
instância de produção da ideologia de Estado, mas de impressão da fórmula
política sobre a consciência da elite e de reprodução dessa ideologia através da
propagação dos encômios oficiais.

Um dos pontos mais curiosos da nova ordem institucional, e que os próprios


discursos nativos permitem captar, é que essa fórmula não procura disfarçar os
esquemas de dominação e subordinação entre um grupo de elite e outro. A nova
hierarquia no universo político – no caso: a subordinação das potências estaduais
ao Estado central – é incontestada e incontestável. Isso porque a ideologia da
autoridade do Estado sobre a sociedade disfarça a quantidade de poder daqueles
que exercem o poder em diferentes níveis e assim legaliza a ascendência,
assegura o consentimento e universaliza os valores autoritários nas relações elite-
elite.

Só isso poderia explicar essa oração do Presidente do Departamento


paulista, Gofredo da Silva Telles, o arquétipo da aristocracia rural paulista. No
encerramento dos trabalhos do ano de 1940 ele comemorou assim: “Assiste-nos
realmente o direito de dizer que o DAESP tudo fez para honrar o seu mandato,
tendo empregado todos os meios ao seu alcance para servir aos interesses de
nossa terra, fortalecer as instituições brasileiras e defender, como lhe cumpre, o
governo do grande Presidente Getúlio Vargas” (TELLES, 1940: 2 857; grifos
meus).

II. Marcondes Filho: o jurista da ordem

Ao lado da de Gofredo, outra forma de transformismo ideológico que


recorda a eficiência e a aderência da fórmula política em vigor é a de Marcondes
Filho, vice-presidente do Departamento paulista de 1939 a 1942. É ilustrativo da
posição paulista, ou da parte paulista empenhada no regime ditatorial, e do seu
orgulho em patrocinar e promover a ideologia politicamente dominante, o
pronunciamento do Ministro Marcondes Filho em resposta às solicitações do
Manifesto dos Mineiros.
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No Discurso pronunciado na Conferência dos Conselhos Administrativos


dos Estados no Rio de Janeiro em novembro de 1943, ele explica e justifica o
adiamento do referendo para validar a Carta Constitucional de 1937, que deveria
ocorrer naquela data, aproveitando para aprovar e patrocinar a extensão do
mandato de Vargas em função do Estado de Guerra, em vigor desde agosto de
1942. Da palestra dirigida à classe política nacional, impressiona menos o
casuísmo da argumentação („salus populi suprema lex‟) em nome da defesa do
Estado (a entidade abstrata, o ente de direito), do que o encômio ao Estado Novo
e a quase todas as suas racionalizações.

Segundo Marcondes, o princípio democrático (e não a democracia, note)


deveria ser acatado, mas, dentro de uma “gradação de fórmulas [de governo], [...]
deve ser procurada a que melhor se ajuste à realidade nacional”. A Constituição
chegou, dizia, justamente para “aprimorar conceitos e melhorar as instituições”:
atenuou a “intensidade federativa” da República Velha, “revigorou o poder
Executivo”, organizou as classes em nome da solução para o “problema do Direito
Social”, instituiu uma “democracia política, econômica e social” (e não um regime
meramente político), destrinchou as grandes questões nacionais, antes “sufocadas
pela política regional” e, por fim, reanimou “a nossa unidade espiritual,
transformando a massa rarefeita em comunidade orgânica” (MARCONDES FILHO
cit. a partir de CARONE, 1982: 92-94). Até aqui, prosa conhecida, em suma.

Para os nossos propósitos, vale todavia a pena ler uns trechos da longa
oração do Ministro onde nega legitimidade aos reclamantes das “liberdades
públicas e privadas” (os signatários do Manifesto dos Mineiros) e esclarece seu
novo ponto de vista sobre a temporada histórica que atuou como quadro
destacado do velho Partido Republicano Paulista:

É necessário que espíritos de boa fé se previnam contra os que, tentando


agitações, sob pretexto público, disfarçam interesses particulares através de
recortes jurídicos, ou de certas reminiscências políticas. [...] Uma declaração de
apego aos ideais políticos que se realizem no Brasil pela autonomia estadual [é
sintomático que a petição da oligarquia já traga estampado no título a marca
regional: Manifesto dos Mineiros], exprime incompetência evolutiva para a unidade
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espiritual indispensável ao fortalecimento da nacionalidade e à segurança do


território; retoma o plano inclinado do separatismo [...]; repete a absurda doutrina
que enfraqueceu o País durante a Primeira República, pretendendo sustentar que
o todo se fortalece com a independência das partes. Não podemos conceder
autoridade diretiva aos que buscam a própria autoridade no período político em
que, de posse do poder, se valiam das graves faculdades de pagar e de prender,
nomear e demitir, prometer e premiar, como se suas próprias faculdades pessoais
fossem, a fim de adquirir dedicações pessoais com que armavam e mantinham
máquinas eleitorais destinadas a corromper a expressão dos sufrágios populares,
e a impedir o livre desenvolvimento das nossas melhores vocações políticas. Os
que assim sacrificavam prerrogativas do povo e cancelavam destinos, e apesar
disso, ainda agora persistem em retornar aos ideais de que viveram, e em que
falharam, não conseguem carta de crédito para se dirigir ao homem da rua,
oferecendo direitos que sempre lhe recusaram, nem para abrir caminho aos moços
de corpo e de espírito, cujos lugares se apressam em ocupar. Os que, já depois da
Rerum Novarum, resistiram às transformações sociais reclamadas por indomáveis
imperativos da justiça e da solidariedade humana, [...] continuam impermeáveis à
evolução do País, e sem [...] autoridade para criticar um regime que [...] resolveu o
problema social dentro da ordem. [...] [Logo,] todos perceberão certamente o
despropósito dos que, por amor a crítica, acham esse momento oportuno para
retomar debates que sempre agitaram os homens. Se pesquisarmos as intenções
daqueles que [...] só agora raciocinam com a prática alternada do poder e da
obediência por parte de todos – que no velho tempo não exerceram – [...], logo
veremos que não se preocupam com os problemas nacionais [...]. Desejam apenas
o lado do poder, o poder pelo poder (MARCONDES FILHO a partir de CARONE,
1982: 100-103; grifos meus).

Como era de se esperar, essa é uma defesa corporativa do governo do qual


faz parte, tanto como Ministro da Justiça e Negócios Interiores como Ministro do
Trabalho, Indústria e Comércio, posição excepcional considerando a escassez de
empregos políticos nesse mercado ultra-restrito.

A peculiaridade aqui não é, entretanto, a repetição mecânica das alegações


dos teóricos do autoritarismo e de seus contínuos, ou a exposição de motivos que
fez, com base na hermenêutica jurídica e na teoria do Estado para tempos de
guerra, a fim de sustentar as virtudes dos avanços sociais sob o regime ditatorial.
É, ao invés, a reinterpretação da história política recente, da qual também foi
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protagonista, na chave crítica da ideologia predominante. Tudo o que foi dito dos
mineiros poderia ser dito pelo Ministro dos paulistas e de si próprio, ou de
qualquer grupo político estadual.

A decodificação do discurso dos autoritários, tal como assumido e


reproduzido pelo destacado representante da classe política de São Paulo, expõe
não tanto os interesses subjacentes que ela oculta e que pretende ou deve
estrategicamente exprimir (em nome próprio ou de outrem), mas os valores e os
princípios que viabilizam as novas relações de negociação e as relações de
dominação nesse universo em transformação.

É possível que o caso do Ministro Marcondes Filho, isso poderia ser


alegado, seja um exemplo demasiado fácil para exprimir essa idéia – a
ascendência da ideologia de Estado dos autoritários sobre a oligarquia liberal e o
liberalismo de seus agentes. Isso porque sua tarefa prática à frente da pasta do
Trabalho era não só a produção da legislação social, trabalhista e sindical, mas,
antes, a “invenção do trabalhismo”: isto é, a produção de um regime jurídico-
político e a produção de significados, valores e idéias adequadas a esse regime. O
direito social e a “ideologia trabalhista” estão de tal forma imbricados, que a
atividade de agitação e propaganda desse político tradicional supera o projeto de
explicar as decisões de Estado para as massas, tarefa, como se recorda, em que
Marcondes Filho também se engajou. Essa atividade cria um modo novo de
pensar e simbolizar a política – numa chave puramente antiliberal – e inventa uma
relação entre o povo e o Presidente baseada na idéia de “dádiva” (Cf. GOMES,
1988:246-254), não de direito. Sob esse aspecto, essa sua ação de agitprop da
ditadura é a realização prática da concepção de autoridade política virtualmente
inscrita na propaganda ideológica autoritária. Portanto, o caso de Marcondes Filho
não seria assim um exemplo, mas o arquétipo.

De toda forma, a ideologia do trabalhismo é, como notou Adalberto


Paranhos, um tanto diferente da ideologia de Estado: “mais do que cultuar o
„Estado-Ordem‟, trata-se [...] de cultuar do „Estado-Providência‟” (PARANHOS,
2007:167). Assim, não é como o operoso Ministro do Trabalho, fiador do Welfare à
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brasileira, que sua figura de autêntico perrepista convertido ao populismo


varguista interessa. É, antes, como o poderoso Ministro da Justiça: um político da
ordem liberal virado jurista da ordem autoritária.

III. Marrey Junior: o político contra a política

A segunda maneira de encampar, para os próprios fins, a ideologia de


Estado, seus modos de pensar e as matrizes do discurso in concreto é o elogio
não da própria sensatez política ou da sensatez do regime como um todo, mas da
sensatez política que o Departamento Administrativo encarna e transmite à nova
configuração institucional.

A versão burocrática desse louvor ao Estado Novo pode ser lida nos
discursos e nos artigos de Marrey Junior, antigo prócer do Partido Democrático de
São Paulo. Vejamos um trecho particularmente representativo.

No panorama político do Brasil, nos últimos tempos de velha República,


divisavam os idealistas a imprescindível necessidade de uma reforma. [...] Os bons
brasileiros não podiam tolerar os tendenciosos governos de então. A
arregimentação partidária, sob a bandeira da oposição [a Aliança Liberal], não
tinha, em verdade, outro intuito que a reunião de esforços para a consecução de
um fim comum: pois, partidários, pregávamos a precedência do dever sobre o
direito – o que significava, na realidade, a compreensão de que, acima do
indivíduo, deveria colocar-se a coletividade. Acentuavam-se assim as inclinações
da democracia brasileira, de que éramos os oposicionistas os mais acérrimos
defensores, para o regime que, mais tarde, o presidente Vargas implantou a 10 de
novembro de 1937. O Estado Nacional consubstancia, portanto, a aspiração de
todos os que se sentiam cansados da inutilidade dos Congressos e do
desregramento da imprensa – enfim, da perversão das instituições. [...] A revolução
[de 1930] – como todos os movimentos violentos de transformação – teria, porém,
de passar por um colapso [...]. As idéias não foram, contudo, esquecidas e um dia
ressurgiram, como ressurgiram, sob os aplausos gerais da Nação, à aurora de 10
de novembro de 1937. Comemorando-se hoje mais um aniversário do Estado
Nacional, quero aqui deixar assinalada, nas poucas linhas com que rendo a
homenagem de minha admiração à obra construtiva e de brasilidade do exmo. sr.
Presidente da República, a engenhosa criação do Departamento Administrativo, de
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que sou membro, e onde, sem a cediça retórica parlamentar, se fizeram as leis
necessárias, como efetivamente se fiscaliza a vida financeira do estado e dos
municípios. [...] Até 1930, eram os governos notoriamente discricionários.
Praticava-se a mentira constitucional ao lado da evidente hipertrofia do poder
Executivo. Imperava a desordem orçamentária. [...] [Hoje] cabe ao Departamento
Administrativo o direito de representar contra as irregularidades que verificar. Não
há, pois, motivo para a falsidade orçamentária. [...] No Departamento
Administrativo poucos cidadãos desempenham a função de que nem sempre bem
se capacitavam deputados, senadores e vereadores. A criação do Departamento
Administrativo realça o governo de sua excia. o sr. Presidente – pois que substitui
com vantagem e relativo pequeno dispêndio as Câmaras em que pacatos
conservadores ou dispersivos livre-atiradores – sem maior exame e quase sempre
sem discussão aproveitável – aprovavam a obra pessoal e imperativa dos chefes
eventuais do poder Executivo (MARREY Junior, 1943:9-12).

Como político de profissão, a forma ideal de colar no regime e, por essa via,
garantir o exercício regular da (própria) profissão política, é cavar para si um
espaço onde a política negue, de forma retórica, e oculte, de maneira eficiente, a
própria política.

Por exemplo: o disfarce burocrático da atividade de representação de


interesses (“departamento” ao invés de câmara), e o disfarce tecnocrático da
atividade política (a gestão “administrativa” do orçamento), podem até funcionar
como uma autojustificativa calculada e consciente para aumentar as
oportunidades na carreira, desfrutar do prestígio profissional que a atividade de
legislador imparcial confere e da influência efetiva sobre as clientelas (prefeitos,
secretários) que dependem das deliberações dessa “engenhosa criação” que é o
Departamento Administrativo do estado. O ponto fundamental aqui é que, racional
ou não, instrumental ou não, essa catilinária impõe uma imagem pública da
política tão negativa quanto possível.

O fato dessas imprecações serem pronunciadas por um profissional do


ramo em questão confere, paradoxalmente, ainda mais credibilidade à sua
atuação cênica e à mensagem da qual é porta-voz, reforçando, por contraste, a
imagem que o Estado Novo deseja transmitir de si. Monte Arrais, para citar um
dos ideólogos, afirmará que a tarefa daqueles que são chamados a governar é
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administrar, não „discutir‟, isto é, fabricar ideologia. As difamações proferidas por


Marrey Junior em nome do novo evangelho político sobre a “inutilidade dos
Congressos”, lugar de “dispersivos livre-atiradores”, os perigos do “desregramento
da imprensa”, o excesso de políticos profissionais do antigo regime etc., não são o
acerto de contas com seu passado oficial anterior, uma sorte de autocrítica, nem
funcionam como revisão doutrinária do liberalismo: são, antes de tudo, uma
pregação da ortodoxia em benefício do cargo que o compromisso pragmático com
a estrutura espera e acata.

Conclusões

Se os conteúdos de seus pronunciamentos e as formalidades da retórica


empregada permitem confirmar a vocação governista da elite estadual paulista, é
precisamente porque não há mais, nesse terreno específico, uma luta entre
dominantes e desafiantes, formações ideológicas opostas ou alternativas.

O que ocorre e é detectável através da mudança brusca de direção do


discurso ideológico e dos ajustes verbais, conceituais e estilísticos que daí
decorrem, não é, como se poderia pensar, um fenômeno de translação desse
universo político, onde todos os elementos – os atores e suas idéias respectivas –
se movimentam simultaneamente de um cenário histórico a outro, mantendo,
contudo, fixas as mesmas distâncias entre si (suas autonomias e identidades).

O processo de conquista de legitimidade mútua de todos os agentes


políticos sob o novo regime implica primeiro na anexação de uma elite a outra,
fenômeno político tradicionalmente descrito como “cooptação”; em seguida, na
incorporação da facção estadual pela facção nacional, fenômeno social que se
poderia designar como “transformismo”; e, por último, na absorção dos valores,
das concepções, dos conceitos e da linguagem da segunda pela primeira,
fenômeno propriamente “ideológico” cuja peculiaridade é a tradução da ideologia
teórica numa equação política menos abstrata.
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Referências

CARONE, Edgard. (1982). A Terceira República (1937-1945). 2 ª ed. São Paulo: Difel.
EAGLETON, Terry. (1997). Ideologia: uma introdução. São Paulo: Editora da Universidade
Estadual Paulista; Boitempo.
GOMES, Angela de Castro. (1988). A invenção do trabalhismo. São Paulo: Vértice, Ed. Revista dos
Tribunais; Rio de Janeiro: IUPERJ.
LOSSO, Tiago Bahia. (2006). Estado Novo: discurso, instituições e práticas administrativas. Tese
(Doutorado em Ciências Sociais). Universidade Estadual de Campinas. Campinas (SP).
MARREY Junior, J. A. (1943). No Departamento Administrativo de S. Paulo: discursos e pareceres.
São Paulo: Revista dos Tribunais.
PARANHOS, Adalberto. (2007). O roubo da fala: origens da ideologia do trabalhismo no Brasil. 2ª.
ed. São Paulo: Boitempo.
TELLES, Goffredo Teixeira da Silva. (1940). Discurso pronunciado na 188ª. Sessão Ordinária do
DAESP em 31 dez. 1940. DAESP, Anais de 1940, vol. II (Sessões), 2ª. parte.
WRIGHT MILLS, C. (1981). A elite do poder. 4ª ed. Rio de Janeiro: Zahar.

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