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ESPACOS OUTROS” Michel Foucault O grande assomibro que obcecou o século x1, sabemo-lo, fia histseia: temas do desenvolvimento e da estagnasio, temas da crise e do ciclo, te- ‘mas ca acumulagio do passado, da grande sobrecarga dos mortos, dear refecimento ameagacor do mundo. Foi ne segundo principio da tetmod= nimica que o século x% encontrou 0 essencial dos seus recursos ritologicos. A época actual seria talvez antes a época do espago. Estamos za 6poca do simultaneo, estames na época da justaposigio, na época do proximo e do longinguo, do lado a aco, de disperso. Vivemes tum mo mento em que o mundo se experimenta, creo, menos como uma grande vida que se desenvolveria através do tempo do que como uma rece que liga pontos e que entreeruza a sua meada. Talvez se possa dizer que al guns dos confhits ideolégicos que anima 35 poléinicns de hoje se de- senrolam entre os crédulos descendentes do tempo e os cbstinados habi- tantes do espaco. O estruturalismo, ou pelo menos aquilo que 6 agrupado sob esse nome um pouco generalists, € 0 esforgo para eslabelecer, ent lementos que podem ter sido epartidos aizaves do tempo, am eanjunto de relashes que os faz aparece coma justapostos, oposios, implicados azn pelo outro, enfim, que os faz aparccer como uma especie de configuracio, cebem vistas as coisss, nose trata por isso de nega’ o tempo, ¢ antes ma certa maneira de trataraquito a que se chama e tempo e aquilo a que se chama a historia. EE preciso, no entanto, nolar que o espaco que hoje aparece no horizon- te das nossas preocupacées, da nossa teoria, dos nossos sistemas, no & ‘uma inovagio; © proprio espago, na experince ocicental, tem una hisr {ria e nao € possivel descoahecer esse cruzamento fatal do tempo com 0 expago, Podetia dizerse, para retracar de forma muito grosseia esta his. * eDes expaces autre», conferéncia promanciads no Cercle duces Architectures 4 de Marge de 1967 publicada in Arciaetar, Morsemen!, Contin n* 5 Outubro de 1964, pp. 46-4, actusimente in its et nis: 1954-198 vol 1V, Pars, Cabmard. 1294, pp. 752-762. Michel Foucault autorzon @publieasao deste texto, esto na Tunfda em 1967, na Peimavera de 1988, RCL 2005) 34: 248-252 24a Michel Foc: téria do espaco, que este era na Idade Média um conjunto hierarquizado de lugares: lugares gares, pelo contrat, uurbanos e lugares ru- Tais (no que toca & vida real des homens); no que toca a teoria cosmolégi- lugares supracelestes opostos no lugar celeste eo lugar celeste, por sua vez, opunha-se ao lugar terrestre; havia os lugares onde as coisas, se encontravam colocadas porque tinham sido deslocadas violentamente, « depois, inversamente, os lugares onde as coisas encontravam a sta co- da esta hierarqruia, esta oposiclo, Tocacio e 0 seu repouso naturais. Esse espago de escandalo da obra de berto — que a Terra girava antes em torno do Sol, titufdo um espace infinito e infinitamente aberto; gar da Idade Média af se encontrava de certo modo dis extenslo, a qual destronou, ida pelas relagdes de vii- te, podemos descrevé-les como séries, érvores, ramificagdes. For outro lado, sabemos a importancia dos problemas de coloca técnica contemporénea: armazenamento da informagao ou resultados parciais de um célculo na meméria de uma méquina, circulagio de ele- Imentos diseretos com safda aleat6ria (como, muito simplesmente, acon tagio de elementos, marcados ou codific terior de um conjunto {que esté quer repartido ao acaso quer registado numa classificago un vyoea, quer ainda registado segundo um: io plurivoca, ete. De maneira ainda mais concreta, o problema do lugar, ou da colocacio poe-se aos homens em termos de demografia; ¢ este ultimo problema da colocacdo humana nao se resume apenas & questo de saber se haverd es- aco suficiente para o homem no mundo — prablema que é, afinal de contas, bem importante —, 6 também 0 problema de saber que relacGes de vizinhanga, que tipo de armazenamento, de circulaslo, de captacto, de classificago dos elementos humanos devem ser escolhidos preferen- cialmente em tal ou tal situacao para chegar a tal ou tal fim. Vivemos mi- ‘ma época em que espaco se nos oferece sab a forma de relagbes de co- ocacéo. ‘Em todo 0 caso, crelo que 0 desassossego de hoje diz funclamental- ‘mente respeito ao espaco, sem diivida bem mais do que ao tempo; o tem- Espages outros a avelmente, no aparece sento como uum dos jogos de distribuigao entre os elementos que se repartem no espago. sar de todas as técnica jecimentos que permite determi Or de de conhe dessacralizado no século tesrica do espago (aquela ia no tenhamos acedido ez a nossa vida se inde : 25 nas quais no se pode to- car, 8s quai a instituigdo ea pratica ainda nao se atzeveram a casas pre- Juiz: oposicoes que admitimos como dadas: por exemplo, ent 0 eepa- {50 privatio e oespaco public, entre o espaco da fama eo eapago socal, entre oespaco cultural eo espago tll entre o espaco de lazeres eo espa. 60 de trabalho; todas estéo ainda animadas por uma muda secalizacto A obra — imensa — de Bachelard, bem como as descrigies dos feno- :menlogos ensinaram-nos que nao vivemos num espago homogéneo ¢ vazio, mas, pelo contrrio, num espago que esia todo ele carrgado de ualidades, um espago que talvez tambéin esteja asombredo pel tasma; 0 espaco da nossa percepcdo primeira, o dos nossos devancios, © palxoes detém em si qualidades como que intrinseeas; 6 ito, etéeo, transparent, ot ento € um espaso obscure, pe- dtregoso, atulhado: & tum espaco de cima, pelo contréio, um espaco de baixo, um espaco da lama, € umn espago que pode correr como a 4gua dum ro, €um espaco que pode ser fxado, gh do como a peda ou come o cst No entanto, essas andlises, ainda que fundamentais para a refleyéo contemiporsnea,dirigem-se sobretudo no expago de dentro. £ do espago de fora que queria agora falar. © espaco no qual vivemos, pelo qual somos atraidos para fora de nés préprios, no qual se precsamente a erosto da nossa vida, do nosso tempo e da nossa histéra, esse espaco que nos rie nos eacava em si mesmo, também um espaco heterogéneo, Dito de outro mod, no vivemos numa espécie de vazio, no interior do qual se poderiam Individuos e coisas. Nao vivemos no interior de am vazio que se colori uma dessacralizagao pratica do espaco. ‘comandads por um certo niimero de opo: sia de diferentes cambiantes, vivemos no interior de um conjunto de 1 lagSes que definem cofocacées irreduliveis umas as outras e de nao 50 breposisio absoluta. Claro, poder-se-ia sem divida empreender a descricéo dessas diferen- tes colocagées, procurando averiguar qual o conjunto de relacoes através do qual se pode definir essa colocacio. Por exemplo, deserever 0 canjune to das relagdes que definem as colocagées de passagem, as ruas, 08 com- boios (é um extraordindrio feixe de relagées, um comboio, porque & algo através do qual se passa, 'é igualmente algo pelo qual se pocle passar de 26 Michel Foucault in deserever, pelo feixe d cagdes de paragem provis Poder-se-ia ignalmente defi repouso, fechada ou meio fechada, que a casa, o quarto, a cama constituem, Mas o que me interessa, de entre todas estas colocases, 540 56 algumas, aquelas que tm a curiosa propriedade de estar em relagio com todas as outras, mas num modo tal que suspendem, neutralizam ou investem o canjunto das relagbes que se encontram por seu intermédio, designadas, reflectidas ou roflexas. Eves eypagos que estio em ligacio, de algum modo, com todos as outros, que no entanto contradizem todas as outras colocagées, sto de dois grandes tipos. ‘Antes de mais, hé as utopias. As utopias sao as colocagies sem Ingar real, Sko as colocagies que -om 0 espaco real da sociedade uma relacao geral de analogia directa ou invertida, Ea propria sociedade aper- absolutamente outros, diferentes de todas as colocagies «que tem e de que falam, chamarei, por oposico as utopias, as hetero! e creio que entre as utopias e essas colocagies absolutamente outr sas heterotopias, haverd sem diivida uma espécie de experiencia comum, que seria o espelho. O espetho, afinal, & uma utopia, porque & uum lugar sem lugar. No espelho vejo-me onde nao estou, num espago ir- teal que se abre virtualmente atrés da superficie, estou af onde nao es- tou, uma espécie de sombra que me dé a mim mesmo a minha propria visibilidade, que me permite olhar-me af onde estou ausente: utopia do espelhio. Mas é igualmente uma heterotopia, na medida em que 0 espe- Iho existe realmente e onde tem uma espécie de efeito de retorno sobre 0 lugar que ocupo; é a partir do espelho que me des: ‘modo se lanca sobre mim, do fundo desse espaco tro lado do espelho, volto a mim e recomego a lancar os olhes para mim proprio ea reconstituir-me af onde estou; 0 espelho funciona como uma heterotopia no sentido em que devolve esse lugar que ocupo no mo- mento em que me olho no espelho, ao mesmo tempo absolutamente real, em ligagao cam todo 0 espago que 0 rodeia e abvolutamente intel, por- Fxpagos outros 27 «que ¢ obrigado, para ser percebido, a passar por esse ponto virtual que (Quanto as heterotopias propriamente ditas, como poderiam ser descri- tas, que sentido tém? Poder-seia supor — nao digo uma ciéncia porque hoje uma palavra demasiado gasta—mastuma espécie de descricto sis- temiética que teria por objecto, numa dada sociedade, o estudo, a anélise, a descrigfo, a sleittxray, como se diz hoje, desses espagos diferentes, des- ses lugares outros, uma espécie de contestacao ao mesmo tempo mit € real do espago em que viveros; a essa descricio poder-seia chamar he- terotopologia. O primeiro principio € 0 de que nao ha provavelmente ‘uma tinica cultura no mundo que nfo constitua jvidwos que se encontram, em ie eno meio humano em que vivem, em estado de cri se. Os adolescentes, as mulheres na época da menstruacio, as mulheres ‘em trabalho de pasto, recer, se bem que ainda se possam encontrar alguns restos. Por exemple a escola, na forma que assumiu no século x, ou 0 servigo militar p rapazes desempenharam certamente tal papel — as primeiras manifesta- ges da sexualidade viril devendo verificarse, precisamente, «algures» dda familia, Para as raparigas exista, fradigio que se chamava a «viagem de ni tral. A desfloracSo da rapariga no podiat rnesse momento,.o comboio, o hotel da viagem de népcias constitufam es- se lugar nenhum, essa heterotopia sem referéncias geograticas Mas essas heterotopias de crise desaparccem hoje e so substituiclas, sm parte alguma» e, ‘vio, pois afinal, a velhice é uma crise mas igualmente um desvio, nna nosca sociedade em que o lazer é a regra, a ociosidade constitui uma espécie de desvio. ‘O segundo principio desta descricio das hetevolopias é 0 de que, no de curso da sua hist6ria, uma sociedade pode fazer funcionar de um modo muito diferente uma heterotopia que existe e quemunca deixon de existir; 248 Michel Foucault com efeito, eada heterotopia tem um funcionamento preciso e determina- do no intetior da sociedade e a mesma heterotopia pode, segundo a sine

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