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Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

DEFINIÇÃO DO DIREITO PENAL .................................................................................................... 3


Criminologia ................................................................................................................................... 8
O Crime...................................................................................................................................... 8
1. Deficiência do Indivíduo? ................................................................................................... 8
2. Deficiência da Socialização? ............................................................................................. 11
3. Deficiências da Estrutura Social? ...................................................................................... 14
4. Produto duma Construção Social? .................................................................................... 15
Conclusões da Criminologia ..................................................................................................... 17
FINS DAS PENAS ........................................................................................................................... 18
Teorias Monistas ...................................................................................................................... 18
Teorias Retributivas / Absolutas .......................................................................................... 18
Teorias Preventivas / Relativas ............................................................................................ 20
3ª via das consequências do crime: Restoractive Justice .................................................... 22
Teorias Mistas .......................................................................................................................... 23
Claus Roxin........................................................................................................................... 24
Faria Costa ........................................................................................................................... 25
Sousa e Brito ........................................................................................................................ 25
Figueiredo Dias .................................................................................................................... 26
Maria Fernanda Palma......................................................................................................... 27
Conceito Material de Crime.......................................................................................................... 30
Funcionalismo sistémico na definição de crime........................................................................ 30
Estado atual dos modelos de política criminal em conexão com os modelos de fundamentação
do Direito Penal ....................................................................................................................... 32
Modelo fundamentador do Direito Penal ................................................................................. 33
BEM JURÍDICO .......................................................................................................................... 34
Roxin .................................................................................................................................... 35
Figueiredo Dias .................................................................................................................... 38
Maria Fernanda Palma......................................................................................................... 38
O PAPEL DOS PRINCÍPIOS NO DIREITO PENAL NA LEGITIMAÇÃO DAS NORMAS INCRIMINADORAS
..................................................................................................................................................... 46
Princípio da Legalidade................................................................................................................. 50
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E O PROBLEMA DA INTERPRETAÇÃO DA LEI PENAL ....................... 52
RESERVA DE LEI.................................................................................................................... 53
INTERPRETAÇÃO DA LEI PENAL: PROIBIÇÃO DA ANALOGIA ................................................ 59
Aplicação da Lei no Tempo ........................................................................................................... 81
MEDIDAS DE SEGURANÇA ....................................................................................................... 84

Regência: Maria Fernanda Palma


Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Processo Penal......................................................................................................................... 85
Normas que aumentam prazo de procedimento prescricional ............................................. 87
Crimes Públicos, Semipúblicos, Particulares ......................................................................... 89
A aplicação retroativa de lei penal mais favorável (retroatividade in melius) ......................... 90
LEIS TEMPORÁRIAS E DE EMERGÊNCIA ................................................................................... 93
LEI PENAL INCONSTITUCIONAL E PROBLEMA DA SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO ................... 94
CRIMES PERMANENTES ........................................................................................................... 96
CRIMES PARA CONTRAORDENAÇÕES ...................................................................................... 97
CRIMES DE PERIGO ABSTRATOS E DE PERIGO CONCRETO ...................................................... 98
APLICAÇÃO DA LEI NO ESPAÇO................................................................................................... 116
Princípio da Territorialidade ................................................................................................... 117
Princípio da defesa dos interesses nacionais .......................................................................... 119
Princípio da Universalidade da aplicação da lei penal portuguesa .......................................... 120
Princípio da Nacionalidade ..................................................................................................... 121
Restrições à aplicação da lei penal portuguesa por força da aplicação mais favorável do direito
estrangeiro (art. 6º/2 CP) ....................................................................................................... 124
A aplicabilidade da lei penal portuguesa e o princípio non bis in idem ................................... 125
Cooperação Judiciária Internacional ....................................................................................... 128
EXTRADIÇÃO ...................................................................................................................... 128
MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU ................................................................................ 130
ÂMBITO DE VALIDADE DA LEI PENAL QUANTO ÀS PESSOAS .................................................. 137
Sistemática do Código Penal ...................................................................................................... 143

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DEFINIÇÃO DO DIREITO PENAL


Estrutura da norma penal:
• Previsão = Crimes
• Estatuição = Penas e Medidas de Segurança = Sanções Criminais
▪ Penas: aplicáveis em geral aos agentes com capacidade de culpa e de
responsabilidade, sendo todas restritivas de direitos fundamentais –
pressuposto é a culpa do agente e ser pessoalmente censurado (pelo
Direito) pela prática dum facto
▪ Medidas de Segurança: sanções que se fundamentam na perigosidade
do agente e que apresentam, sobretudo, caráter preventivo –
pressuposto é o perigo

Figueiredo Dias: Direito Penal é ramo ou parte integrante do Direito Público – o particular está
submetido ao ius puniendi de que o Estado está dotado.1
➢ Pelo relevo prático e especificidade de elaboração teórica (há dignidade da matéria penal),
o Direito Penal autonomizou-se historicamente e passou a ser disciplina inteiramente
própria.

Definição Formal de Direito Penal:


Conjunto de normas, que se autonomizam no Ordenamento Jurídico por atribuírem a certos
factos jurídicos – crimes (previsão) – consequências jurídicas/sanções criminais profundamento
graves – penas e medidas de segurança (estatuição).2
→ Não pode ser aceite esta definição.
o Pois definir o Direito penal como um mero conjunto de normas era aceitar uma
definição em que num sistema positivo injusto considerar-se-iam crimes certas
situações e atribuir-se-iam sanções criminais. Ex: julgamento de Galileu
▪ Perspetiva demasiado positivista
→ O crime e a pena têm um conteúdo pré-legislativo indisponível.
o O sistema funciona com base em juízos de valor – é axiomático e não pode
apenas funcionar numa lógica de “se está no Código é crime”

Definição Material de Crime


Que factos podem ser caracterizados como crime?
• Não todos os que são objeto de sanção criminal – argumento circular e arbitrário, sem
validade normativa e que não caracteriza os factos – não basta haver pena atribuída
para ser crime; ser punido não determina a qualidade do facto como crime. Ex: jovem
condenada por usar minissaia, segundo uma comissão saudita
• Não todos os que têm gravidade moral – argumento pressupõe confusão entre Direito
e Moral, que não estão no mesmo plano.

1
Daí que o Direito Penal tenha uma estreita conexão o direito constitucional com a teoria do Estado.
2
Figueiredo Dias:
• Direito Penal Subjetivo – ius puniendi – resulta da soberana competência do Estado em considerar como
crimes certos comportamentos humanos e ligar-lhe sanções específicas.
• Direito Penal Objetivo – ius poenale – é a definição formal, que é a expressão ou emanação do poder
punitivo do Estado.

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• Não todos os que revelam perigosidade emergente – argumento que desloca a


caracterização do crime para a personalidade do agente e não para o seu
comportamento – há factos irrelevantes que podem ser perigosos, assim como crimes
esporádicos ou em situação limite, sem grande perigosidade.
• Não todos os que são danosos para a sociedade – argumento com entendimento
demasiado amplo e aberto (MFP) – há factos acidentais muito danosos para a sociedade
e alguns Estados consideram diferentes situações como crime ou atribuem diferentes
sanções criminais para o mesmo facto, alterando a relevância e a própria definição de
“dano” consoante o caso. Ex: estatuto de refugiado ilegal é considerado um crime grave
nalguns países

Então,
Para se definir materialmente um crime é preciso:
1. Fundamento normativo aceitável pelo Direito, através da relação dos factos e não por
mera descrição formal – necessidade de uma razão universalizável no âmbito do sistema
jurídico
2. Razão normativa que abarque o plano objetivo do facto, bem como o seu plano
subjetivo
3. Descoberta de quais os factos que podem, de acordo com os critérios do sistema
jurídico, justificar as sanções criminais

O conceito material de crime tem como ponto de partida a 2) justificação racional-


normativa, 1) no âmbito do sistema jurídico, 3) para a gravidade das sanções criminais.
→ I.e., na perspetiva dos critérios do sistema jurídico3 pondera-se se se deve
atribuir consequências jurídicas a determinada conduta – algo é crime se merecer
uma pena
o A gravidade das sanções criminais relativamente às restrições dos
direitos fundamentais só é justificável por factos proporcionalmente
danosos desses mesmos direitos fundamentais ou bem.
▪ Lógica do Estado de Direito e do princípio da necessidade da pena ditam
a gravidade da sanção criminal – art. 18º/2 CRP

A qualificação dum facto como crime, para ser válida e normativa, tem de passar pelo crivo da
relação entre o Estado e os cidadãos4 e tem de respeitar os princípios constitucionais.

Por que devem os cidadãos submeter-se ao Estado e aceitar ser punidos? Quando é que é
racional as pessoas submeterem-se a restrições das suas liberdades pelo Estado?
Hobbes: pessimista que acreditava que a necessidade do Estado advinha da péssima natureza
humana e, portanto, tratar-se-ia dum pacto de submissão para garantir a proteção e a
representação de todos os cidadãos.

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Princípios e fundamentos do sistema jurídico-penal
4
Tendo em conta aquilo que se entende como restrição legítima pelo Estado de direitos fundamentais –
pena estatal.

4
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• Cidadãos concordam em ceder direitos naturais ao Estado de forma a obter proteção,


na medida que sem ela existiria uma competição por recursos, numa “guerra de todos
contra todos”.
• O Estado é o Leviatã5 – entidade mais forte que assegura o cumprimento do contrato
social.

Locke: pensador liberal da tradição liberal individualista em que vê o Estado como o guardião
dos direitos individuais, sendo esse o fundamento do poder.
• Associação livre entre Estados e cidadãos – Estado oferece proteção, mediante
consentimento6 (de Homens que são livres, iguais e independentes no Estado
Natureza7), e é instrumento para a realização plena dos direitos e liberdades individuais,
pois no Estado Natureza estão sujeitos à invasão de outros (e assim preservam a
propriedade, que de outra forma era incerta).
o Crime é uma ofensa a direitos, que justifica, pela sua gravidade, a restrição dos
direitos fundamentais.

Rosseau: pensador democrático que vê a Associação dos indivíduos no Estado como aquilo
que permite o seu desenvolvimento através da vontade coletiva, que permite a realização da
igualdade – o Homem só se conserva se se unir a outros, de forma a “encontrar forma de
associação que defenda e proteja os bens de cada associado e pela qual, cada um, unindo-se a
todos, não obedeça senão a si mesmo e permaneça tão livre como anteriormente”.
• O interesse coletivo é condição de realização dos indivíduos.
o União à vontade coletiva garante os interesses individuais (ganha o equivalente
a tudo o que tinha), que ganham mais força num coletivo (que é uma forma de
realização do indivíduo).
• Homem perde a liberdade natural mas ganha a liberdade civil (delimitada pela liberdade
geral) e garante a propriedade de tudo o que possui – contrato social produz corpo
moral e coletivo.
o Crime é ofensa à vontade coletiva, da qual depende a igualdade dos direitos e
o desenvolvimento individual.8

Kant: vê o interesse individual como racional e não como psicológico em que a Moralidade é a
pedra angular da Racionalidade.
o É a racionalidade do ser humano, como ser moral, que legitima qualquer
restrição da liberdade e nunca a produção de felicidade
• Restrição do livre arbítrio de cada um justifica-se na medida da articulação da
liberdade de cada um com a liberdade dos outros.9
o Paradoxo: Aquele que rouba viola a propriedade alheia, mas rouba-se a si
mesmo. Quando furtou quis ser proprietário do furtado, portanto, tem
interesse que as leis da propriedade sejam respeitadas. Mas viola-as porque
furtou.

5
Que pode ser tanto um indivíduo como uma assembleia.
6
Princípio da sociedade política depende do consenso dos indivíduos que decidiram associar-se
7
Homens abandonam o Estado Natureza entregando todo o poder à comunidade para esta cumprir os
fins para os quais se uniram em sociedade.
8
Pensamento que dá aso a que se qualifique como crime aquilo que é a vontade da maioria.
9
A autonomia da vontade é o princípio único de todas as leis morais e de todos os deveres que estão em
conformidade com elas.

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o O que justifica o aceitar de penas é a liberdade – que só pode ser assegurada


em articulação com a dos outros (tratando as pessoas como fins em si mesmos).
• Aceitar penas é pagar o preço de ser livre – “o Direito é o conjunto de condições em
que o arbítrio de cada um se concilia com o arbítrio de todos, numa lei universal para
todos”. 10
o O que está em causa é a racionalidade – arbítrio e liberdade é racionalmente
falando.
o Contrato social não é negócio e a vontade não é escolha arbitrária e sem a razão
prática em que se inclui a subordinação à lei e ao Estado – profundamente
racional.
o Não é o interesse individual que justifica, mas sim o Direito justificado como
liberdade para todos.

MFP: as respostas até Kant são modelos normativos que partem da racionalidade, mas
desprezam a racionalidade imediata e a história – o contrato social não é histórico e sim uma
experiência de pensamento.
➢ Os filósofos contemporâneos repensam a pergunta numa outra lógica.

Rawls: não coloca a questão em modos idealistas, como Kant. Não fala de contrato social nem
de Estado de natureza. – ideia de um consenso original cujo o objeto são os princípios de justiça
para a estrutura básica da sociedade.
• Fala numa experiência de pensamento da posição original11 e do conceito do “véu de
ignorância” – é essa racionalidade de interesses, considerando o que existe
historicamente no momento, apenas abstraindo de quem se é (partes mutuamente
desinteressadas), que permite escolher os (2) princípios de justiça, numa escolha
racional que justifica a subordinação ao Estado.
o Princípio da liberdade – o máximo de direitos a cada um para todos termos o
máximo de direitos;
o Princípio da diferença – as diferenças entre as pessoas são legítimas, mas na
redistribuição de riqueza só se justificam quando redundem em benefício dos
mais fracos12
• Justificação das restrições na liberdade de direitos baseiam-se em princípios de justiça
que permitem organizar mais racionalmente a sociedade – o que justifica a
subordinação do cidadão ao Estado é a escolha voluntária com base nos princípios de
justiça.
o Penas são admissíveis quando são beneficiam os mais fracos, promovendo a
liberdade e a segurança.

Martha Nussbaum: aceita em parte Rawls e faz uma capabilities approach. São as capacidades
humanas que determinam qual a escolha justa.
• Partilha ideias do contratualismo de Rawls mas aponta-lhe 3 problemas: pessoas com
dificuldade e deficiência, nacionalidade, outras espécies.

10
Direito é coerção no sentido que o comportamento criminoso é restrição à liberdade, pelo que é
necessário essa coerção para restituir essa liberdade.
11
Em que estavam pessoas livres e racionais
12
Sem isto há arbitrariedade na distribuição

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o Rawls pensa no ser humano sempre como racional e escolhe os princípios para
os seres racionais – o que pode ser injusto para os seres não racionais.
• Só há uma restrição racional de direitos se a contrapartida for o florescimento das
capacidades de cada ser humano, de forma a viver a vida dignamente.
o A racionalidade da subjugação de alguém ao Estado é o florescimento das
capacidades humanas e a possibilidade de se ter uma vida digna.
o Somos diferentes e temos capacidades diferentes – essa diferença tem de ser
reconhecida e tem de haver um consenso (pós esse reconhecimento) para que
a vida de todos floresça.
o Capacidades humanas são os critérios de escolha justa e cabe ao Estado o
desenvolvimento destas capacidades individuais, que são as fontes dos
princípios políticos subjacentes ao Estado.
• Princípios de justiça mais diversificados e inclusivos – redefine o contrato social e inclui
as pessoas com menos capacidades e os próprios animais – em que a restrição de
direitos através das penas deve ancorar na realização de interesses tidos como
fundamentais.
o Gravidade das penas não se define pela tradição ou moral dominante nem pela
vontade da maioria. É necessária uma relação com os fins do Estado e os seus
princípios de justiça.
• O direito penal que protege as capacidades não é retributivo, mas sim reintegrativo,
justificado pelo melhor desenvolvimento, tanto da personalidade das potencias vítimas
como dos próprios agentes.
• Só é criminoso o comportamento que mereça uma pena (apena à discussão da
legitimidade constitucional).
• Deve estudar-se quais as condições necessárias para se dar as melhores condições.

MFP critica: até agora só tirámos conclusões normativas, em que pensamos em modelos
normativos que pressupõem a total liberdade dos agentes e a não existência de um modo social
de produção de fenómenos.

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O Código Penal não tem uma definição de crime – tem é definições de crimes/dos concretos
factos tidos como crime (art. 131º e ss.)

Criminologia
Estudos não jurídicos sobre o crime e sim como fenómenos sociais ou psico-sociais.
➢ Ciência de base descritiva e não normativa – não pretende mostrar nem o que deve ser
crime nem como se deve responder com justiça ao crime, mas pretende apenas
compreendê-lo e explica-lo.
o Criminologia não visa resolver o problema social do crime (isso cabe ao Direito
Penal), visa explicar o fenómeno do crime – o que é útil para o Direito penal
delimitar o que pode ser ou não crime.

O Crime
1. Deficiência do Indivíduo?
Perspetiva do crime como fenómeno individual, identificável objetivamente13.

A. Conceção das teses biologistas/antropológicas/biopsicológicas


Não se discute o que é crime e qual o seu conteúdo material. A discussão desloca-se para a
pessoa que comete os crimes e o determinismo biológico e/ou psicológico que leva tal pessoa a
cometer o crime.
➢ Procura-se identificar as causas biológicas de uma diferença – coloca no âmago da
investigação a pessoa isolada do meio.

Escola Positiva
• Cesare Lombroso: olha para o crime como facto empírico e natural. Assume que há
criminosos natos. É determinista e com visão não jurídica do crime.
vs. Escola Clássica
• Francesco Carrara: ideia de contrato social em que as pessoas eram livres, pelo que a
prática de um crime era relacionada com a liberdade de decisão. Baseava-se num
modelo de racionalidade da filosofia política.

Lombroso
Fundou a antropologia criminal e pôs em causa a Escola Clássica.
O estudo da fisiognomia levou a concluir que havia características físicas que levavam a ser-se
criminoso.
➢ Traços no rosto e no crânio. Ex: orelhas grandes, lábios saídos, ter tatuagens
➢ Explica o criminoso nato pela evolução psicobiológica.
o Conceção do Atavismo em que os criminosos são sujeitos atávicos = menos
desenvolvidos na escala evolutiva

Metodologia positivista (de Comte) em que se estuda o crime (facto natural) como qualquer
outro facto empiricamente estudado.

13
Alteração dum padrão de comportamento tido como normal.

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Ferri, sucessor de Lombroso já dava alguma relevância aos fenómenos sociológicos e afirmava
que “é o método experimental que constitui a chave do conhecimento. Tudo é governado pelos
factos”

Críticas a Lombroso:
• Comparação de crânios só entre condenados e nunca comparou com não criminosos
• Preconceitos da época
• Numa primeira fase desconsidera os fatores sociais subjacentes à prática de crimes
• Goring14 estudou 3 mil condenados e não chegou aos mesmos resultados que Lombroso.

Em Portugal:
• Muitos adeptos influenciados pela obra L’Uomo Deliquente (1876) – escola de
criminologia pujante em Portugal e com metodologia lombrosiana – Júlio de Matos,
Miguel Bombarda, Mendes Correia15.
• Mas também teve críticos, no Congresso de Paris.
• Egas Moniz também estudou este assunto na aplicação das lobotomias “para
interromper circuitos fixos que dão às pessoas as ideias fixas” – grande repercursão
internacional (principalmente nos EUA)

A escola positiva despolitizou a pena (da aceção clássica) pois é encarada como um tratamento
e já não se funda no poder do Estado e sim na ciência.

B. Conceções biopsicológicas que ligam genética e crime


Características genética explicam comportamentos criminosos.

Numa fase pós-Lombroso e já mais contemporânea voltaram as teses biologistas como a do


Síndrome da Hipermasculinidade (cromossoma sexual é XYY)
➢ Estudos feitos nos anos 60 e que foram posteriormente rejeitados pois não envolvia
pessoas condenadas por homicídio e mais pessoas condenadas por violações da
propriedade – contrariando a tese de que os homens XYY cometiam crimes
graves/violentos contra pessoas.
➢ Consequências desses estudos biologistas:
i. põe em causa a exclusão da responsabilidade criminal;
ii. práticas eugénicas no sentido de esterilizar as pessoas com anomalias e/ou
características que possam indicar que se é criminoso;
iii. penas incapacitantes para limitar a possibilidade das pessoas voltarem ao meio
social pois estão determinadas pelas suas condições.

C. Conceções biopsicológicas da neurociência


Uma discussão que ainda é atual é a de se estudar a relação entre o crime e algumas
características neurológicas dos indivíduos – estudo da neurociência é importante.
Hoje em dia tem havido estudos da neurociência neste campo. Mas não há dados suficientes
para concluir o determinismo para o crime.

14
Médico inglês
15
Muito importante no início do séc. XX e afasta-se de Lombroso ao reconhecer o papel da educação e
do meio como grandes influências.
➢ Apesar de na fase final Lombroso já o admitir

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Grandes críticas a esta corrente são a afirmação da dicotomia mente//cérebro; o facto de não
ser apenas com base numa atividade neurológica que se pode atribuir significado às interações
sociais e comportamentos.

D. Conceções das teses da psicologia contemporânea


O Direito usa a psicologia pluridisciplinarmente, mas não se reduz a ela, que só tem um papel
relevante de acordo com os critérios do Direito.
➢ Psicologia Criminal – o que explica a prática de crimes no psiquismo de uma pessoa

Teorias Psicodinâmicas
Problemas na infância e crime está relacionado com a fraqueza do ego (Freud).
• Génese do crime tem a ver com a relação das conceções pessoais básicas em que o
sentimento de culpa é motivo – condenação exterior é aliviadora da autocondenação
interior
• Alexander/Staub: certos agentes do crime procuram-no para serem punidos,
libertando-se assim dos seus desejos mais interditos.
• Eysenk: herança genética condiciona diferenças do funcionamento do sistema nervoso
– 3 características combinadas (extroversão, neurotismo, psicotismo) levam a menor
controlo do comportamento
o Continua a ter um pendor determinístico

Teorias Comportamentais/Behaveouristas
Explica o comportamento na relação com o meio.
• Eysenk: As dimensões de personalidade teriam variações de intensidade e articulação
nos indivíduos levando a estímulos sociais serem entendidos de forma diferentes e
havendo menos controlo do comportamento.
• Bandura: comportamento gera o ambiente e o comportamento reage ao ambiente.
• Taylor/Walton: o que define a personalidade é o desempenho individual do
empreendimento que fazemos de criar uma auto-conceção própria – “forma
significativa de um ator tentar construir e desenvolver a sua própria auto-conceção”.

Teorias Cognitivas
• Piaget/Kohlberg: comportamentos antissociais estariam relacionados com a
incapacidade de atingir os estádios superiores dos níveis de desenvolvimento moral16
da personalidade – prática do crime está associada aqueles que ainda não passaram da
primeira fase.
o Gillian critica e fala numa ética de cuidados e não de uma abstrata escolha de
princípios morais.
• Gottfredson/ Hirschi: crime relaciona-se com a impulsividade e falta de autocontrole,
associada à incapacidade de diferir a gratificação almejada pela ação.
o Incapacidade de pensar a gratificação a longo prazo, beneficiando a atisfação
pessoal que o momento presente lhes proporciona – o prazer do imediato é
mais valorizado que as consequências dos atos, a longo prazo.

16
Pré-convencional – resposta automática a estímulos; Convencional – comportamento de acordo com
as regras mas apenas porque são regras (aceitam o Direito por motivos de benefício/aproveitamento
pessoal); Pós-convencional – comportamento e decisões baseadas em princípios abstratos de justiça.

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• Gibbs: distorções cognitivas que desvalorizam a responsabilidade pelo próprio


comportamento e distorcem o reconhecimento da autoria.
o Clive R. Holin: conceção das distorções cognitivas, que distorcem o
reconhecimento da autoria ou desvalorizam a responsabilidade pelo próprio
comportamento, suportando o baixo nível de desenvolvimento socio-moral.

Desenvolvimento da Psicologia cognitiva-comportamental


Alteração de modelos de raciocínio que conseguem desenhar técnicas de intervenção.
• Tratamento da motivação em programas com fases delineadas.
• Fonagy: técnicas de mentalização – o crime está associado à falta de controlo de si
mesmo; o segredo para o controlo de si mesmo pressupõe a capacidade de
representações mentais positivas próprias e dos outros (em conexão)
o Capacidade de destrinçar visão sobre si próprio da veiculado por outros.
o Relacionar a experiência interior com a representação atual, compreendendo-
se a si e aos outros, lidando com emoções e constituindo relações reais e sólidas.

Teorias da Personalidade
Análise da personalidade orienta-se por modelos baseados no processamento da informação
social pelos indivíduos, que permitem compreender que os indivíduos agressivos desenvolvem
perceções limitadas das situações e das soluções para os problemas que lhes são colocados nos
conflitos interpessoais, não conseguindo alcançar técnicas alternativas à violência para resolver
tais conflitos.
➢ Psicologismo é menos determinante e a psicologia criminal aproxima-se do indivíduo

Teorias Focadas na Inteligência


Veem o crime como escolha racional, sendo o benefício pessoal a sua motivação determinante,
e, acentuando, consequentemente, a importância do melhoramento do indivíduo e da sua
capacidade de escolha em detrimento de fatores sociais e da influência do grupo.
Vai em linha de conta com as teorias sociológicas que explicam o crime com alguma
racionalidade funcional.

2. Deficiência da Socialização?
Perspetiva do crime como fenómeno social, identificável objetivamente17.

Crime é expressão de uma deficiência na socialização – não parte das características dos
indivíduos mas sim do contexto social.

A. Durkheim: crime é facto social e é analisado como função social e não como mera projeção
da experiência subjetiva
• Normal – exprime o funcionamento normal das sociedades;
• Funcional/Útil – permite sinalizar quais as regras dominantes e necessárias – um crime
é um desvio à regra que permite manter acesa a regra (se não houvesse crime as pessoas
não sabiam que havia regra).18

17
Alteração dum padrão de comportamento tido como normal. Combinação do modelo de
desenvolvimento moral com o modelo de informação social permite desenhar técnicas de intervenção
que procuram alterar os critérios de decisão, sem o apego a modelos deterministas.
18
Harmoniza-se com S. Paulo que dizia que era a lei a criadora do pecado

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• Necessário – prepara as mudanças sociais e baliza a normalidade da vida social.


• Expressão de inovações – exprime inovações comportamentais inerentes à evolução
social, nomeadamente às conceções éticas dominantes. Ex: julgamento do filósofo
Sócrates

Tem origem histórica no positivismo científico e olha para o crime de forma cínica e abstraindo
da questão moral.
➢ Insere-se numa linha de funcionalismo em que o delinquente tem papel fundamental
na sociedade.

Anomia – fenómenos de indiferença às normas, suscitados pela organização das sociedades,


nomeadamente pela divisão do trabalho social, em que a raiz dos comportamentos anti-sociais
assenta na natureza das estruturas sociais.

B. Mead19: crime é resultado de uma interação da sociedade com a pessoa.

Comportamentos sociais são resultado da interação entre a sociedade e o indivíduo, em que


a sociedade determina a construção das conceções de si mesmo (self) e a construção de
significados (interacionismo simbólico).
➢ Objetiviza comportamentos e explica-os através de uma resposta algo padronizada das
pessoas às condicionantes do meio social.

Construção de si mesmo é determinada não pela sociedade, mas pela interação da pessoa com
a sociedade.
• Realidade social está em construção e não é objetiva a 100% - é sempre simbólica e
representativa da interação social com os indivíduos.
• Pessoas agem com base nos significados dados às coisas e a interpretação desses
significados depende da situação social do indivíduo.

Compreensão dos fenómenos de interação e de resposta do indivíduo ao meio – subjacente a


teorias da aprendizagem dos comportamentos criminosos e à construção de si e da
personalidade delinquente.
➢ Abre caminho às possibilidades de reconstrução de si mesmo.

C. Sutherland: crime pressupõe fenómenos de aprendizagem por contacto, pela associação


diferencial, com padrões de comportamento criminosos e não-criminosos, envolvendo todos os
mecanismos presentes em todo o tipo de aprendizagem.

Crime explica-se pela intensidade, frequência e precocidade de certos contactos sociais – não
se explica pela expressão de necessidades, valores, nem pelo meio social, nem por deficiências
do indivíduo.
• Vem estabelecer uma teoria da determinação do comportamento criminoso em 9
aspetos:
1. Comportamento criminoso é aprendido;

19
Primórdios da Escola de Chicago

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2. Comportamento criminoso é aprendido por interação com outras pessoas num


processo de comunicação;
3. Aprendizagem faz-se por contacto dentro de grupos íntimos e pessoais;
4. Aprendizagem inclui técnicas, motivos e atitudes;
5. Orientação específica dos motivos dependo dos códigos legais como favoráveis ou
desfavoráveis à infração;
6. Pessoa torna-se delinquente em consequência do prevalecimento das posições
favoráveis às infrações;
7. Associações diferenciais podem variar em frequência, duração, prioridade e
intensidade, sendo as mais decisivas as mais precoces;
8. Comportamento criminoso envolve todos os elementos de uma aprendizagem, não
sendo uma mera imitação;
9. Conquanto comportamento criminoso seja uma expressão de necessidades e valores
gerais, não é explicado por eles, porque tais necessidades e valores gerais presidem a
todo comportamento social, criminoso e não criminoso.

Demonstrou, com um estudo sobre os White Collar Crimes20, que o comportamento anti-social
não se restringe às classes mais baixas, nem se determina pela pobreza, tem sim a ver com
padrões comportamentais desenvolvidos pelos grupos sociais. O essencial do processo de
aprendizagem é semelhante seja qual for o tipo de criminalidade.

Comportamento criminoso é aprendido com a interação entre as pessoas, num processo de


comunicação – aprende-se21 a ser criminoso e todos o podem ser.
➢ É uma aprendizagem próxima, com parceiros e grupos mais privados. Mas não se
aprende só com criminosos, pode ser com qualquer um. Leva a uma aprendizagem de
motivos e técnicas para se cometerem crimes.

Teoria da Associação Diferencial: crime é fenómeno associativo – não se explica pelas


necessidades expressas do meio ou do indivíduo, mas sim pelos contactos pessoais.
➢ Não tem nada a ver com pobreza e sim com contactos – sendo nesses fenómenos de
aprendizagem e interpretação que se deve interferir.

Complexo pessoa-situação: em que a Criminalidade é aprendizagem de modelos de conduta,


compreendendo tanto as técnicas como a orientação dos móbeis, racionalizações e conceções
que conformam a conduta delinquente.

D. Albert K. Cohen: lógica interacionista em que a criminalidade surge de fenómenos de


conflito de valores culturais e de substituição dos valores dominantes por outros valores e
pautas normativas, que originariam as subculturas delinquentes.
➢ Sellin conclui que os conflitos não são de culturas mas sim de normas de conduta,
afetando, sobretudo, os que se encontram em situações de transição de culturas, como
os imigrantes de 2ª geração.

20
Cunhou a expressão e viu estes ilícitos como verdadeiros crimes (que muitas vezes não era assim
tratados, sendo julgados no âmbito administrativo e não penal). Encara-os como a desorganização da
sociedade – em que a lei pressiona numa direção e as regras do negócio noutra.
21
No pólo oposto de Lombroso

13
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

E. Skyes e Matza: no fenómeno do crime, sobretudo na delinquência juvenil, revelam-se


técnicas de neutralização normativa, pelas quais os agentes superariam conflitos normativo-
comunicativos.
• Existiam padrões de comportamento em que os agentes utilizariam técnicas de
desresponsabilização, como a representação do agente como produto de
circunstâncias, negação do ilícito e injustiça da atuação em nome de lógicas de duelo,
desprezo pelas vítimas que justificaria a sua punição e etc.

F. Conclusão:
A Sociologia Criminal, a partir de Mead, começou a conceber o crime como expressão de
processos sociais de comunicação, em que são transmitidas racionalidades conformadoras dos
comportamentos criminosos, que demonstram que o crime é uma resposta ou a solução de
um tipo de conflitos ou problemas de interação entre o agente e o meio, previsível e
reconfigurável até certo ponto.

3. Deficiências da Estrutura Social?


Perspetiva do crime a partir do conceito de anomia22.

Crime e a explicação do comportamento criminoso residem nas deficiências da estrutura social.


Agente seria vítima da estrutura socio-cultural.

A. Merton
Pensa num paradigma de capitalismo e do ideal americano.23
Explica o crime pelo desfasamento entre as metas sociais gerais e as vias para as alcançar.
• Causa do comportamento criminoso seria a distorção referida entre a promoção de
valores como a ascensão social e a efetiva escassez de meios legítimos para a atingir –
esse desfasamento geraria indiferença aos valores e mecanismos de adaptação
individual.

Há crime pois não há sintonia entre os meios institucionais e as metas sociais.


Identifica 1 mecanismo de interação social que não leva à prática de crimes:
• Conformação – congruência entre as metas culturais e os meios institucionais.

Identifica 4 mecanismos de interação social que levam à prática de crimes:


• Inovação – metas institucionais seriam prosseguidas por meios não institucionais;
• Ritualismo – faltam metas culturais, mas segue-se formalmente os meios institucionais;
• Apatia – faltam metas culturais e ação institucional;
• Rebelião – agente não se conformam com as metas culturais e obviamente também não
pautam o seu comportamento pelos meios institucionais.

Comportamentos desviantes associados à inovação ou à rebelia – infração das normas


seria adaptativa a uma disfunção da estrutura social.
Apatia e ritualismo seriam perigosos para a desintegração social.

22
Durkheim: exprime a indiferença relativamente às regras vigentes numa certa sociedade.
23
Merton enquadra-se noutra escola de Chicago em que vê o crime como interação com a estrutura social.

14
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Rebelião enquadra comportamentos revolucionários como o próprio terrorismo.

Comportamento desviante tinha função latente (não manifesta) mas não era indispensável ou
útil24 - natureza do comportamento desviante permitia conceber alternativas de adaptação, ou
mesmo uma modificação das condições estruturais no sentido de adequar os fins culturais e os
meios institucionais.

Condicionamento social pelo meio seria elevado – self-fulfilling prophecies:


• Situações em que a definição pelo grupo de predições acerca de um indivíduo, embora
falsas, poderiam levar a que o indivíduo se adaptasse a esse papel e viesse a realizar
exatamente as referidas profecias, adaptando-se à “verdade social” sobre ele.

Poder-se-iam corrigir desajustamentos nas condições sociais.

Sublinha os padrões sociais de cada tipo de adaptação e não os modos psicológicos da referida
adaptação – tenta explicar o crime de forma macro, como modelo explicativo genérico.

Críticas a Merton:
• Não explica o porquê de situações idênticas em termos sociais conduzirem a desfechos
distintos;
• Não valoriza os aspetos individuais-psicológicos;
• Permite manipulações funcionais (através de uma política do empobrecimento como
ideal cultural – propõe-se redução das expetativas. Ex: se estão no bairro de lata não
podem esperar a vir ser licenciado);
• Não cumpre explicar a criminalidade dos ricos e poderosos.

4. Produto duma Construção Social?


Perspetiva do crime como processo social.
Labelling Approach
Crime é resultado de factos sociológicos que advêm de um processo de seleção social.
• Instâncias Formais de Controlo – legislador, polícia, tribunais e outras – elegem algumas
condutas e não outras como criminosas, ou apenas certas pessoas como delinquentes.
• Instâncias Não Formais de Controlo – grupos sociais (família, vizinhos, amigos) –
etiquetam certas pessoas como potenciais ou efetivas autoras de crimes.

Perspetiva dos estigmas – estudo dos processos de etiquetagem.


Surge através da herança de Mead, em que os comportamentos sociais seriam o produto de
configuração por uma interação simbólica dos significados sociais e da contração da realidade.
E como resposta ao Funcionalismo estruturalista, que não deu muita importância à relevância
dos padrões subjetivos de comportamento e reduziu o objeto de estudo às relações entre
elementos do sistema social, às disfunções e aos mecanismos de adaptação.

24
Como sugeria o funcionalismo puro de inspiração em Durkheim.

15
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Mas,
Não explica o sentido e função social do comportamento delinquente e da sua génese e
preocupa-se com os processos de seleção social desses comportamentos e a arbitrariedade
dos mesmos.

Labelling approach veio reconhecer que o crime seria expressão de um processo subjetivo-
social de estigmatização dos delinquentes e de seleção de verdadeiras carreiras criminosas.25
• Becker: déviance não é qualidade interna dos factos sociais, mas antes o produto dos
grupos sociais que criam as regras cuja violação a suscita e que aplicam com sucesso
(estigmatização) a qualificação de déviant aos que violam as normas.
o O que se tem de estudar não são as causas do crime, mas sim como é que certos
grupos sociais atribuem a característica de se ser criminoso (ou desviante).26
o É pura criação social.
• Lemert: fenómenos de déviance secundária são efeitos do processo de estigmatização.
o Papéis desencadeados pela atribuição primária do comportamento criminoso,
como uma resposta ou modo de lidar com a própria estigmatização.
o A partir de crimes sem gravidade, há depois comportamentos criminalizáveis
para evitar a punição por esses crimes. Ex: crime sem vítimas do consumo de
droga – para se drogar muitas vezes roubam. A partir da 1ª estigmatização gera-
se um comportamento pior, criando mais crime. (Schur)
• Goffman – construção de si mesmo em interação com os outros como um processo
dramatúrgico – as pessoas apresentam-se aos outros baseados em normas, mitos,
valores, desempenhando uma performance e extraindo um efeito.

Reconhecimento do simbolismo da realidade e a construção interacionista des-objetivizam o


crime e acentuam a repercussão da perspetiva dos sujeitos em interação no seu significado
social.
• Surge de novo a ideia das profecias que se cumprem a si mesmas
• Teorema de Thomas – facto não é verdadeiro mas é tido como verdadeiro por um grupo
social, tendo verdadeiras consequências para esse grupo social.

A seleção dos criminosos não é controlável racionalmente – o que se é visto como crime no
criminoso depende dos grupos sociais que o apontam.27

Críticas ao Labelling Approach:


• Enfoque excessivo nos processos de seleção social, mas que não explica se se pode
substituir esse processo discriminatório por um justo.
• Labelling não dá diretamente respostas e soluções para resolver o crime – pode ser
arbitrário.

25
Através de grupos que apontam X ou Y como criminoso.
26
O que distingue o criminoso do homem normal é ser rotulado como delinquente – grupos sociais
elaboram as regras que caracterizam os comportamentos como criminosos.
27
Estudo alemão dos anos 80 demonstrou que nos tribunais urbanos o homicídio era tido em conta de
forma mais leve, quando nos tribunais rurais o consideravam mais doloso – factos idênticos, mas
valorizados diferentemente porque há uma projeção nos mesmos de uma certa pré-compreensão.

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Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Conclusões da Criminologia
Criminologia utiliza uma noção pré-legal de crime.
➢ Tem empreendido tentativas para atingir um conceito material com alguma
objetividade que revelam uma noção operatória de crime, que engloba sempre a
violação de regras ou de valores tidos como essenciais, pressupondo sempre um
contexto de normatividade social e antinormatividade, bem como uma problemática
de motivibilidade por valores.

O fenómeno da criminalização tem o seu ponto de partida na identificação dos pressupostos


culturais, estruturais e os processos socio-psicológicos simbólicos de valoração dos
comportamentos.

Contributo para o conceito material de crime: de que modo pode o Direito Penal relacionar as
suas soluções com os conhecimentos da Criminologia?
• Interpelação epistemológica, relacionada com as condições críticas da definição social
do crime como objeto de pensamento – o que deve ser considerado crime
legitimamente não pode ser um tema que se abstraia das condicionantes socio-
psicológicas em que se produz a definição socialmente vigente.
• Tem de se filtrar por critérios de justiça e oportunidade social28

Conclusões para a Política criminal – conhecimento da criminologia expande para a


comunicação de coisas que não estigmatizem.
Conclusões para os Fins das Penas – criminologia orienta para o entendimento da pena como
reinserção social e não para as executar como incapacitantes.

28
Os comportamentos têm de se filtrar para a criminalização de condutas. Comportamentos em que não
haja grande margem de opção não devem ser tão criminalizados. Ao não fazer diferenciação o legislador
está a ser arbitrário. Deve desenhar-se os crimes dependendo do comportamento. Realidade empírica
deve valer na determinação do que é crime.

17
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

FINS DAS PENAS


Relacionam-se com a temática da legitimação, fundamentação e função da intervenção da pena
estatal – a partir dos fins das penas pode discutir-se toda a teoria da lei penal.
• FD: à sombra do problema dos fins das penas, discute-se toda a teoria penal, nas suas
questões fulcrais da legitimação, fundamentação e função da intervenção penal estatal.
• MFP: A pena tem uma conotação mágica ou sagrada que lhe foi sempre conferida pelo
processo histórico e que ainda hoje persiste, revelando-se sempre como imposição de
um mal para a pessoa do criminoso e para a sua honra (não apenas para o seu
património).

Art. 40º CP
→ Ponto de partida e chegada para a pergunta de qual a finalidade da aplicação de uma
pena.

Teorias Monistas
Perspetiva monista em que há só uma finalidade das penas

Teorias Retributivas / Absolutas


Extinção do mal que é o crime pelo mal que é a pena.
Justificam a pena pela compensação do mal do crime, independentemente de qualquer fim
pragmático.
• Ideia de pena como expiação – pena é uma retribuição que compensa o mal do crime.
• A pena é um castigo e nada mais que isso.

Teorias retributivas têm uma perspetiva retrospetiva.

Antiguidade Clássica: conversa entre Anaxágoras e Péricles em que se manifesta a conceção


retributiva

Idade Média: fundamento do juiz é a aplicação da justiça divina e na busca de uma


compensação por igualação – conceção cristã da responsabilidade ética individual

Kant: deveres impõe-se por si e justificam-se a si mesmos, sem fins extrínsecos.


• Penas são imperativos categóricos – mandamentos do cumprimento do dever.
• Contrato originário faz ceder liberdade e nessa assinatura também se sabe que há crime
e penas.
o Os crimes são mal necessários, aos quais se contrapõem as penas, que fazem
parte do contrato originário preservando a segurança.
o Crime e pena são sinalagmáticos: se todos conhecem o contrato originário e o
aceitam, então também se aceita a punição por penas.
o Deve aplicar-se o direito até às ultimas consequências.
• A pena não se aplica “para que” se atinja algo extrínseco à própria pena; a pena é
aplicada “porque” isso é o imperativo categórico.
→ A pena é um imperativo categórico e mesmo que uma sociedade desaparecesse,
teria que o último condenado à morte ser executado para que “o sangue

18
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

derramado não caia sobre o povo que se decidiu pela não punição, porque então
seria considerado comparticipante nesta violação pública da justiça”
• A negação do direito alheio é sempre uma negação do Direito geral, o que abrange os
direitos dos próprios criminosos – crime era a negação da universalidade da lei,

Hegel: crime é negação do direito; pena é a negação da negação – servia para anular o crime e
revalidar a vinculatividade do Direito.
• A pena é mal necessário “porque” se praticou o crime.
• O crime permite revelar o Direito, pois quando se viola o Direito isso demonstra que ele
existe – havendo contradição com a Ordem Jurídica a pena vem reafirmá-la.
o Aplica-se a pena porque tem de ser afirmar a norma jurídica.
o A pena é negação do crime, constituindo uma reafirmação dialética do Direito.
o A pena é inerente ao conceito de crime, faz parte dele num sentido lógico.
• Pena é modo de honrar o criminoso e não como um instrumento ao serviço da
sociedade, através do qual a dignidade do criminoso como pessoa possa ser prejudicada.
• Não há um entendimento moral da pena, a qual deve pertencer exclusivamente à
racionalidade do Estado – objetividade do Direito, a partir das características da
generalidade e abstração da norma;
o A pena, tal como o crime, não vale em função do merecimento da vontade
nem dos autores do crime nem de quem impõe a pena, mas enquanto afirma
ou nega o Direito num plano das ideias e num plano meramente lógico.

Pena surge como entidade independente de fins – construções que vêm as penas como fins em
si mesmos e que não visam alcançar finalidades extrínsecas.
➢ Pena é justo equivalente do facto que se cometeu e da culpa do agente

Estas teorias vêm criar o conceito de que tem de haver culpa para haver pena – esse apelo à
ideia de culpa cabe no art. 40º/2.

Críticas
1. Teoria parte de uma ideia de responsabilidade individual baseada no liberum arbitrium
indiferentiae que o conhecimento científico não permite comprovar – somente é
aceitável presumir que as pessoas são livres na medida em que a sociedade e o Direito
reconhecem a responsabilidade individual.
2. Pressuposto da retribuição é a culpa ética, surgindo como sua consequência
necessária. Não cabe ao Estado, num contexto de EDD, promover uma ética ou moral
em si mesmas, mas apenas, quando muito, na medida indispensável à preservação das
condições sociais de existência.
3. Retribuição conflitua com art. 18º/2 CRP – princípio da necessidade da pena que
postula que a pena só pode ser aplicada quando for necessária para a preservação da
sociedade.
4. Confusão concetual entre retribuição e reafirmação do Direito.29
5. Não pode ser considerada uma teoria dos fins das penas, pois a pena é considerada
como entidade independente de fins.

29
Não estando a reafirmação do Direito, em causa, se for articulada com um princípio liberal da
necessidade da pena, de adequação e proporcionalidade ao facto da mesma.

19
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

6. Não cabe na letra do art. 40º/1 em que a finalidade não é retributiva e aplica-se uma
pena “para que”.

Teorias Preventivas / Relativas


Pena é instrumento de prevenção da prática de crimes.
• A finalidade da pena é extrínseca.
• O mal da pena visa alcançar a prevenção.
o Figueiredo Dias: é instrumento político-criminal destinado a atuar no mundo e
intenta alcançar a prevenção ou a profilaxia criminal.

Teorias preventivas têm uma perspetiva prospetiva

Prevenção Geral
FD: Pena é instrumento de política criminal que visa atuar psiquicamente sobre a generalidade
das pessoas/comunidade, afastando-as da prática de crimes através da ameaça penal
estatuída pela lei, da realidade da sua aplicação e da efetividade da sua execução.

Prevenção geral negativa/Intimidação: receio da aplicação da pena impede as pessoas de


cometer crimes.
• Pena é concebida como intimidação da generalidade das pessoas.
• Linha de pensamento de Anselm von Feuerbach – doutrina da coação psicológica – a
pena serviria para impedir (psicologicamente) quem tivesse tendências contrárias ao
Direito de se determinar por elas.
• Justifica-se pelo fortalecimento dos juízos de valor social dos cidadãos, que depende da
cominação e aplicação de penas.

Prevenção geral positiva/Integração: pena existe para levar os cidadãos a confiar nas normas
gerais.
• Penas têm de demonstrar que a Ordem Jurídica é inquebrável.
• Penas visam conferir confiança à comunidade, para que as pessoas possam confiar no
Direito Penal.

Art. 40º/1 CP visa a proteção de bens jurídicos – promove uma atuação preventiva e liga
umbilicalmente à preservação dos bens.

Críticas
1. Configurar como a pena a partir de orientações pragmáticas e numa lógica de eficiência
viola a Dignidade da Pessoa Humana, que é tida como mero instrumento.
➢ A pessoa não é, em caso algum, um meio ao serviço de fins sociais.
2. Não se consegue justificar a atribuição da pena ao criminoso por algo que ele tenha feito
e com base na medida da gravidade do facto – a pena deixaria de poder ser vista como
consequência do crime.
3. Tendência para penas mais severas e longas, pois nunca se sabe qual o quantum de
pena que vai intimidar os sujeitos.
4. Baseia-se numa lógica de psicologia de multidões e de expetativas sociais.

20
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

5. Levado às últimas consequências poderia permitir a punição de pessoas que não


cometeram crimes apenas para serem exemplos.

Prevenção Especial
Pena surge como instrumento de prevenção individual – atuação sobre o agente que prevaricou
e focada nesse indivíduo. Intervenção sobre o cidadão delinquente, através da coação
psicológica, inibindo-o da prática de crimes ou eliminando nele a disposição para delinquir.
➢ Ideia da prevenção da reincidência.

Prevenção especial negativa – coação, segregação ou eliminação – defesa social através da


separação ou segregação do delinquente, visando neutralizar a sua perigosidade social.
• Intimidação individual.

Prevenção especial positiva – ressocialização, reintegração e socialização do agente.


• É indispensável ao Ordenamento Jurídico e surge em sintonia com a proteção dos bens.
• Só pode sofrer o mal da pena se daí surgir um sentido social positivo.
• Respeita o art. 18º/2 CRP pois reabilita o agente na sociedade, no sentido de se tornar
cidadão cumpridor do Direito.

Platão -> Protágoras: exemplo de racionalidade e de prevenção especial – toda a virtude se ensina e se
aprende.
• A punição deve ser para ensinar.
• Não se deve acrescentar um mal ao mal, deve querer produzir-se um bem.
o Pena retributiva visa produzir no futuro um mal e não um bem.
o Ao mal do ilícito junta-se o mal da pena.
o Deve é reabilitar-se para que no futuro haja um bem
• “Ninguém pune o delinquente só pela simples razão de que cometeu uma injustiça, a não ser
aquele que, como um animal irracional, se procura vingar; aquele que pretende punir de modo
racional não castiga por causa do ilícito já cometido – não faz com que o que esteja feito deixe
de estar – mas em vista do futuro, para que daí em diante o delinquente não volte a cometer
injustiças e também não os outros, que veem como ele é punido”

Kraus influencia este pensamento, bem como a Escola Correcionista, perfilhada por Levy
Maria Jordão.
➢ Todos os homens são suscetíveis de serem corrigidos e é isso que se devia fazer aos
delinquentes.

Críticas
1. A prevenção especial negativa viola a dignidade da pessoa humana e a
autodeterminação do indivíduo.
2. Quer a negativa quer a preventiva, a prevenção nunca pode ser tomada como a única
finalidade da pena, pois ela teria de ser prolongada até se ter a certeza que o agente
não cometeria novos crimes – levava ao instituto da pena absolutamente
indeterminada30

30
Não as do art. 83º e ss. CP – que são penas relativamente indeterminadas, mas, em que sabemos que
a pena vai acabar.

21
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

3. Crimes muito graves poderiam ficar impunes se não existisse perigo de reincidência e
crimes menos graves poderiam justificar a prisão perpétua ou a morte.
4. Investigação empírica não permite apoiar em dados absolutamente seguros a prognose
sobre a delinquência futura31

3ª via das consequências do crime: Restoractive Justice


Noção de justiça restaurativa, ONU: processo através do qual a vítima, ofensor e, quando
apropriado, outros indivíduos ou membros da comunidade afetados pela prática de um crime,
participam e decidem conjuntamente como lidar com os seus efeitos, auxiliados por um
terceiro imparcial.

Howard Zehr – ideia que a pena deve ter finalidades específicas de reparação
Braithwaue também adere a esta tese, influenciado por vir de Estados retributivos – o Estado
apropriou-se do crime e devolver-se o crime às pessoas.

Ideia de mediador penal – deve recentrar-se a noção de pena na vítima; noção de concertação
e reparação da vítima e do opressor
➢ Finalidade da pena pode ser a de operar a possível concertação entre o agente e a
vítima através da reparação dos danos – não apenas necessariamente patrimoniais,
mas também morais – causados pelo crime.
➢ Há diálogo entre a vítima, opressor e a comunidade afetada, numa lógica de
participação.
➢ Prática do crime gera práticas de responsabilização e reparação.

Claus Roxin: deve sempre acrescentar-se uma forma de reparação.


➢ §46 do CP alemão tem a ideia de mediação entre vítima e agressor.

Em Portugal não há ideia de mediação.


➢ Reparação existe em casos circunscritos: art. 72º/1/c; 74º/2; 206º; 368º-A/7 e 8
o Não existe uma ideia de justiça restaurativa, há apenas manifestações dessa
justiça em casos específicos.

31
MFP: E, aliás, a pena é criminógena, de modo que as próprias condenações aumentam as probabilidades
de reincidência.

22
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Teorias Mistas
São teorias eclética ou unificadoras.
Dizem-nos que não pode haver um único fim da pena – já desde a obra de Beccaria que a isso
se apela: que defende que a pena só é legítima se for necessária (para o bem da sociedade).
➢ MFP: o “para que” pode ser resposta ao “porque” nos fins das penas

Crítica às teorias monistas


Roxin: Teorias monistas são altamente criticáveis individualmente – a realização estrita de um
só princípio ordenador tem forçosamente como consequência a arbitrariedade e a falta de
verdade.
Maria Fernanda Palma: Nenhuma das conceções sobre o fim das penas é por si mesmo, na
sua lógica, compatível com o Estado de Direito Democrático.
➢ Teorias não dão resposta satisfatória ao problema da legitimidade da pena.

Teoria da retribuição não nos serve, porque deixa na obscuridade os pressupostos da


punibilidade, porque não estão comprovados os seus fundamentos e porque, como profissão
de fé irracional e além do mais contestável, não é vinculante.
• Lógica retributiva está associada a um raciocínio ético e essa argumentação moral não
pode fundamentar a pena, pois o Estado só intervém na defesa de interesses e direitos.
o MFP: tendencialmente inconstitucional – art. 18º/2 CRP.
o Tem de haver noção de necessidade, proporcionalidade, o que pode não se
enquadrar com a lógica da retribuição.
o Choca com o princípio da necessidade da pena estatal.
• Conceção que não se preocupa com o efeito das penas mas com a razão de ser delas.
• Discussão mal colocada, pois encara a pena sem a sua dimensão histórica e não a
enquadra no Estado de Direito Democrático.
• Considera uma pena ética e não uma pena estatal – não parte da função estatal da pena
e das reflexões de qual a legitimidade do poder punitivo do Estado; não se pode
ultrapassar esse quadro que é o Estado que restringe direitos na pena.
• No geral, não se compatibiliza com a CRP e o EDD.

Teoria da prevenção especial não é idónea para fundamentar o direito penal, porque não pode
delimitar os seus pressupostos e consequências, porque não explica a punibilidade de crimes
sem perigo de repetição e porque a ideia de adaptação social coativa, mediante a pena, não se
legitima por si própria, necessitando de uma legitimação jurídica que se baseia noutro tipo de
considerações.

Teoria da prevenção geral encontra-se exposta a objeções semelhantes às outras duas: não
pode fundamentar o poder punitivo do Estado nos seus pressupostos, nem limitá-lo nas suas
consequências; é político-criminalmente discutível e carece de legitimação que esteja em
consonância com os fundamentos do ordenamento jurídico.

23
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Roxin: tentativa de sanar defeitos justapondo as 3 conceções distinta tem de forçosamente


fracassar, já que a mera adição, não somente destrói a lógica imanente a cada conceção, como
aumenta o âmbito de aplicação da pena, a qual se converte assim num meio de reação apto
para qualquer realização.
• Efeitos de cada teoria não se suprimem, multiplicam-se.
• Teoria unificadora aditiva pode ser até perigosa.

Tem que se procurar a justificação para a aplicação de penas no que legitima o Estado a punir
os seus cidadãos – direito penal tem o fim de garantir a todos os cidadãos uma vida em comum
livre de perigos e isso resulta do dever que incumbe ao Estado de garantir a segurança dos seus
membros.
• Direito penal tem que assegurar os bens jurídicos, punindo a sua violação.

MFP: teorias não podem ser casadas, pois os seus princípios são logicamente incompatíveis –
na lógica exclusiva de cada uma das teorias não há compatibilidade.
• Nenhuma são compatíveis com a CRP e não são compatíveis entre si.

O ponto de partida da discussão tem de ser a realidade da pena e não aquilo que ela idealmente
deveria ser
• Qual a solução, à luz da CRP, para os fins das penas?

Claus Roxin
Pena tem finalidades preventivas e serve fins racionais – garante as funções de existência.
Divide a conceção em 2 momentos:
• Plano abstrato – pena serve fins de prevenção geral e visa a tutela de bens jurídicos
• Plano concreto de aplicação – prevenção geral e prevenção especial; lógica de evitar a
reincidência mas também atendendo à culpa

A culpa é pressuposto e limite inultrapassável da pena.


• Mas pode ser fixada pena abaixo do limite de culpa se isso for necessário para a
prevenção especial.

Medida da culpa não é dada por ponto exato da escala penal e tem de haver pena com base
numa moldura de culpa.
• Os limites de prevenção geral mínima têm de ser satisfeitos.
o O fim da prevenção geral da punição apenas se pode conseguir na culpa
individual.
• Na execução específica da pena atende-se a critérios de prevenção especial positiva.

Teoria unificadora dialética


Pena não pode ultrapassar a medida da culpa, que não serve para fundamentar o poder penal
do Estado mas sim para o limitar.
• Significa que o Estado não pode estender o seu poder penal, no interesse da prevenção
geral ou especial, para além do correspondente à responsabilidade de um homem
concebido como livre e suscetível de culpa.
o A culpa constitui um meio de manter dentro de limites aceitáveis os interesses
da coleticvidade face à liberdade individual

24
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

o Justifica a pena e a suportação da mesma não devido a um imperativo


categórico, mas porque, como membro da comunidade, tem de responder pelos
seus atos na medida da sua culpa, para a salvaguarda dessa comunidade.
o Deste modo não é utilizado como meio para os fins dos outros, mas antes
assume a sua responsabilidade pelo destino da comunidade e confirma a sua
posição de cidadão com igualdade de direitos e de obrigações.

Aplicação da pena serve para a proteção subsidiária e preventiva, tanto geral como individual,
de bens jurídicos e de prestações estatais, através de um processo que salvaguarde a autonomia
da personalidade e que, ao impor a pena, esteja limitado pela medida da culpa.

Faria Costa
Teoria neoretributiva
• Culpa é fundamento da pena, num encontro entre Direito Penal e Filosofia .
• Retribuição é expressão das ideias de responsabilidade e igualdade.
• Pena não deve ser valorada como um mal, pois ela retrata a pluralidade axiológica
positivamente relevante.
• “a pena a aplicar tem que ser envolvida pelo olhar que quer ver o pretérito” – vê o facto
criminoso na contextualização com o seu passado e é por isso que se aplica pena.

Sousa e Brito
Pena retributiva é a que mais serve para finalidades de prevenção especial – que deve ter
primazia sobre a prevenção geral.
• Medir a pena pela culpa pode ser incompatível com exigências de prevenção especial.
• A medida da culpa nunca pode ser ultrapassada.

Pena visa retribuir a culpa e é atribuída em função da culpa (art. 71º/1), mas a culpa sendo
fundamento ou pressuposto essencial, e por isso limite da pena, só é retribuída na medida
necessária à proteção dos bens jurídicos.
• É impossível obedecer à proibição de a pena ultrapassar a medida da culpa – ou ao
comando equivalente de a manter dentro da medida da culpa – sem medir a pena pela
culpa.
o Medir a pena pela culpa é o conteúdo essencial da ideia de retribuição.

Todo o direito penal não é mais do que um elaborado sistema de escolher a culpa que se pune e
de medir a pena pela culpa.

Nem a teoria da prevenção especial nem a da prevenção geral determinam a escolha e a medida
das prestações de prevenção especial devidas pelo criminoso em termos idênticos entre si ou
idênticos com a determinação que resulta da reparação da culpa no direito penal de Estado de
Direito. Por outro lado, só estes últimos respeitam o princípio constitucional da culpa.

As teorias da pena como prevenção de crimes futuros não podem recuperar o conceito de pena
como “expressão de um juízo de valor moral de quem pune”, de que fala von Lisxt. Não pode
recuperar um autêntico juízo de desvalor ético do julgador, mas apenas os juízos morais de
desvalor da maioria da comunidade como elementos de facto que contribuem positivamente
para a prevenção geral.

25
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

➢ A teoria da retribuição pretende, porém, medir à partida a culpa do agente e não


recuperar os juízos de culpa da comunidade como critério da prevenção geral.

Caráter jurídico da reparação da culpa pela pena e a sua fundamentação ética pressupõe o
postulado da liberdade humana.

Pelo art. 40º/2 e pelos comandos constitucionais, a reparação da culpa é o único dos fins de
pena que é específico da pena.
• Pena retributiva é a que melhor serve as exigências de prevenção especial – a prevenção
especial é que dá conteúdo material à reparação da culpa, de acordo com o seu
fundamento racional.

Culpa determina limite máximo possível da pena.


• Nem toda a culpa tem de ser punida, só aquela necessária punir, na falta de outro meio,
para defender a ordem dos bens jurídicos.
• Não se nega que a pena seja meio de defesa dos bens jurídicos, apenas nega que seja
adequadamente definida através desse conceito.

Figueiredo Dias
Natureza exclusivamente preventiva das finalidades da pena
Finalidade visada pela pena é a da tutela necessária dos bem jurídico-penais no caso concreto.
• Não numa perspetiva retrospetiva, face a um crime já verificado, mas com um
significado prospetivo, pela necessidade da tutela da confiança e expetativas da
comunidade na manutenção da vigência da norma violada.

Finalidade primária é o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime.

Existe uma medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expetativas comunitárias, não
podendo ser excedida (princípio da necessidade) por considerações de qualquer tipo,
nomeadamente exigências de prevenção especial.
• Essa medida ótima não fornece ao juiz um quantum exato da pena.
• Abaixo do ponto ótimo ideal existirão outros em que aquela tutela é ainda efetiva e
consistente.
o Isto até se alcançar um limiar mínimo de defesa do ordenamento jurídico,
abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem
se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar de bens jurídicos.

Prevenção geral positiva fornece uma moldura de prevenção dentro da qual atuam
considerações de prevenção especial, que determinam a medida concreta da pena.

Função da culpa no sistema punitivo reside numa incondicional proibição do excesso – a culpa
não é fundamento da pena, mas constitui o seu pressuposto necessário e o seu limite
inultrapassável.
• Estabelece um máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da
dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos
quadros próprios dum EDD.

26
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

• É barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um vetor incondicional


aos apetites abusivos que ele possa suscitar.
o Limiar da pena concreta é sempre a culpa – nunca a pode exceder, mesmo que
as exigências de culpa excedam o ponto ótimo social, nunca pode ultrapassar a
medida da culpa. Mas não pode descer abaixo do limiar mínimo.

Legitimação da pena tem duplo fundamento: prevenção e culpa.


→ Toda a pena que responsa adequadamente às exigências preventivas e não
exceda a medida da culpa é uma pena justa.

Modelo de relação entre art. 40º/1 e 2:


Culpabilidade não tem papel determinante na decisão sobre o “se” da pena, apenas opera a
posteriori na determinação da medida judicial concreta e apenas para evitar que se ultrapasse
um certo ponto-limite ainda justificável preventivamente ou, quando muito, uma certa moldura
entre um máximo e um mínimo baseada em critérios de culpabilidade média, para evitar
excessos preventivos. Culpabilidade é princípio restritivo funcionando no quadro da prevenção.

Crítica MFP:
• Razões de ordem sistemática – art. 71º CP; não se pode dizer que a culpa não
fundamenta, embora isso não signifique que se ceda às teorias retributivas
• Razões e ordem constitucional – art. 1º CRP e DPH

Maria Fernanda Palma


Há uma ligação visceral da reflexão sobre os fins das penas às teorias sobre o fundamento e a
legitimidade do Estado.
➢ Vem desde os tempos do contratualismo e expressou-se na ideia da necessidade da
pena – legitimidade da pena é com referência na necessidade da proteção da liberdade
de cada cidadão.
➢ Visão MFP: a partir da visão democrática do legislador do CP de 198232 com a reforma
de 1995 e introdução do art. 40º33

Apela aos princípios do Retribucionismo


• 1º princípio: não há pena sem crime – nua penna sine crimen
• 2º princípio: sempre que há crime tem de haver pena

O 2º princípio é inconstitucional, mas o 1ª tem proteção constitucional e está consagrado,


decorrendo da liberdade e igualdade – art. 27º e 13º.

A substituição psicológica da vingança privada que a pena assegura enquanto retribuição


racionaliza-se através de 2 princípios constitucionais:

32
CP democrático que sucedeu a um CP do séc. XIX – que sobreviveu a vários regimes – código de Melo
Freire e de grande pendor liberal.
Este CP de 1982 é inspirado no projeto de Eduardo Correia, cujo teor era muito revolucionário para a
época, tendo um espírito de prevenção especial, humanismo e etc.
Figueiredo Dias transpôs algumas ideias para o CP 1982
33
Art. 40º CP foi introduzido com a revisão de 1995 como norma orientadora quanto às penas, numa fase
em que se pretendeu ultrapassar as rotinas judiciais retributivas.

27
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

• Princípio da culpa – deriva da DPH (art. 1º CRP)


• Princípio da necessidade da pena (art. 18º/2 CRP)

A retribuição justifica-se racionalmente, na verdade, por basear a pena no significado ético-


jurídico do facto praticado.
• Mas, a retribuição excederá a legitimidade do jus puniendi do Estado quando
prosseguir como um fim em si a expiação moral do delinquente, ultrapassando a
medida necessária para a reafirmação do Direito.

Retribuição ancora-se na necessidade social em dois planos:


• Nível do controlo das emoções geradas pelo crime – da pacificação social
• Nível da proteção perante o delinquente.

A pena retributiva só é, deste modo, legítima se for necessária preventivamente.


➢ A prevenção geral e a prevenção especial só se legitimam, como fins das penas, através
da pena da culpa.
➢ Também a culpa funciona como fundamento, ou, pelo menos, como limite da pena
preventiva.
➢ A retribuição e a prevenção articulam-se obrigatoriamente com os princípios
constitucionais.

Lógica do sistema de fazer depender o “se” da punição da necessidade preventiva, entendida


nos termos da prevenção geral positiva, a que acresceria a prevenção especial, e remeter as
razões de censurabilidade pessoal do agente relacionadas com a sua capacidade concreta de
motivação ou apenas com a motivação pelo cumprimento do dever medianamente exigível
para o papel acessório de limite formal da medida da pena.

Figueiredo Dias redigiu o artigo no sentido de uma exclusiva fundamentação preventivo-geral


da decisão de punir – nunca há lugar ao afastamento da pena perante a persistência das
exigências mínimas de prevenção geral, mesmo que as exigências de culpa apontassem para um
limite inferior, fixando abaixo dos mínimos de prevenção a culpabilidade do agente.
→ Leitura tem dificuldades sistemáticas.

CP estabelece que a culpa do agente é o critério fundamental da medida da pena, que justifica
a sua variação entre o máximo e o mínimo (art. 71º CP), o que coloca logo a objeção do critério
da medida judicial da pena poder ser de natureza diversa do fundamento legal da punição.
Questiona-se também como é que a culpabilidade do agente, que é um elemento do conceito
de crime e um pressuposto essencial de toda a atribuição de responsabilidade (nullum crimen
sine culpa), patente na teoria geral do crime (art. 3º/2, 17º, 35º, 37º), pode ser reduzida a
critério restritivo, acessório, de uma responsabilidade baseada na prevenção geral positiva
(proteção de bens jurídicos e promoção da segurança geral) coadjuvada pela prevenção
especial.

Princípio da culpa é expressão de uma consideração plena da igual dignidade da pessoa bem
como da igual consideração dos interesses de todos e da justa oportunidade de cada pessoa
de orientar o seu comportamento pelas normas penais – art. 1º, 13º e 27º CRP
• Dimensão que nada tem a ver com a ideia de retribuição, mas sim com a ideia de uma
relação punitiva justa a partir de comportamentos que só são verdadeiramente dignos

28
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

de tutela penal porque os seus autores tiveram as devidas condições para se


reconhecerem como responsáveis, tendo, assim, cabimento um juízo de censura pessoal
pela prática de certos comportamentos.

No art. 40º, não cabe só uma perspetiva de satisfação do interesse geral da comunidade ou
mesmo de uma necessidade objetiva de proteger bens, mas, cabe também a consideração de
um certo nível de desvalor da ação e de uma exigibilidade média de um outro comportamento
a quem viola uma norma.
• Exigibilidade ética de certos comportamentos não é algo posterior às decisões
legislativas de incriminação, mas a própria consideração da atribuição de uma censura
pessoal, que é condição da legitimidade constitucional da incriminação de certos
comportamentos, ou da sua negação, num plano abstrato-normativo.

Modelo de relação entre art. 40º/1 e 2:


Culpabilidade opera desde logo, à partida, condicionando os critérios de necessidade, não a
partir de uma ideia retributiva mas a partir da consideração do merecimento da conduta do
agente.
• A culpabilidade não restringe a necessidade da pena mas apenas a reconfigura,
estabelecendo um limite inultrapassável, não podendo a pena concreta nem a decisão
de punir superar esse limite.
o A moldura penal é fixada em função desse limite.
o A prevenção geral e a especial podem determinar uma pena, mas nunca
superior a esse limite de culpabilidade.
o E as razões de prevenção geral ou especial não poderão justificar a punição se
a culpabilidade for excessivamente baixa.
• Culpabilidade não funciona de forma independente a considerações de prevenção
especial e geral, porque estas afetam o merecimento do comportamento.
o Prevenção é princípio restritivo funcionando no quadro dos limites máximo e
mínimo de culpabilidade que o comportamento justifica.

Merecimento do agente na prática do facto condiciona a fundamentação da pena


restritivamente, tal como as considerações de prevenção.

Conceção segunda a qual a culpa é fundamento da própria pena.


• Culpa deve superar a lógica da vingança privada e é fundamental num EDD – pena é
necessária porque o agente agiu com culpa.
o O agente tinha alternativas de comportamento, mas decidiu agir assim, tendo
culpa na violação da norma penal.

Prevenção geral e especial são admissíveis desde que atendendo à medida da culpa.
• Culpa condiciona critérios de necessidade de pena, de merecimento devido à conduta
do agente.
o Nunca é retributiva

Suportada pelo Acórdão STJ, 21/3/1990, Manso Preto

29
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Conceito Material de Crime


Figueiredo Dias: Autonomização do conceito material de crime, face ao conceito formal de crime,
constitui uma necessidade sentida desde os tempos de Beccaria.
➢ Articulado com o princípio da ofensividade e de tradição jusnaturalista veio estabelecer-
se um conceito pré-legal de crime: conceito que, como tal, possui viabilidade para se
arvorar naquele padrão crítico do Direito vigente e do Direito a constituir, sem o qual
o conceito material de crime se torna imprestável.

Divergência na análise estritamente jurídica do conceito material de crime assenta no objeto da


infração criminal
• Violação de certos direitos subjetivos (Feuerbach) – estrutura liberal-
contratualista que somente justifica a intervenção penal onde os direitos humanos
básicos, que o contrato social visa assegurar, foram violados.
o Dissolve a infração criminal na proteção da liberdade individual (subjetivação
dos fins da organização da sociedade como instância legitimadora).
• Violação de certos bens jurídicos (Birnbaum) – estrutura estatal cuja referência
legitimadora do Direito Penal é a comunidade e os seus valores.
o Define a infração criminal pela lesão objetiva de valores da comunidade
(objetivação dos fins da organização da sociedade como instância legitimadora).
▪ Direito vincula-se a elementos objetivos e procura a fundamentação
da proteção jurídica que merecem certos bens nos fins do Estado.
➢ vs. Binding: bem jurídico são os valores ou condições de
vida da comunidade jurídica, tal como definidos pelo
legislador (perspetiva de puro positivismo legalista).
▪ Von Liszt vem aderir à posição de Birnbaum – define bem jurídico como
interesse humano vital, expressão das condições básicas da vida em
comunidade. É o conceito legitimador do Direito Penal
descomprometido com a norma legal.

Diferença quanto ao elemento a que se refere a legitimação do Direito Penal.


• Ponto de discórdia é uma determinada conceção do Estado e dos seus fins (plano
jurídico-político e não jurídico-científico com necessidade de opções normativas).

Tem-se apoiado uma conceção de bem jurídico não apenas política mas com uma normatividade
científica – situa-se na estrutura social, independentemente da instância política ou da decisão
política, os critérios que tornam necessária (tendo em conta a continuidade da estrutural
social) a incriminação de determinadas condutas e a proteção de certos bens.

Funcionalismo sistémico na definição de crime


Luhmann – funcionalismo no pensamento penal que parte da análise das sociedades humanas
como sistemas sociais
• Sociedade não é um puro fenómeno político e é um sistema social, desempenhando
determinadas funções.

30
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

• Funções consistem na institucionalização da redução de complexidade34


o O Direito é a estrutura da sociedade que regula e assegura a
institucionalização de relações constantes entre ações, cuja função é
selecionar as expetativas de ação aceites geralmente para serem
institucionalizadas.
▪ Reduz o problema da legitimação do direito à dimensão da
funcionalidade

Toda a conduta desviada em relação à norma surge como uma frustração das expetativas de
comportamento asseguradas juridicamente.
➢ Conduta desviante desempenha funções positivas e é útil como fator de afirmação da
ordem vigente.

Jakobs – ponto de vista de que o Direito Penal deve manter padrões de ação que organizam
as expetativas sociais sobre o comportamento alheio.
• Função de estabilização contrafática das expetativas geradas pela violação de uma
norma incriminadora.
• Crime é dano social objetivo sendo o pretexto de afirmação de modelos de ação.
• Direito Penal tem função ideal/simbólica de controlo social – protege a vigência da
norma

Críticas ao Funcionalismo, na linha da Criminologia


A partir da necessidade de substituição do crime por outras categorias como o processo de
definição e seleção social de criminalidade
• Argumento criminológico: Interpretações criminológicas dos comportamentos como
critério de ponderação da adequação à realidade das opções normativas de
criminalização
o Resposta normativa, com critérios de justiça baseados no pensamento crítico, à
produção social do crime ou à construção da personalidade delinquente.

Críticas ao Funcionalismo a partir da teoria da sociedade


Roxin: Excessivo normativismo e a reafirmação da norma não é um fim em si mesmo, mas antes
está destinada a contribuir para a prevenção futura de lesões reais – pena serve, em última
instância, a proteção de bens jurídicos.

MFP: funcionalismo não permite uma racionalidade de delimitação das normas


incriminadoras e apenas se preocupa com a promoção de padrões de ação desejáveis para a
coesão social
• Visão funcionalista não anula absolutamente a função crítica interna ao sistema do
conceito material de crime, pela referência de toda a legitimidade da proteção jurídico-
penal aos fins sociais.
• E, na medida em que a definição destes fins não é produto de uma arbitrária decisão
normativa, mas surge apenas como efeito objetivo da ação dos indivíduos – enquanto
subsistemas, eles próprios, vocacionados para a auto-realização – o funcionalismo,

34
Do conjunto das relações sociais que se organizam em diversos níveis autónomos – de acordo com as
respetivas funções, progressivamente diferenciadas e em que as condutas humanas se interligam, sendo
a sociedade a última função social concebível.

31
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

como teoria, não exclui a discussão sobre o objeto da infração criminal e apenas reduz
a fundamentação da validade a uma adequação das decisões legislativas a uma ideia de
funcionalidade sistémica, racionalizando através desse parâmetro a avaliação crítica.

Fundamentação normativa com a teoria crítica da sociedade.


➢ Ideia de que a ação social é necessariamente uma ação comunicativa;
➢ Razões e opções normativas, embora histórica e culturalmente produzidas não deixam
de, em si mesmas, conter uma abordagem crítica aos padrões de racionalidade;
➢ Reconhecimento crítico de uma distorção desta racionalidade, associado ao “mundo da
vida” pela interferência de uma racionalidade utilitarista instrumentalizadora,
germinada nos subsistemas sociais, que menosprezaria os padrões elementares da vida
nas sociedades humanas e as aquisições culturais do processo histórico.

Comportamentos incrimináveis são definíveis num modelo argumentativo de ética do


discurso, em que a legitimidade depende de não se contradizerem pela incriminação
condições básicas da subjetividade e do reconhecimento recíproco – como aconteceria, por
exemplo, com a incriminação da blasfémia, comportamentos sexuais privados mas já não com
o lenocínio.

Tendência para colocar os limites da criminalização no contexto de fundamentos da democracia


e do Estado de Direito, num nível político em torno de perceções do contrato social

Estado atual dos modelos de política criminal em conexão com os modelos de


fundamentação do Direito Penal
Fundamentação do Direito Penal com o modelo liberal-garantista:
As restrições públicas da liberdade só podem ser justificadas pela própria necessidade de
garantir a liberdade – intervenção pública punitiva só poderia ser justificada em função da
proteção de direitos e interesses individuais, tornando-se aceitável pelos próprios destinatários
do direito penal.
• Estrutura na máxima kantiana de que o Direito é suma essência da articulação do livre-
arbítrio de cada um com o dos outros, segundo uma lei geral de liberdade.
• Comunidade é uma conjugação de vontades
• Pressupõe uma racionalidade universal

Fundamentação do Direito Penal com os fins do Estado, bens coletivos, utilidade social e bem
estar geral
Visão democrática em que o Direito Penal é delimitado pelo interesse político e pela
necessidade de utilização dos seus instrumentos sancionatórios em cada momento histórico.
• Não há limites constitucionais para o âmbito das normas incriminadoras – modelo
expansionista que ancora o Direito Penal na pertença a uma comunidade e na
responsabilidade coletiva

Fundamentação do Direito Penal como sistema de prevenção de danos


Do pensamento da sociedade de risco, de Beck e da ideia do direito penal do inimigo de Jakobs.
Direito Penal assenta na prevenção de danos sociais e no controlo dos riscos, em nome do valor
da segurança e dos direitos dos cidadãos à mesma segurança.

32
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

• Pondera-se o peso do risco e perigo para os bens jurídicos, em detrimento, por vezes,
dos direitos imediatos, em sociedades que procuram a previsibilidade e a segurança
como bem.
• Segurança como valor objetivo, e por vezes simbólico, passa a ser condição
fundamental da intervenção penal.

O Direito Penal tem evoluído e a principal característica é a redução de um espaço livre no


Direito Penal, substituindo-se critérios éticos tradicionais de imputação por critérios standard
(homem médio) e aumentando o controlo democrático e constitucional das opções normativas.
Há um Direito Penal menos juricizado, menos dependente de legitimação, que requer um novo
modelo fundamentador, um modelo mais complexo, que reconstrua a interpretação do sistema
penal a partir da nova situação legislativa e das funções que tem assumido nas sociedades
contemporâneas.

Modelo fundamentador do Direito Penal


À luz da CRP e da atualidade,
Quando é que legitimamente um comportamento é incriminado? Quando não é legítimo
incriminar um comportamento?
• MFP: procurar os limites negativos do que podem ser normas incriminadoras é admitir
que o Direito não tem princípios universais e a politica criminal tem alguma margem
para variar.
o Não é escolha arbitrária, mas é margem do legislador e do executivo da
orientação da política criminal.
o CRP não tem conceito material de crime e tem apenas os limites – é a forma
de melhor se coadunar com o EDD e com a escolha de alternativas
democráticas à política criminal.
▪ O que está em causa são os limites constitucionais às opções do
legislador.
▪ A CRP tem expressos, ou dela se infere, diversos princípios que dão aso
a uma reflexão sobre a política criminal através da exploração de um
conjunto de tópicos

Tópicos para o Modelo fundamentador do Direito Penal:


1. Primado do princípio da igual consideração do interesse de cada pessoa como
participante numa comunidade de pessoas livres.
• Direito penal não pode intervir para criminalizar DLG. Ex: não incriminação de
manifestações de liberdades (de consciência, de culto, de religião e etc.)
2. Primado do princípio do reconhecimento do outro – legitimidade da incriminação de
comportamentos discriminatórios, de ódio racial, género, religião, orientação sexual
3. Primado da ideia de necessidade da pena como princípio de articulação de direitos,
desvinculação da necessidade da pena de fins de instrumentalização política.
4. Reconstrução do espaço pessoa-mundo, considerando, no entanto, a questão da
libertação do Direito Penal do controlo total da vida.
5. Função construtiva do Direito Penal – reintegração como reatamento do vínculo social

33
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

• Argumento da controlabilidade do comportamento e motivabilidade dos


comportamentos dos agentes – há certos comportamentos que ultrapassam a barreira
da legitimidade da CRP para a incriminação, pois são comportamentos que não estão
suficientemente no controlo dos agentes.
i. Há margem que resulta do funcionamento do próprio sistema (funcionamento
global de um sistema que não dá a 1 indivíduo o controlo total do seu
comportamento e há toda uma cadeia). Ex: erro médico -> Responsabilidade
objetiva – não deve fazer parte do âmbito dos comportamentos criminalizáveis

6. Utilização das ciências do crime como critério de análise de relevância constitucional,


numa procura de controlo e de redução de um normativismo não apoiado nas
solicitações da realidade social – argumento criminológico
7. Função preventiva de meios alternativos à pena, a partir de um critério não repressivo
de reafirmação do Direito
• Mesmo que o comportamento tenha dignidade punitiva pode não justificar a
incriminação quando há meios alternativos para resolver.

BEM JURÍDICO
Abertura da ciência jurídico-penal a uma perspetiva específica de legitimação foi historicamente
veiculada pelo conceito de bem jurídico.35
➢ MFP: Conceito que não nasceu no séc. XIX na Alemanha como os alemães afirmam. É
muito mais antigo e a ideia de bem é essencial no direito medieval e tem gestação já no
direito romano e grego.
➢ Maior parte dos autores simplifica a investigação dizendo que a ideia de bem jurídico
vem de Birnbaum.

Conceito de bem jurídico tem vários significados para a delimitação do conceito material de
crime e para a função e legitimação do Direito Penal:
• Ideia de bem jurídico tem expressado relação do objeto de proteção da norma com um
interesse individual ou com um interesse coletivo assumido pelo EDD como condição
essencial de incriminação
• Ideia de bem jurídico sugere uma necessidade intersubjetiva que carece de ser
protegida
• Ideia de bem jurídico convoca a ideia de lesão e de dano objetivo ou objetivamente
representado e não uma função meramente simbólica de um interesse protegido pelas
normas
• Ideia de bem jurídico apela a uma lógica de eficácia direta na proteção e prevenção e
não se basta com efeito reflexo e antecipado das normas incriminadoras relativamente
a potenciais lesões.
• Ideia de bem jurídico questiona normas incriminadoras que apenas preveem violações
de deveres de comportamento sem uma real conexão empírica com eventuais danos.

35
MFP: Conceito de bem jurídico teve grande importância pois incutiu no Direito Penal um elemento de
objetividade e controlo sobre as normas incriminadoras.

34
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Roxin
Defende acerrimamente o papel do bem jurídico, numa aceção personalista, como limite de
intervenção penal, admitindo uma extensão no que diz respeito à preservação do interesse vital de
gerações futuras e no que se refere à proteção da biodiversidade 36 – é possível um conceito de bem
jurídico entendido como parâmetro crítico da legislação

Bens jurídicos = todos os bens que correspondem às condições e finalidades necessárias ao livre
desenvolvimento do indivíduo, à realização dos seus direitos fundamentais e ao funcionamento
de um sistema estatal construído em torno dessa finalidade.
• Teoria do bem jurídico enquanto garantia de liberdade leva à ilegitimidade da
incriminação quando se incrimina comportamentos que não ponham em causa nem o
livre desenvolvimento do indivíduo, nem as condições sociais necessárias a esse
desenvolvimento.
o Frister: Um comportamento que não ponha em causa de modo algum as
possibilidades de desenvolvimento de outros não deve ser valorado como ilícito
penal.

Há quem critique o conceito de bem jurídico por ser demasiado vago, o que limitaria as suas
potencialidades. Tese de que o bem jurídico carece de qualquer significado prático essencial
esta errada, vejamos exemplos:
1. Punição de atos homossexuais entre adultos – é evidente que essa conduta, quando
consentida e tendo lugar na esfera privada, não afeta a liberdade de desenvolvimento
de ninguém nem perturba de nenhuma forma a liberdade de convivência entre as
pessoas – um conceito de bem jurídico leva a que não se puna estes comportamentos
(que eram punidas até 1969 na Alemanha).
2. Punição por ter posse de estupefacientes para consumo próprio – não há qualquer
dano para outros, sendo a descriminalização uma representação da conceção de bem
jurídico como parâmetro crítico da legislação.
3. Doação de órgãos inter vivos – não se vislumbra qualquer ofensividade para outrem e
cumpre fins socialmente úteis, pelo que a criminalização carece de uma legitimação
conferida pela proteção de bens jurídicos.
4. Incesto entre irmãos – o Direito Alemão pune esta conduta, mas, também nesta
situação, em que os irmãos atuam livres de coação e de modo consentido, sendo
plenamente responsáveis.
• Está ausente qualquer dano para o desenvolvimento da personalidade, de
modo que o princípio da proteção de bens jurídicos demanda a impunidade
desta conduta.
• TC Alemão tomou posição e considerou que a conduta era punível pois os fins
prosseguidos por uma norma penal não podem deduzir-se a partir da teoria
jurídico-penal do bem jurídico.
• No entanto, incorre num discurso contraditório e procura fundamentar a sua
decisão na proteção de bens jurídicos protegidos pela incriminação (família,
autonomia sexual, saúde genética e etc.)

36
Casos de crimes contra o meio ambiente que Roxin entende como proteção das gerações futuras.
➢ MFP: responsabilidade pessoa-mundo que tem de ser considerado uma vez que parte da
conceção do direito penal do dano

35
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

o Caso Stübing v. Germany (TEDH)


i. Juíz Hassemer – incriminação do incesto não é compatível com
o princípio da proporcionalidade pois as considerações sobre as
preocupações genéticas não são objetivos válidos de tutela do
Direito Penal pois não cabe a este tutelar um conceito tão vago
e um padrão moral comum.
ii. Só pode haver tutela penal se o contexto do incesto for passível
de afetar o livre desenvolvimento da personalidade.
5. Negação de acontecimentos históricos – alguns ordenamentos incriminam a negação
de crimes históricos. (CP Alemão37 + Suiço)
• TC Espanhol declarou como inconstitucional a criminalização da negação do
genocídio.
• Nas situações em que não chegue a existir qualquer agitação ou discriminação
e esteja apenas em causa a discussão de factos históricos, deve negar-se a lesão
de um bem jurídico – a liberdade de expressão compreende também
manifestações de pensamento equivocadas; o debate é histórico e é nesse plano
que se deve discutir.38
6. Pornografia juvenil – relações sexuais entre pessoas de 18 e 17 anos são permitidas,
mas a pessoa de 18 anos não pode ter fotografia sexual da de 17
• Não faz sentido à luz da teoria do bem jurídico.

É necessário recorrer-se aos Três Degraus da Proteção de Bens Jurídicos: toda a norma penal
de legitimidade questionável deve
1) atender ao que deve ser protegido,
2) a quem deve proteger-se,
3) contra o que deve ser protegido.
Só depois desta análise se pode concluir quanto à capacidade de uma conduta incriminada
pôr em causa o livre desenvolvimento do indivíduo ou as condições necessárias a esse
desenvolvimento.

Concretização do princípio do bem jurídico deve atender a diretrizes:


1. Leis penais arbitrárias, fundadas em fins ideológicos ou contrárias a direitos
fundamentais, não protegem quaisquer bens jurídicos
2. Comportamentos imorais ou reprováveis não fundamentam, por si só a lesão de um
bem jurídico
3. Ofensa à DPH não é lesão de um bem jurídico
4. Proteção de sentimentos apenas pode corresponder à proteção de um bem jurídico-
penal quando pressuponha uma ameaça real
5. Autolesão consciente e responsável, bem como o auxílio que lhe seja prestado, não
põe me causa qualquer bem jurídico (de outrem)

37
Juiz Nussberger: faz sentido o holocausto na Alemanha, pois está no âmbito espacial do país e no âmbito
temporal (está na memória das pessoas).
38
Em Portugal: o art. 240º/2/b CP não pune propriamente a negação e tem de haver dolo específico ->
intenção do discurso do agente encorajar atos discriminatórios.
➢ MFP: exercício de um direito (DLG) como liberdade de expressão nunca pode ser objeto de tutela
penal. Mas quando isso extravasa a liberdade e for um dano na memória, pela DPH já pode vir a
ser punido.

36
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

6. Normais penais simbólicas não desempenham função de proteção de bens jurídicos


7. Crenças ou tabus não são bens jurídicos
8. Objetos de tutela abstratos que sejam de difícil apreensão não podem ser tidos
como bens jurídicos
9. Bem jurídico coletivo não pode ser objeto de tutela de determinada norma
incriminadora, sempre que tal implique simultaneamente a lesão de um bem
jurídico individual

Prevenção de criar um risco de responsabilização de terceiros representa para estes uma


medida de proteção da sua liberdade e, como tal, um bem jurídico. Deste modo, os terceiros
são protegidos contra danos que possam resultar da negligência alheia.
➢ Ex: motociclistas são obrigados a usar capacete para se, em caso de acidente, serem
projetados da mota não terem tanto risco de sofrerem danos de terceiros. Ele tem
acidente e é projetado e um terceiro atinge-o com o seu carro pois não trava a tempo,
se tiver capacete está mais protegido.

Stratenwerth – o fundamento da punição não é a ofensa a determinados bens jurídicos, mas a


não observância de normas de conduta fundamentais, consensualmente aceites pela sociedade.
Critério decisivo da incriminação é o reconhecimento social e legislativo sobre o carater
necessário de uma determinada norma para evitar a prática de um comportamento não
querido.
Sujeita a críticas: não é por a maioria da população não tolerar determinada conduta
que lhe desagrada que se deve punir esse comportamento; prescindindo do conceito de
bem jurídico não se chega a “consenso fundamental” sobre a necessidade de punir certo
comportamento; numa sociedade multicultural e pluralista há várias conceções de bem
pelo que não há nenhum consenso fundamental.

Função liberal da ideia de bem jurídico consiste precisamente também em proteger a minoria
contra o domínio da maioria.
➢ Opinião pública sobre a aprovação ou reprovação de determinadas condutas não
ofensivas de bens jurídicos é mutável e suscetível de manipulação.
➢ Não pode ser esse o fundamento de uma política jurídico-penal que se pretenda
racional.

Roxin concorda com a seguinte afirmação: “os defensores de um conceito de bem jurídico crítico
da legislação dirigem-se (…) antes de mais ao legislador e indicam orientações político-criminais
sem pretenderem que as suas propostas (…) alcancem em todos os casos um sentido-
constitucionalmente vinculante”.

Conclusões de Roxin:
i. A pertença da conduta ao núcleo duro da esfera privada da pessoa pressupõe, em
primeiro lugar, a falta de uma lesão de bens jurídicos alheios39;
ii. A inconstitucionalidade de uma criminalização de condutas que não ofendem
bens jurídicos também pode depreender-se de princípios constitucionais distintos

39
Ideia ancorada no Harm Principle.
➢ Bem jurídico apela à necessidade de as normas penais terem um referente relacional (inter-individual ou
indíviduo-comunidade), um valor constitutivo da realidade social (que veio a ser concretizado por Feinberg
como o “harm to others”) que é afetado negativamente.

37
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

da dignidade humana (em particular do princípio da proporcionalidade ou de


direitos fundamentais especiais);
iii. O princípio do bem jurídico possui um relevante significado político-criminal
mesmo quando a sua não observância não resulte em inconstitucionalidade

Figueiredo Dias
Bem jurídico = expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou
integração de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso
juridicamente reconhecido como valioso.
➢ Tarefa do direito penal é a preservação das condições fundamentais da mais livre
realização possível da personalidade de cada homem na comunidade

Não consistindo o bem jurídico um conceito fechado e apto à subsunção, bem se compreende
que, apesar de toda a evolução e progresso verificados, continuem hoje a discutir-se várias
questões relativas à sua concreta verificação, como a de saber se protegem autênticos bens
jurídicos algumas incriminações.

Maria Fernanda Palma


Quem considera o conceito de bem jurídico tem por objeto de proteção da norma uma
substancialidade real e social – tem que ser um quid lesionável, quid esse que tem certa
substancialidade em termos de vida social e corresponde a algo mais que um interesse privado
ou subjetivo.
➢ Tem que ser configurado como interesse intersubjetivo – tem que corresponder a
necessidades mais do que do sujeito, da comunidade.
➢ Quids que têm substância real, não meramente simbólica, e correspondem a realidades
que têm existência no mundo real e são lesionáveis.
o MFP: certa ideia de substancialidade é sobretudo uma ideia presente na
propriedade, na coisa.
o Ideia de bem jurídico é ideia liberal e em que há um certo caráter real em todos
os interesses valores (reificação da ideia de bem jurídico). Algo substancial é
algo semelhante a uma coisa, por isso lesionável.
▪ Ideia não muito favorável ao conceito de bem jurídico – tornar a vida
ou a integridade em coisas é expressão máxima do liberalismo40.
▪ O ponto de partida para o conceito de bem jurídico não pode já ser a
propriedade, que não está no topo dos bens que exemplarmente
fundamentam o Estado.

Modelo argumentativo não se pode basear exclusivamente na proteção de bens jurídicos.


➢ Bens Jurídicos são entendidos como interesses substanciais concretos41, associados a
condições existenciais individuais e coletivas
➢ Além disto, tem de se apelar a uma relação com o EDD, a uma lógica de preservação da
subjetividade e do reconhecimento dos interesses essenciais dos outros.

40
Ligação do conceito de bem jurídico ao contrato social ainda está em vigor.
41
Interesse intersubjetivo, histórica e culturalmente concretizado (algo com a qualidade de bom,
materializado num valor mantendo um referente concreto)

38
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

o Referência a EDD e reconhecimento de subjetividade alheia ultrapassa a


utilização rígida do conceito de bem jurídico.

Uma dimensão de pessoa (valor da livre orientação sexual, desenvolvimento personalidade e


etc.) pode ser um interesse suficientemente relevante para legitimar incriminações que, em
última análise, têm apenas uma vaga referência a bens jurídicos no sentido tradicional.
➢ Conceito pode ser equívoco pelo que a pertinência da sua utilização deve limitar-se a
ser conceito exploratório42 de critérios limitadores das normas incriminadoras, o que
permite reconhecer algumas características de que depende a legitimidade das
mesmas.

Pedra de toque não é o bem jurídico, mas sim qual o fundamento do poder punitivo do Estado,
à luz dos vetores.
• Conceito material de crime prende-se com a ideia de saber qual a legitimidade de se
incriminar certa conduta.
o Roxin e FD: partem do conceito de bem jurídico e de qual o interesse que está
a ser protegido ao criminalizar determinada conduta.
o MFP: há vários patamares. Não basta haver um bem jurídico e temos de
perceber se essa incriminação é válida consoante os princípios jurídico-
constitucionais.
▪ Se não passar no crivo dos princípios é materialmente inconstitucional
logo não corresponde a um crime, no seu conceito material.43

Acórdão 211/95 (Deserção) + Acórdão 527/95 (Deserção)


Incriminação não é claramente necessária para assegurar a navegabilidade da embarcação; a incriminação
constitui um recurso a meios desproporcionadamente gravosos para permitir um regular
desenvolvimento da atividade económica de pesca de longo curso; a incriminação consta de um diploma
pré-constitucional, elaborado à luz de valores evidentemente contraditórios com os consignados na CRP.

O que justifica a inclusão de certas situações no Direito Penal é a subordinação a uma lógica de
estrita necessidade das restrições de direitos e interesses que decorrem da aplicação de penas
públicas (art. 18º/2 CRP).
➢ Onde não haja uma afetação pelo comportamento do membro da tripulação de bens
jurídicos essenciais, numa dimensão social externa, mas se atinja apenas a dimensão
jurídica interna da relação juslaboral, não se justificará a intervenção do direito penal.

Princípio da Subsidiariedade – TC conclui que tutela penal desta situação é desproporcional,


devido às funções atribuídas ao arguido estamos numa relação juslaboral em que nessas
instâncias pode ser resolvido, não tendo necessidade de ser resolvida como jurídico-penal.

42
Conceito é útil mas por vezes é redutor e não vai englobar realidades que são muito intersubjetivas –
caso das “mentiras de Auschwitz” em que se pode admitir que não há bem jurídico, mas sendo discurso
discriminatório e ofensivo para a memória, pelo facto histórico em causa, pode ter alguma dignidade
penal. Crimes contra a memória dos mortos põe em causa o valor da vida da pessoa e dos seus
descendentes, que é tutelado pela DPH.
43
Desrespeitando um dos princípios constitucionais,a norma é materialmente inconstitucional, pois são
estes princípios que têm de ser tidos em conta quando se define algo como crime.

39
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

➢ Limita a intervenção da norma incriminadora aos casos em que não é possível, através
de outros meios jurídicos, obter os fins pretendidos pelo legislador.44
➢ Roxin: A pena, como a mais grave das sanções, só deve ser convocada quando outros
meios menos gravosos se mostrem insuficientes – deve efetuar-se uma pesquisa
interdisciplinar e institucional sobre quais os meios jurídicos que possibilitam uma tutela
eficiente socialmente desejada de bens jurídicos45.

Princípio da Necessidade da Pena – art. 18º/2 CRP – incriminação só será legítima quando ela
for necessária para a proteção de bens jurídicos.
➢ Neste caso não há nenhuma incriminação pois a deserção do pescador não põe em
causa nenhum bem jurídico (no sentido de por em causa a segurança) – Direito Penal
não tutela afetação de bens jurídicos numa lógica interna e sim numa lógica genérica.
➢ MFP: Não podem ser tuteladas pelo Direito Penal condutas que embora possam afetar
bens necessários à preservação da sociedade não carecem de cominação penal porque
tais bens são protegidos eficazmente (ou mais eficazmente) de outra forma
o Sousa e Brito: sanções penais só se justificam quando forem necessárias, i.e.,
indispensáveis tanto na sua existência como na sua medida, à conservação e à
paz da sociedade civil.
➢ Envolve também o princípio da proporcionalidade stricto sensu e adequação
➢ Direito penal é inquestionavelmente um “direito de proteção de bens jurídicos” e o
recorte do respetivo âmbito material, i.e., a delimitação dos comportamentos sociais
que devem ter-se por merecedores de uma reação criminal há-se assentar no princípio
da necessidade.

Acórdão 247/2005 (Atos Homossexuais com Adolescentes) + Acórdão 351/05 (Atos


Homossexuais com Adolescentes)
Direito penal deve estar desprovido de qualquer carácter moral
Roxin: ao legislador falta em absoluto a legitimidade para punir condutas não lesivas de bens
jurídicos, apenas em nome da imoralidade46.

44
Recurso à criminalização de comportamentos e à previsão de penas deve ser um recurso de ultima ratio,
a evitar sempre que permaneçam incertezas quanto à necessidade da intervenção penal, sempre
subsidiária e fragmentária, tal sucede pelo mesmo fundamento que justifica os limites constitucionais ao
modo da incriminação.
45
Direito penal tem apenas uma função de proteção subsidiária de bens jurídicos, como complemento
indispensável da ideia de proteção de bens jurídicos.
46
Figueiredo Dias: não é crime qualquer atividade sexual, (qualquer que seja a espécie) praticada por
adultos, em privado, e com consentimento e se é função do direito penal proteger bens jurídicos
fundamentais da comunidade e só eles, decorre daí o mandamento de banir do seu âmbito todas e
quaisquer "excrescências moralistas" e permitir que ele se concentre, tanto quanto possível, no seu
núcleo essencial. A este propósito se falará, então, com propriedade de exigência de destruição, no seio
do direito penal, de todo o dogmatismo moral; da exigência de que se não punam condutas que, embora
moralmente censuráveis, ou não põem em causa os restantes membros da comunidade, ou cuja punição
acarretaria para esta maiores prejuízos do que vantagens, ou que encerram questões moralmente muito
discutíveis e cuja valoração não é feita no mesmo sentido pela generalidade dos membros da
comunidade".

40
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Art. 175º da versão primitiva CP 1982 era inconstitucional por confundir moral com direito e
por violar o princípio da igualdade (art. 13º CRP)47.
➢ Do confronto dos artigos 174° e 175º do CP resultava que as duas incriminações têm em
vista a tutela do mesmo bem jurídico – a autodeterminação sexual do menor entre 14 e
16 anos de idade, através da punição de atos sexuais de relevo suscetíveis de afetar o
livre desenvolvimento da sua personalidade em matéria sexual.

MFP: as normas penais que apenas expressam e/ou validam considerações morais48 de uma
sociedade não podem ser tuteladas pelo Direito Penal – não basta o mero desvalor moral para
que o comportamento seja incriminado.
➢ Roxin sustenta que a proteção de normas éticas só se justificaria, no EDD, para evitar
efeitos danosos para a sociedade. Problema da necessidade de proteção devido à
importância para a sociedade do efeito visado antecede, ou substitui mesmo, uma
discussão abstrata sobre se as próprias normas éticas são bens jurídicos.

Acórdão 617/06 (IVG) + Acórdão 75/10 (IVG)


Não se pode aceitar que uma incriminação ou uma descriminalização seja inconstitucional, pois
da CRP não decorre a (des)necessidade de incriminar.
➢ É uma opção de política criminal.
➢ Nega-se a existência de incriminações implícitas obrigatórias

Não existem imposições jurídico-constitucionais implícitas de criminalização.

47
Este regime ofende a proibição de discriminação em razão da orientação sexual que emana do princípio
da igualdade dos cidadãos perante a lei, tal como consagrado no artigo 13° da Constituição da República
Portuguesa.
48
O mesmo caso para o Material Pornográfico com Representação Realística de Menor
• Punido pelo art. 176º/4 CP
• Doutrina divide-se:
o Pedro Vaz Pata – faz sentido esta norma porque facilita assédio de menores para
atividade sexual;
o Outra doutrina – não faz sentido esta norma pois são imagens virtuais. Não há
verdadeiramente tutela de bem jurídico, porque não há menor estar-se-ia a tutelar uma
moral social.

Acórdão Relação do Porto (Violência Doméstica)


Linha de fundamentação da decisão e não mero obter dicta (coisa que se diz e podia não estar lá) levou a
uma certa atenuação da pena do agente.
➢ Problema que se levanta é o problema de saber se uma determinada perspetiva social do
adultério, que não tem expressão jurídico penal, pode justificar uma atenuação da pena.
➢ Devido a argumentação moral não se aplica pena
o Problema contrário ao nosso, que é no fundo fundar a pena na moral. Neste caso é a
moral que funda a atenuação da pena e da incriminação.
MFP objeta a linha de argumentação que diz que o juiz é livre da sentença e irresponsável por ela. Há
liberdade sim, mas para se ser objetivo e não para se criar livremente direito e metodologia jurídica.
➢ MFP: argumentos jurídicos que justificam não podem desvirtuar o princípio da culpa
➢ Atenuação só se pode basear numa avaliação psicológica do agente ou em valores que a
sociedade considera relevantes. Não pode haver argumentação sem quadros jurídicos.
o MFP: atribuir ao julgador a decisão sobre os padrões éticos de merecimento da pena no
caso concreto é permitir que confunda a sua consciência ético-social com tais padrões.

41
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

➢ FD: Onde o legislador constitucional apontar expressamente a necessidade de


intervenção penal para tutela de bens jurídicos determinados, tem o legislador ordinário
de seguir esta injunção e criminalizar os comportamentos respetivos. Se não houver
injunções constitucionais expressas então não há obrigatoriedade implícita de
criminalizar.

Na definição de crime tem de se atender ao princípio da subsidiariedade.


➢ Só pode punir-se se houver necessidade de tal – princípio da necessidade da pena

Acórdão 144/04 (Lenocínio)


Art. 170º/1 CP que incrimina o lenocício.

Subjacente à norma do artigo 170º, nº 1, está inevitavelmente uma perspetiva fundamentada


na História, na Cultura e nas análises sobre a Sociedade segundo a qual as situações de
prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são
situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída
➢ Tal perspetiva não resulta de preconceitos morais mas do reconhecimento de que uma
Ordem Jurídica orientada por valores de Justiça e assente na DPH não deve ser
mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de ação, situações e
atividades cujo “princípio” seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a
intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou
meio ao serviço de outrem.
➢ Decorre uma Exigência de Relevância Ética Prévia
1. Ultrapassando o crivo da necessidade de lesão do bem jurídico, a exigência de
relevo ético prévio bastante das condutas impedirá que condutas tidas como
eticamente neutras e normalmente aceites de acordo com hábitos sociais, sejam
incriminadas, se não existir conexão com um prejuízo amplo com repercussões
difíceis de controlar de ordem pública49
▪ Como fumar num avião
2. Necessidade de amplos consensos deverá obstar a que o Direito penal se torne arma
política da maioria e ignore as perspetivas de parte da população. Lógica
argumentativa que procura filtrar a legitimidade da incriminação num terreno
anterior ao da discussão sobre a importância do bem jurídico.
▪ Para que seja incriminado, o valor da incriminação tem de partir da
relevância social/necessidade intrínseca da intervenção do legislador
nesse comportamento.
• Não há dever de incriminar estas condutas, mas há sim uma
opção de política criminal para tal.
▪ Relação de comportamento com valor pré-jurídico (juridicidade pré-
legal) em que tem de haver ressonância ética prévia desse
comportamento (desvalor ético prévio ao comportamento) e um certo
consenso.
• MFP: não pode ser critério mas tem de ser considerado. Pode
haver situações em que há falta de consensos sociais (ex:
aborto)

49
Quando se percebe que o comportamento não é axiologicamente neutro.

42
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Lenocício é crime de perigo abstrato – não há verdadeiramente um dano a um bem jurídico, há


a perigosidade para tal (antecipação da tutela penal mas não crime concreto).
➢ Princípio da Ofensividade – entendimento compatível com o EDD, nos termos do qual
se verificaria uma opção de política criminal baseada numa certa perceção do dano ou
do perigo de certo dano associada à violação de deveres para com outrem – deveres de
não aproveitamento e exploração económica de pessoas em estado de carência social
o Hassemer: Harm Principle – critério para legitimar o Direito penal apenas pode
ser a proteção dos seres humanos de outros seres humanos.
▪ Punição tem origem na violação de um concreto interesse humano.
▪ Incriminações têm de ser de certas condutas que causem um dano.
▪ A legítima punição, de acordo com o harm principle, não esta
restringida a ofensas de facto. O conceito de dano pode limitar-se ao de
ameaça a um bem legalmente protegido.

Acórdão 179/12 (Enriquecimento Ilícito) + Acórdão 377/215 (Enriquecimento Injustificado)


Não é possível identificar qual o bem jurídico que está em causa e em que princípios
constitucionais assenta.
➢ FD: toda a norma incriminatória na base da qual não seja suscetível de se divisar um
bem jurídico-penal claramente definido é nula, porque materialmente
inconstitucional

MFP: Expansão do Direito Penal para domínios inovadores abrangeu novos valores e suscitou
interrogações sobre a relação desses novos valores sociais e o poder punitivo do Estado.
➢ Conceito material de crime esta ao serviço da fiscalização da constitucionalidade das
normas incriminadoras e conduz-nos a uma lógica de controlo das reformas penais
quando pretendem inovar, por razões meramente políticas, ou até ideológicas na
definição de crimes

Todavia, nem por isso chegará a concluir-se que, em Estado de direito, é isenta de vínculos constitucionais
a definição legislativa de medidas de política criminal. Nenhum poder o é; e muito menos o será o poder
de definir novos crimes e de prever novas penas, o qual, pela sua especial natureza, não dispensará
naturalmente a condição de poder constitucionalmente vinculado. Assim, e não obstante a larga margem
conformadora que, neste domínio, deve ser reconhecida ao legislador, haverá sempre que concluir que a
Constituição surge como o horizonte no qual há de inspirar-se, e por onde há de pautar-se, qualquer
programa de política criminal.

Princípio da Proporcionalidade nas novas incriminações tem duas vertentes essenciais.


1º. Decisão de política legislativa que se traduz na previsão de um novo tipo criminal só será
conforme ao previsto no n.º 2 do artigo 18.º da CRP se o bem jurídico por esse novo tipo
protegido se mostrar digno de tutela penal;
2º. Decisão de política legislativa só passará o crivo da legitimação constitucional se o bem
jurídico protegido pelo novo tipo incriminador se revelar carente de tutela penal.
Verificação destas duas vertentes, através das quais se traduz a exigência de proporcionalidade
quando aplicada a medidas de política legislativa que se cifrem em decisões de novas
incriminações, deve ser cumulativa: não basta que o «bem jurídico» protegido pelo novo tipo
criminal se mostre digno de tutela penal; é ainda necessário que esse mesmo «bem» se revele
dela [da tutela penal] «carente» ou «precisado».

43
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

MFP: Criação de novas incriminações50 ou agravações obedecem a três linhas de rumo:


• Conexão do Direito Penal com novos direitos ou com novas perspetivas sobre direitos –
casos de violência doméstica, tratamentos médico-cirúrgicos que violem regras de
medicina, discriminação racial e sexual, áreas como o ambiente e etc.
• Utilização do Direito Penal para aperfeiçoar a organização política e económica do
Estado – de forma a evitar a deterioração da estrutura institucional do Estado e
quaisquer formas de abuso de poder ou comportamento que afetem recursos coletivos
(corrupção, tráfico de influência e etc.)
• Alteração do tipo de condutas que, segundo o Direito Penal clássico, poderiam ser
consideradas criminosas, antecipando a tutela de certos bens jurídicos – áreas de
conduta que apenas põem em causa remotamente a segurança dos bens jurídicos
(crimes de perigo e de violação de dever)

Conclusão
Constitui expressão dos princípios constitucionais de Direito Penal, agrupando as características
que uma conduta tem de possuir, em nome desses princípios, para poder ser qualificada como
criminosa.
• Incriminação tem de ser indispensável para a defesa de bens jurídicos essenciais
(princípio da necessidade), a conduta incriminada deve possuir ressonância
ética negativa (princípio da culpa) e a criminalização, sempre resultante de lei
formal, deve reunir o consenso da comunidade (princípio da legalidade).

Seleção das condutas incriminadas no Estado de Direito pressupõe não só a tradicional


fundamentação na necessidade de raiz liberal, mas também uma fundamentação de
oportunidade ou de estratégia política-criminal.
➢ A par destes dois pontos de partida de argumentação, surge ainda uma relação do
Direito Penal com a ética em geral e com a ética da democracia, através da ideia de um
consenso amplo que impede a opressão das minorias.

CONCEITO MATERIAL DE CRIME assenta em critérios determinantes da dignidade e carência


de tutela penal dos bens jurídicos e nos requisitos referentes à estruturação dos próprios
comportamentos que podem servir de base à imputação penal.
➢ Conceito é enformado pela ideia de que existem, num EDD, limites constitucionais à
eleição de certas condutas como crimes que ultrapassam a vontade de maiorias
conjunturais e do poder político.
➢ Direito Penal tem uma legitimidade aferida pela proteção dos bens jurídicos essenciais,
constitutivos da razão de ser do próprio Estado, na medida em que as suas sanções são,
em si mesmas, graves restrições da liberdade ou de outros direitos fundamentais. O
Direito Penal só pode tirar liberdades (aos agentes de crimes), precisamente para criar
liberdade (para todas as potenciais vítimas)51.

50
MFP: relação dos animais com o art. 1º CRP está na ideia de DPH, que não é na ideia da pessoa humana
como recetor de benesses – é a pessoa como centro de direitos mas também com a imputação de deveres.
Da DPH não se pode alhear os deveres de respeito pelos outros e pelos outros seres vivos – é fundamental
nesta ideia de igual DPH. Visão antropocêntrica mas não egoísta nem individualista, pois DPH tem também
subjacente a responsabilidade.
51
Legitimação da pena pelo art. 18º/2 CRP

44
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Função de controlo do conceito material de crime exerce-se através de uma exigência de


compatibilidade, congruência ou concordância prática entre o fim da proteção das normas
penais e os direitos e valores constitucionais.

Dignidade punitiva tem dimensão positiva: incriminação tem de se dirigir à proteção de bens
jurídicos essenciais, respeitantes às condições de liberdade da pessoa e funcionamento do EDD
Dignidade punitiva tem dimensão negativa: incriminação não pode ser, ela própria, um modo
de coartar um direito fundamental
➢ Requer sempre uma demonstração empírica, a partir do funcionamento da sociedade,
da necessidade da incriminação para resolver um problema de desproteção de direitos
ou bens essenciais, exigindo sempre um processo argumentativo que demonstre a
pertinência de qualquer nova incriminação.

Legitimidade do poder punitivo decorre da necessidade de realizar-se os fins do Estado, definidos


democraticamente vs. Legitimidade do poder punitivo decorre da necessidade estrita de
assegurar a realização da liberdade individual e a autonomia de cada cidadão
➢ MFP: Legitimidade do poder punitivo decorrente do EDD apela à utilização do Direito
Penal para proteger os bens essenciais à existência da sociedade, definidos pela sua
substancialidade valorativa e pela sua existência interindividual.
➢ FD: Bem jurídico é valor objetivado, sinónimo do substrato concreto, do suporte
objetivo imediato de um valor, e que o seu elemento fundamental estará num momento
relacional, e portanto numa estrutura complexa de aspetos ônticos e axiológicos que
ele comporta quando se estrutura como expressão do interesse, da pessoa ou da
comunidade, na manutenção ou integridade de certo estado, objeto ou bem – interesse
esse reconhecido juridicamente como valioso.

Não há direito do Estado de punir, há um poder do Estado de punir, justificado pela estrita
necessidade e profundamente limitado.

45
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

O PAPEL DOS PRINCÍPIOS NO DIREITO PENAL NA LEGITIMAÇÃO


DAS NORMAS INCRIMINADORAS
Os princípios são ideias gerais cujo papel é permitir que a constante regulamentação
normativa produzida num sistema jurídico respeite uma determinada racionalidade, assim
como assegurar o controlo da efetivação prática do sistema.
➢ São expressão de uma racionalidade inerente a um conjunto de normas ou objetivos
gerais do sistema, que têm de ser legitimados.
➢ Princípios penais são o ponto de apoio para qualquer raciocínio jurídico-penal e
sustentam-nos.
➢ Há moldagem do conteúdo desses princípios quando se altera a racionalidade interna do
sistema com a introdução de novas ideias de justiça, transformação de alguns deles e
atribuição de novas dimensões.

➢ Os princípios são a estrutura e os valores principais do sistema – são o esqueleto do


Direito Penal. São o instrumento integrador do sistema, não sendo um instrumento
normativo fechado, podendo ser moldados pela realidade.

➢ A relevância prática da qualificação de um preceito legal como Direito Penal traduz-se


na sua subordinação aos princípios do Direito Penal52. Por outro lado, são aqueles
mesmos princípios que orientam a indagação sobre o caráter penal de uma norma ou a
qualificação de um facto como ilícito penal.

1. PRINCÍPIO DA CULPA
Não é objeto de uma formulação legal tão nítida como o da legalidade.
➢ Decorre da DPH e do direito à liberdade (art. 1º e 27º CRP).
➢ No CP é expressamente indicado como fator de determinação da medida da pena (art.
40º/2, 71º e 72º).
Ideia de censurabilidade de alguém por um facto por ela praticado.
Doutrina tem entendido um significado triplo para este princípio:
A. Como fundamento da pena – não tem aceitação unânime e há autores que dizem que não é
racional que um desvalor ético-social derivado da prática de certos comportamentos tenha função
de legitimar a realização dos fins do Estado, como a proteção de bens jurídicos ou a efetivação de
prestações sociais.

• MFP: além do Direito Penal ser legítimo porque as suas normas realizam os objetivos
da sociedade, é também legitimado por ter comandos e proibições que conduzam à
aplicação e realização de ideias culturais de justiça que enformam as expectativas
dominantes na sociedade.
o É neste segundo aspeto que o princípio da culpa ainda tem lugar como
fundamento do Direito Penal. Pena não serve apenas para proteger bens jurídicos

52
MFP: que é um ramo do Direito Público caracterizado pelo princípio da subordinação e não o da
igualdade entre os sujeitos da relação jurídica. O objeto do Direito Penal é a relação jurídica punitiva, pela
qual os indivíduos que praticam certos factos ficam sujeitos à aplicação de uma pena pelo Estado.
Mas tem princípios próprios pois a especificidade da função punitiva implica a atribuição de
garantias especiais aos destinatários das normas penais, tanto ao nível substantivo como no plano processual
(art. 32º CRP)

46
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

mas também para realizar uma ideia de justiça que está culturalmente enraizada
e isso não pode estar desligado do conceito de culpa. 53.
Ultrapassa o papel restritivo considerando que a democracia exige a igual consideração pelos
interesses e a subjetividade de cada um – suum cuique tribuere (a cada um o que lhe é devido,
aquilo de que é merecedor, na base da justa oportunidade de participar no todo, na comunidade,
na sociedade política).

B. Como fator da determinação da medida da pena – possibilidade de chegar a comparações


entre comportamentos de agentes através da referência à ideia de culpa.

C. Como princípio da responsabilidade subjetiva – limitação da responsabilidade penal ao


âmbito do domínio da vontade humana, que tem como pressuposto a ideia de liberdade e poder
de ação causal.

• Em Direito Penal só há responsabilidade subjetiva e não objetiva (pelo risco).


o Coaduna-se com o art. 147º CP pois todos os crimes de agravação pelo resultado
têm de ser coadunados com o art. 18º CRP, que diz que só há imputação de
resultados agravantes se tiver agido com algum tipo de culpa (como a
negligência).
• Não há resposta do Direito Penal para condutas fora do controlo dos agentes –
associada a uma liberdade de agir, em que há condições para os agentes se motivarem
pela norma, e respetivas consequências.
• Por este motivo, TC italiano liga este princípio com o princípio da legalidade pois não há
crime sem lei, tendo os agentes que conhecer as normas para se motivarem por elas. Tem
de haver possibilidade dos agentes se motivarem pelas normas para agirem, só assim é
que cumprem os seus ditames de conduta.

Culpa tem de estar aferida por descrição de conduta e com base num facto suscetível de ser
provado em Tribunal. Articula-se com o Princípio da Legalidade.

2. PRINCÍPIO DA NECESSIDADE DA PENA


ou intervenção mínima do Estado em matéria penal
Tem como subprincípios a proporcionalidade (certa relação quantitativa entre bens e
valores diferentes a serem ponderados) e a adequação (averigua-se que se o utiliza o meio mais
apto/adequado para se atingir certo fim).

53
Há autores (como Figueiredo Dias) que entendem que o único fundamento da pena é a ideia de
prevenção da violação de bens jurídicos, impedindo que, no futuro, esses bens jurídicos sejam violados.
A Prof. Fernanda Palma, por sua vez, considera que o fundamento da pena não são só as
necessidades preventivas e a ideia de culpa, porque a pena tem como fundamento não apenas a proteção de
bens jurídicos e as necessidades preventivas, mas, também, a necessidade de realização de uma ideia de
justiça culturalmente enraizada, que convoca a ideia de culpa. A realização de justiça implica que se dê
relevância como fundamento da pena à culpa que o agente manifestou no momento em que praticou o facto.
Essa ideia de realização de justiça não pode estar desligada do fundamento da pena. A culpa é, também,
um fundamento da pena.

47
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Surgiu como uma reação contra a utilização discricionária das penas pelo poder político
ao serviço de quaisquer fins, traduzindo historicamente a ideia de que a utilização pelo Estado de
meios penais deve ser limitada ou mesmo excecional.
Vindo de uma ideia primitiva de contrato social, hoje resta a aceitação de que o poder
político se justifica pelo serviço aos membros da sociedade – subordinação racional dos abstratos
fins políticos à realização da pessoa em sociedade.
Na discussão sobre a legitimidade da incriminação, o apelo ao princípio da necessidade
surge na discussão sobre:

→ a carência de proteção penal do bem jurídico;


Será contrariada quando se tratar de um mero valor moral sem expressão num bem
jurídico determinado (ex: relações homossexuais entre adultos).
→ a falta de alternativas à penalização da conduta;
Não se afirmará quando os meios penais não forem absolutamente indispensáveis,
existindo outros meios sociais capazes de evitar determinados comportamentos
(ex: o planeamento familiar em vez da perseguição penal do aborto ).
→ eficácia concreta da incriminação.
Não se verificará quando o Direito Penal não evita a prática de certas condutas e
chega a ter um papel criminógeno (ex: condutas criminosas associadas ao aborto
clandestino).

Legislador ao criminalizar um comportamento tem de aferir se no Ordenamento Jurídico


há algum outro mecanismo jurídico que tutele o bem jurídico de forma igualmente eficaz
que o Direito Penal e não seja tão lesivo para o agressor (art. 18º/2 CRP).
➢ Intervenção penal é a última ratio de intervenção do Estado.
➢ Quanto à intervenção do princípio da necessidade da pena na determinação da
responsabilidade penal54, dois aspetos são assinaláveis: a conformação do conteúdo de
certos conceitos valorativos ou critérios dos quais depende a responsabilização penal e
a influência na medida da pena.

3. PRINCÍPIO DA IGUALDADE PENAL


Art. 13º CRP – não é princípio específico do Direito Penal mas orienta as soluções do
sistema penal.

54
Tem duas ideias principais:
Sempre que o legislador decide criminalizar um comportamento, tem sempre de fazer a mesma
pergunta: é mesmo necessário criminalizar? Há, no direito ou no ordenamento jurídico algum mecanismo
alternativo ao direito penal que tutele este bem jurídico de forma igualmente eficaz, mas menos gravosa para
o agressor? Se sim, a criminalização é ilegítima. Só se pode criminalizar se não houver no ordenamento
jurídico um meio igualmente eficaz e menos gravoso. Se não houver alternativa, o direito penal pode intervir
(art. 18º/2 CRP). O legislador está vinculado pelo princípio da necessidade quando opta por criminalizar um
dado comportamento.
Contudo, o juiz também está vinculado pelo princípio da necessidade. Deve fazer a mesma pergunta: é
mesmo necessário aplicar pena de prisão? Há alguma alternativa à pena de prisão que tutele de forma
igualmente eficaz o bem jurídico e seja menos gravoso? O juiz deve preferir sempre meios menos gravosos
para o arguido que permitem tutelar de forma eficaz o bem jurídico em causa. Só em última ratio profere o
encarceramento, medida essa que só é aplicada se não houver outras menos gravosas que tutelem de forma
eficaz o bem jurídico. Aqui também é a base constitucional o art. 18º/2 CRP.

48
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

À igualdade subjaz uma ideia de proporcionalidade entre a gravidade do ilícito e da pena


bem como é a igualdade que sustenta a medição da pena pela culpa.
Proporcionalidade é princípio formal cujo conteúdo é preenchido pelos outros princípios
constitucionais de Direito Penal, como a culpa e a necessidade da pena,
Idêntica necessidade de punir e idêntica culpa justificarão idênticas penas – ou, pelo menos,
o direito a que não seja mais gravemente punido.
➢ O principio da igualdade proíbe tipos penais discriminatórios. Por outro lado,
tendencialmente, factos menos graves não podem ter uma punição superior a factos
mais graves. Isso violaria o princípio da igualdade (ex: furto de supermercado e
violação).

No que se refere ao conceito material de crime, o princípio da igualdade tem relevância na


delimitação negativa das incriminações e legitima, em certos casos, o conteúdo de normas
incriminadoras mas não prevalece sobre o princípio da necessidade da pena.
➢ João Matos Viana: é um princípio fraco em direito penal. É altamente constrangido
pelo princípio da necessidade e da culpa. Em direito penal, muitas vezes, aquilo que
aparentemente é igual é tratado de forma desigual devido ao princípio da
necessidade.
➢ Ex: caso dos furtos de uso de automóveis e de colar de diamantes. As necessidades punitivas
são diferentes num caso e no outro. Por isso, o direito penal entende que é preciso punir apenas
os furtos de automóveis, deixando impunes todos os outros. mas não há violação do principio
da igualdade.

4. PRINCÍPIO DA HUMANIDADE
São emanações do Estado de Direito democrático e social.
Expressa a ideia de responsabilidade social pela delinquência e disposição de respeitar e
recuperar a pessoa do delinquente.
Justifica a rejeição de penas atentatórias do respeito pela pessoa humana como a pena de
morte, prisão perpétua, torturas e etc. (art. 24º/2, 25º/2 e 30º/1, 4 e 5 CRP).
Expressão da DPH – criminoso tem uma compressão dos seus direitos civis e políticos
mas não deixa de ser pessoa.
Apela ao princípio da sociabilidade, numa perspetiva de orientação do sistema penal não
contemplada pelos fins tradicionais da política criminal e que explicará que a lógica impiedosa e
vertical do sistema punitivo ceda a soluções que a flexibilizam por causa da noção de uma
supremacia social de certos interesses individuais aos quais outros interesses se deveriam
sacrificar.
Condiciona inevitavelmente a legitimação das normas incriminadoras em termos de
proporcionalidade e adequação de penas. Interferem na legitimação de normas
incriminadoras em que estejam em causa padrões mínimos de consideração pelos outros.

49
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

5.
Princípio da Legalidade
Proposição jurídica fundamental do sistema penal, impregnadora até do conteúdo de outros
princípios
Segundo o princípio da legalidade, os tribunais estão vinculados a não aplicar sanções penais sem
lei anterior que as preveja (nulla poena sine lege) e a não aplicar as sanções penais previstas sem que se
realizem determinados pressupostos: a perpetração de uma determinada conduta considerada crime ou. No
caso das medidas de segurança, reveladora de perigosidade criminal – trata-se neste caso da máxima nullum
crimen sine lege (cf. 29º/1 e 3 CRP e 1º CP).

Esta subordinação do tribunal à lei significa, além disso, que a solução do caso concreto
está totalmente vinculada a um modelo legal -> a uma articulação já feita pelo legislador
entre um determinado caso, semelhante ao verificado em concreto, e uma solução para ele
prevista.
Assim, o princípio da legalidade não é somente a exigência de utilização de padrões
legais para a qualificação de um facto como merecedor de sanção e para a aplicação da sanção,
mas também a exigência de vinculação total do ato de aplicação de uma sanção, no caso
concreto, a uma decisão já tomada previamente, com um certo grau de concretização, pelo
legislador.

Tem 2 lógicas fundamentais:


Não existe crime sem lei – definição dos pressupostos do comportamento criminoso cabe apenas
ao legislador.
• Cabe a um típico específico de lei: escrita (por lei da AR ou DL autorizado), certa
(definição comportamento criminoso tem de ser precisa e clara para que quando se
criminalize um comportamento, ele esteja especificamente previsto – art. 29º/3 CRP, não
pode ser vaga nem implícito, tem de ser expresso), prévia (lei penal tem de ser anterior
ao facto criminoso e estar em vigor quando o facto é praticado).
Não há pena sem crime – a pena tem de estar definida por lei para um crime, também definido
por lei.
• Só pode haver pena se o caso concreto corresponder ao caso abstrato previsto pelo
legislador.
• Juiz apenas pode condenar por um crime se o comportamento corresponder ao caso
abstrato previsto pelo legislador – não pode haver aplicação analógica.
A proibição da analogia, corolário lógico do princípio da legalidade (art. 1º/3 CP e 29º/1
e 3 CRP), deve, assim, ser compreendida num sentido mais profundo do que a proibição da
utilização de raciocínios analógicos contra reo na operação de decidir. Deve ser entendida como
a proibição de que se faça uma “assimilação” do caso concreto pelo da lei, sem que determinados
argumentos sejam possíveis.55
É muitas vezes a ficção de interpretação da lei criada pelo princípio da legalidade que
permite, em casos em que a norma não é suficientemente precisa, que o intérprete siga apenas a
sua intuição e prescinda até de um raciocínio de tipo analógico. O princípio da legalidade pode
criar, deste modo, duas situações extremas:

55
O que se proíbe no Direito Penal é a analogia incriminadora (aquela que agrava a
responsabilidade penal) – o que se proíbe é o aplicador criar novos sentidos de ilicitude e
desvalor – ele apenas pode verificar se os sentidos de ilicitude e desvalor que o legislador criou
se aplicam ao caso concreto.
50
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

→ A fixação rígida às palavras da lei;


→ A libertação do condicionamento das palavras, e a conclusão de que cabem na
expressão vaga e simbólica da lei, situações em que não existe verdadeira
igualdade material.
Conclusão relevante deste princípio para a legitimação das normas incriminadoras
consiste na função de controlo que a lei desempenha. Função essa que pressupõe que a aplicação
da lei resulte de um processo lógico dirigido à descoberta do sentido da lei, i.e., à delimitação
dos valores positivos e negativos que explicam a incriminação de um determinado
comportamento.

Fundamento para este princípio é o EDD, de forma a que haja garantias especiais de segurança,
certeza e confiança, isto para evitar a arbitrariedade na aplicação do Direito.
Relaciona-se com o EDD na vertente de que é o legislador que define o que são bens jurídicos
relevantes para a comunidade – definição do que viola bens importantes para a comunidade é
a própria comunidade a fazê-lo, através dos seus representantes.
Relaciona-se com o princípio da culpa no sentido de que a pessoa possa ser censurada pelo seu
comportamento. Mas, para tal, a pessoa tem de saber que esse comportamento é censurável, sendo
essa uma condição para a orientação da sua conduta.
➢ Matos Viana: esta ideia é ficcional pois 90% das pessoas nunca leu a lei penal e esta ideia
de ter condições para orientar o comportamento faz sentido mas é ilusória. O verdadeiro
fundamento é a segurança jurídica e a proteção contra o arbítrio.

51
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E O PROBLEMA DA INTERPRETAÇÃO DA LEI PENAL


As fontes do Direito Penal
Dos arts. 29º CRP e 1º a 3º CP, resulta que os modos de revelação do Direito Penal (= as
suas fontes) são estritamente vinculados no nosso sistema jurídico.
➢ O princípio geral é o de que só a lei pode ser fonte de Direito Penal, estabelecendo-
se uma reserva relativa de competência da AR no art. 165º/1 c) CRP.
o Assim, só a AR ou o Governo munido de indispensável autorização
legislativa, sob pena de inconstitucionalidade orgânica dos decretos-leis que
aprovar, têm competência em matéria penal.

Este princípio só é afastado pelo art. 29º/2 CRP, que admite a legitimidade da punição, nos
limites da lei interna, das ações e omissões que no momento da sua prática sejam consideradas
criminosas segundo os princípios gerais do DIP comummente reconhecidos. Significa esta
exceção56 que o costume internacional também pode ser fonte de Direito Penal: a convicção
generalizada na sociedade internacional sobre o caráter criminoso de certas condutas é bastante
para que, nos limites da lei interna, uma conduta seja punida sem lei prévia à sua prática.
O fundamento da reserva da lei – a segurança democrática – não impede que uma tal exceção seja
legítima. À segurança como valor formal contrapõe-se uma segurança fundamentada no respeito pelos
valores humanos essenciais. Contudo, é de notar que aplicação do regime do art. 29º/2 CRP suscita
dificuldades: os princípios gerais do direito internacional não contêm, por definição, normas penais
completas e precisas, que, nomeadamente, cominem a penalidade aplicável ao crime. Esta lacuna deve ser
integrada através do recurso aos “limites da lei interna”.

Formulação, âmbito e fundamento do princípio da legalidade


A conformação constitucional mais explícita do Direito Penal deriva do princípio da
legalidade. O seu conteúdo essencial traduz-se em que não pode haver crime, nem pena que
não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa.
Dos arts. 29º CRP e 1º a 3º do CP, resulta que as instâncias de criação e aplicação do Direito
Penal têm o seguinte regime:

 Em primeiro lugar, só a lei pode, em princípio, ser fonte de Direito Penal, prevendo-
compreendidos e formulados a partir do
texto constitucional não explicitou são
Todos estes comandos e outros que o

se uma reserva relativa de competência da AR (art. 165º/1 c CRP);


fundamento da legalidade na CRP

 Em segundo lugar, o próprio conteúdo das normas penais terá de revelar um


elevado grau de determinação, na descrição das condutas incriminadas e das suas
consequências (29º/1 e 3 CRP);
 Em terceiro lugar, há um condicionamento do intérprete da lei penal a quem está
vedada a analogia e, eventualmente, a própria interpretação extensiva de normas
incriminadoras (29º/1 e 2 CRP e 1º/3 CP);
 Em quarto lugar, está consagrada a proibição de retroatividade das normas penais
(29º/1 e 3 CRP e 1º/1 CP);
 Finalmente, consagra-se o princípio da retroatividade das leis penais de conteúdo
mais favorável ao arguido (29º/4 CRP e 1º/2 e 4 CP).

56
FD não entende como exceção pois o próprio DIP reconhece o princípio da legalidade como princípio
geral do Direito Penal.

52
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

O princípio da legalidade é uma decorrência do Estado de Direito democrático, integrando-se no


elenco dos direitos, liberdades e garantias fundamentais.
➢ Expressão da autolimitação do Estado perante os cidadãos e da sua função primordial
de proteção da pessoa.
➢ Exprime o modo constitucional de realização da máxima segurança individual – sendo
manifestação da separação dos poderes e da democracia igualitária.

Ideia central do princípio é a garantia da segurança dos indivíduos frente ao Estado


através do controlo da criação e aplicação do Direito Penal pelos órgãos de representação
democrática.
• E um tal controlo democrático da lei penal é o meio mais adequado racionalmente para
a concretização da igual dignidade da pessoa humana.
• São estas ideias que explicam a extensão do princípio e, nomeadamente, a sua aplicação
à previsão dos crimes, e não só à cominação das penas: a proteção das expectativas
individuais e a indicação do ilícito criminal acresce à garantia de só se ser punido com
pena prevista em lei anterior à prática do facto, ideia que resulta nitidamente da separação
dos poderes e do controlo democrático das interferências na liberdade individual.

• Também é o princípio democrático que explica a máxima não há pena sem crime, na
medida em que se proíbe que os órgãos de aplicação do Direito estabeleçam em concreto
uma certa conexão entre crime e pena que não tenha sido definida pelos órgãos
legislativos.
Verificada a relação entre o fundamento constitucional do princípio da legalidade e o seu
âmbito, podem apontar-se as consequências deste princípio, através das seguintes máximas:

– nulla poena sine crimen (princípio da conexão);


– nulum crimen, nulla poena sine lege scripta (reserva de lei em sentido formal);
– nullum crimen, nulla poena sine lege stricta (proibição de analogia);
– nullum crimen, nulla poena sine lege certa (princípio da tipicidade);
– nullum crimen, nulla poena sine lege praevia (proibição da retroatividade).

RESERVA DE LEI
nulum crimen, nulla poena sine lege scripta
Comando para o legislador, que tem de obedecer a certos critérios na elaboração das leis.
➢ O fundamento do princípio da legalidade impõe que as normas penais que ampliem a
incriminação, ao afetarem a segurança e as liberdades individuais, sejam aprovadas pelo
Parlamento ou, pelo menos, pelo Governo, mediante delegação de competência.
➢ Legislador tem de obedecer a um critério quanto às fontes – há casos que são reserva
da AR.
➢ Quando o Governo tem autorização não pode extravasar o âmbito dessa autorização,
tendo de haver concretas diretrizes para o Governo – não podem haver “cheques” em
branco pois isso violaria a separação de poderes – a autorização tem de ser explícita e
inequívoca, descrevendo o conteúdo.

Art. 165º/1/e CRP – âmbito de reserva são as normas penais: Penas + Medidas de Segurança
e respetivos pressupostos.

53
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

E quanto à DESCRIMINALIZAÇÃO?
A descriminalização de condutas também se enquadra na definição de crimes (a contrario).
A descriminalização é contemplada na reserva de lei – entendimento do TC de que se trata de
relevância social por isso deve haver expressão democrática.
MFP: se o Governo pudesse descriminalizara seu bel-prazer, então a definição de crime
ficaria nas mãos dele. A definição de crime abrange a definição pela positiva e pela negativa.
Da jurisprudência do TC resulta que descriminalização é da reserva devido à segurança jurídica
e separação de poderes.

E quanto às CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES?


Estas definem o concreto facto criminoso, sendo abrangidas pela previsão do art. 165º/1 c).
➢ Isto sucede nitidamente no caso das circunstâncias modificativas, que alteram o tipo fundamental
suscitando uma nova medida legal da pena (ex: art. 132º CP).
➢ As razões justificativas da reserva de lei (a segurança jurídica e o princípio democrático,
nomeadamente) favorecem, seguramente, a aplicação do art. 165º/1 c CRP a todas as
circunstâncias agravantes.

E quanto às CIRCUNSTÂNCIAS ATENUANTES?


Circunstâncias atenuantes da responsabilidade podem alterar a delimitação dos direitos
dos cidadãos em si. Assim, no que respeita às causas de justificação do facto ou de exclusão
da ilicitude, a liberdade criada pela permissão de certas condutas diminuirá a liberdade de
todos os que se pretenderem opor às mesmas. Exemplo: se passar a ser permitido lesar, ao abrigo
do direito de necessidade (art. 34º CP), interesses jurídicos de valor igual aos que se salvaguardam, o titular
dos interesses lesados deixará de poder reagir em legítima defesa à agressão. Isto, porque a agressão passará
a ser considerada lícita, desaparecendo o pressuposto da legítima defesa: uma agressão ilícita e atual (32º
CP).

Há atenuantes que, ao permitirem certas condutas, que em geral são proibidas, abrem uma
exceção, de modo que a sua previsão afeta as expectativas gerais e diminui a liberdade e a
segurança dos cidadãos. É o que acontecerá, p.e., se o legislador vier a alargar as situações em que as
escutas telefónicas são permitidas.

A. Causa de exclusão da ilicitude – há justificação, havendo prevalência de um valor sobre


outro. Há critério valorativo que torna aquele comportamento proibido em permitido.
Ex: legítima defesa.
• Não há taxatividade nas causas de exclusão da ilicitude do art. 31º CP, o que
resulta que determinadas conclusões são também causas de justificação.
B. Causas de exclusão da culpa – afastam a censurabilidade do agente por prática de certo
facto,
• MFP: os critérios de valoração da responsabilidade (o que significa a culpa
ou a sua ausência) não podem estar desvinculados de um certo controlo da
reserva.
• Essa valoração da responsabilidade não deve estar sujeito a reserva? Tem de
existir o mínimo de expressão legal, ponto de apoio legal, nessas normas,
portanto elas estão sujeitas à reserva – as causas de exclusão com base em

54
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

circunstâncias invocadas têm de ter um ponto de apoio legal – não significa que
haja taxatividade e esteja proibida a analogia.

Circunstâncias atenuantes da responsabilidade penal, é desnecessária a reserva de lei. A


atipicidade das atenuantes gerais resulta da fórmula genérica do art. 72º do CP e tais
circunstâncias, influindo apenas na determinação da pena, não são suscetíveis de promover uma
restrição indireta dos direitos das vítimas de crimes.
Questão deve ser resolvida pela analisa da natureza da própria circunstância atenuante.
Em outros casos, a permissão prevista decorre de uma ideia geral, de um princípio geral da Ordem
Jurídica, sendo, por isso, de direito geral. Neste último caso, já a reserva de lei é dispensável, pois o
legislador ordinário nada mais fará do que corporizar direitos latentes no ordenamento jurídico.

Reserva de lei e TIPICIDADE57 das normas penais. As normas penais em branco

Do respeito pela reserva de lei decorre o princípio da determinação das normas penais
incriminadoras, tanto no que respeita ao princípio primário como ao secundário.
➢ De acordo com este princípio, todos os pressupostos da incriminação e da
responsabilidade penal têm de estar descritos na lei, não sendo admitidas as leis penais
em branco.
Normas penais têm de ser descrições de figuras ou tipos, isto é, determinações do conteúdo
de certas imagens sociais relativamente concretas de comportamentos humanos, que prefigurem
com exatidão o âmbito do proibido e a respetiva consequência (sanção).
O princípio da determinação das normas penais implica o máximo preenchimento possível
das figuras (ou imagens dos factos proibidos) através de verdadeiros conceitos de espécie.
Este mesmo princípio justifica o desmembramento do ilícito criminal através das várias
figuras de infrações criminais, os chamados tipos legais de crime. A principal implicação desta
técnica legislativa é a tipicidade, categoria irrenunciável na determinação da responsabilidade
penal. Assim, nenhum comportamento humano pode ser considerado criminosos se não
corresponder a um tipo legal de crime, descrito com precisão por um preceito legal. A
tipicidade é exatamente essa exigência de adequação do facto a um tipo legal de crime. 58
A organização lógica das consequências da reserva de lei, em torno das ideias de
determinação da lei penal e de tipicidade, assenta, porém, numa relativa mitificação da separação
dos poderes e do princípio do controlo democrático. Pressupostos dessa mitificação são os
dogmas do juiz autómato e da natureza concetual dos tipos legais de crime.
Hoje em dia, juiz deve decidir se um certo facto corresponderá ao “tipo de ilícito”59 que
constitui a essência da norma incriminadora. Os conceitos típicos são, deste modo, funcionais
relativamente à imagem global da violação do Direito que se pretende retratar. Exemplo: no
conceito de veneno, relativamente ao homicídio qualificado (132º/i CP), deverão caber todas as substâncias
em mesmas não tóxicas, mas que surtam o mesmo efeito sobre o organismo humano, se forem ministradas

57
Outro princípio penal, decorrente do art. 29º CRP: nulla penna sine lege certa
58
O destinatário da norma tem de saber qual o comportamento que é proibido: o ilícito criminal tem de
estar demonstrado por vários tipos legais de crime (que precisamente têm de descrever quais os
comportamentos proibidos)
59
Tipo de ilícito é o conceito que exprime o objeto dos juízos de ilicitude e de culpa, a matéria da proibição
ou, em outros termos, o conjunto de elementos que constituem o comportamento proibido e cuja verificação
suscita o ilícito criminal.

55
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

em conjunto com outras, ou em certas quantidades, ou contra pessoas particularmente débeis (p.e., a
ministração de doses elevadas de açúcar em doentes diabéticos).

A violação dos princípios da determinação e da tipicidade não se dá, consequentemente,


logo que o legislador utiliza conceitos menos precisos ou que o intérprete excede um sentido
puramente lógico-formal das palavras.
➢ Tal violação dá-se quando a possibilidade de compreensão e controlo do desvalor
expresso no tipo legal de crime deixa de existir.
o A violação da reserva de lei começará onde a linguagem normativa permitir a
total manipulação do conceito para fins incontroláveis e onde for impossível uma
perceção da descrição legal pelos seus destinatários coincidente com os
resultados de uma interpretação teleológica.
o O destinatário da norma não pode compreender o desvalor expresso na norma,
não podendo orientar o seu comportamento, uma vez que não percebe o que é
proibido.

Uma decorrência da reserva de lei é a proibição de normas penais em branco:


Figueiredo Dias: normas penais em branco são aquelas que cominam uma pena para
comportamentos que não descrevem, mas se alcançam através de uma remissão da norma
penal para leis, regulamentos ou inclusivamente atos administrativos.60
MFP: normas que estabelecem o conteúdo da sua previsão ou da sua estatuição por remissão
para outras normas constantes de leis hierarquicamente inferiores. Como acontecerá nos
casos de leis penais que remetam para regulamentos (ou leis do Governo sem autorização
legislativa) a definição de elementos de que resulte o comportamento incriminado ou a pena
aplicável.61

Em que medida é que uma norma penal que não define todo o seu conteúdo remetendo para uma
outra viola o princípio da reserva de lei?
A remissão de uma norma para outras não é, em si mesma, obstáculo ao respeito pelo
princípio da legalidade.
O que pode desrespeitar este princípio é o esvaziamento de conteúdo precetivo e a
atribuição da competência para definir o comportamento proibido a leis hierarquicamente
inferiores ou até aos atos administrativos.
Assim, importa distinguir, atendendo ao “critério do proibido”:

 Situações em que o núcleo do comportamento proibido pela norma depende


totalmente da norma para qual se remete, não sendo previsível para os
destinatários sem essa norma o que deles se espera; Ex: remissão de uma norma que
incrimina o tráfico de estupefacientes para um regulamento que qualifique como
estupefaciente uma certa substância. Sem o conhecimento da natureza legalmente atribuída
de droga proibida a essa substância não é previsível que a venda da mesma possa ser tráfico.
o São inconstitucionais pois violam o princípio da legalidade (na aceção da
reserva de lei) e conflituam com a separação de poderes

60
FD: parte sancionatória é que tem de estar sujeita a reserva de lei
61
Rui Patrício, em comentário ao TRE (17/4/01) que adota uma conceção restritiva = MFP, discorda desta
definição e adota conceção abrangente sendo norma em branco toda aquela em que a definição da “área de
proteção” é feita, total ou parcialmente, por norma diferente da norma que contém a ameaça penal.

56
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

 Situações em que a remissão é puramente para um critério técnico, não estando


o objeto da norma remissiva, o interesse fundamental protegido, dependente do
conteúdo concreto deste critério – efeito de regulação da norma incriminadora, que
não depende do conteúdo da norma para a qual se remete.
o Neste caso se encontram aquelas normas em que o cerne da proibição (e por
isso do ilícito) se centra manifestamente num efeito pretendido ou num
interesse fundadamente prosseguido, não dependendo do critério técnico
(em si mesmo variável em função de novos conhecimentos) o sentido
essencial do comportamento contrário ao Direito.

A distinção entre normas remissivas que violam a reserva de lei e as que são com ela
compatíveis depende, de saber se a função da norma penal é estabelecer direta e
materialmente a fronteira entre o proibido e o permitido ou apenas sinalizar que um certo
efeito material dependente da obediência à regulação legal devido à natureza ou grau de
risco da atividade é o conteúdo fundamental da proibição.62
Art. 277º CP é considerado, por alguns autores, como norma penal em branco e, devido a tal,
inconstitucional.
• MFP: não entende assim. Pode ser norma formalmente penal em branco por ser
remissiva, mas, o que se pretende com este tipo de normas é que certas atividades
perigosas devem ver respeitadas as normas técnicas vigentes. O cerne do proibido é
o cumprimento de certas normas técnicas. São apenas normas remissivas que não são
inconstitucionais.
• Art. 277º CP não é norma penal em branco pois o proibido está explícito, que é a
violação da norma técnica. Não sendo a norma técnica que tem o conteúdo do
proibido.
TC: há casos em que a remissão não interfere com a previsibilidade e com a segurança
jurídicas, mas apenas cumpre o papel de orientar o intérprete segundo critérios objetivos quanto
à verificação do comportamento proibido.
Em suma, na fronteira da violação da reserva de lei encontra-se a garantia de que não
emana da norma regulamentar ou do ato da autoridade administrativa a diferenciação
entre o comportamento permitido e o proibido, mas antes da norma remissiva. Será esta a
linha de rumo na distinção entre as normas penais em branco, propriamente ditas,

62
Na norma penal em branco, o crime não é totalmente definido pela AR, o que viola o art. 165º CRP.
A norma penal em branco levanta também um problema quanto à tipicidade, uma vez que, de acordo com
o art. 29º/3 CRP, a definição do comportamento criminoso tem de ser expressa (certa, inteligível, precisa).
Quando há cisão pode estar em causa o caráter certo da lei, o que deixa o destinatário insuficientemente
orientado quanto ao comportamento que deve tomar.
A norma penal em branco será compatível com o princípio da legalidade se os critérios essenciais de
ilicitude estiverem na norma penal em branco e não na norma complementar. Aquilo que é a essência do
desvalor tem de estar na norma penal, de tal forma que a norma complementadora não venha criar
nenhum critério de ilicitude, vem apenas concretizar o critério que já constava da norma penal em
branco.
Assim, para a norma penal em branco não ser inconstitucional, têm de estar verificados três requisitos:
1º. Tem de estar claro qual é o bem jurídico protegido;
2º. Tem de estar claro qual é o desvalor da ação, ou seja, qual o comportamento que se pretende
proibir;
3º. Tem de estar claro qual é o desvalor do resultado, isto é, qual o resultado que se pretende evitar.
Se isto resultar da norma penal então temos uma norma penal em branco constitucional.

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Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

inconstitucionais, e as normas remissivas para normas técnicas que não violam a referida reserva
de certeza e de previsibilidade.

Se houver remissão para Regulamento da UE isso não viola a reserva de lei – há violação
quando se remete para decisão-quadro ou diretiva.
➢ Critério formal que tem de se atender também ao material, que estabelece a ilicitude.

Acórdão TC 427/95 (Aditivos Alimentares)


Se aquilo que é crime estiver definido na lei e a norma remissiva estiver a descrever apenas
pormenores técnicos, então não inconstitucionalidade.
Critério de ordem material – o cerne do proibido está na norma penal e a lei extrapenal apenas
concretiza um critério da ilicitude. Há uma remissão legítima para ordenamento extrapenal, pois
não há uma orientação de comportamento.

Acórdão TC 534/98 (Valor da Prova Pericial)


Portaria estabelecia limite de valor como meio de prova e poderia enquadrar-se no âmbito da
especificidade.
Eduardo Maia Costa: caso de inconstitucionalidade orgânica, mesmo não havendo
inconstitucionalidade material, porque é regra de processo penal que está sujeita a reserva de lei.

Acórdão TC 115/08 (Infração de regras de Construção)


Um dos problemas das normas penais em branco está relacionado com o princípio da legalidade
e da culpa, porque não é possível orientar o comportamento olhando para a norma. Neste caso,
não havia um problema de cognoscibilidade subjetiva, pois eles tinham o dever de conhecer a
norma técnica.
As normas técnicas têm de ser conhecidas, pelo que a remissão para normas que o agente tinha
obrigação de conhecer, no domínio da sua atividade profissional, não é inconstitucional nem
viola o princípio da tipicidade e da legalidade, respeitando também o princípio da culpa.

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Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

INTERPRETAÇÃO DA LEI PENAL: PROIBIÇÃO DA ANALOGIA


nullum crimen, nulla poena sine lege stricta

Art. 1º/3 CP proíbe, expressamente, a analogia63 quanto às normas de que resulta a


qualificação do facto como crime, a definição de um estado de perigosidade e a determinação da
pena ou medida de segurança correspondentes.
O fundamento desta proibição reside, igualmente, na exclusividade da competência do
Parlamento (ou do Governo com autorização legislativa) na formulação de normas
incriminadoras.
➢ Se os tribunais pudessem utilizar a analogia, formulariam normas incriminadoras que
deixariam de ser objeto de controlo democrático.
➢ Por outro lado, o caráter fragmentário do Direito Penal impede que comportamentos
análogos aos expressamente previsto, na perspetiva da lesão do bem jurídico violado,
tenham o mesmo merecimento penal.
➢ A seleção da conduta incriminada é uma decisão legislativa inimitável pelo julgador
através do recurso à analogia.
A proibição da analogia64 não deve, porém, ser confundida com a proibição de raciocínios
analógicos na aplicação da lei penal.

 O que distingue a interpretação65 extensiva da analogia?


 A interpretação extensiva é igualmente proibida?
 Quais os critérios gerais que delimitam o permitido e o proibido na interpretação do
Direito Penal e como se relacionam com eles fórmulas como a interpretação extensiva
e a redução teleológica?

63
A analogia em causa é a analogia legis, que consiste na aplicação de uma regra jurídica a um caso
concreto não regulado pela lei através de um argumento de semelhança substancial com os casos regulados.
64
FIGUEIREDO DIAS
A proibição da analogia pressupõe a resolução do problema dos limites da interpretação admissível em
Direito Penal. Está hoje afastada definitivamente a convicção de que o princípio da separação de poderes
conduziria logo à proibição de qualquer processo de interpretação jurídica. Hoje aceita-se, pelo contrário,
que praticamente todos os conceitos utilizados na lei são suscetíveis e carentes de interpretação: não
apenas os conceitos “normativos”, mas mesmo aqueles que à primeira vista se diria caraterizadamente
“descritivos” e por isso apreensíveis através dos sentidos. Deste modo se torna inarredável a questão de
saber o que pertence ainda à interpretação permitida e o que pertence já à analogia proibida em direito penal
pelo princípio da legalidade.

Critério proposto por Figueiredo Dias para estabelecer esta distinção:


O legislador penal é obrigado a exprimir-se através de palavras, as quais, todavia, nem sempre possuem
um único sentido, mas, pelo contrário, se apresentam quase sempre polissémicas. Por isso, o texto legal se
torna carente de interpretação, oferecendo as palavras que o compõem, segundo o seu sentido comum
e literal, um quadro (uma pluralidade) de significações dentro do qual o aplicador da lei se pode
mover e pode optar sem ultrapassar os limites legítimos da interpretação. Fora deste quadro, o
aplicador já se encontra no domínio da analogia proibida. Um tal quadro funciona assim como limite da
interpretação admissível em Direito Penal.

Decisivo será assim, por um lado, que a interpretação seja teleologicamente comandada, isto é, em
definitivo determinada à luz do fim almejado pela norma; por outro, que ela seja funcionalmente
justificada, adequada à função que o conceito assume no sistema.
65 Operação mediante a qual se retira uma norma do preceito da lei – nessa operação tem de se garantir
que não se ultrapassa o sentido que o legislador quis dar à norma

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Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

A interpretação extensiva66 baseia-se na possibilidade de referir um certo caso não


expressamente considerado na letra da lei ao seu pensamento.

66
TAIPA DE CARVALHO
Exigência feita ao legislador que se reflete no corolário de lei estrita: a proibição de analogia.
O texto penal é constituído por um conjunto de palavras, e cada uma destas não tem um único significado,
mas sim uma pluralidade de significados. A determinação do sentido e alcance do texto legal, em que
se materializa na norma, depende da finalidade ou teleologia desta. Determinar qual a finalidade e quais
as condutas que são abrangidas pela norma é precisamente o objetivo e o objeto da interpretação jurídica.
No caso de evitar interpretações discricionárias, o art. 9º CC, indica os critérios da interpretação. De acordo
com este artigo, cujas disposições são validas não apenas para o direito civil, mas para todos os ramos do
Direito, incluindo o penal, o interprete-aplicador deve procurar descobrir o pensamento legislativo,
isto é, qual é a finalidade e o âmbito normativo da lei: as situações fácticas ou os casos concretos
abrangidos pela norma jurídica.
Desta forma, o interprete deve atender às circunstancias históricas em que a lei foi elaborada e também às
circunstancias atuais em que a lei é aplicada. Quando o interprete chegue à conclusão de que o caso concreto
a decidir não é abrangido por nenhuma das interpretações que o texto legal comporta, então estamos diante
de uma “lacuna da lei”.
Podemos então distinguir a interpretação da analogia, está no facto de a analogia se aplicar a uma norma
jurídica a uma situação ou conduta que não se encontra abrangida por nenhum dos possíveis sentidos do
texto legal, na interpretação mesmo que extensiva, a decisão jurídica é ainda a concretização de um sentido
normativo que o teor literário comporta.
É claro que na pratica é difícil distinguir a analogia da interpretação extensiva, esta é um processo
hermenêutico que consiste em alargar o sentido do texto legal com o objetivo de o coincidir com a
finalidade da norma jurídica, e utilizando ela os argumentos e igualdade e da maioria de razão
(argumentos ou processos lógico-metodológicos, que na sua opinião, parecem ser materialmente idênticos
aos procedimentos utilizados na analogia).
Quando se diz na interpretação extensiva, o caso decidindo não está abrangido pelo “teor literal” mas sim
pelo “espirito da lei” e, portanto, há que alargar o âmbito do texto legal, parece estar, implicitamente, a
dizer-se que o caso concreto vai ser decidido com base num sentido imputado à norma, sentido este que
exorbita do texto legal, isto é, que vai para além dos sentido literais possíveis.
As breves impressões e duvidas, que foram expostas, não significam que na sua opinião não se deva manter
uma proibição de analogia in malam partem. Entende que esta deriva de uma exigência e consequência da
ratio relativa ao principio da legalidade. Só que também lhe parece que por estas mesmas razoes também
deve ser proibida a chamada interpretação extensiva in malam partem.
O mesmo raciocínio aplica à chamada redução teleológica (ou interpretação restritiva) do teor literal das
causas de justificação nomeadamente das previstas no CP. É que também no processo interpretativo redutor
do âmbito do permitido pelo texto legal redunda na qualificação como não justificada (não exclui a ilicitude)
de uma situação que o teor literal considera como justificadora. Ou seja, a redução teleológica, com
fundamento na ideia que o legislador “disse” mais do que o que queria “dizer” acaba por, em nome do
“espirito da lei” mas contra a “letra da lei”, vir a qualificar como crime uma conduta que, segundo o texto
legal, estava justificada.
Esta autor reconhece o problema em relação às objeções metodológicas e as dificuldades de distinção entre
ambas, mas parece-lhe decisivo que a razão de certeza e segurança jurídica do cidadão frente ao poder
punitivo estadual proíbe a aplicação de analogia de uma norma penal a uma situação que não esteja
expressamente abrangida por um dos sentidos compatíveis com o texto penal. O objetivo da interpretação
é o apuramento da ratio da norma – interpretação teleológica.
O texto legal deve constituir um limite às conclusões interpretativas teleológicas, no sentido de impedir a
aplicação da norma a uma situação que não seja abrangida pela mesma, isto é, por um dos vários
significados que as palavras podem ter no texto legal. Poder-se-á dizer que ficam fora do âmbito jurídico-
penal situações tao ou mais graves do que as expressamente abrangidas pela norma, isto é, comportamentos
que, por identidade ou até por maioria de razão, também são abrangidos pela ratio da norma, e também
devem ser puníveis. Responde-se que assim é, e tem de ser, quer em nome da garantia politica do cidadão

60
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Distingue-se da analogia porque o caso real é meramente semelhante aos considerados pela
lei, sem, no entanto, ter sido pensado por ela. Assim, quando o legislador tenha apenas exprimido
imperfeitamente a intenção de regular o caso, haverá interpretação extensiva.
Todavia, a distinção entre analogia e interpretação extensiva concebida pela doutrina
tradicional assenta numa perspetiva da interpretação jurídica como subsunção.
A crítica aos pressupostos metodológicos do pensamento jurídico tem compreendido que a
distinção entre interpretação extensiva e analogia não permite traçar rigorosamente as fronteiras
da interpretação.
Na realidade, a própria interpretação extensiva, embora atribuível num plano lógico e
objetivo ao pensamento do legislador, pode não corresponder já a um entendimento juridicamente
aceitável e até previsível das palavras. E, por outro lado, não é de excluir que se ultrapasse o
pensamento do legislador, na sua formulação histórica, interpretando-se a norma de acordo com
um significado plausível e juridicamente válido das palavras. Finalmente, o conflito possível entre
os elementos de interpretação (literal, lógico, sistemático e histórico), torna pouco rigorosa a
categoria.
Posição MFP: a interpretação extensiva não tem, em si mesma, força suficiente para
resolver o problema da fronteira da interpretação permitida, devendo procurar-se um
critério fundamentado na racionalidade da proibição da analogia e desligado destas
categorias tradicionais.

O art. 1º/3 CP não proíbe expressamente a interpretação extensiva. E, por outro lado, não se
poderá inferir da proibição da analogia in malam partem pelo art. 1º/3 CP a permissão da
interpretação extensiva, através de um raciocínio a contrario sensu.
Aplicando os critérios tradicionais de interpretação jurídica, a proibição de interpretação
extensiva só pode ser retirada do art. 3º/1 CP por analogia com a proibição da própria analogia.
Porém, a norma que proíbe a analogia no Direito Penal circunscreve excecionalmente, no
conjunto da Ordem Jurídica, a atividade interpretativa: a analogia só é proibida, em geral, quanto
às normas excecionais, que podem, no entanto, ser objeto de interpretação extensiva (11º CC).

quer na linha do caráter fragmentário do direito penal. Por essas mesmas razões, que são especificidades
do direito penal e que estão relacionadas com a gravidade, natureza e finalidade das sanções criminais, é
que, contrariamente ao que se verifica noutros ramos, não existe no direito penal o que está previsto no art.
8º CC.
A proibição da aplicação analógica fundamenta-se na razão de garantia política do cidadão frente ao ius
puniendi estatal. E foi esta razão que leva à consagração esta proibição implicitamente no art. 29º/1 CP
quando declara “lei que declare punível por ação ou omissão), a proibição de analogia é explicita no art.
1º/3 CP.
Desta finalidade fundamentadora da proibição resulta da proibição que abrange a analogia in malam
partem, isto é, a analogia desfavorável ao agente, e não a analogia “in bonam partem”, ou seja, a favorável
ao agente. Deste modo, é proibida a analogia incriminatória e a agravante da responsabilidade penal, quer
estejam em causa normas da parte especial do CP ou normas constantes de leis penais extravagantes, que
descrevam tipos legais de crime, quer se trate de normas da parte geral do CP, quando a sua aplicação
analógica se traduza em fundamentação ou agravamento da punibilidade.
Estra proibição também abrange as normas extrapenais complementares das leis penais em branco, pois
que as razoes determinantes da proibição da analogia desfavorável assim o impõem. Estas normas
extrapenais, para as quais as leis penais em branco remetem, assumem, por força de tal remissão, natureza
penal enquanto integradoras da lei penal em branco.

61
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Uma limitação da atividade interpretativa mais ampla do que a do art. 11º do CC só se


justificaria na medida requerida pela legalidade e pela reserva de lei. Ora, a interpretação
extensiva, tal como é definida tradicionalmente, como expressão do pensamento da lei revelado
pelos elementos não literais da interpretação, não disputa, necessariamente, com estes princípios.
Não se poderia, por conseguinte, considerar proibida toda e qualquer interpretação
extensiva, no Direito Penal, apenas porque é difícil praticamente delimitá-la da analogia à
luz dos critérios tradicionais da interpretação.
Não se deve também deduzir a proibição da interpretação extensiva do preceito
constitucional que exige a expressa cominação legal das penas e medidas de segurança (29º/3),
visto que se poderia ainda entender que a interpretação se refere a um pensamento expresso, ainda
que imperfeitamente.
De tudo isto resulta que a interpretação extensiva não é necessariamente proibida ou
permitida em Direito Penal, tudo dependendo da enunciação de outros critérios, derivados
diretamente da ideia de segurança jurídica inerente ao princípio da legalidade e
reconduzíveis, em última instância, ao princípio do Estado de Direito democrático67.
As dificuldades metodológicas da delimitação entre interpretação extensiva e analogia
originaram que passam, todas elas, pela superação da distinção entre interpretação extensiva e
analogia, conduzindo o pensamento jurídico para uma fronteira mais profunda entre interpretação
permitida e proibida.
Diversificam-se, todavia, os novos modos de abordagem da questão conforme as perspetivas
sobre o Direito, sobre a interpretação em geral, que surjam como a pré-compreensão do problema.
São referíveis, basicamente, dois modos de abordagem:
1. O pensamento antipositivista, valorativo, teleológico e pragmático, com inspiração
filosófica geral em HEIDEGGER e GADAMER;
A resolução do problema da proibição da analogia e do cumprimento do princípio
da legalidade é alcançado desvinculando totalmente a interpretação permitida e a
significação jurídica da análise semântica do tipo legal, orientando e controlando a
interpretação jurídica por critérios extraliterais reveladores do significado
fundamental da norma no sistema jurídico.

2. A perspetiva positivista mais próxima da filosofia analítica, mais logicista e menos


pragmática.
Os limites da interpretação permitida são ainda controlados fundamentalmente por
critérios de significação (e de validade da interpretação) de índole linguística, de
modo que o cumprimento do princípio da legalidade se verifica até ao ponto em que
se não ultrapasse o “sentido possível das palavras”.

O que se discute, fundamentalmente, é se o princípio da legalidade pode ser cumprido sem


uma pré-determinação essencial da norma por limites linguísticos extrajurídicos definidos em
abstrato e vinculativos da concretização do Direito no caso.

67
SOUSA E BRITO entende que a interpretação extensiva é inconstitucional, porque sustenta que entre o
sentido possível das palavras e o mínimo de correspondência verbal há ainda um espaço a ser
percorrido, incompatível com o fundamento de segurança jurídica do princípio da legalidade.
➢ Castanheira Neves nega que entre o sentido possível e o mínimo de correspondência haja sensível
diferença.

62
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

A primeira perspetiva relativiza de tal forma essa pré-determinação semântica abstrata que
concebe que o texto jurídico deixou de ser, em absoluto, objeto da interpretação (esfuma-se o
elemento literal) para, em seu lugar, colocar a norma (a definir) do caso concreto, cuja descoberta
só é pré-determinada por um jogo de condições de validade (as condições legal, sistemática,
dogmática e institucional, como defende CASTANHEIRA NEVES).
CASTANHEIRA NEVES propõe quatro condições de validade como critério distintivo
entre a interpretação proibida e a permitida em Direito Penal:
1. Condição legal – necessidade de o concreto juízo incriminatório ter fundamento
efetivo numa norma penal positiva (ser secundum legem);
2. Determinação dogmática dos fins – necessidade de os tipos legais serem construídos
pelo legislador de tal modo que seja possível apreender o “núcleo axiológico-
normativo fundamentante”, com apreciável relevo para o bem jurídico tutelado, não
bastando uma “concetualização lógico-formal e genérico-abstrata”;
3. Adequação sistemática – o tipo legal deve suscitar no pensamento jurídico modelos
normativo-racionais de compreensão sistemática e a interpretação permitida terá de
referir-se a um desses modelos, pois só assim o juízo decisório será controlável pela
ciência do Direito e pelas instituições judiciais.
Exclui-se assim a incoerência sistemática, de modo que a interpretação adotada para
o caso possa ser generalizada relativamente a outros casos sem prejuízo para a
coerência do sistema.
Crítica de Fernanda Palma: a definição da adequação sistemática não é um
problema de conhecimento dos valores estáticos do sistema, mas depende
de redefinições atualistas, que só estão ao alcance das instâncias de
discussão pública e parlamentar.
E é discutível que a máxima segurança não dependa diretamente do modelo
de consenso democrático.
4. Garantia institucional (de cumprimento do nullum crimen) – a garantia
jurisprudencial da unidade do Direito, que, segundo CASTANHEIRA NEVES,
compete ao Supremo Tribunal de Justiça.
Crítica de Fernanda Palma: a unidade do Direito que CASTANHEIRA
NEVES atribui ao Supremo Tribunal de Justiça é uma tarefa só realizável
através de um juízo de constitucionalidade e consequentemente própria
do controlo de constitucionalidade efetuado, em última instância, pelo
Tribunal Constitucional.

De acordo com as condições propostas por CASTANHEIRA NEVES, a interpretação


permitida será, assim, não só aquela que caiba no sentido logicamente possível das palavras da
lei, mas também a que revele os valores jurídicos que a lei pretende atingir e seja compatível com
outros valores do sistema e com a unidade do Direito definida pelas instâncias que a devem
assegurar.

→ Crítica feita por Fernanda Palma: esta perspetiva converte o controlo da reserva
de lei num controlo institucional-jurisprudencial da lei penal, ultrapassando a
racionalidade democrática que está na origem da proibição da analogia. Enquanto
apela à coerência sistemática e à unidade do Direito definida pela jurisprudência, o
autor remete a definição dos critérios de interpretação da lei penal para a decisão de
instâncias menos diretamente controladas pelos cidadãos.

63
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Por outro lado, as duas últimas condições formuladas por CASTANHEIRA NEVES
(sistemática e institucional) referem o problema da interpretação proibida a uma questão mais
geral, autónoma da “proibição de analogia”: a mera inconstitucionalidade da interpretação de
determinada norma. Na verdade, a aplicação de uma norma por analogia não se pode confundir
com uma sua interpretação contrária à unidade material do Direito que resulta dos princípios
constitucionais.
A possibilidade de distinguir o sentido comunicado pelo legislador na norma do plano da sua
validade é uma garantia básica de segurança jurídica, pois subtrai o âmbito do proibido aos
possíveis subjetivismos valorativos.
Mas a crítica à solução proposta por CASTANHEIRA NEVES contém, implicitamente, uma
divergência quanto ao ser da interpretação jurídica.
A interpretação é entendida por CASTANHEIRA NEVES como “momento da concreta e
problemático-decisória realização do Direito”, o que implica uma redefinição do seu objeto
tradicional – o texto jurídico. O objeto da interpretação deixará de ser o texto, para se tornar os
critérios jurídicos, apreensíveis nos textos legais, da decisão dos casos concretos.
Haverá, consequentemente, uma total relativização dos momentos tradicionais da
investigação hermenêutica sobre o conteúdo dos textos normativos. A interpretação passa a
assumir-se, exclusivamente, como decisão dos casos pela aplicação de critérios jurídicos
emanados da norma e do sistema em que esta se insere. Esta norma, porém, não se confunde com
a sua expressão, o seu texto, mas é necessariamente a norma de decisão do caso concreto.
A supressão, na interpretação, de um momento determinante (ou pré-determinante) de
compreensão do significado do texto normativo enfraquece o processo logico de fundamentação
da decisão jurídica. O respeito pelas garantias dos destinatários das normas não dispensa aquele
momento. Não é, aliás, desejável encontrar a norma do caso sem investigar, previamente, a norma
de um conjunto de casos hipotéticos a que mais evidentemente se aplica a norma abstrata.
A descoberta do sentido literal e comunicacional do texto jurídico corresponde à obtenção
dessa regra válida para os casos hipotéticos imediatamente apreensíveis, que possibilita a
igualdade de soluções.
Posição de Fernanda Palma: a divergência com o modelo de interpretação jurídica que
CASTANHEIRA NEVES propõe não implica, no entanto, a aceitação do modelo positivista
subsuntivo tradicional, mas apenas uma perspetiva menos subjetivista e menos normativista
sobre o conteúdo do raciocínio fundamentador em que consiste a interpretação das normas
jurídicas. Tal raciocínio fundamentador da interpretação não prescindirá nunca da relevância
do texto jurídico como ente autonomamente significativo, devido ao valor comunicativo e de
garantia que ele confere.
A transposição desta análise para a da interpretação permitida em Direito Penal – onde mais
se repercute a temática das garantias – implica que o sentido possível das palavras no texto
jurídico seja necessariamente fundamento da decisão e critério jurídico inultrapassável da
norma do caso. Haverá, portanto, uma vinculação relativa ao texto, em si mesmo, na apreensão
da norma.
Assim, em conclusão, para:

→ CASTANHEIRA NEVES, as ideias jurídicas não são moldadas pelas palavras, mas
meramente indiciadas por elas;

64
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

→ FERNANDA PALMA, as palavras são constitutivas das ideias (pensamos


por palavras e somos limitados ou contidos por elas nos textos que se
formulam).

A perspetiva do positivismo lógico-analítico prende-se com o predomínio que na


interpretação deve ser concedido ao texto jurídico.
A significação da linguagem constrói a sua validade com uma referência à realidade, que
não se confunde com as meras intenções privadas de quem fala ou com qualquer outra
subjetividade (mesmo que esta seja, afinal, a dos valores do sistema jurídico).
Mas mesmo que se devessem admitir “linguagens privadas”, isto é, linguagens criadas pelo
intérprete, no Direito Penal, o art. 1º do CP vedaria essa possibilidade. Há um sentido geral das
palavras que se impõe ao sentido meramente jurídico, restringindo-se o voo livre de critérios
jurídicos suscitados pelo caso.
Posição de Fernanda Palma: DEVE ATENDER-SE AO SENTIDO POSSÍVEL DO
TEXTO.

• Contudo, note-se que se trata do sentido do texto, ou das palavras no texto jurídico, e não
das palavras isoladamente.
• O sentido possível do texto, como limite da interpretação permitida, é o sentido
comunicacional percetível do mesmo68, e não qualquer sentido lógico não sustentável
pela linguagem social, pelo menos na sua forma simbólica.
• O sentido possível do texto delimita-se ainda pela adequação do texto à essência do
proibido de acordo com as valorações do sistema que a norma diretamente exprime
ou pretende exprimir.
Em conclusão, o texto jurídico, cujo significado seja determinável pela linguagem comum,
torna-se, nessa perspetiva, a condição essencialmente pré-determinante da interpretação
permitida em Direito Penal, a que se adicionam, sem dúvida, ainda outras condições. Estas
outras condições contribuem para a fixação do sentido jurídico definitivo do texto, para a
delimitação da intenção normativa que ele objetivamente revela, mas não são elas que
constituem o texto ou o produzem.

→ É, todavia, possível que esse sentido normativo em que a norma revela a expressão
concretizada do sistema seja contrário às normas ou princípios constitucionais.
Nesse caso estaremos perante uma interpretação proibida com fundamento na
Constituição, e não perante a proibição da analogia do art. 1º Código Penal.

A delimitação entre a interpretação secundum legem, permitida, e a pura interpretação contra


legem, proibida, é muito difícil de estabelecer em certos casos concretos.
No entanto, um contributo importante o esclarecimento desta questão foi dado pelo
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, NO AC. Nº 205/99, onde o TC entendeu que a fronteira
entre interpretação proibida e permitida passaria por saber se o resultado da interpretação se
equipararia a uma opção normativa entre outras concebíveis, em face do sistema legal.

68
Interpretação permitida é aquela que se adequa ao sentido possível das palavras e onde se admite uma
interpretação do sentido essencial do ilícito (do proibido).

65
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

➢ Com efeito, o critério da diferenciação depende da possibilidade de uma ponderação


constitutiva de soluções jurídicas pelo intérprete, com implicação na configuração
das consequências do crime, que compete ao legislador tomar e não ao intérprete.
➢ Se, pragmaticamente, a interpretação adquire uma função tipicamente legislativa,
estaremos no terreno da analogia, de uma norma indevidamente criada pelo juiz, no
caso contrário ainda permaneceremos no âmbito da interpretação.

A proibição de redução teleológica incriminadora das normas que delimitam a tipicidade


A redução teleológica exclui do âmbito da lei casos que a sua letra abrangeria, por tais casos
não deverem ser abrangidos pelos fins essenciais que a lei prossegue, embora ainda pudessem ser
referidos ao pensamento do legislador.
➢ Será incriminadora quando essa exclusão de casos se referir a normas que delimitam
negativamente a tipicidade.
A vinculação ao texto jurídico, como fator pré-determinante de interpretação, conduzirá a
uma rejeição da redução teleológica incriminadora, pois também corresponde ao sentido
possível das palavras a sua utilização no sentido comunicacional mais amplo, isto é, englobando
todas as possibilidades de entendimento.
Tem de se verificar se a redução teleológica amplifica as normas penais, tendo o mesmo
efeito da analogia. Se tiver este efeito também é proibida.
Ex: art. 389º CP. No nº1 há uma delimitação do tipo incriminador. No nº2 há uma indefinição
que pode ser questionada à luz do princípio da legalidade e a norma restringe o tipo incriminador
e há uma delimitação negativa do tipo.

Não proibição de analogia e de redução teleológica das normas permissivas


Quanto às normas permissivas, não é proibida necessariamente a analogia, na medida em
que tais normas não são descrições típicas das condutas permitidas, mas mero afloramento dos
princípios ou critérios gerais de solução de conflitos de interesses ou direitos. Nelas, o texto
jurídico não é pré-determinante como nas normas incriminadoras.
O recurso à analogia, quando justificado pela necessidade de concretizações diferentes das
legalmente previstas, a partir dos princípios reguladores dos conflitos de interesses ou direitos, é
permitido, mesmo que se ultrapasse o sentido possível das palavras.
Todavia, é fundamentalmente a analogia juris que é admissível, pois a norma permissiva, ao
particularizar uma intenção normativa mais vasta, concretiza critérios ou condições de
permissividade não abrangentes de outras condutas que merecem ser permitidas segundo o
mesmo princípio geral.
Por outro lado, a analogia juris, que envolve o apelo aos princípios fundamentadores da
justificação, ano será legítima naqueles casos em que a norma permissiva é de direito excecional
e não de direito geral.
Surge ainda a questão de saber se a redução teleológica de normas permissivas é legítima.
Também existe um efeito incriminador mediato derivado da redução teleológica de uma
norma permissiva. Mas esse efeito não está necessariamente subordinado às garantias que
justificam a proibição da analogia de normas incriminadoras.

66
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Cabe no art. 1º/3, ou seja, isto é aplicação analógica desfavorável ao arguido. Tem um efeito
incriminador e, portanto, cabe no art. 1º/3. Não podemos aplicar analogicamente normas
incriminadoras, porque estamos a alargar, além do que a AR diz, a incriminação das pessoas, mas
quando estamos a reduzir as normas permissivas também estamos a alargar o âmbito de
incriminação. Assim, de acordo com a Prof. Fernanda Palma, a redução teleológica é proibida.
A redução teleológica de uma norma permissiva gera o alargamento da incriminação. Reduz-
se a letra de forma a encontrar o espírito.
Limites à analogia:
-Regras excecionais (art. 11º CC);
-As causas de exclusão de ilicitude não admitem analogia legis. O que tem de se fazer é
reconstruir com base nos princípios do sistema a norma que o legislador teria criado.

Outras normas
Causas de exclusão da responsabilidade (causas de justificação, causas de exclusão de culpa 69)
• Não estão abrangidas pelo art. 1º/3 CP
• Cavaleiro Ferreira: causas de justificação de Direito Geral. Mas também há causas de justificação
excecionais (ex: art. 187º CP – excecionalmente autorizada para obter a prova de facto a um elenco
taxativo de crimes) relativamente às quais não é concebível a analogia porque é uma intervenção
em direitos alheios.
• Analogia violaria as premissas da segurança jurídica porque viola os princípios do sistema.
Argumento constitucional com base na CRP (questão de haver restrição de Direitos Fundamentais
pela analogia).

Em princípio qualquer analogia está proibida, mas em relação à legitima defesa deve ponderar-se se não se
deve criar outra figura de uma outra legitima defesa com pressupostos diferentes, mas restritivos.

MFP: Art. 32º CP deve fazer-se interpretação restritiva (ou redução teleológica) sobre a necessidade do
meio – é mais restritiva que a interpretação comum da necessidade do meio. A legitima defesa requer que
seja meio menos gravoso para o agressor, sem alternativa de meios, sustenta a própria necessidade de defesa
em si. Não se veda uma interpretação algo restritiva, eventualmente redução teleológica, desde que seja a
interpretação que coloca os requisitos da causa de justificação de acordo com o seu princípio fundamentador
– questão de ratio legis.

Causas de exclusão da culpa e atenuação da culpa


Há limites que não se podem ultrapassar, não pelo art. 1º/3, mas sim pelo fundamento das causas de
exclusão da culpa que tem dignidade constitucional. Tem de ser auxiliado por um parâmetro sistemático,
baseado no princípio da culpa, que permita abranger circunstâncias factuais que não estejam elencados.
Ex: mutilação genital feminina, por motivos culturais, não tem qualquer cabimento de compatibilidade com
a CRP.

69
Causas de justificação – legitima defesa, conflito deveres – há limitação de direitos; geralmente há
comportamento que preenche tipo legal de crime, mas, ao fazê-lo, está a proteger um outro bem jurídico
que é considerado prevalecente.
Causa de exclusão da responsabilidade – caso em que pessoa está em perigo (para a sua vida, integridade
física e etc.). Agente fica de tal maneira perturbado que não consegue reagir de outra forma do que lesar o
direito de outrem. Ex: alguém tem o filho raptado e assalta banco
Exclusão da culpa – não é problema de limitação de direitos mas menor censurabilidade da pessoa por ter
situações que impedia de se motivar ela norma

67
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

§ PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Princípio “nullum crimen, nulla poena sine lege” -


- Princípio de que não há crime nem pena sem lei;

§ A LEI PENAL TEM DE SER:

• Reserva de lei formal da AR: art. 165/1/c) da


Escrita CRP
• Proíbe-se a integração de lacunas por analogia
- art. 29/3.º CRP + art. 1/3.º CP

• Proíbe-se a interpretação extensiva das normas


Estrita penais incriminadoras “nullum crime nulla
poena sine lege strica" - art. 29/3.º CRP

• A lei que define crime tem de ser uma lei


Certa precisa "nullum crimen nula poena sine lege
certa. - Princípio da tipicidade.

• Proíbe-se a retroactividade da lei pena


Prévia “nullum crimen nulla poena sine lege previa" -
art. 29/1.º CRP + art. 1/1.º e art. 2/1.º CP

Sistematização:
A Constituição contém também um conjunto de normas que delimitam a aplicação no
tempo das leis penais e fixam o âmbito da sua interpretação (art. 29º CRP):

i) Art. 29º/1, proíbe-se a retroactividade das leis penais incriminadoras;


ii) Art. 29º/3, proíbe a integração de lacunas em Direito Penal por analogia;

68
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

iii) Art. 29º/4, impõe obrigatoriamente a retroactividade das leis penais mais
favoráveis ao agente;
iv) Art. 29º/5, consagra-se o princípio “ne bis in idem”, ou seja, o princípio de que
ninguém pode ser condenado mais do que uma vez pela prática do mesmo facto
§ Decorrência do princípio da legalidade - Princípio “nullum crimen, nulla poena sine lege”,
ou seja, princípio de que não há crime nem pena sem lei, extrai-se o seguinte:

✓ Não pode haver crime sem lei – art. 1/1.º CP


✓ A lei que define crime tem de ser uma lei precisa –“nullum crimen nula poena sine
lege certa”;
✓ Proíbe-se a retroactividade da lei pena –“nullum crimen nulla poena sine lege previa”;
✓ Proíbe-se a interpretação extensiva das normas penais incriminadoras –“nullum
crime nulla poena sine lege strica”;
✓ -Proíbe-se a integração de lacunas por analogia e impõe-se a retroactividade das leis
penais mais favoráveis - art. 1/3.º CP.

Fundamento do Princípio da Legalidade Penal:

1. Modo constitucional de realização da máxima segurança individual;


2. Ideia Central: é a garantia da segurança dos indivíduos frente ao Estado –
atrvés da criação pelos órgãos de representação democrática;
3. Proteção das expetativas dos indivíduos e indicação do ilícito criminal: só
pode ser punido com pena prevista em lei anterior ao momento da prática do
facto.

§ NORMAS PENAIS EM BRANCO:

Conceito: cisão entre a norma de comportamento e a norma que contém a ameaça penal;

✓ Típica cisão destas normas entre a norma de comportamento, com origem em regra
noutras leis e até noutros ordenamentos que não o penal e a norma que contém a ameaça
penal.

✓ A norma diferente da que contém a ameaça penal com: a determinação dos pressupostos
de aplicação da norma penal feita, total ou parcialmente por outra instância
normativa;

69
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Divergência:

1. Existem autores que numa perspetiva restritiva: consideram só caber com propriedade
a qualificação de norma penal em branco: aquela que remete para uma disposição de nível
inferior (ex: regulamento) – e não aquela que remete para um preceito contido na lei
penal;
➢ Posição defendida pelo Tribunal da Relação de Évora (14/4/2001), Prof. JORGE MIRANDA e
MIGUEL NUNO PEDROSA MALHADO.

2. Outros autores reservam a qualificação apenas para a norma penal que remete para
o ordenamento diferente do penal de nível igual ou inferior achando-se aí a norma
parte da norma de comportamento;
➢ Posição defendida pelo Prof. OLIVEIRA ASCENSÃO:

3. Posição do Prof. FIGUEIREDO DIAS:


No seguimento do Prof. EDUARDO CORREIA: pronunciou-se no sentido de que a referida cisão
entre a norma de comportamento e a norma de ameaça penal não acarreta necessariamente a
conclusão de que as normas penais em branco enfermem de inconstitucionalidade. (aliás este é o
principal ponto de discussão: saber se as normas penais em branco são constitucionais ou não
são).

- Pois nada na Constituição obriga à conexão da mesma lei ou no mesmo preceito legal, da
conduta proibida com a pena que lhe corresponde.

PROBLEMA: COERÊNCIA ENTRE A NORMA PENAL EM BRANCO E O PRINCÍPIO DA


LEGALIDADE;

1ª Dificuldade: A reserva de lei da AR.

Prende-se com o facto do princípio da legalidade criminal exigir, além do mais, que a
matéria criminal seja da competência da AR, o que a propósito das normas penais em branco,
pode levantar problemas em virtude de neste caso, os critérios da incriminação serem vistos à luz
do ordenamento extra penal (máxime administrativo) onde tal competência reservada da AR raras
vezes se verifica.

Prof. FIGUEIREDO DIAS: contudo o Professor refere que é consittucional, basta que ele
seja válido por ter tido lugar, em virtude de uma autorização legal/legislativa por parte da AR.

70
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Autor RUI PATRÍCIO – discorda, as normas penais em branco encontram obstáculo,


porventura inultrapassável precisamente na reserva de lei estabelecida na CRP, reserva que
impede as normas penais em branco:

i) Quer na sua vertente de reserva de controlo da AR, ou do Governo com


autorização;
ii) Quer pela sua vertente de segurança: porquanto as normas penais devem
configurar o ilícito como lesão dos bens jurídicos, a partir de normas de valoração
– os elementos essenciais para a compreensão da conduta proibida e para o
controlo democrático da incriminação – os quais devem ser totalmente cobertos
pela reserva de lei.

2ª Dificuldade: Princípio da tipicidade;

✓ Compatibilidade das normas penais em branco com o princípio da tipicidade


(corolário da reserva de lei e da proibição da retroatividade): sendo que o princípio da
legalidade exige antes demais que a lei seja:

i) Certa;
ii) Precisa;
iii) Determinável;

Permitindo assim a previsão e segurança dos destinatários do seu comando.

Atenção: Algumas vezes, a norma penal em branco não assegura as necessárias


características da clareza, previsão e determinabilidade: muitas vezes a norma de ameaça é de
tal modo geral, que poderá acontecer encontrar-se normas duplamente em branco: com a norma
de ameaça a remeter para um outra norma de comportamento que por sua vez remete para
outra:

Esta questão pode redundar também num ferimento do princípio da culpa, pois não
orientará suficientemente os destinatários das normas quanto às condutas que são efetivamente
proibidas – o agente “médio” precisa de conhecer a proibição legal PARA ACEDER À
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE, da sua conduta, consciência que constitui o primeiro pilar
sobre o qual assenta o juízo de culpa;

71
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

§ Jurisprudência
1. Acórdão TC n.º 427/95 de 6 de Julho de 1995 | Acórdão dos Aditivos:
Questões: O Tribunal Constitucional não julga inconstitucional a norma constante do
art. 4/1 DL n.º 192/89 de 8 de junho, relativa aos aditivos alimentares por se considerar
que a remissão em causa apenas executa o conteúdo da norma remissiva, NÃO
FORMULANDO um critério autónomo de ilicitude.

Esta norma suscita a violação do princípio da legalidade (art. 29.º /1 CRP e art.
165/1/c) CRP):

1. Não há violação do princípio da legalidade porque a norma remissiva não é uma


norma em branco que delegue na portaria o poder de definir o conteúdo da
incriminação;

2. Os critérios de ilícito penal (desvalor da ação + desvalor do resultado) e a


identificação do bem jurídico tutelado encontram-se nas normas: 24/1/a) +
82/2/a) do DL 28/84 (aprovado mediante autorização legislativa da AR).

3. A norma do art. 4/1.º remete por razões técnicas compreensíveis para uma
portaria, A CONCRETRIZAÇÃO dos critérios de admissibilidade de aditivos
alimentares. MAS não é na portaria que está previsto o conteúdo da permissão e
muito menos da proibição que aquela delimita. – Consiste apenas na
aplicação de conhecimentos técnicos mutáveis.
- Este acórdão, embora partindo da questão da reserva de lei dá um suporte importante
para a compreensão das discussão em torno das normas penais em branco: considerando
admissível a remissão em matéria penal, quando a remissão é feita para instâncias
normativas que não estabeleceram nenhum critério autónomo de ilicitude, apenas
concretizando o critério legal através da aplicação de conhecimentos técnicos.

Pedra de toque: Quando a norma incriminadora remissiva (norma de comportamento)


não deixe a descoberto nenhum elemento essencial – para compreensão da conduta
proibida ou para o controlo da incriminação, a norma não é inconstitucional.

72
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

INTERPRETAÇÃO ANALOGIA NO DIREITO PENAL.

I. ENQUADRAMENTO TEÓRICO (MAS IMPORTANTE).

✓ Diz-se que o Direito penal não tem lacunas, por isso diz-se que tem carácter
fragmentário, é uma ordem jurídica completa ou fechada. Trata-se, pois, de uma
proibição de integração da lei penal.

✓ O Fundamento especial da proibição de integração é, 'além do mesmo


princípio democrático e representativo que fundamenta a reserva de lei, a
consideração de política criminal de que o julgamento a partir e sob a impressão
emocional do caso concreto não garante a distância - e racionalidade que a
apreciação abstracta pelo legislador facilita.

✓ A proibição da analogia (nulla poena sine lege stricta), como modo de


integração de lacunas, é uma mera consequência. É claro que outros métodos
de integração de lacunas, como o recurso à criação livre do direito «dentro do
espírito do sistema» (art. 10º, nº 2 do Código Civil) , aos princípios gerais de
direito ou ao direito natural, são proibidos a fortiori.

✓ Nada disto veda a possibilidade de raciocínios por analogia na aplicação da lei


penal. É um raciocínio por analogia aquele em que, da semelhança entre certo
facto a considerar e outro facto previsto na lei, se deduz que valem para o
primeiro as consequências que a lei estatui para o segundo. Ora nenhum
trabalho interpretativo teleológico, que atenda aos fins e ao sentido do preceito e
que admita um progresso no conhecimento, dos casos mais evidentemente
previstos para os mais duvidosos, se pode passar de raciocínios por analogia,
baseados na semelhança entre os casos a considerar e outros casos reconhecida-
mente abrangidos pelo preceito. Tais raciocínios são apenas um meio de
interpretação.

73
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

II. O PROBLEMA (PATOLOGIA) DA INTERPRETAÇÃO DA LEI PENAL;

✓ O DIREITO PENAL não é uma caixa de onde o juiz tira a norma e aplica no caso
concreto, é mais como uma bússola que vai orientar o aplicador da norma em cada
caso concreto. (Brito Neves <3).

✓ Uma outra concretização da reserva de lei verifica-se na própria interpretação


de lei penal: o art. 1/3.º do CP proíbe a analogia quanto às normas de que
resulta a qualificação do facto como crime.

✓ O fundamento desta proibição reside igualmente na exclusividade da elaboração


da lei penal pelo Parlamento ou do Governo com autorização. – Se os tribunais
pudessem utilizar a analogia, formulariam normas incriminadoras que deixariam
de ser objeto de controlo democrático.
✓ O problema que tem surgido desdobra-se em três perguntas:

i) O que distingue a interpretação extensiva da analogia?

A interpretação extensiva baseia-se no plano teórico, na possibilidade de


referir um certo caso não expressamente considerado pela letra da lei ao
seu pensamento. Diferencia-se da analogia na medida em que o caso real
é meramente semelhante aos casos previstos pela lei, sem no entanto ter
sido pensado por ela.
Assim quando o legislador se tenha apenas esquecido imperfeitamente da
intenção de regular o caso: haverá interpretação extensiva:

Por exemplo: quando o legislador se refere ao “veneno” como meio de


perpetração do homicídio (art. 132/2/i) do CP) pretende abranger não só as
substâncias designadas como tal mas também aquelas que, em concreto,
produzam os efeitos tóxicos próprios do veneno, como a ingerência dolosa de
açúcar num diabético;

A letra da lei: abrangerá menos do que o pensamento do legislador quis


expressar: pois a ratio do art. 132/2/i) do CP é agravar a responsabilidade penal

74
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

(porque é homicídio qualificado :o ), com o fundamento na indefensibilidade da


vítima devido à ministração de substância especialmente perigosa para a vida
humana.

ii) A interpretação extensiva é proibida? 70

I. TEM-SE DE DIVIDIR AS NORMAS PENAIS EM DOIS GRUPOS:

•Deve entender-se por normas incriminadoras aquelas que


1. Normas criam ou agravam a responsabilidade jurídico-penal do agente.
São aquelas normas que de alguma forma contêm a criação de
incriminadoras crimes, ou que contêm agravamentos dos pressupostos de
punibilidade ou de punição.

•Normas favoráveis, são aquelas normas que visam diminuir a


responsabilidade jurídico-penal do agente, ou atenuá-la,
tornando mais suaves os pressupostos da punibilidade ou da
2. Normas favoráveis punição.

✓ Proíbe-se a interpretação extensiva das normas penais incriminadoras, de


outra forma estar-se-ia a violar o princípio da legalidade na sua
decorrência “nullum crimen nulla poena sine lege stricta”, ou seja, de que as
normas penais devem ser estritamente aplicadas;
✓ É admissível a interpretação restritiva;
✓ proíbe-se a aplicação analógica no âmbito das normas penais incriminadoras,
quer por analogia legis, quer por analogia iuris.

70
JOSÉ SOUSA E BRITO: entende que a interpretação extensiva é inconstitucional pois sustenta que entre o
sentido possível das palavras e o mínimo de correspondência legal há ainda um espaço a ser percorrido
incompatível com o fundamento de segurança jurídica.

75
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Normas penais favoráveis

✓ Proíbe-se a interpretação restritiva de normas penais favoráveis; admite-se a


interpretação extensiva; relativamente ao problema da analogia:
1) Alguns autores – TERESA BELEZA, etc., admitem a analogia, nas normas penais
favoráveis;

2) Outros autores – CAVALEIRO FERREIRA – a analogia em Direito Penal, quer de


normas favoráveis, quer de normas incriminadoras, está vedada;

3) Outros ainda – FREDERICO DA COSTA PINTO – entende que no âmbito das normas
favoráveis a analogia está de todo excluída. Em certos casos pode-se admitir a
interpretação extensiva de normas favoráveis, mas não é possível o recurso à analogia no
âmbito de normas favoráveis.

SISTEMATIZAÇÃO:

As normas favoráveis são aquelas que visam, ou que traduzem para o agente,
uma posição mais benéfica porque:

✓ Ou excluem a ilicitude de um facto típico e portanto justificam o facto e


tornam-no ilícito, tornando-o ilícito, excluem a responsabilidade penal, porque
não há responsabilidade penal por factos lícitos.
✓ Ou tornam-se mais brandos, mais suaves, os pressupostos da punibilidade e da
punição.
✓ Pode-se fazer interpretação extensiva, mas com limites.

Mas já não se aceita que se faça interpretação restritiva de normas penais


favoráveis, isto porque, a ser possível, diminuir-se-ia o campo de aplicabilidade destas
normas favoráveis, o que significa aumentar o campo de punibilidade.

76
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

§ Quanto à analogia:

✓ Existem várias posições. Uma (Teresa Beleza) admite-se a integração de lacunas


no âmbito de normas penais favoráveis.

✓ Outra posição é a de que se admite por princípio a integração de lacunas por


analogia no âmbito de normas penais favoráveis, desde que essa analogia não se
venha a traduzir num agravamento da posição de terceiros, por ele ter de
suportar na sua esfera jurídica efeitos lesivos ou por ter auto-limitado o seu direito
de defesa.

Normas incriminadoras

✓ A interpretação extensiva em normas incriminadoras não é possível. Só é


possível, no âmbito de normas incriminadoras uma interpretação declarativa lata.
✓ Tudo aquilo que a exceda e que vise harmonizar a letra da lei à sua razão de
ser, à sua “ratio”, se ultrapassar este sentido literal máximo possível já se está a
fazer interpretação extensiva. Esta não deve ser admitida em Direito Penal, porque
se entende que por força do princípio da legalidade, na sua vertente garantia, se
exige que a lei penal seja uma lei penal expressa.
✓ Assim a norma deve dizer expressamente quais são as condutas, activas ou
omissivas que, a serem ou não adoptadas, constituem objecto de incriminação
em sede de Direito Penal.
✓ No entanto admite-se a interpretação restritiva.
➢ Afirma-se rotundamente que não é possível integrar lacunas por analogia.
Isto é, perante um caso omisso que o legislador penal ano tipificou, não classificou
como crime, o juiz não pode, ao contrário de que acontece no domínio do direito
civil regular esse caso omisso, nem recorrendo à analogia legis, nem à analogia
iuris, nem tão pouco criar a norma de harmonia com o espírito do sistema. O juiz
pura e simplesmente julga, absolvendo.

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Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

II. DISTINÇÃO ENTRE NORMAS POSITIVAS E NORMAS NEGATIVAS:


✓ Positivas: São aquelas que definem pela positiva os pressupostos da
responsabilidade criminal, estabelecendo pressupostos positivos, p. ex. as normas
da parte especial do código.

Permite-se a interpretação extensiva (ex. açúcar = veneno para diabético,


embora o açúcar não seja um veneno)
Proíbe-se a analogia;

✓ Negativas: prevêem causas de exclusão da responsabilidade criminal, situações


em que ou não há crime ou que o mesmo é atenuado. Ex. Estado de necessidade,
legitima defesa, acção directa.

Permite-se a analogia;
Proíbe-se a interpretação e a integração de lacunas;

➢ PROF. FERNANDA PALMA: Não é proibida a analogia nas normas


permissivas/negativas- na medida em que tais normas não são descrições
típicas das condutas proibidas, mas o afloramento dos princípios e critérios
gerais de soluções de conflitos de interesses ou direitos. Nelas o texto jurídico não
é pré-determinante como nas normas incriminadoras;

➢ Poderá ser admitido um fundamento justificador para a chamda legítima defesa


preventiva: com base no princípio geral da defesa previsto no art. 32.º do CP, no
caso da permissão de uma legítima defesa preventiva não podem haver por
exemplo as possibilidades amplíssimas de lesão dos bens do agressor permitidas
no art. 32.º do CP.

Advertência: Só é permitida a referida analogia iuris se não estivermos perante uma


norma excecional. As autorizações legais contidas no Código de Processo Penal,
destinadas a assegurar a obtenção da prova com vista à satisfação do princípio da verdade
material não são suscetíveis de alargamento a situações análogos na medida em que são
intervenções excecionais na liberdade dos indivíduos baseadas na ponderação entre a

78
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

lesão imediata de um bem e a mera possibilidade de realização futura de justiça no caso


da suspeita se vir a confirmar:

iii) Quais os critérios gerais que delimitam o permitido e o proibido na


interpretação do direito penal – e como se relacionam com ele as fórmulas
da interpretação extensiva e da redução teleológica?

1. PROF. CASTANHEIRA NEVES: propõe quatro condições de validade como critério


distintivo entre a interpretação proibida e a permitida em Direito Penal:

A) Condição Legal;

- Necessidade de o concreto juízo incriminatório ter fundamento efetivo


numa norma penal positiva;

B) Determinação Dogmática dos fins; - elemento teleológico.


C) Adequação sistemática;
D) Uma garantia de cumprimento do “nullum crimen”.

A INTERPRETAÇÃO PERMITIDA PARA O PROF. CASTANHEIRA NEVES: será assim não só


aquela que caiba no sentido logicamente possível das palavras da lei mas também a que
revele os valores jurídicos que a lei pretende atingir, e seja compatível com outros valores
do sistema e com a unidade do Direito definida pelas instâncias que a devem assegurar.

ACÓRDÃO TO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL N. 205/99

- Entendeu que a fronteira entre interpretação proibida e permitida passaria por saber
se o resultado da interpretação se equiparia a uma opção normativa entre outras
concebíveis em face ao sistema legal. Como refere o Acórdão citado o critério de
diferenciação depende da possibilidade de uma ponderação constitutiva de soluções
jurídicas pelo intérprete com implicação na configuração das consequências do crime,
que compete ao legislador tomar e não ao interprete.

79
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

§ PROIBIÇÃO DE REDUÇÃO TELEOLÓGICA INCRIMINADORA DAS NORMAS QUE LIMITAM


A TIPICIDADE:

A redução teleológica exclui o Âmbito da lei casos em que a sua letra abrangeria, por tais
casos não deverem ser abrangidos pelos fins essenciais que a lei prossegue: embora que
ainda pudessem ser referidos ao pensamento do legislador:

✓ A redução teleológica será incriminadora quando essa exclusão de casos se referir


a normas que delimitam negativamente a tipicidade.

✓ A vinculação ao texto jurídico como fator pré-determinante da interpretação


conduzirá a sua rejeição da redução teleológica incriminadora, pois também
corresponde ao sentido possível das palavras a sua utilização no sentido
comunicacional mais amplo englobando todas as possibilidades de entendimento.

✓ Não é proibida a redução teleológica nas normas permissivas: legítima defesa


(imaginem o caso da legítima defesa ser preventiva e não atual, não se
esqueçam que de facto a legítima defesa e um dos seus pressupostos é a
atualidade, mas há casos em que se admite esta legítima defesa preventiva,
pense-se do caso do terrorismo, quando a polícia atua antes do terrorista explodir
a bomba: portanto aqui é possível uma analogia permitida, mais favorável)

80
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Aplicação da Lei no Tempo


nulla poena, nullum crimen sine lege previa
Grande relevância prática devido a um legislador impulsivo, frenético e errático em matéria
penal, havendo muitas alterações ao CP por ano, o que nos coloca problemas sobre a aplicação
da lei no tempo, que tem de respeitar o princípio da legalidade.
Tem de se ter em conta uma janela temporas: as leis que existiam no momento em que o
facto é praticado (primeira lei que nos interessa) e as leis que existem no momento do
cumprimento integral da pena (termo final que nos interessa)71. A última lei que em tese pode ser
relevante para nós é a que está em vigor no último dia do cumprimento da pena. Dentro desta
janela temporal, podem entrar em vigor várias leis. Estas interessam todas.

RETROATIVIDADE: aplica-se a lei atual a factos anteriores.


ULTRA-ATIVIDADE: aplica-se a lei depois de estar revogada.
➢ Conceitos relativos, compreensíveis por referência a um determinado marco no tempo.
➢ Qual é o momento no tempo, por remissão ao qual algo será retroativo ou não?
o Momento da prática do facto. Em matéria de aplicação da lei no tempo,
começa-se sempre por determinar o momento da prática do facto.
o Critério do art. 3º CP – diz que o momento da pratica do facto determina-se
pelo momento em que o agente atuou, não pelo momento do resultado.
Só há homicídio quando há morte. O homicídio consuma-se quando há morto. Até lá só
há tentativa de homicídio. Mas em que momento se verificou o momento da pratica do facto?
Foi quando A deu o tiro a B, porque o que interessa é a atuação, nunca é o resultado.

É assim porque:

 Segurança jurídica;
 Garantia do princípio da culpa.
Aquilo que consigo controlar é o comportamento; o resultado é aleatório. Não é possível
controlar o resultado. Portanto, é no momento em que se atua que se tem condições para
confrontar o comportamento criminoso com a lei no momento em que atuam, porque o
resultado não depende do criminoso. Entretanto a lei pode já ter mudado várias vezes. Para
evitar a aleatoriedade da verificação do resultado e garantir a segurança jurídica e a garantia do
principio da culpa, o que releva é sempre o momento em que o agente atua, não o momento do
resultado.
Contudo, é complicado, porque:

 Há crimes, embora sendo instantâneos (que se consumam num momento


especifico no tempo), não quer dizer que a atuação tenha sido num só momento;
podem ser de execução faseada (ex: envenenamento). Em que momento é a pratica
do facto – crime instantâneo em que a execução é faseada.

 Há crimes que são permanentes (quando durante certo tempo se realiza uma
conduta criminosa), que estão permanentemente a ser executados ou
consumados, entrando várias leis em vigor durante essa conduta. São um estado

71
Não confundir cumprimento integral da pena e trânsito em julgado. Trânsito em julgado acontece antes
de começar a cumprir a pena. Transitou em julgado, começa a cumprir-se a pena. Só no fim do
cumprimento da pena temos o termo final que nos interessa.

81
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

de ilicitude que permanece por decisão constante do arguido (ex: condução sobre
o efeito de álcool entre as 23h e as 2h e a lei muda às 24h). O momento da conduta
é das 23h às 2h. Em todo este momento o agente realizou a conduta considerada
criminosa. Temos um crime permanente. V. art. 119º do CP.

 Há crimes continuados (pluralidade de crimes que são tratados pelo Direito


como se fossem apenas um) – art. 30º/2 e 3 do CP. O direito trata vários crimes
como se fossem apenas um, porque existe um quadro de solicitação externa que
diminui sensivelmente a culpa do agente. Todos foram praticados no mesmo
contexto em que o agente estava a vivenciar uma situação em que havia qualquer
coisa na realidade externa que o puxava para a prática do crime, que diminuía as
suas resistências à pratica do crime. Mas não é um quadro qualquer que o chama
para o crime: é um tal que qualquer pessoa olhasse para ele e dissesse que
diminuía a culpa do agente.

A aplicação do critério a vários casos práticos pode revelar-se difícil. Em todos estes
casos temos de aplicar o critério do art. 3º do CP.
Determinado o momento da pratica do facto, que é o momento em que o agente atuou, é preciso
ver qual é a lei aplicável. A maior parte das vezes, o que acontece é o seguinte: há o facto, no dia 10, está
em vigor a lei 1, um ano depois há o julgamento e continua em vigor a lei 1. Contudo, pode acontecer várias
coisas:

• O facto é de homicídio, disparou a arma dia 10 e é punido com 8 a 16 anos. No dia 15 entra
em vigor a lei 2, que aumenta o homicídio para 20 anos. No dia 20, o juiz tem de decidir se
aplica a lei um ou a lei 2. Neste caso, o que temos de dizer é que existe um principio
fundamental no nosso ordenamento: o principio da irretroatividade desfavorável da lei penal.
Qualquer lei posterior ao momento da pratica do facto, se for desfavorável (e aqui é, porque
aumenta a pena, não se aplica retroativamente, ou seja, aplicar a lei posterior a um facto
anterior).
• Nestes casos, o que se aplica é a lei do momento da prática do facto. Está previsto no art. 1º/1
e 2º/1 CP – em principio aplica-se a lei do momento da pratica do facto, o que significa que
leis penais desfavoráveis não se podem aplicar retroativamente. A retroatividade
favorável é resgatada pelo 2º/2 e o 2º/4 CP e 29º/4 CRP. É assim devido à segurança
jurídica – para impedir que a pessoa pudesse ser alvo de um poder arbitrário do Estado;
a pessoa não pode depender do bom ou mau humor do decisor político – e ao princípio da
culpa – posso ser censurado por, tendo condições para conhecer a lei e puder confrontar o meu
crime com a lei, mas não posso ser censurado por um alei que só entrou em vigor depois da
prática do meu facto. conhecendo esta lei, sabendo o que esta lei punia e proibia, ainda assim
ter decidido violar essa lei.
No entanto, pode acontecer que a pena posterior diminua. Neste caso, aplica-se a lei 2, porque existe um
principio de retroação de lei posterior mais favorável. O que se aplica é a lei 2.

 Há um erro muito comum que é o de dizer que se aplica a lei 2 porque é a lei mais favorável. É
absurdo dizer que se aplica uma lei porque ela é a mais favorável. O que existe é o principio da
aplicação retroativa da lei penal posterior mais favorável. Quando uma lei posterior for mais
favorável, ela aplica-se retroativamente. Mas não basta ser mais favorável (art. 2º/2 – situação de
descriminalização - e 2º/4 – o crime continua a existir, mas é atenuado).
 Qual é o fundamento? O fundamento aqui é principio da necessidade e da igualdade. Da
necessidade, a partir de hoje 5 anos é suficiente para proteger aquela situação. A partir deste
momento, mais nenhum tribunal pode aplicar uma pena que seja superior a 5 anos, devido ao art.
18º/2 CRP. Estes 5 anos passam a valer para todos os factos posteriores e, retroativamente,
aplicam-se aos factos anteriores. O principio da igualdade, porque, no caso em que a lei 2
descriminalizava o que antes era crime, se a lei 2 não se aplicasse retroativamente e o senhor x
não fosse libertado, ele, atras das grades, ia estar a ver as outras pessoas a fazer aquilo que ele fez

82
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

e a não serem punidas. Isto em termos de igualdade introduzia uma perturbação inaceitável no
sistema.
A aplicação da lei penal no tempo: a proibição da retroatividade in pejus
O princípio geral da não retroatividade das leis assume no Direito Penal a natureza de
uma proibição constitucional de retroatividade das normas penais que criem ou agravem a
responsabilidade penal.
Os fundamentos de tal proibição são:

 Quanto às normas incriminadoras, os princípios da:


→ Culpa – a possibilidade de uma conduta ser retroativamente incriminada
contradiria uma responsabilidade penal fundamentada na livre
determinação do agente pela norma jurídica;
→ Segurança jurídica – tal possibilidade levaria ainda a destruir a garantia
das expectativas dos cidadãos quanto ao que é proibido.
 Quanto às sanções criminais, a retroatividade afetará sobretudo a segurança,
permitindo abusos de poder, pela alteração a todo o tempo possível das espécies e
limites das sanções.
A proibição de retroatividade corresponde, assim, à garantia de que o exercício do poder
punitivo seja exercido de acordo com critérios e limites conhecidos antecipadamente e não
alteráveis por força de um interesse particular ou para resolver um caso concreto antes não
previsto.
Desta fundamentação da proibição da retroatividade resulta o seu âmbito no Direito Penal. São, deste
modo, contempladas com a proibição da retroatividade:

 As incriminações;
 As agravações da responsabilidade criminal;
 As penas;
 Os pressupostos das medidas de segurança;
 As medidas de segurança;
 Todas as normas processuais que afetem diretamente direitos, liberdades e garantias.
Figueiredo Dias: A proibição de retroatividade funciona apenas a favor do agente, não contra
ele. Por isso, a proibição vale relativamente a todos os elementos de punibilidade, à limitação de
causas de justificação, de exclusão ou de diminuição da culpa e às consequências jurídicas do
crime (penas, medidas de segurança, consequências penais).

Pressupostos da retroatividade: a interpretação jurídica e o problema do conceito de


retroatividade
A retroatividade só existe se o regime previsto numa lei se puder referir a um determinado
tipo de situação anterior à sua vigência. Cf. o art. 3º CP, tal situação é referida ao momento da
prática da ação criminosa ou, no caso de omissão, no momento em que agente devia ter atuado.


Assim, se a lei em causa for anterior à produção do resultado típico, mas posterior à
prática da ação prevista, já haverá retroatividade.
• A retroatividade pressupõe que a lei penal se pretende referir, segundo a
interpretação jurídica, a certos factos anteriores.
PEDRO CAEIRO
Irretroatividade da lei penal não é um princípio geral: é um regime particular a que estão sujeitas
as normas de certo conteúdo (desfavoráveis ao agente).

83
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

• A eficácia de qualquer lei está sujeita ao princípio segundo o qual uma lei não pode
aplicar-se a factos que com ela não se acham em contacto.
• Princípio da não-transconexão – apreciação de factos de acordo com as regras que
valiam no momento da produção dos mesmos – é princípio geral de direito e só cede
perante casos excecionais, em homenagem a outros valores que o legislador
constitucional decidiu sobrepor-lhe.
o Isto leva a que no Direito Penal haja uma proibição da retroatividade in pejus e
imposição de retroatividade in melius.
• A este princípio geral, acresce o princípio da legalidade, que proíbe a aplicação retroativa
de lei penal desfavorável.

Proibição da retroatividade in pejus coincide com o princípio da não-transconexão e dá


dignidade constitucional à proibição da aplicação retroativa da lei nova (desfavorável) a
factos que não estiveram em contacto com ela.
➢ Mas, esta proibição, em certos casos, pode funcionar como regra de conflito e implicar
desvios ao princípio da não-transconexão, conferindo eficácia ultra-ativa imprópria à lei
antiga para regular factos que se produzem parcialmente após a cessação da sua vigência.

Terceiro princípio que regula a eficácia temporal da lei penal é o princípio do tratamento mais
favorável do agente, que tem como corolário principal a imposição de aplicação retroativa
da lei mais favorável – art. 29º/4 CRP e 2º/2 e 4 CP – é pedra angular de todo o sistema

• Tem uma génese e fundamento especificamente político-criminal de ausência de


exigências de prevenção que justifiquem a persistência da aplicação ao cado da lei mais
severa que vigorava no momento da prática do facto, que em nada se relaciona com o
princípio da proibição da retroatividade in pejus, cuja génese e fundamento é político-
jurídico de defesa da liberdade dos cidadãos contra o arbítrio do Estado.

MEDIDAS DE SEGURANÇA
Art. 29º/1 e 3 CRP + art. 2º CP – não traz dificuldades nenhumas quanto à conclusão que
tanto as medidas de segurança como os seus pressupostos (factos típicos de que decorre o indício
da perigosidade do agente) também estão sujeitas à proibição da retroatividade.
O fundamento da proibição de retroatividade não é essencialmente a culpa, mas sim a
segurança dos destinatários do Direito, própria de um Estado de Direito democrático. Quer a
alteração agravante de uma medida de segurança, quer a sua criação, afetam a segurança, na
medida em que permitam uma intervenção sem controlo do poder punitivo na liberdade dos
cidadãos.

→ Prof. Fernanda Palma: a ausência de limites à intervenção do Estado, mesmo que


em nome da prevenção e da política criminal, contendem com a segurança, que é
fundamento da proibição de retroatividade das medidas de segurança.
Também a tese defendida na doutrina portuguesa por Maria João Antunes (e apoiada
pelo Prof. Figueiredo Dias72), segundo a qual a proibição de retroatividade nas
medidas de segurança seria excetuada no momento da formulação pelo Tribunal do

72
FD: Também relativamente às medidas de segurança se fazem sentir exigências de proteção dos
direitos, liberdades e garantias das pessoas atingidas que substancialmente se identificam com as que se
fazem sentir ao nível das penas.

84
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

juízo de perigosidade “aplicando-se a lei vigente no momento da formulação do juízo


de perigosidade” é uma redução teleológica do art. 2º/1 CP, contra o arguido.

 Com efeito, a chamada tese diferenciadora excluiria, na prática, da


proibição de retroatividade os factos reveladores da perigosidade que
justificam a medida de segurança, com o argumento de que os referidos
pressupostos são essenciais para escolher a medida adequada à perigosidade
do agente no momento em que é condenado – proibição da retroatividade
apenas referente à medida em si e não aos pressupostos.
 Crítica: quebrar-se-ia a conexão dos indícios de perigosidade como
pressuposto que é a prática de um facto típico e ilícito, admitindo-se,
desse modo, uma medida de segurança para uma perigosidade desligada
do facto típico e ilícito.
Taipa de Carvalho
O princípio da aplicação da lei mais favorável vale igualmente para as medidas de segurança:
➢ proibição da retroatividade da lei criminalizadora do facto-pressuposto73 da declaração
de perigosidade do delinquente e da lei que estabeleça uma medida de segurança mais
grave, e imposição da retroatividade da lei descriminalizadora do facto-pressuposto e da
lei que estabeleça uma medida de segurança mais favorável.

Processo Penal
FD: princípio jurídico-constitucional da legalidade estende-se a toda a repressão penal e
abrange, nesta medida, o próprio direito processual penal
➢ Princípios reguladores da aplicação da lei penal no tempo e as formas da sua articulação
valem para toda a lei penal, independentemente da sua natureza substantiva ou
processual.

Mas,
Do art. 5º/1 CPP, resulta a aplicabilidade imediata da nova lei processual nova.
O art.5º/2 limita a aplicabilidade imediata, relativamente “aos processos iniciados
anteriormente à sua vigência”, nos casos de “agravamento sensível da situação processual do
arguido” e de “quebra de harmonia e unidade de vários atos do processo”.
Há, assim, limites à aplicabilidade imediata resultantes diretamente do princípio
constitucional da proibição da retroatividade e do próprio subprincípio contido no art. 5º/2.

 Limites à aplicabilidade imediata resultantes do próprio subprincípio contido no art.


5º/2 CPP
Os limites previstos no art. 5º/2 referem-se nitidamente a normas processuais das quais
derive um efeito essencial para a posição processual do arguido na relação jurídica punitiva,

73
Critérios legais de aferição da perigosidade do agente são os que se aplicam no momento do
julgamento.
Preenchimento deste pressuposto interpreta-se em dois sentidos: pressuposto-facto (prática de tipos
criminais – proibição de retroatividade); critérios de atribuição da perigosidade (que pode ser alterado
pela lei nova, sendo ela que, estando em vigor no momento do julgamento é a que se aplica)

85
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

na sua fase processual. São normas que, embora não afetando a existência da relação jurídica
punitiva nem a modificando substancialmente, atingem a possibilidade de o comportamento do
arguido realizar os direitos que lhe são reconhecidas no processo penal, como por exemplo o
direito de defesa.

 Limites à aplicabilidade imediata resultantes diretamente do princípio constitucional


da proibição da retroatividade
O primeiro tipo de limites exclui a aplicabilidade imediata de todas as normas do
Processo Penal que não se possam caraterizar como puras normas processuais, mas que
sejam de natureza substantiva penal numa conexão fundamentadora da responsabilidade
do arguido.

• Aplicabilidade imediata justifica-se, apenas, relativamente a normas que regulem o modo


de proceder dos tribunais na definição concreta do Direito Penal e não já relativamente a
normas que se refiram às condições de procedibilidade ou causas de extinção do
procedimento criminal, como acontece com as normas que regulam os prazos
prescricionais, na medida em que estas delimitem direta e exclusivamente a relação
jurídica punitiva.

PEDRO CAEIRO
Taipa de Carvalho distingue:
• Normas processuais penais materiais (abrangida pela proibição de retroatividade in
pejus e pela imposição da retroatividade in melius pois incidem sobre a responsabilidade
penal do arguido);
• Normas processuais penais formais (não abrangidas por esses princípios pois são
apenas formalidades técnicas de procedimento criminal e não contendem diretamente
com a responsabilidade do agente nem com a sua posição processual).
Se a lei processual em vigor no momento da prática do ato processual é diversa da que vigorava
no momento do tempus delicti, a sua aplicação ao ato processual presente coenvolve sempre, em
qualquer caso, uma eficácia retroativa imprópria, porquanto toma para a produção dos efeitos
presentes a que tende um facto que ocorreu antes da sua entrada em vigor.
Cada ato processual deve obedecer à lei que vigora no momento da ação, apenas não é assim
se a eficácia retroativa imprópria que lhes inere ofender as garantias que a proibição da
retroatividade in pejus visa assegurar.
Com a distinção de Taipa de Carvalho, permite chegar-se à conclusão que a fonte normativa da
lei (material ou processual) é relativamente indiferente para o problema da aplicação da lei
penal no tempo, sendo verdadeiramente decisivo o seu conteúdo.
Pode levar à conclusão de que são normas processuais materiais todas aquelas que contendam
com as garantias subjacentes à proibição da retroatividade in pejus e normas processuais formais
as restantes.
Não é necessário invocar o princípio do tratamento mais favorável para justificar a aplicação
imediata da norma processual penal que se mostre concretamente mais favorável: tal solução
decorre imediatamente da regra de conflitos lex posterior derrogat priori

86
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Normas que aumentam prazo de procedimento prescricional


Embora não afetem verdadeiramente um direito subjetivo dos autores dos crimes a não serem
perseguidos após o decurso de um certo lapso de tempo (extinção da possibilidade de o Estado
instaurar ou manter o procedimento criminal em relação a determinado arguido, tendo prazos
previstos no art. 118º e ss. CP)74, revelam uma alteração da necessidade de punir e uma
intensificação da dignidade punitiva comparativamente com a vigente no momento da
prática do crime – fundamento no princípio da necessidade da pena (já não há utilidade e
necessidade efetiva para a continuação da pena ou do procedimento criminal).
A aplicação imediata do prazo prescricional revelaria, deste modo, uma apreciação, à luz do
presente, da necessidade de punição de um crime praticado no passado. Uma tal solução
enfraqueceria a limitação do Estado pelo Direito que criou num determinado momento, não
assegurando a autolimitação própria do Estado de Direito – o Estado tem de se vincular ao Direito
que cria e pelo princípio da confiança, daí que se proíba a retroatividade.75

Prescrição
Extinção da responsabilidade criminal pelo decurso do tempo, a contar desde o momento da
prática do facto. A partir do momento da prática do facto, começa a correr o prazo da prescrição.
Findo esse prazo, a responsabilidade extingue-se, e o arguido já não pode ser punido
criminalmente. Enquanto não haja transito em julgado, a questão da prescrição é sempre
relevante.
O que acontece quando há uma alteração das leis prescricionais?
A prescrição tem por vantagens:
1) As penas visam também, pelo menos também, prosseguir finalidades preventivas, de
ressocialização e de restabelecimento da confiança da comunidade. 20 ou 30 anos depois,
que finalidades preventivas é que uma pena pode ter? Nenhumas. 20 anos depois a
pessoa já é completamente diferente. A vida já deu tantas voltas que já não há ali, por
referencia ao momento da pratica do facto, qualquer finalidade preventiva. De prevenção
geral ainda menos, 20 ou 30 anos depois, já não faz grande sentido. O restabelecimento
da confiança da comunidade, 20 ou 30 anos depois, é caricato. O prazo prescricional é
uma emanação da ideia que só se pune para prosseguir determinados objetivos gerais e
especiais. É uma questao de necessidade punitiva que justifica o regime da prescriçao
(18º/2).
2) Há também um problema de fiabilidade da prova. 20 anos depois, as testemunhas já não
se lembram; tem uma ideia daquilo que se lembravam. É um tiro no escuro, é também
uma razão de fidgnidade da prova que justifica o regime da prescrição.
Normalmente, entende-se que a prescrição é processual-material. Tem relevância material,
relevância substantiva, penal, porque influi diretamente na situação de responsabilidade do
agente, logo, à questão da prescrição podem aplicar-se as regras gerais do 29º/4 CRP e 1º e 2º CP.

74
E pode ser da pena (completo o procedimento criminal, agente condenado e na fase de execução da
pena mas agente foge e interrompe-se a execução da pena – se em determinado tempo não for possível
fazer o agente cumprir pena, pode haver uma prescrição de executar a pena).
75
São mais difíceis os casos em que as leis prescricionais se confrontam com processos pendentes e dão
uma folga ao Estado para ele continuar a prosseguir a ação penal. O Estado altera os prazos prescricionais
que se aplicariam aos processos pendentes. Também aqui não há como ultrapassar o argumento de que o
Estado tem de se vincular ao direito que cria e não pode interferir em casos já conhecidos criando
legislação que se vai aplicar para compensar os efeitos de alguma inércia. Não é aceitável, para Fernanda
Palma, por razões de confiança e segurança. Estas leis estão sujeitas à proibição da retroatividade.

87
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Uma lei posterior não pode ter como efeito o ressuscitar de uma responsabilidade penal que
já se extingui.
Caso 1: L1 diz que a prescrição é 5 anos; o facto é depois da entrada em vigor da L1; 3 anos
depois, surge uma L2 que reduz o prazo de prescrição para 3 anos. Aplica-se a L2 (aplicação
retroativa da lei penal posterior mais favorável – art. 2º/4 CP. O facto continua a ser relevante
para a L1 e L2, mas deixa de ser punido pelo decurso do prazo prescricional). Porque a prescrição
é um problema de necessidade punitiva, ou seja, quando o legislador na L2 baixa o prazo de
prescrição o, diz que não é necessário perseguir o arguido durante mais tempo.
Caso 2: L1 falava em 10 anos; o facto foi praticado; passado 5 anos, surge uma L2 (antes do
decurso do prazo de prescrição) que passa para 15 anos.

• O TEDH diz que a pessoa não tem o direito à prescrição76, não tem a expectativa do
seu crime prescrever. Esta pessoa não pode ser protegida face a uma lei posterior
desfavorável. A jurisprudência do TEDH e dos tribunais alemães é no sentido de que
leis prescricionais posteriores desfavoráveis aplicam-se desde que, entretanto, o
prazo prescricional ainda não tenha decorrido. Se entrar em vigor durante o decurso
do prazo, como a pessoa não tem expectativa legitima a que o seu crime prescreva,
aplica-se a L2. O TEDH diz que esta solução não viola a Carta dos Direitos
Humanos.
o Sendo leis processuais, são de aplicação imediata pelo que o arguido não
tem direito a que se aplique a lei processual x ou y.
▪ Tem muitos argumentos contra – MFP:
1. Argumento formal – quem trata dos prazos de prescrição é
o CP e não o CPP, portanto, pela inserção sistemática ela
tem uma natureza substantiva e não processual
2. É causa de extinção da responsabilidade criminal – pelo
que tem natureza paralela aos critérios de determinação da
responsabilidade criminal
3. Manipulação da prescrição através da Lei permitia ao
Estado utilizar este instituto para compensar inércia e
deficiências da sua própria atuação, permitindo a
continuação da prossecução criminal a determinados
agentes por motivações políticas (é perigoso, numa lógica
de EDD)77.

• O TC português não faz esta distinção, aplicando simplesmente a proibição de


retroatividade in pejus. Para o TC português, a L2 viola o 2º/1 e o 1º/1 CP e o 29º/4
CRP, e aplicaria a L1.
o Esta solução é defendida pela Prof. Fernanda Palma com este argumento: os
alemães têm razão num ponto – as pessoas não têm direito à prescrição e,
portanto, não é pela tutela das expectativas que fundamenta a solução
do TC português. É por uma ideia de segurança jurídica e proibição do
arbítrio do Estado. Para evitar essas situações, a Prof. entende que a

76
MFP: Leis prescricionais não têm a ver diretamente com direitos do arguido – o arguido não tem direito
à prescrição. Estas leis têm a ver com interesses do Estado e da forma como ele se organiza.
77
MFP: A possibilidade de um Estado manter acesa a chama quanto a factos que deixou em banho maria
por algum tempo é perigosa. O Estado tem de ter alguma imparcialidade, tem de vincular-se ao direito
anterior, em relação a matéria que afete direitos. Não pode aplicar imediatamente alterações de critérios
nesta natureza que permitem a manipulação da incriminação.

88
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

solução do TC português é a melhor, que diz leis posteriores desfavoráveis


em matéria prescricional não se aplicam.

Crimes Públicos, Semipúblicos, Particulares78


De semi-público a público
Rejeita-se a aplicação imediata da lei que transforma um crime particular ou semi-público
em público, de modo que o facto criminoso cometido no passado, contra o qual não foi
deduzida queixa, não pode vir a ser objeto de processo penal.

• Não há um direito do autor do facto criminoso a não ser submetido a processo penal;
no entanto, a aplicação imediata da lei, se não tiver sido deduzida queixa antes de
ela ter entrado em vigor, não garantiria suficientemente o princípio da objetividade
e vinculação do Estado ao seu Direito.
• A solução deste tipo de casos deve ser, diferentemente, a aplicação pura e simples
da lei antiga.
De público a semi-público
A situação inversa, em que o crime é convertido de público em semi-público (ou até
particular), não se equaciona juridicamente nos mesmos termos.

• Em sentido material há uma espécie de descriminalização pois há relativização do


crime, não havendo um interesse imediato do Estado de instaurar a ação.
o Parece que a lei semi-pública é mais favorável.
• Mas como antes era crime público, toda e qualquer iniciativa estava nas mãos do
Ministério Público não havia necessidade de queixa – com a conversão passa a haver
necessidade de queixa. Não havendo tem de se arquivar.
• MFP: uma melhor análise desta questão verifica-se que isto acontece por razões de
atender aos direitos da própria vítima, pelo que tem de se reiniciar o tempo
para que a vítima possa fazer queixa.79
O princípio do Estado de Direito – como regra de objetividade, previsibilidade e segurança
jurídica geral – que impõe, neste caso, que as expectativas do titular do direito de queixa não
sejam defraudadas, dando-se-lhe a oportunidade processual de exercer o seu direito após a entrada
em vigor da lei nova.
Esta solução não parte de qualquer aplicação a este tipo de casos do critério de aplicação
imediata da lei processual penal (art. 5º/1 CPP)80.

78
Os crimes públicos – competência do ministério público para iniciar a ação penal. Ex: homicídio.
Os crimes semi-públicos – competência ministério público para iniciativa de ação penal depende de
uma queixa do ofendido (e, uma vez feita a queixa, o ministério público pode iniciar a ação penal.) Ex:
ofensas corporais simples alguns crimes sexuais (são muito graves mas continuam semi-públicos devido
ao assegurar a privacidade da vítima e etc.).
Os crimes particulares – além da queixa, tem de haver uma atuação particular. Quem tem a iniciativa e
dirige a ação penal é o ofendido. São crimes menos graves e associados à privacidade do próprio
ofendido.
79
O direito de queixa é influenciado pelo princípio vitimológico, segundo o qual compete ao Direito
assegurar a reparação dos danos do crime sofridos pela vítima em toda a sua dimensão jurídica,
nomeadamente através da utilização do processo penal. Este princípio pressupõe que a proteção penal de
um bem de que alguém é titular, embora relevante para toda a sociedade, deve ser deixado à
disponibilidade do ofendido, em situações em que o valor da disponibilidade pelo seu titular seja
prevalecente.
80
Que até nem se poderia invocar quando não existisse ainda processo, pois o direito de queixa tem uma
valia extra-processual e até extrapenal. A função do direito de queixa não justifica a referência das normas

89
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

A natureza do direito de queixa também não permite referir integralmente as normas que o
regulam ao princípio da retroatividade in melius, consagrado no art. 29º/4 CRP e 2º/4 CP81.

A aplicação retroativa de lei penal mais favorável (retroatividade in melius)


Como limite não intrínseco à proibição da retroatividade, consagra-se nos arts. 29º/4 CRP
e 2º/4 do CP, a aplicação retroativa da lei penal mais favorável.
O fundamento da retroatividade in melius é simultaneamente a igualdade e a necessidade
da pena.

→ Prof. Fernanda Palma: a retroatividade in melius surge assim como um


princípio e não apenas como uma exceção à proibição da retroatividade.
A lógica que subjaz ao art. 2º/2 do CP impõe assim que a revogação da norma incriminadora
tenha como consequência a extinção da pena ou do procedimento criminal sem quaisquer
limitações.
O art. 29º/4 CRP parece sugerir que a aplicação retroativa da lei penal mais favorável se
poderia deter perante o trânsito em julgado, na medida em que se refere a “leis penais de conteúdo
mais favorável ao arguido”. Todavia, uma eventual restrição pelo trânsito em julgado não se
adequa ao fundamento do princípio da retroatividade in melius. Uma restrição do alcance deste
princípio não se justificaria senão por uma lógica exterior de segurança e estabilidade das
instituições que executam as penas. Por outro lado, a referência ao “arguido” não é sinónima de
“caso julgado”, na medida em que após o “caso julgado”, a qualidade de arguido persistirá se o
processo for reativado.

→ Prof. Fernanda Palma: a aplicação da lei penal de conteúdo mais favorável impõe
que se determine em concreto o regime mais favorável82 para o arguido, isto é, que
se considere qual seria a medida da pena mais favorável, em face de todas as causas
de justificação, desculpa, atenuação, agravação e procedibilidade de uma
determinada lei. Uma lei posterior que agrave a medida legal da pena poderá, ainda
assim, permitir a aplicação de uma pena inferior ao agente e deverá, nesse caso, ser
aplicada retroativamente.

A aplicação retroativa da lei penal mais favorável e a delimitação da sucessão de leis no


tempo
A retroatividade in melius pressupõe uma verdadeira sucessão de leis no tempo, isto é, que
as normas penais sucessivas possam fundamentar a decisão dos mesmos casos, embora de
forma diversa.
Essa unidade do pressuposto normativo das leis sucessivas exige a previsão de uma
factualidade típica idêntica ou referida a condutas humanas idênticas, nas várias leis que se

que o regulam à ratio legis do art. 5º/1 – a adaptação do processo a soluções novas mais eficientes,
instrumental da realização da justiça.
81
Taipa de Carvalho, diferentemente, resolve estes casos apenas com base no art. 29º/4 CRP. Resta saber,
todavia, se, ao fazê-lo, o autor pretende um arquivamento puro e simples dos processos ou se admite uma
solução semelhante à proposta pela Prof. Fernanda Palma.
82
FD: O juízo complexivo de maior ou menor favor não deve resultar apenas, em princípio, da
contemplação isolada de um elemento do tipo legal ou da sanção, mas da totalidade do regime a que o
caso se submete. Como seguro é que o sopeso da gravidade dos dois regimes não pode fazer-se só na
consideração abstrata da lei, mas tem de ser feito depois de conexionada aquela consideração com as
circunstâncias concretas do caso.

90
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

confrontam. A sucessão de leis depende de o comportamento anteriormente contemplado não


implicar, necessariamente, a verificação da conduta prevista na lei posterior, havendo, assim, pelo
menos uma revogação tácita.
Para que se possa falar em sucessão de leis, o que não pode estar em causa é uma
alteração da essência da conduta humana referente, nem que a lei posterior vise a proteção
de bens jurídicos diversos da anterior.
A identidade do facto típico não é constituída apenas naturalística ou socialmente,
dependendo, igualmente, da essencial intenção normativa das leis.
De qualquer forma, a diferente finalidade da lei ou da sua essencial intenção normativa não
pode justificar, artificialmente, a autonomia das factualidades típicas. Onde a conduta humana
referente não seja socialmente distinta haverá violação do non bis in idem, pela utilização da
figura do concurso ideal83.
A delimitação da verdadeira sucessão de leis é um pressuposto essencial da resolução dos
problemas de substituição da punição de certos factos no âmbito penal pelo seu
sancionamento através do Direito de Mera Ordenação Social. O problema que se coloca é
saber se nesses casos houve:

 uma alteração do regime punitivo (cf. art. 2º/4 CP);


→ esta solução implicaria a substituição de uma forma mais grave de responsabilidade
por outra menos grave e a correspondente substituição de uma pena por coima.
 ou antes um fenómeno de desincriminação (cf. art. 2º/2 CP).
→ adotando esta solução, a conversão dos crimes em contraordenações implicaria a
extinção de qualquer responsabilidade jurídica, de modo que o desaparecimento da
incriminação corresponderia a uma extinção de toda e qualquer responsabilidade
pelo facto passado.
A solução do dilema não é meramente lógica: apela a uma compreensão valorativa da
substituição de regimes.

→ Prof. Fernanda Palma: embora numa aparente e estrita lógica formal se pudesse
concluir que a diferença qualitativa do ilícito penal relativamente ao de mera
ordenação social impediria uma verdadeira sucessão de leis no tempo, uma vez que
os critérios valorativos de um ilícito de outra natureza suscitaram um facto jurídico
novo e diferente, tal construção desconheceria que o sentido do apelo à autonomia
qualitativa do ilícito é apenas evitar a plena utilização dos custos e vantagens dos
critérios de responsabilização penal e do respetivo processo e permitir a introdução
de critérios de aferição da responsabilidade justificados por objetivos sociais menos
centrais e mais instrumentais.

É incorreto, deste modo, defender a extinção em absoluto da responsabilidade
jurídica em tais situações, quando não existir uma explícita e coerente vontade
legislativa de toda a responsabilidade pelos factos passados.
Por outro lado, nestas situações existe um comportamento humano referente
essencialmente idêntico, que assegura a unidade do facto e a continuidade
normativa.

83
O concurso ideal de infrações verifica-se sempre que a mesma conduta (pelo menos em sentido
naturalístico) lesa vários bens jurídicos (concurso heterogéneo) ou o mesmo bem diversas vezes (concurso
homogéneo).

91
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Não há qualquer afetação da previsibilidade pela punição do direito mais


favorável.
A sucessão de leis que originam a conversão do crime público em semi-público é uma
verdadeira sucessão de leis penais para efeitos da aplicação do art. 2º/2 e 4 do CP?
A pergunta justifica-se por se poder entender que violaria aquelas normas uma não aplicação
retroativa da lei penal posterior aos factos que foram cometidos antes da sua vigência, sendo esta
última mais favorável.
Porém, a dimensão normativa dos preceitos que alteram o direito de queixa não é
estritamente penal: a normação do direito de queixa não é inequivocamente lei penal no sentido
dos arts. 2º/4 CP e 29º/4 CRP.
Sendo justificada a retroatividade in melius pela igualdade na aplicação da pena e pela
necessidade da mesma, o âmbito do conceito de lei penal é aferido por essa ratio legis, de modo
que as alterações do direito de queixa não estão necessariamente contempladas. Isto é, a exigência
de exercício do direito de queixa para o desencadeamento do processo penal não significa
diretamente a diminuição da necessidade de punir relativamente à fase anterior nem
pretende necessariamente favorecer a posição do autor do crime, embora esses efeitos
possam ser reflexamente produzidos.
Com efeito, a despublicização de crimes pode ter um fim de mera proteção da vítima ou
então revelar um desinteresse do Estado pela iniciativa processual, devido a razões de política
criminal. Nesses casos, a fundamentação normativa do direito de queixa seria negada com uma
aplicação retroativa da lei posterior que levasse a um automático arquivamento dos processos e à
total impossibilidade do exercício do mesmo direito.
Nesse sentido, nunca se poderia dizer que tais casos se submeteriam exclusivamente ao art.
29º/4 CRP. Onde não haja qualquer sentido desincriminador (isto é, relacionável com a
necessidade de punir da despublicização), o art. 29º/4 da CRP tem difícil aplicação na sua
plenitude lógica. Já nos casos em que a despublicização revele uma menor intensidade do direito
de punir, seria mais compreensível uma decisão segundo o art. 29º/4 CRP, sem que, no entanto,
essa aplicação pudesse ser absolutamente limitativa dos direitos do ofendido.
Assim, tanto nos últimos casos como nos primeiros (em que o art. 29º/4 CRP não estaria em
causa), a solução jurídica mais harmoniosa será a da atribuição ao ofendido da oportunidade
processual para o exercício do direito de queixa.
Nos casos de despublicização para proteção da vítima (que não se submetem plenamente à
ratio dos arts. 29º/4 CRP e 2º/4 CP), a ultratividade da lei anterior (crime público) levaria a uma
desigualdade entre os arguidos pelos mesmos crimes antes e depois da despublicização, se não se
viesse a exigir o exercício do direito de queixa.
Nos outros casos, em que se divisa um sentido relativamente descriminalizador (uma menor
necessidade de punir), a aplicação retroativa da lei que despubliciza implicaria uma desproteção
dos titulares do direito de queixa que o art. 29º/4 não pode em rigor produzir, impondo-se uma
contenção do seu alcance pelo princípio do Estado de Direito democrático (art. 2º CRP).


Por todas estas razões se impõe uma única solução jurídica para estes casos: a
atribuição de oportunidade de exercício do direito de queixa. O seu fundamento não decorre
direta e exclusivamente do art. 29º/4 CRP, mas sim dos princípios jurídicos que a este subjazem
(igualdade e necessidade da pena), articuladamente com a proteção da confiança emanada do

92
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Estado de Direito democrático. Justifica-se, simultaneamente, a aplicação imediata da lei nova


e a proteção do exercício do direito de queixa.

LEIS TEMPORÁRIAS E DE EMERGÊNCIA


O problema das leis temporárias e de emergência
A retroatividade da lei penal de conteúdo mais favorável não abrange as leis
temporárias e de emergência.
➢ Nestes termos, o art. 2º/3 CP subtrai, aparentemente, à retroatividade in melius essas
situações.
Todavia, o conteúdo normativo deste preceito não pretende referir-se a uma sucessão de leis
penais em sentido próprio. A doutrina a que o preceito se refere considera que a lei posterior que
descriminaliza a conduta (ou que lhe atribui uma pena menos grave) não inclui entre os seus
elementos típicos a situação de crise ou excecional, havendo uma alteração essencial no ilícito
típico, entre as duas leis temporalmente sucessivas, mas não sucessivas segundo critérios
jurídicos84.

→ Prof. Fernanda Palma: uma tal doutrina explica melhor a solução legal para as
leis de emergência do que para as leis temporárias. É, na verdade, discutível que
a intenção manifestada pelo legislador quanto à vigência temporária de uma lei baste
para legitimar a ultra-atividade da lei e a não aplicação do princípio da retroatividade
in melius. O tempo seria, no caso de tais leis, um elemento típico essencialmente
constitutivo do ilícito penal que orientaria as expectativas dos destinatários para a
ultra-atividade antecipadamente.
A exceção ao princípio da retroatividade in melius determinada pelo caráter temporário das
leis não é, todavia, uma restrição, constitucionalmente indiscutível, em face do art. 29º/4 CRP. O
caráter temporário que não esteja associado a uma excecionalidade historicamente objetiva da
situação típica prevista pelo legislador não se subtrai pela sua própria natureza aos princípios da
necessidade da pena e da igualdade, que delimitam o conteúdo do art. 29º/4 CRP. O art. 2º/3 CP
não pode ultrapassar aqueles princípios constitucionais apenas apoiado na prevalência da intenção
legislativa quanto ao caráter temporário de uma lei.
Assim como o legislador ordinário não pode legitimamente decretar que a retroatividade in
melius não se aplica quando descriminaliza, também a atribuição de caráter temporário a uma lei,
em situações em que subsista uma verdadeira sucessão de leis, tem de ser disciplinada pelos
princípios da igualdade e da necessidade da pena.
Por outro lado, em situações de sucessão de leis de emergência, a aplicação retroativa da lei
mais favorável deve impor-se sempre que persista como elemento constante do tipo incriminador
a mesma situação de excecionalidade. Fora desses casos, porém, a sucessão de leis de emergência
cabe na previsão do art. 2º/3 CP.

84
Faz-se uma lei penal para casos de emergência (ex: incêndios, catástrofes e etc.) em que se incorpora a
própria situação de emergência (é elemento específico do tipo incriminador).
Passando a crise de emergência ela caduca, pois o elemento da factualidade que ela prevê já não se
verifica pois não tem nenhuma justificação numa situação fáctica.
E se só depois de caducada a lei é que se julga o arguido? As leis são diferentes. Não há sucessão de leis.
A lei que caducou ainda está em vigor para o passado, ela é ultra-ativa. Ela tem de ser aplicada.

93
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

FD: Leis temporárias são aquelas que, a priori, são editadas pelo legislador para um tempo
determinado.
➢ A razão que justifica o afastamento da aplicação da lei mais favorável reside em que
a modificação legal se operou em função não de uma alteração da conceção
legislativa – esta é sempre a mesma – mas unicamente de uma alteração das
circunstâncias fácticas que deram base à lei. Não existem por isso aqui expectativas
que mereçam ser tuteladas, enquanto, por outro lado, razões de prevenção geral
positiva persistem.

Taipa de Carvalho: A lei penal temporária é a lei penal que, visando prevenir a prática de
determinadas condutas numa situação de emergência ou de anormalidade social, se destina a
vigorar apenas durante essa situação de emergência, pré-determinando ela própria a data de
cessação da sua vigência.
A especialidade do regime da lei temporária reside no facto da sua aplicabilidade a todas as
condutas nela previstas e praticadas durante a sua vigência, independentemente de, no momento
do julgamento, a lei temporária já não estar em vigor.
A razão subjacente à aplicação retroativa da lei penal favorável está na alteração da conceção
político-criminal do legislador; já, diferentemente, no caso das leis temporárias, não se verifica
esta alteração da conceção político-criminal, mas apenas uma alteração da situação fáctica, isto é,
da situação social. logo, o regime das leis temporárias não constitui uma exceção ao regime da
normal sucessão de leis penais. No caso das leis temporárias, a valoração jurídico-penal das
condutas, praticadas durante a vigência da lei temporária, mantém-se e, por isso, se compreende,
político-criminalmente e jurídico-constitucionalmente, que, apesar de a lei já não estar em vigor
(porque o facto deixou, por força da normalização da situação social, de revestir o perigo que
tinha para os respetivos bens jurídico-penais), que a conduta, praticada durante a vigência da lei
temporária, deve e continue a ser punível.

LEI PENAL INCONSTITUCIONAL E PROBLEMA DA SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO


O problema que se coloca é essencialmente o seguinte: pode uma lei inconstitucional ser
ainda assim aplicável por ser mais favorável, de acordo com o art. 29º/4 CRP ou outra
norma constitucional?
➢ Lei penal inconstitucional que sucede a outras leis penais não inconstitucionais –
problema de saber se são de considerar para efeitos de aplicação da lei penal no
tempo (nos termos do art. 29º/4 e art. 2º/2 e 4 CP).

Segundo a primeira posição85, a lei penal inconstitucional é inválida e, por isso, não pode
produzir quaisquer efeitos.

• Tal como é previsto no art. 282º CRP, a declaração de inconstitucionalidade (ou de


ilegalidade) produz efeitos desde a entrada em vigor de norma declarada
inconstitucional (ou ilegal) e determina a repristinação das normas que ela haja
revogado.
• Assim, deixará de existir qualquer sucessão de leis no tempo e, no caso de a lei
inconstitucional ser a lei posterior mais favorável, não se estaria sequer perante a
situação prevista no art. 29º/4 CRP.
• A repristinação da norma revogada, embora menos favorável, torna-se inevitável.

85
Cf. Rui Pereira.

94
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

• Como nestes casos pode ter havido um erro sobre a ilicitude do facto, se o agente
agiu durante a vigência da norma inconstitucional, esse erro excluirá em princípio a
culpabilidade do agente ao abrigo do art. 17º CP. Aplica-se também a parte geral do
CP.
• Se já tiver sido aplicado a lei mais favorável, nos termos do art. 282º/1 CRP,
preserva-se o caso julgado. A única exceção a esta preservação do caso julgado
está prevista no nº3, precisamente para situações diferentes das que se analisam em
que a lei penal inconstitucional aplicável for menos favorável, situação em que se
levantará o caso julgado para repristinar a lei penal revogada mais favorável, de
acordo com a regra geral estabelecida no art. 282º/1 CRP.86
• Esta solução tem dois problemas, segundo o Prof João Matos Viana:
o Não abrange as situações em que a pessoa conhece que aquilo é
inconstitucional. Neste caso, se a pessoa souber, não pode beneficiar do art.
17º do CP. Esta solução justificaria que alguém pudesse ser preso pelo
simples facto de tendo conhecimentos jurídicos, saber…;
o Nas situações em que a lei penal favorável é atenuadora, não pode aplicar-
se o art. 17º, porque aqui ele tem consciência de ilicitude, mas é punido com
uma pena mais alta. Rui pereira defende-se que se aplicam as limitações de
pena (art. 70 e ss). A aplicação da primeira lei não pode exceder o limite da
inconstitucional.

A posição contrária87 defende que não se poderá interpretar rigidamente o art. 282º em
conjugação com outros critérios constitucionais como o do art. 29º/4 CRP, ou do princípio
do Estado de Direito assente na confiança.

• Defende, então, que, neste caso difícil, a lei penal posterior inconstitucional deve
ser aplicada, porque foi ela que orientou o comportamento do agente e o Estado
vinculou através dela o comportamento dos destinatários.
• O fundamento para esta solução é:
o Por um lado, uma prevalência do princípio da igualdade subjacente ao art.
29º/4 CRP ou, como parece preferível, do princípio do Estado de Direito,
como expressão de vinculação do Estado ao Direito que cria perante os
destinatários. E ainda a prevalência do valor constitucional do princípio do
Estado de Direito e da sua expressão de confiança perante os destinatários
das normas penais;
o Por outro, sempre se poderá argumentar que existe, no art. 282º CRP, uma
lacuna, na medida em que, configurando a não salvaguarda do caso julgado

86
CRP resolve só em parte – art. 282º – em geral, ressalvam-se os casos julgados e a invalidade faz-se
sentir apenas desde a entrada em vigor dessa lei (aos casos julgados aplica-se a lei inconstitucional).
• Art. 282º/3 – para o Direito Penal, não funciona a salvaguarda do caso julgado e sim se o
conteúdo das leis penais tem conteúdo mais favorável ou não.
• Estão dois valores constitucionais em causa: o do caso julgado (estabilidade confiança nos
próprios Tribunais e etc.) vs. Aplicação de lei mais favorável.
o Se não se repristinasse, podia haver condenação com base num crime que era
inconstitucional – valor da liberdade e afetação mínima da liberdade por parte das
normas penais é o que justifica este regime (princípios vários espalhados por institutos
do Direito Penal).
o Relativiza-se a estabilidade do caso julgado.
• Se já se aplicou a lei mais favorável: preserva-se caso julgado pelo art. 282º/1.
• Se ainda não se aplicou, não se preserva o caso julgado.

87
Cf. Jorge Miranda.

95
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

nos casos de lei penal inconstitucional menos favorável, dando prevalência


ao princípio da lei mais favorável, não tem em conta a situação inversa, de
lei inconstitucional mais favorável.

→ Prof. Fernanda Palma: a segunda solução parece preferível, porque não


recorre a uma verificação fictícia de erro sobre a ilicitude e a um mero
expediente de recurso ao art. 17º CP para deixar de punir o agente pela lei
mais severa. No caso de o art. 17º CP não ser aplicável, restaria apenas
atenuar a pena de acordo com a medida da lei inconstitucional mais
favorável. Invoca o princípio da autovinculação do Estado ao Direito que
produz, atendendo ao princípio do Estado de Direito democrático.
Por outro lado, para além dos inconvenientes de uma ficção na solução
destes casos, também não se tem em conta que o problema colocado se situa
nas fendas de duas normas constitucionais e de vários princípios e que, dada a
importância da aplicação da lei mais favorável em termos de direitos, igualdade,
e de restrição mínima da liberdade, haverá uma lacuna a ser integrada pela
articulação dos princípios.
Com efeito, se no art. 282º CRP a proteção do caso julgado prevalece sobre
as consequências da declaração de inconstitucionalidade, em geral, e essa
prevalência só é afastada devido à exceção prevista no nº3 de a lei penal ser
menos favorável, verifica-se uma prevalência do princípio da aplicabilidade da
lei mais favorável que tem um papel de revogação do próprio caso julgado.
Ora tal supremacia do referido princípio mostra bem que uma articulação
semelhante se deverá fazer na situação não contemplada no art. 282º, do qual
deveria constar uma norma que para além das situações de caso julgado por lei
penal menos favorável, que caberão sempre no art. 282º/1 CRP, salvaguardaria,
ainda, por razões de igualdade, de necessidade da lei penal e da confiança
inerente ao Estado de Direito, a aplicação da lei penal inconstitucional mais
favorável.
As leis intermédias88
O princípio da aplicação da lei mais favorável vale ainda mesmo relativamente ao que na
doutrina chama leis intermédias, ou seja, leis que entraram em vigor posteriormente à prática do
facto, mas já que já não vigoravam ao tempo da apreciação judicial deste. Esta solução é
completamente coberta tanto pela letra do art. 29º/4, 2ª parte CRP, como pelo art. 2º/4, 1ª parte
CP. E justifica-se teleológica e funcionalmente porque com a vigência da lei mais favorável
(intermédia) o agente ganhou uma posição jurídica que deve ficar a coberto da proibição de
retroatividade da lei mais grave anterior.

CRIMES PERMANENTES
Não estão referidos no CP. Um crime permanente é um crime em que se verifica a
manutenção de um Estado de ilicitude por decisão do arguido. Exemplo: o sequestro. Em todo
o tempo que mantiver o Estado de detenção de uma pessoa, há crime de sequestro. Exemplo 2:
há crime em todo o momento em que há condução no crime sob o efeito de álcool.
O critério de aplicação da lei no tempo nos crimes permanentes é este: aplica-se a lei nova,
o juízo mais atual sobre a necessidade punitiva, quando, após a sua entrada em vigor, todos

88
Cf. Prof. Figueiredo Dias.

96
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

os seus pressupostos estejam preenchidos, de tal forma que não seja necessário ir ao passado
buscar factos. Caso contrário, aplica-se a lei antiga.
Isto vale essencialmente para quando a lei mais recente é desfavorável. Quando a lei mais
recente é desfavorável, temos de exigir que todos os seus pressupostos estão preenchidos na
entrada em vigor porque não podemos ir ao passado buscar coisas. Tudo tem de estar preenchido
após a sua entrada em vigor.
Se, ao invés de ser um crime qualificado, tivesse havido uma diminuição de pena, ou seja,
se fosse favorável, nesses casos, quando o novo juízo é mais favorável, aí aplica-se sempre
(retroatividade in mellium). Aplica-se a nova.

PEDRO CAEIRO
A articulação do princípio da não-transconexão com as regras da proibição da retroatividade in
pejus e da imposição da retroatividade in melius na aplicação da lei a factos duradouros.
➢ Quando os factos se produzem no domínio de mais de uma lei – havendo conflito de leis.
Sucessão de leis ocorre durante a prática do crime (tempus delicti) – factos partilhados, entre
leis que se sucederam
Aplica-se lei nova, tendo em conta que a realização do facto persiste após a sua entrada em
vigor. Exceção se houver violação da proibição da retroatividade in pejus (ofendendo as garantias
de segurança que essa proibição visa proteger).
1. Se lei nova vier cominar moldura penal mais grave para o facto -> aplica-se lei nova,
e não viola proibição da retroatividade in pejus, apesar de todo o facto ser apreciado à luz
de lei nova, pois os pressupostos do facto realizam-se (também) integralmente no domínio
da lei nova. Ex: sequestro na sequência de uma lei antiga e de uma nova

2. Se lei nova vem prever circunstância agravante ou qualificativa inexistente na lei


antiga -> aplica-se lei antiga, devido à proibição da retroatividade in pejus, havendo
eficácia ultra-ativa da lei antiga.
a. O mesmo para casos em que facto se produziu parcelarmente sob o domínio
de cada uma das leis, ex: crime de roubo – agente agride a vítima sob a lei antiga
e apodera-se dos bens na lei nova.

3. Se lei nova for mais favorável ao agente -> aplica-se lei nova, ao abrigo da proibição
da retroatividade in pejus e da imposição da retroatividade in melius

AUGUSTO SILVA DIAS


Nestes casos, aplica-se sempre a lei mais favorável.

CRIMES PARA CONTRAORDENAÇÕES


Caso 1: A norma diz que conduzir com 1,2 é crime. A conduz com 1,2 com álcool no sangue.
Entretanto, a L2 diz que crime é a partir de 1,4. O que quer dizer que 1,2 passa para
contraordenação.
Taipa de Carvalho: Art. 3º do Regime de Contraordenações e coimas, que diz que a lei
contraordenacional, como a penal, se aplica para o futuro. O que acontece é que só se aplica para
97
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

o futuro e, portanto, pelo art. 2º/2, há uma descriminalização e não se aplica L1 e pelo regime das
contraordenações e coimas, não se aplica L2.
Figueiredo Dias e Prof. Regente (posição maioritária): a L2 aplica-se porque há uma
continuidade entre estes dois ilícitos e é mais favorável, logo, aplica-se a lei posterior mais
favorável. FD fala, ainda, num argumento de igualdade. A ideia de que L2 vem descriminalizar é
artificial: L2 vem apenas atenuar a necessidade punitiva, ou seja, não vem dizer, como diz o 2º/2,
que não é necessário punir; vem dizer, como diz o 2º/4, que é necessário punir menos (basta
contraordenação). Há uma certa continuação da necessidade punitiva, embora mais baixa, que
justifica que se aplica o 2º/4, sendo A julgado pela L2, aplicando o regime das contraordenações.
O Prof. Taipa de Carvalho descriminaliza a situação de A (1,2). O que vem a seguir é
apanhado com 1,1 era sempre punido a título de contraordenação. Isto não pode ser, para FD,
porque viola o princípio da igualdade.

CRIMES DE PERIGO ABSTRATOS E DE PERIGO CONCRETO


Crimes perigo concreto – tipicidade, figura legal prevista no CP, além da ação perigosa faz
parte um evento de perigo.
➢ Crime só se verifica de forma consumada quando além de uma ação tipicamente perigosa
também se exige que tenha criado um outro perigo concreto.
➢ Exige-se que a prova de probabilidade de dano se verifique naquele caso em concreto.
Ex: incêndio que afeta casas ou pessoas; condução perigosa que afeta a integridade física
– art. 274º/2 (e art. 272º); 291º CP
Crimes perigo abstrato – perigo é motivo da incriminação. Do ponto de vista da tipicidade não
é necessário um evento de perigo que afete um bem jurídico.
➢ É o perigo que justifica a incriminação. Probabilidade do dano é presumida.
o Perigo = probabilidade do dano
De concreto a abstrato
Há uma espécie de neocriminalização pois agrava-se, há condutas que não caberiam no tipo
criminal e passam a caber – não se pode aplicar retroativamente uma lei que é menos favorável,
a casos que iam ser arquivados por falta de perigo.

De abstrato a concreto
Passa a exigir-se a prova de perigo concreto. Há situação mais restritiva e tem efeito atenuante.
Passar a ser crime concreto é mais exigente quanto à incriminação – é mais favorável ao
arguido. Solução que na prática se pode quase reconduzir a uma descriminalização – efeito
descriminalizador.
Aqueles que realizaram condutas que eram perigo abstrato na vigência da L1 deve ser arquivado
pois não se provou o crime concreto da L2 que agora vigora.
MFP: não discorda em absoluto. Discorda nos casos em que era crime de perigo abstrato, não
sendo necessário recolher prova, mas de facto recolheu-se essa prova e verificou-se que houve
perigo concreto e podem considerar-se esses factos para a aplicação da L2. Estando recolhida a
prova relativamente ao perigo concreto da L2, no perigo abstrato está contido os pressupostos do
perigo concreto – quem proíbe o mais proíbe o menos. Se a matéria de facto era pertinente à luz
do perigo abstrato, ela continua a ser suficientemente pertinente à luz do perigo concreto.

98
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

MFP: quando a lei antiga é lei de crime abstrato e a nova é lei de crime perigo concreto, nas
situações em que agente criou perigo concreto ao abrigo da lei antiga, aplica-se a lei nova. A
exceção é se moldura penal da lei nova for agravada, aí aplica-se a lei antiga.

Caso 1: o tipo constitutivo tinha dois elementos, e passa a ter um terceiro.

L1 diz que quem produzir produtos impróprios para consumo, a L1 tinha apenas dois elementos
constitutivo (produção; produtos impróprios). A produz produtos impróprios para consumo (crime de
perigo abstrato – o simplesmente produzir produtos impróprios, em abstrato, é perigo; não tem de se provar
que houve perigo). L2 introduz um novo elemento: quem produzir produtos impróprios e causar perigo
para a vida humana. O julgamento é depois da entrada em vigor da L2. O facto concreto preenchia as duas
leis.

Taipa de Carvalho: não há uma verdadeira sucessão de leis no tempo. A L1 não se aplica porque a
L2 tem um efeito descriminalizador em relação a estes comportamentos: não é necessário punir a produção
de produtos impróprios para ser crime; tem de haver perigo para a vida humana. É preciso que haja mais
qualquer coisa. Há uma situação de descriminalização dos comportamentos da L1. A L1 não se pode aplicar
pelo (2º/2). A L2 também não se pode aplicar, porque estaríamos a aplicar retroativamente com eficácia
criadora de responsabilidade criminal. Não se pode aplicar L1, logo, não há crime; quando se aplica a L2,
aplica-se retroativamente e com um efeito desfavorável. Pelo 1º/1 e pelo 2º/1 não se pode aplicar L2, porque
seria eficácia retroativa de lei desfavorável.

Sempre que se introduz um novo elemento especial, ou seja, que fosse verdadeiramente novo, que não
estivesse já contido nos elementos anteriores (se fosse meramente especificador, a solução era a de
aplicação de lei posterior mais favorável). A diferença entre elemento especial e especificador é a de que o
especial é verdadeiramente novo, não contido nos elementos anteriores; para elementos meramente
especificadores, que só concretizam o elemento que já existia, se for meramente especificador, aplicam-se
as regras gerais (lei do momento da pratica do facto, a não ser que a posterior seja mais favoravel).

Assim, não se aplica L1 nem L2. A saia em liberdade.

Prof. Fernanda Palma: o perigo para a vida não é um elemento verdadeiramente novo (perigo
concreto), porque já está incluído no perigo abstrato.

Há uma continuidade normativa entre L1 e L2, o perigo concreto já esta incluído no perigo abstrato.
Assim, aplicam-se as regras gerais: aplica-se a lei do momento da pratica do facto, a não ser que a posterior
seja mais favorável, caso em que se aplica a posterior.

Problema desta tese: um crime de perigo concreto nunca é mais favorável. Por isso, na verdade, o que
MFP aplica L1, ou seja, aplica um comportamento que hoje já não é crime. Na prática, o que iria acontecer
era aplicar um crime que simplesmente já não existe.

99
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO


ENQUADRAMENTO GERAL DOS PROBLEMAS:

1. Proibição da retroatividade desfavorável:

✓ art. 29/1/1.º parte da CRP;


✓ Art. 3/1.º e 4/1.º CP;
✓ Art. 1/1.º + art. 2/1.º CP:

O tempus delicti – art. 3.º CP: temos de determinar qual o momento importante para ver
qual a lei a aplicar ser violar o princípio da não retroatividade desfavorável;

Para tal temos de fazer uma distinção entre crime instantâneo e crime duradouro;

✓ Crime instantâneo: por exemplo o homicídio: aqui é relevante o momento da


prática do facto (da conduta) – é irrelevante o resultado morte. Aplica-se o art.
2/1.º + 3.º CP.
✓ Crime duradouro: deve aplicar-se a lei antiga a não ser que a totalidade dos
pressupostos da lei nova se tenham verificado no vigência desta: por exemplo o
caso do sequestro qualificado.

2. Aplicação retroativa da lei penal mais favorável:

✓ Art. 2/2.º CP
✓ Art. 2/4.º CP
✓ Problema da delimitação da sucessão de leis no tempo;
✓ Justificação deste regime tendo em conta o princípio da necessidade da pena
e o princípio da culpa.

3. Problema das leis temporárias e de emergência;

✓ Análise do art. 2/3.º CP


✓ A retroatividade da lei penal mais favorável não abrange as çeis temporárias
de emergência;
✓ O problema das leis temporárias em sentido estrito e em sentido amplo.

100
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

4. Outros problemas de aplicação da lei no tempo:

✓ Problema das normas inconstitucionais;


✓ Problema da prescrição;
✓ Problema da passagem de crime para contraordenação;
✓ Alterações dos elementos do crime;
✓ Medidas de segurança89;
✓ Transformação do crime público para semi-público;

1. ENQUADRAMENTO TEÓRICO;

A imposição da retroatividade da lei penal mais favorável | Análise Prof.


FIGUEIREDO DIAS e Prof. FERNANDA PALMA:

✓ Art. 29/4/2ª parte da CRP;


✓ Art. 2/2.º + art. 2/4.º CP;
O fundamento da chamada retroatividade favorável:

Princípio da igualdade + princípio da necessidade da pena: a retroatividade favorável


surge como um princípio e mão apenas como uma exceção à proibição da retroatividade.

Análise do Prof. TAIPA DE CARVALHO.

✓ O “tempus delicti” – art. 3.º CP.


O cumprimento das exigências éticas jurídico-política e política criminal que determinam e
fundamentam a proibição da retroatividade da lei penal desfavorável – está dependente da
determinação do “tempus delicti” – isto é da fixação do momento em que considere
cometido o crime;

A lei penal desfavorável não pode aplicar-se a factos praticados antes da sua entrada em
vigor (isto também se compreende com o princípio da culpa) .

Certo: mas os factos previstos e descritos na lei criminal são validades complexas: o
preceito primário decompõe-se em vários elementos de entre os quais se destaca a conduta
e o resultado.

89
O Prof. MATOS VIANA o ano passado referiu que a Prof. FERNANDA PALMA gosta muito desta matéria, para
além de que costuma sair, tanto que sai no nosso teste.

101
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Por outro lado sabe-se que a conduta e o resultado podem ocorrer por vezes em
momentos muito distantes entre si, sendo é possível neste tempo intermédio entre a conduta
e o resultado, que entre uma lei que criminalize o facto, ou que agrave a
responsabilidade penal do agente do facto praticado.

✓ Por exemplo: A dispara sobre B ao abrigo da L1 (que pune o homicídio de 3 a oito


anos), sendo que a morte de B dá-se ao abrigo do L2 (que agrava a moldura penal fica 4
a 17 anos), ora o resultado foi a morte, mas a conduta foi o disparo, portanto o que irá
ser relevante será o momento do disparo (conduta) e não o momento da morte
(resultado).
O entendimento dominante: o momento da referência é o da conduta, sendo irrelevante o
momento em que se verifique o resultado.

Suma: a proibição da retroatividade da lei criminalizadora ou agravante da responsabilidade


penal – significa portanto que esta lei não pode aplicar-se ao agente de uma conduta praticado
antes do seu início de vigência, mesmo que o resultado dessa conduta (pe. morte) venha a
produzir-se quando essa lei já estava em vigor.

§ RAZÕES ESSENCIAIS:

1. Garantia jurídico-política da pessoa humana frente à possível arbitrariedade


legislativa ou judicial no exercício do poder punitivo.
2. Princípio da culpa. <3

II. ENQUADRAMENTO PRÁTICO:

Estabelecido o momento decisivo que é a conduta : não ficam resolvidos os problemas:


Há casos em que o crime não é instantâneo , ou seja há casos onde a conduta se mantém por
um tempo mais ou menos longo: dias, meses, até anos.

É o caso dos:

✓ Crimes duradouros;
✓ Crimes Continuados;
✓ Crimes por omissão; 90

90
Aqui o momento determinante para este efeito é o momento em que o agente se coloca no estado de
inimputabilidade e não no momento posterior em que ele já pratica o facto punível – depois explico isto
melhor, porque é difícil perceber isto.

102
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Exemplo: já falámos do homicídio clássico (A dispara contra B e B morre – aqui a conduta


não se mantém no tempo, ele dispara e acabou), agora imaginemos que o homicídio cometido é
através da ministração sucessiva de quatro pequenas doses de veneno – tendo a morte
ocorrido alguns dias após a última dose.

Sendo que o momento da conduta o critério decisivo, questionar-se-á a qual dos


momentos, pelos quais se “repartiu” a conduta se deverá ligar ao “tempos delicti” do art. 3.º CP,
repara-se que uma resposta tem de ser dada, no caso de, entre o momento da primeira dose e
o momento da última dose , ter entrado em vigor uma lei que veio agravar a moldura penal
estabelecida no art. 132/1/ e 2 f) do CP.

O raciocínio é este:

1. Continua a ser irrelevante o momento do resultado (morte);


2. Momento decisivo: o “ tempus delicti” é o momento em que foi ministrada a dose de
veneno mortal, isto é, a dose que, juntamente com as anteriores converteu a conduta do
agente em conduta adequada a produzir a morte,
3. É neste momento: que se deve considerar praticada a conduta homicida.

Conclusão: se a Lei Nova (LN) mais grave entra em vigor antes do momento da dose
mortal – aplicar-se-á esta lei ao agente, se entrar posteriormente, não poderá ser aplicada, sendo
assim aplicável a Lei Antiga (LA).

Não haveria problema se a Lei Nova fosse favorável quer porque despenalizava, quer
porque diminuía a responsabilidade penal: neste caso o art. 2/2.º e 2/4.º CP referem que há lugar
à aplicação da LN porque é mais favorável.

VOLTANDO AO PROBLEMA DE HAVER ALTERAÇÃO LEGISLATIVA QUE AGRAVA A


PENA:

1. Sob pena de inconstitucionalidade, a solução defendida tem de respeitar o princípio da


culpa e a segurança jurídica: que fundamentam a irretroatividade da lei penal
desfavorável:

103
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

2. O esquema geral é este:91

a) Aplicar sempre a LA (Lei Antiga) salvaguardando-se a proibição da retroatividade


desfavorável;
b) Aplicar a LN (Lei Nova) no pressuposto de que o momento decisivo é o da
consumação da conduta, e esta só se verifica com a prática do último ato.
c) Aplicar a Lei Nova considerando somente as condutas praticadas sob a sua
vigência.

3. A solução mais conforme com as razões da irretroatividade da lei penal desfavorável,


sem menosprezar a função de prevenção geral da lei nova, na medida em que aquelas
razões o permitam é a seguinte:

i) Deve se aplicar a LA, a não ser que a totalidade dos pressupostos se tenham
verificado na vigência desta:

EXEMPLO DO CRIME DE SEQUESTRO QUALIFICADO:

Só se fosse mais de dois dias é


Passaram dois dias quando a LN
entrou em vigor. que poderíamos aplicar a LN que
agrava.

1. LA

Sequestro qualificado: art. 2. A LN agrava a moldura penal que agora é de 4 a 10 anos o crime
158/2/a) do CP – o agente é LN de sequestro qualificado.
punido com pena de 2 a 10 anos Aqui não preenche o pressuposto de ser + de dois dias, se
se a privação de liberdade durar aplicarmos a lei nova há retroatividade da lei desfavorável.
+ de dois dias.

2. Aplicação retroativa da lei penal mais favorável:


Temos de ter em conta a análise dos artigos:

✓ Art. 2/2.º CP – é para a despenalização.

✓ Art. 2/4.º CP – é para a diminuição da pena.

91
Segundo o Prof. Taipa de Carvalho.

104
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Art. 2/2.º CP:

LA | Crime LN | Não é crime

O Princípio da Igualdade + Princípio da necessidade da pena.

Se a lei posterior (LN) suprimir uma norma incriminadora, será injusto que agentes de
factos idênticos recebam tratamento radicalmente diferente (punição e não punição) conforme tais
factos sejam perpetuados antes ou depois da revogação da norma, e também não será necessário
na perspetiva da prevenção geral um tratamento diferenciado.

A lógica que subjaz o art. 2/2.º CP impõe assim que a revogação da norma incriminadora
tenha como consequência a extinção da pnea ou do procedimento criminal sem quaisquer
limitações.

Art. 2/4.º CP:

LA | Crime LN | Desagravamento da responsabilidade penal.

O art. 29/4.º CRP: parece sugerir que a aplicação retroativa da lei penal + favorável
se poderia reter perante trânsito em julgado – na medida em que se refere a “leis de conteúdo mais
favorável ao arguido”, uma restrição pelo trânsito em julgado não se adequa no fundamento do
princípio da retroatividade mais favorável.

Não seria razoável supor que a estabilidade e a segurança se realizariam num Estado de
Direito Democrático em contradição com a igualdade e sem apoio no princípio da necessidade
da pena (art. 18/2.º CRP).

O texto constitucional não apoia qualquer restrição da garantia emanada no art. 2.º
CP – preceito em que o princípio da aplicação retroativa da lei mais favorável se consagra de
modo mais amplo.

105
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Nota: Assim o Tribunal Constitucional entendeu antes da Revisão de 2007 do CP que o


art. 2/4.º CP que restringia a aplicação da lei penal mais favorável pelo “trânsito em julgado” era
inconstitucional – desencadeando a alteração legal daquele preceito, no sentido de não se manter
essa restrição.

A RESERVA DE CASO JULGADO: apenas se fundamenta em razões de segurança e


estabilidade das instituições penais – cujo valor é necessariamente inferior à igualdade e à
necessidade da pena.

O art. 282/3.º CRP: também não se refere expressamente ao “caso julgado” o que
demonstra que o conceito de arguido utilizado, tanto no art. 282/3 da CRP como no art. 29/4.º
CRP não impõe uma restrição do princípio do caso julgado.

Deste modo o atual art. 2/4.º CP partindo do princípio geral da aplicabilidade da lei mais
favorável – prevê a cessação da condenação e todos os seus efeitos, logo que a parte da pena que
se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista em lei posterior: esta adaptação da
posição do condenado far-se-á nos termos do art. 371.º - A – CPP.

A aplicação retroativa da lei penal de conteúdo mais favorável impõe que se


determine em concreto qual o regime + favorável para o arguido – isto é que se considere qual a
medida da pena + favorável.

§ PROF. TAIPA DE CARVALHO

1. A retroatividade favorável pressupõe uma verdadeira sucessão de leis no tempo: que as


normas penais sucessivas possam fundamentar a decisão nos mesmos casos, embora de
forma diversa (parece chinês, mas eu depois explico melhor).
2. O pressuposto normativo das leis sucessivas exige a previsão de uma factualidade típica
idêntica ou referida a condutas humanas idênticas e nas várias leis que se confrontam.

Vamos simplificar:

LA | Crime LN | Contraordenação

106
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Para o Prof. TAIPA DE CARVALHO neste caso não há uma verdadeira sucessão de leis no
tempo, porque o crime e a contraordenação têm regimes, sanções, e objeto de juízo
completamente diferentes, e as consequências são muito diversas porque neste caso se seguirmos
a posição do Prof. FIGUEIREDO DIAS diríamos que estávamos perante uma atenuação da pena,
portanto aplicávamos o art. 2/4.º CP, porque o FD não têm como o TC o pressuposto da sucessão
das leis no tempo, ora a solução que o Taipa de Carvalho encontra é aplicar o 2/2.º do CP, há uma
descriminalização. 92

§ RESOLUÇÃO DE CASOS PRÁTICOS | PROF. JOÃO MATOS VIANA

Método de resolução do caso prático:

1. Aplica-se a lei vigente na prática do facto; (art. 3.º CP)


2. Leis posteriores não se aplicam retroativamente;
3. Mas se a lei posterior for mais favorável aplica-se esta.
Imaginemos que Abel faz Berta abortar com o seu consentimento – art. 140/2.º CP. Abel
não é médico.

a) Abel provocou o aborto atrvés de uma substância de efeito demorado. Quando


ministrou tal substância, a Berta , o aborto consentido não era punido. Uma semana depois
entra em vigor a norma constante no art. 140/2.º CP. Duas semanas depois, Berta abortou.

92
(depois também explico melhor isto, não se assustem).

107
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Resolução:

1 semana depois… 2 semanas depois…

L1 L2 Resultado

Abel ministrou tal Entra em vigor o art. Berta abortou.


substância em Berta – aqui 140/2.º CP que
não havia crime, porque o criminaliza o aborto
aborto consentido não era consentindo.
crime.

Isto é uma rasteira: porque estamos perante um crime instantâneo – consumam-se num dado
ponto específico/exato no tempo – o crime não deixa de ser instantâneo pelo facto de o resultado
do facto só se dar tanto tempo depois. Não nos podemos esquecer que o momento relevante é a
prática do facto, da conduta, previsto no art. 3.º CP sendo irrelevante o momento do resultado.

Portanto aplicar-se-á a L1 – não se aplica o art. 140/2.º CP que entra em vigor passado uma
semana da prática do ato, e como sabemos existe a proibição da retroatividade desfavorável – a
contrario art. 2/1.º CP.

b) Abel provocou o aborto durante a vigência do art. 140/2.º CP mas enquanto está a
ser julgado entra em vigor uma norma que despenaliza o aborto.

Resolução: Aplicação do art. 2/2.º CP: neste caso a lei penal posterior suprimiu uma norma
incriminadora, será injusto para os agentes de factos idênticos recebam tratamento radicalmente
diferente (punição e não punição) conforme os factos perpetuados antes da revogação da norma,
e também não será necessário na preceptiva da prevenção geral um tratamento diferenciado.

Portanto o art. 2/2.º CP impõe assim que a revogação da norma incriminadora tenha como
consequência a extinção da pena ou do procedimento criminal sem quaisquer limitações.

108
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

c) Abel está a cumprir pena de prisão a que foi condenado em virtude do seu crime –
quando entra em vigor a mesma norma despenalizadora.
R: Aplicação do art. 2/2/2ª do CP: houve condenação, foi transitada em julgado, cessam a
execução e os seus efeitos penais – então Abel pdoerá sair em liberdade: a lógica do art. 2/2.º do
CP impõe assim a revogação da norma incriminadora tenha como consequência a extinção da
pena.

d) Abel foi condenado em 2 anos e 6 meses de prisão e já cumpriu 2 anos de pena. Entra
em vigor uma norma que alterando o art. 140/2.º CP – fixa a pena máxima para o
crime em questão em 2 anos.
R: O TC entendeu antes da revisão de 2007 do CP que o art. 2/4.º CP que restringia a aplicação
da lei penal mais favorável pelo “trânsito em julgado” era inconstitucional desencadeando a
alteração legal daquele preceito – no sentido de não se manter essa restrição;

Deste modo o atual art. 2/4.º CP partindo do princípio geral da aplicabilidade da lei mais
favorável – prevê a cessação da condenação e de todos os seus efeitos, logo que “parte da pena
que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior” – Essa
adaptação da posição do condenado far-se-á nos termos do art. 371.º-A CCP (Código do
Processo Penal) :

Artigo371.º-A
Abertura da audiência para aplicação retroactiva de lei penal mais favorável

Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em
vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja
aplicado o novo regime.

e) Abel foi condenado em 2 anjos e 6 meses de prisão é já cumpria 6 meses de pena –


entra em vigor uma norma que alterando o art. 140/2.º CP fixa a pena máxima para
o crime – em questão de 2 anos:

R: Aplicação do art. 2/4.º CP: Abel cumprirá mais 1 ano e meio de prisão.

109
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO

5. OUTROS PROBLEMAS DE APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO:

✓ LEIS INTERMÉDIAS;
✓ LEIS TEMPORÁRIAS OU DE EMERGÊNCIA;
✓ PROBLEMA DAS NORMAS INCONSTITUCIONAIS;

✓ PROBLEMA DA PRESCRIÇÃO;

✓ PROBLEMA DA PASSAGEM DE CRIME PARA CONTRAORDENAÇÃO;

✓ ALTERAÇÕES DOS ELEMENTOS DO CRIME;

§ LEIS INTERMÉDIAS + PROBLEMA DA PASSAGEM DE CRIME PARA


CONTRAORDENAÇÃO.

IMAGINEM QUE:

A) D foi apanhado a conduzir sem carta por uma brigada de trânsito em 1994;
B) A lei à data do momento da prática do facto era L1 que criminalizava a condução
sem carta tida pelo CP de 1982.
C) Passou a contraordenação em 1995; (L2)
D) Foi criminalizado em 1999 e julgado em 1999 (L3)

Momento da prática Julgamento do arguido


do facto – art. 3.º CP

L1 | Crime | 1982 L2 | Contraordenação | 1995 L3 | Crime | 1999

110
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

RESOLUÇÃO:

1. Esta questão prende-se com a aplicação da lei intermédia mais favorável; (L2)
2. A LEI 1 E 3 não podem ser aplicadas, L1 porque operou a L2 e como não há uma sucessão
de leis no tempo (Taipa de Carvalho), aplica-se o art. 2/2.º CP, há uma descriminalização
da conduta (o Prof. FD aplica o art. 2/4.º CP).
3. A L3 também não pode ser aplicada, porque violaria a proibição da retroatividade
desfavorável nos termos do art. 29/1 e 4.º CRP e art. 1/1 e 2/1.º CP.
4. A L2 (contraordenação) poderia ser aplicada a um facto que era crime ao tempo em
que o agente atuou?

i) TAIPA DE CARVALHO: diz que não, o agente deve ficar isento de


responsabilidade, não pode ser punido por um crime dado ao disposto no art. 2/2.º
CP, nem pela contraordenação que violava o art. 2.º do DL nº 433/82 RGIMOS
(Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social); só se a L2 contivesse uma norma
transitória determinando a sua aplicação aos crimes praticados anteriormente.

ii) PROF. FERNANDA PALMA + FIGUEIREDO DIAS: esta posição não é plausível
porque:
a) Haveria sempre a alguém a invocar a inconstitucionalidade da norma
transitória;
b) Não faz sentido invocar o princípio da legalidade das contraordenações na
medida em que a sanção da contraordenação não viola nenhuma expetativa
jurídica;
c) Há sucessão de leis penais: devendo aplicar-se o regime mais favorável ao
agente: art. 2/4.º do CP e art. 3/2.º do RGIMOS;
d) O Direito Penal e de Mera Ordenação Social são ramos do Direito
Sancionatório Público que asseguram as mesmas exigências de prevenção
geral;

§ LEIS TEMPORÁRIAS E LEIS DE EMERGÊNCIA– análise do art. 2/3.º CP;

As leis temporárias são as leis que marcam “ab initio” à partida, o seu prazo de vigência;
são as normas que se destinam a vigorar durante um determinado período de tempo pré-fixado.
São leis temporárias que caducam com o “terminus” da vigência que pré-fixaram.

111
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

As leis de emergência são as leis que face a determinado circunstancialismo anomal vêm
penalizar, criminalizar determinadas condutas que até aí não eram consideradas crime, ou
vêm efectivamente agravar a responsabilidade penal por determinado facto que até aí já era
crime, mas em que esse agravamento se deve tão só a situações ou circunstâncias anormais que
reclamam a situação de emergência.

Ressalva-se no art. 2º/3 CP, que continua a ser punido o facto criminoso praticado
durante o período de vigência de uma lei de emergência.

Significa que, não obstante no momento do julgamento a lei já não estar em vigor por já
ter caducado ou já ter sido revogada, deve continuar a ser punido pelo facto que praticou durante
esse período em que a lei estava efectivamente em vigor

Em bom rigor, no âmbito das leis temporárias não há uma verdadeira sucessão de
leis no tempo, porque:

1. A lei é temporária em sentido estrito, não necessita de nenhuma outra lei para que se
possa afirmar uma sucessão de leis penais no tempo; a lei é só uma, sendo que faz
sentido falar em sucessão de leis penais no tempo e em retroactividade ou
irretroactividade quando estão em causa mais do que uma lei, pelo menos duas leis.
2. Não há uma lei diferente, não há uma sucessão de regimes, de onde também não faz
sentido falar em aplicação retroactiva porque a lei é sempre a mesma.

§ PROBLEMA DAS NORMAS INCONSTITUCIONAIS

✓ Problema: Determinação da relevância da lei penal inconstitucional de conteúdo


mais favorável;

1. PROF. FERNANDA PALMA:

A) Aplica-se a retroativamente a lei penal inconstitucional mais favorável;


B) Por força dos princípios constitucionais da confiança (expetativa jurídica do agente) e
da segurança jurídica;
C) De outra forma a repristinação da lei anterior teria um efeito substancialmente análogo
ao da retroatividade da lei penal incriminadora, frustrando as legítimas expectativas dos
destinatários das normas penais quanto à descriminalização de comportamentos;
112
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

D) E se o crime for declarado inconstitucional? Temos de ter em conta os efeitos da


declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, nos termos do art.
282/3.º CRP, sendo que aplicamos por analogia o art. 2/2.º do CP, ou recurso
extraordinário de revisão nos termos do art. 449/1/f) do Código Processo Penal.

2. RUI PEREIRA;

A) Os tribunais não devem em caso algum aplicar normas inconstitucionais, sem


embargo na aplicação das normas constitucionais devem atender ao regime consagrado
no art. 16/1/in fine e art. 17/1.º do CP sempre que se verifiquem os seguintes requisitos:
i) As normas penais inconstitucionais contenham um regime + favorável ao
arguido;
ii) Tais normas têm de ser anteriores à prática do facto;
iii) O AGENTE tem de ignorar a inconstitucionalidade;
- Se a norma inconstitucional for mais favorável ao arguido, e haver descriminalização do facto,
e o agente ignorar a inconstitucionalidade, então não será punido nos termos do art. 16/1/ parte
final e número 3, e art. 15.º CP;

- A solução tem de caber no art. 282/1.º CR porque a lei é declarada inconstitucional e não se
pode invocar o art. 29/4.º CRP porque esta se refere a sucessão de leis inválidas (e não apenas a
uma lei).

- Rui Pereira: entende que os agentes praticaram o facto porque confiaram que a lei emitida era
uma lei válida, não devendo ser penalizados, devendo considerar-se que há exclusão da
responsabilidade por erro sobre a ilicitude do facto, nos termos do art. 17.º CP.

3. PROF. JORGE MIRANDA: aplica o art. 29/4.º CRP por analogia.

4. PROF. FIGUEIREDO DIAS: quanto ao facto da norma inconstitucional discriminalizar a


conduta:

A) O art. 2.º da CRP vincula o Estado às leis que elabora se a pessoa ainda não foi punida
porque praticou um ato antes da lei ser inconstitucional, ou ainda não foi julgado, seria incorreto
que não se estender-se o art. 29/4.º CRP.

B) O Professor sustenta uma dupla analogia por razões de igualdade e segurança jurídica,
integrando-se estes nos casos do art. 29/4.º CRP e art. 282/1.º CRP, o fundamento +e também o
princípio da confiança, e o art. 2.º da CRO que obriga o legislador a ser objetivo imparcial
estabelecendo uma relação de confiança com os destinatários da lei.

113
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

C) E se não for uma descriminalização? Se a lei inconstitucional for mais favorável e estipular
uma redução da pena, não obstante o trânsito em julgado da decisão é aplicável o requerimento
do condenado, nos termos do art. 371.º A do CPP, implicando a reabertura de audiência para a
aplicação da lei concretamente + favorável;

§ Problema da prescrição;

✓ Art. 118.º CP;


✓ São consideradas,as normas prescricionais como materialmente penais, na medida em
que afetam a responsabilidade penal da pessoa.
✓ Assim devem beneficiar do regime da proibição de aplicação retroativa da lei penal,
exceto se se revelarem favoráveis ao arguido nos termos do art. 29/4.º CRP.
✓ Se o prazo já tiver corrido quando a lei nova entrar em vigor considera-se que o
novo regime não se pode aplicar, seira uma aplicação retroativa que fazia renascer uma
responsabilidade penal já extinta – posição do TEDH.
✓ E se ainda não tiver começado a contar o prazo da prescrição? Não é possível uma
aplicação retroativa dos novos prazos mais amplos menos favoráveis ao arguido nos
termos do art. 29/1/3 e 4.º da CRP e art. 1/3.º CP;
✓ Doutrina Alemã: será aplicável a lei nova considerando que não há direito à prescrição
em determinado prazo, não há legítimas expetativas do agente defraudada por alteração
do prazo.

§ ALTERAÇÕES DOS ELEMENTOS DO CRIME;

Momento da prática
do facto – art. 3.º CP

L1 | Crime de perigo abstrato: Quem produzir bens impróprios L2 - Crime de perigo


para consumo é punido com… concreto “…se os bens
forem prejudiciais para
a pessoa humana.

Resolução:
1. O PROF. TAIPA DE CARVALHO, diz que o agente neste caso não deve ser punido por
nenhuma das duas leis, porque para aplicar a L2, tínhamos de vir ao passado buscar um

114
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

novo elemento, mas se assim fosse estaríamos perante o regime a retroatividade


desfavorável que é proibida.

2. O Prof. Taipa de Carvalho refere que não há uma sucessão de leis penais, mas cautela:
SÓ NÃO HÁ SUCESSÃO DE LEIS PENAIS: se o elemento introduzido pela L2 for
verdadeiramente novo, se for um elemento que apenas concretiza ou especializa,
então já há sucessão de leis no tempo, logo não há desresponsabilização para o
agente.

3. O PROF. TAIPA DE CARVALHO refere que o arguido não pode ser julgado ao abrigo da
L1 porque o juízo de necessidade punitiva associado ao mesmo já se encontra
desatualizado não sendo suficiente.

4. A PROFESSORA FERNANDA PALMA: refere que há uma sucessão de leis penais porque
o crime de perigo abstrato aborda por si só, o crime de perigo concreto, ou seja, não há
elemento novo.

CRIME DE PERIGO
ABSTRATO;

CRIME DE
PERIGO
CONCRETO

115
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

APLICAÇÃO DA LEI NO ESPAÇO


Universalidade da lei penal
A íntima associação entre o Direito Penal e os valores essenciais da vida em sociedade
implica uma tendencial universalidade no espaço da tutela penal. A necessária legitimação do
poder punitivo no Estado de Direito democrático e de justiça impõe uma subordinação do Direito
Penal à dignidade da pessoa humana, de modo que um direito penal nacionalista é incompatível
com a ideia de Direito e Justiça em que assenta tal conceção de Estado.
A necessidade de coexistência espacial de diversas ordens jurídicas é, no entanto, uma
limitação natural a um desenvolvimento absoluto dos princípios, de modo que no Direito Penal
de um Estado a territorialidade tende a ser o critério básico da validade espacial da lei penal,
condicionando a apetência para a universalidade.
Por outro lado, a relação com os nacionais e com os interesses nacionais amplia a validade
espacial da lei penal para além dos limites do território segundo uma lógica ainda não
universalista.
Mas, num âmbito que aumenta progressivamente, o Direito Penal de um Estado protege
valores universais para além dos limites do território e dos vínculos nacionais, cooperando com
outras ordens jurídicas e intervindo onde os critérios de validade espacial de outras ordens
jurídicas não permitam uma tutela eficaz de certos bens jurídicos93.
Deixou apenas de ter que ver com a delimitação da soberania punitiva do Estado.
➢ MFP: No EDD a soberania deve ser vista com uma justificação, não só em termos de
afirmação de uma nacionalidade, mas sim uma soberania justificada pela participação
universal da participação na defesa dos DH. Em EDD que consideram a DPH, a
soberania é uma “soberania para”. Soberania para garantir a DPH.94

Qual a relação do princípio da validade espacial da lei penal e do princípio da legalidade?


• Estão relacionados na medida que o âmbito de aplicação da lei penal a nível interno
afeta as expetativas dos eventuais destinatários da norma penal quanto à questão se
se lhes aplica a lei penal. Além da garantia constitucional de lei anterior, tem que
haver aspeto de segurança democrática e garantia de que aquela lei pode ser aplicada
a nós.
• Critérios da aplicação da validade espacial da lei penal são critérios formulados em
atenção à possível abrangência das ações de indivíduos pelas leis penais. Em
princípio deve respeitar-se as leis do território onde se está.
• Âmbito de validade da lei penal no espaço tem a ver com problemas de
previsibilidade, questões de soberania punitivas entre Estados.

93
Tal natureza universal da lei penal é o embrião de um Direito Internacional Penal, do qual se distingue o
chamado Direito Penal Internacional, que corresponde ao âmbito de validade especial do Direito Penal
Português fora do território do Estado.
94
Outros ramos do direito são muito diferentes.
Direito Penal, referindo-se à proteção dos bens essenciais da pessoa e atendendo aos valores que justificam
o próprio Estado, não pode ser radicalmente diverso de países que assentam no EDD. Há uma espécie de
natureza internacional que pode estar associada à filosofa do cosmopolitismo, pelo título de bens e valores
que prossegue.
Sustenta o princípio de reconhecimento mútuo na UE.

116
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Princípio da Territorialidade
O princípio-base no nosso sistema é o princípio da territorialidade95, uma vez que o
território é um elemento do Estado.
Assim, o princípio geral da aplicação do Direito Penal português no espaço é o princípio
da territorialidade da prática do facto (art. 4º CP). Segundo este princípio, o Estado aplica o
seu direito penal a todos os fatos penalmente relevantes que tenham ocorrido no seu
território, com indiferença por quem ou contra quem foram tais factos cometidos.
A aplicação da lei penal portuguesa por força da territorialidade depende do que se entenda
por território português e do que se considere praticar um facto em território português.
➢ Território português é o espaço definido como tal pela CRP, no art. 5º/1 e 2, e
pela lei, incluindo o espaço terrestre, marítimo e aéreo.
➢ Critério do Pavilhão96 – art. 4º/b – alargamento do princípio da territorialidade.

Art. 7º CP – define o que se entende por facto praticado em território português.97


FD: quanto ao lugar da prática do facto, o legislador não optou pelo critério da conduta em
desfavor do resultado (como no tempo do delito), e cumulou os dois critérios no sentido daquilo
que doutrinalmente corre como solução mista ou plurilateral. Esta decisão é teleológica e
funcionalmente fundada. Dada a circunstância de diversos países poderem assumir nesta matéria
critérios diferentes (uns, o critério da conduta; outros, o do resultado), daí derivariam lacunas de
punibilidade que uma política criminal minimamente concertada não poderia admitir.

95
Figueiredo Dias: é o princípio basilar de aplicação da lei penal no espaço, devido a uma dupla ordem de
motivos:
1. Razões de índole interna (razões próprias de direito penal e de política criminal);
• É na sede do delito que mais vivamente se fazem sentir as necessidades de punição e de
cumprimento das suas finalidades, nomeadamente de prevenção positiva.
• É a comunidade onde o facto teve lugar que viu a sua paz jurídica por ele perturbada e
que exige por isso que a sua confiança no ordenamento jurídico e as suas expectativas na
vigência da norma sejam estabilizadas através da punição.
• A estas razões, acresce que o lugar do facto é também aquele onde melhor se pode
investigá-lo e fazer a sua prova e onde, por conseguinte, existem mais fundadas
expectativas de que possa obter-se uma decisão judicial justa.
2. Razões de índole externa (razões de direito internacional e de política estadual).
• O princípio da nacionalidade como base do sistema de aplicação da lei penal no espaço é
a via que facilita em maior medida a harmonia internacional, o respeito pela não
ingerência em assuntos de um Estado estrangeiro.
• Se a aplicação espacial da lei penal nacional é rigorosamente demarcada pelas fronteiras
de cada Estado, e se a generalidade dos Estados aceita este princípio, está então
descoberto o melhor caminho para que não se gerem conflitos internacionais (positivos
ou negativos) de competência interestadual.
96
FD: O critério do pavilhão justifica-se pela consideração tradicional de que aqueles navios e aeronaves
são ainda, se não facticamente, ao menos para efeitos normativos, “território português”. Parece, todavia,
dever entender-se que, sempre que o navio ou aeronave estejam surtos em porto ou aeroporto de país
diferente do do pavilhão, isso não retira competência à lei do lugar em nome do princípio base da
territorialidade, o que só favorecerá a necessidade eventualmente imperiosa, de intervenção imediata de
autoridades policias ou mesmo judiciárias. Quando tal sucede dar-se-á, no máximo, um conflito positivo
de competências.
97
Inês Ferreira Leite: no caso de conflitos plurilocalizados, deve dar-se prevalência ao local onde se tenha
praticado a maior parte do crime

117
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

➢ O legislador penal recorre à teoria da ubiquidade, segundo a qual basta que um


dos dois elementos essenciais do tipo objetivo (ação e resultado) se tenha
verificado em território português para que a lei penal portuguesa se possa
aplicar, como emanação da soberania do Estado português através do seu poder
punitivo, alcançando-se um vasto âmbito de aplicação da lei penal portuguesa.
➢ No entanto, o critério do art. 7º regula em geral o locus delicti, determinando
igualmente qual o país estrangeiro em que se praticou o crime ou em que o crime foi
também praticado segundo a lei portuguesa.
Compreende-se que o critério estabelecido pela lei penal para a determinação do lugar da
prática do facto, baseado no objetivo do máximo alcance da soberania punitiva do Estado, seja
diverso do que se estabelece para o momento da prática do facto (princípio da ação do art. 3º CP),
orientado pelo princípio da legalidade. Mas a lei portuguesa não poderá ser aplicada apesar
de se ter produzido um resultado típico em território português, quando, por força do
critério de aplicação no tempo, o facto não seja punível por não estar previsto em lei anterior
à realização da ação em território estrangeiro.


Os critérios dos arts. 2º e 3º do CP, derivados diretamente do art. 29º/1 CRP, aplicam-se,
assim, independentemente do princípio da ubiquidade que apenas pretende estabelecer o âmbito
de validade espacial da lei penal portuguesa.
A aplicação da lei penal portuguesa nos termos dos arts. 4º e 7º do CP não dispensa a
observância de todos os princípios a que a mesma se subordina (aplicação no tempo,
proibição da analogia, etc.).
Deve entender-se, igualmente, que o art. 7º se basta com a tentativa inacabada, mas não já
com a prática de atos preparatórios98 não puníveis (arts. 21º e 22º CP), para a definição do lugar
da prática do facto.
Quanto ao caso de tentativa, dispõe o nº2 do art. 7º CP. Como a doutrina penal tem
entendido que a tentativa é um crime de perigo concreto99 que os crimes de perigo concreto são
crimes de resultado, tem todo o sentido que caiba no art. 7º CP a mera possibilidade da ocorrência
do resultado no nosso território, isto é, o perigo concreto de uma tal ocorrência, quando toda a
ação criminosa se desenrola no estrangeiro.
Questão que subsiste é a de saber se a mera ocorrência do dano (lesão do bem jurídico) sem
que o resultado típico se verifique em Portugal permite considerar praticado em território
português o facto.
Exemplo:

Se alguém proferir no estrangeiro difamação perante terceiro contra pessoa vivendo em Portugal,
poder-se-á afirmar que o facto foi praticado em Portugal, considerando que apenas a lesão da honra
se conexiona com uma pessoa vivendo em território português e o resultado típico se verificou no
estrangeiro?

98
Com exceção dos atos preparatórios realizados num contexto de comparticipação criminosa, como
sucede, por exemplo, na cumplicidade.
99
O perigo, nos crimes de perigo concreto, é um elemento integrante da factualidade típica, algo que
ultrapassa a ação típica e que se imputa objetivamente àquela, significando um acontecimento relevante
para o Direito para além da ação típica. O perigo afronta assim a Ordem Jurídica e põe em causa a segurança
dos bens e a confiança no Direito, clamando pela soberania punitiva do Estado, do mesmo modo que a ação
ou o resultado.

118
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018


Neste caso, o art. 7º só poderia abranger o dano através de uma analogia incriminadora
proibida pelo art. 1º/3 CP? A resposta será negativa, na medida em que o dano nunca é uma lesão
ideal do bem jurídico totalmente desligada de um certo evento contraponível e imputável à ação
típica. Embora esse evento não seja necessário para a tipicidade, porque o resultado típico pode
corresponder a uma fase menos concretizada e avançada da lesão do bem jurídico, todo o dano
pressupõe, nos crimes de resultado, uma manutenção do resultado típico ou a sua intensificação.
Apesar de bastar para a definição do local da prática do crime a realização do resultado típico,
esse primeiro momento (ou esse momento mínimo) não afasta a conexão com a ordem jurídica
portuguesa, quando apenas se relacione com ela a perduração do mesmo resultado. Será isso
mesmo que aconteceria nos casos de injúria. Deste modo, naqueles tipos legais de crimes em que
a tipicidade se consuma com um resultado anterior à lesão efetiva do bem jurídico (por exemplo,
nos casos dos arts. 256º e 262º do CP), a produção do dano (prejuízo de uma pessoa ou do Estado)
é elemento de conexão especial com a lei portuguesa, pressupondo uma intensificação ou um
desenvolvimento do evento típico.
Finalmente, a Revisão de 1998, previu exatamente uma alteração muito significativa nos
casos em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiver
produzido em território nacional. Também aí, nos casos de crimes de resultado cortado ou parcial
ou naqueles em que se prevê uma espécie de consumação antecipada, de natureza formal, e
existirá uma outra consumação material se determina a aplicação da lei portuguesa. Exemplos
desses casos são os crimes de perigo comum (arts. 272º e ss) ou os crimes de falsificação (arts. 255º e ss).
Em vários desses crimes, também o resultado material que não é já necessário para a consumação continua
a ser relevante para a determinação do lugar da prática do crime.

Princípio da defesa dos interesses nacionais


A territorialidade da lei penal não permite estabelecer exaustivamente uma conexão entre o
poder punitivo e a defesa de bens jurídicos essenciais à preservação de certas condições essenciais
da organização e da segurança da sociedade, sempre que ocorram lesões de bens exteriores ao
território português, mas que façam perigar as condições referidas. O art. 5º/1 a) CP, indica
um elenco de normas que correspondem a essas possibilidades mais frequentes.
É de notar que a Revisão do CP de 1995 introduziu a burla informática entre estes crimes,
contemplando a extraterritorialidade conatural em certas novas modalidades da prática de crimes. As novas
realidades de comunicação e da informática anunciam uma delimitação do âmbito do punitivo dos Estados
menos vinculada ao território. O espaço comunicacional introduz-se como uma nova fronteira do poder
punitivo dos Estados. Todavia, vários outros crimes informáticos que atingem bens coletivos, igualmente
graves ou ainda mais graves do que a burla informática, não são contemplados.

A realidade de novos espaços extraterritoriais de titularidade de interesses nacionais é especialmente


notória em matéria ambiental, em que a ação e o resultado são, por vezes, extraterritoriais, mas em que o
perigo para os bens jurídicos nacionais justificaria imediata intervenção penal. Exemplo: o mero transporte em
território nacional de substâncias radioativas perigosas para o ambiente, sem as devidas precauções.

Assim, outro princípio complementar é o princípio da defesa dos interesses nacionais,


segundo o qual o Estado exerce o seu poder punitivo relativamente a factos dirigidos contra os
seus interesses nacionais específicos, sem consideração do autor que os cometeu ou do lugar em
que foram cometidos.

119
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Princípio da Universalidade da aplicação da lei penal portuguesa


Consagra o art. 5º/1 c) CP, o princípio da universalidade, segundo o qual a validade
espacial da lei penal se delimita pela necessidade de cooperação do Estado português na
proteção penal de bens da humanidade de valor universal. Ou seja, este princípio manda o
Estado punir todos os factos contra os quais se deva lutar a nível mundial ou que
internacionalmente ele tenha assumido a obrigação de punir, com indiferença pelo lugar da
comissão, pela nacionalidade do agente ou pela pessoa da vítima. 100
Os crimes a que este preceito se refere são alguns crimes, especialmente suscetíveis de não
vinculação espacial, contra a liberdade em várias dimensões, incluindo dimensões físicas e
corporais e a autodeterminação sexual.
Assim, o Direito Penal português aplica-se a tais crimes praticados tanto em Portugal
como no estrangeiro “desde que o agente seja encontrado em território nacional e não possa
ser extraditado ou entregue em execução de mandado de detenção europeu ou de outro
instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado português”.
➢ Evita lacunas de punibilidade
Os crimes contra a humanidade, apesar de não integrarem a previsão da alínea c) do art. 5º
CP, seguem um critério universalista igualmente nos termos da Lei nº 31/2004, de 22 de julho,
cf. o seu art. 5º. O âmbito das duas normas é praticamente semelhante, com exceção, no último
caso, de um mero critério de oportunidade quanto à não entrega ao Tribunal Penal Internacional
e não de uma total impossibilidade legal de entrega.
De alguma forma, a universalidade de certas infrações pressupõe uma transnacionalidade das
instâncias punitivas ou pelo menos uma cooperação convencionada entre os Estados na repressão
de tais formas de infração.
A questão que se coloca é saber até onde a validade espacial das leis internas pode e deve ir
sem que o princípio da cooperação entre as ordens jurídicas inerentes se adultere, potenciando a
conflitualidade entre os Estados.
O princípio geral numa conceção cosmopolita de soberania será necessariamente o de uma
soberania justificada pela própria função internacional humanista e humanitária do Estado de
Direito democrático, no sentido cooperativo com os outros Estado que se orientem pelos mesmos
desígnios.
Ainda como extensão deste mesmo princípio, surge o art. 5º, alínea d). trata-se de uma
extensão do âmbito da lei penal portuguesa justificada pela política internacional em que
Portugal participa destinada a conceder uma especial proteção aos menores em face da
criminalidade internacional.
O princípio da universalidade assume cada vez maior importância no mundo atual, não só
devido à crescente preocupação internacional com certo tipo de infrações, que, paralelamente,
deram lugar à criação de jurisdições internacionais para o conhecimento desses crimes, como
também por força do caráter global de certos riscos dotados de potencial lesivo transnacional em
matéria de ambiente, manipulação genética, criminalidade altamente organizada, etc.

100
FD: O princípio da universalidade visa permitir a aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos
no estrangeiro que atentam contra bens jurídicos carecidos de proteção internacional ou que, de todo o
modo, o Estado português se obrigou internacionalmente a proteger. Por isso o princípio deve valer
independentemente da sedes delicti e da nacionalidade do agente. Do que se trata é do reconhecimento do
caráter supranacional de certos bens jurídicos e que por conseguinte apelam para a sua proteção a nível
mundial.

120
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Princípio da Nacionalidade
Princípio segundo o qual o Estado pune todos os factos penalmente relevantes praticados
pelos seus nacionais, com indiferença pelo lugar onde eles foram praticados e por aquelas
pessoas contra quem o foram.
➢ FD: O princípio da nacionalidade surge como princípio da personalidade ativa: o
agente é um português.
➢ Fala-se, todavia, hoje, também, de um princípio da personalidade passiva, para
efeitos de aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiro por
estrangeiros contra portugueses.
Consagrado no art. 5º/1 e) CP.

• A lei penal aplica-se a factos praticados fora do território nacional por portugueses
(princípio da nacionalidade ativa) ou por estrangeiros contra portugueses (princípio
da nacionalidade passiva), desde que certos requisitos (art. 5º/1 e i, ii e iii) se
verifiquem.101

O princípio da nacionalidade justifica-se pelo vínculo dos cidadãos portugueses à


soberania punitiva do seu próprio Estado (nacionalidade ativa) e pelo dever de o Estado
português conceder proteção aos bens jurídicos de que os cidadãos portugueses sejam
titulares, ainda que no estrangeiro (nacionalidade passiva).

101
FD: Análise do art. 5º/1/e CP
i. Agentes encontrados em Portugal
• Esta condição explica-se:
o Quanto ao princípio da personalidade ativa, por ser nela que se
concretiza a razão que lhe dá fundamento: a não extradição de
nacionais;
o Quanto ao princípio da personalidade passiva, por nele se tratar de
uma extensão do princípio da nacionalidade justificada por razões de
índole muito especial.
ii. Que o facto seja também punível pela legislação do lugar em que tiver sido praticado
• Esta é a condição materialmente mais importante de aplicação do princípio da
nacionalidade e que mais claramente o converte em princípio subsidiário.
• Não é em regra razoável estar a submeter ao poder punitivo alguém que
praticou o facto num lugar onde ele não é considerado penalmente relevante
e onde, por isso, não se fazem sentir quaisquer exigências preventivas. Pelo
menos no que tange o princípio da personalidade ativa. Já considerando o
fundamento da personalidade passiva, a exigência torna-se menos clara, uma
vez que o que aí está em causa é um propósito de proteção de interesses
especificamente nacionais.
iii. Que o facto constitua crime que admita extradição e esta não possa ser concedida. É
um requisito negativo. Quem não extradita, julga.
• Trata-se aqui claramente de uma reafirmação da conceção do legislador
segundo a qual o princípio da territorialidade deve não apenas no conspecto
nacional, mas internacional, constituir o princípio-base, e o princípio da
nacionalidade o complemento. Se a extradição fosse jurídica e facticamente
possível, ela deveria ser concedida e o princípio pessoal deveria regredir.
.

121
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

• O princípio da nacionalidade ativa dá expressão ao princípio da não extradição de


nacionais consagrado no art. 33º CRP.
• Na verdade, a contrapartida da proibição da extradição de nacionais, na ordem
internacional, só pode ser o dever de o Estado português assegurar a perseguição
penal ou o julgamento dos factos criminosos praticados pelos cidadãos portugueses
no estrangeiro.

Requisitos cumulativos do art. 5º/1/e com expressão de punibilidade. Estes requisitos limitam
o âmbito de influência do poder punitivo do Estado português com um duplo fundamento:

→ Por um lado, a aplicação da lei penal portuguesa pressupõe um mínimo de respeito


pelas expectativas dos agentes envolvidos e pelo sentido de desvalor (de ilícito) das
suas condutas no estrangeiro, bem como pela igualdade entre aqueles agentes e os
estrangeiros que a lei penal portuguesa não possa abranger. Assim, os agentes terão
de ser puníveis pela legislação do lugar em que os factos foram praticados.
→ Por outro lado, os agentes terão de ser encontrados em território português e não
poderão ser extraditados ou entregues a outro título incluindo os casos em que essa
situação dependa de uma decisão do Estado português. Segundo esta última
condição, deve estar-se perante uma situação em que o Estado português possa punir
aqueles agentes, por razões materiais (presença em território português) e jurídico-
constitucionais (por força dos seus princípios constitucionais – art.33º/1 a 3 – estará
colocado numa posição em que só ele possa punir ou em que exista a possibilidade
legal de ser o Estado português a punir e assim seja decidido).

Art. 5º/1/b CP ainda alarga o poder punitivo do Estado português às situações em que
portugueses cometam factos no estrangeiro contra portugueses, sem que o requisito da
punibilidade pela legislação do lugar se verifique, desde que tais agentes vivam habitualmente
em Portugal ao tempo da prática desses factos e aqui sejam encontrados.


Esta última manifestação da nacionalidade reporta-se a situações em que os
agentes praticam os factos no estrangeiro para se subtraírem
propositadamente ao poder punitivo do Estado português, sem que, no entanto,
estejam determinados pela irrelevância penal das suas condutas, não tendo
cabimento assegurar expectativas ou proteger a igualdade na proteção jurídica entre
esses agentes e os estrangeiros.
A necessidade político-criminal justifica-se nestes casos enquanto se
sancionam portugueses que mantêm um dever de fidelidade à lei portuguesa devido
a um vínculo ativo de cidadania, na medida em que vivem habitualmente em
território português.
Nestes casos, as condições do art. 5º/1/e não são exigidas, porque há
verdadeiramente um interesse em aplicar ao agente a lei penal portuguesa e não
apenas em suprir lacunas de punibilidade.
Pode questionar-se quais os contornos concetuais e o âmbito da exigência de punição no
lugar em que os factos tiverem sido praticados. É exigida uma punibilidade em abstrato (as meras
tipicidade e ilicitude) ou em concreto a inexistência de causas de exclusão da culpa ou da
punibilidade reportas à pessoa do agente?

122
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

A lógica imanente ao princípio bastar-se-ia, em rigor, com a tipicidade e a ilicitude dos


factos no território estrangeiro, i.e., com a sua contrariedade objetiva à ordem jurídica
estrangeira, pois só estas categorias fundamentariam expectativas quanto à irrelevância do facto,
ao seu não desvalor. Todavia, uma aplicação da lei penal portuguesa de que decorresse uma
punibilidade de factos não puníveis em concreto no estrangeiro (devido a certas condições
do agente, como a idade) redundaria numa violação do princípio da aplicação da lei penal
estrangeira mais favorável, expresso (ainda que restritamente e referido às situações do art.
6º/1), no art. 6º/2 CP.

→ Prof. Maria Fernanda Palma: a melhor interpretação do art. 5º/1/e/ii CP, imporá que a
lei penal portuguesa seja aplicável, por força do princípio da nacionalidade conjugado
com o da aplicação da lei penal estrangeira mais favorável, somente nos casos em que o
facto seja em concreto punível no país estrangeiro.
o A circunstância do art. 6º/1 CP impor a aplicação da lei penal estrangeira
mais favorável nos casos em que o agente foi julgado no estrangeiro (e se
subtraiu à condenação) ou não foi julgado no estrangeiro impõe, por maioria
de razão, que onde o agente nem pudesse ter sido julgado no estrangeiro (por
força de uma condição de procedibilidade) ou em que, se fosse julgado
nunca poderia ter sido condenado (em virtude de causa de exclusão de culpa,
por exemplo), nem sequer deva ser submetido à aplicabilidade da lei penal
portuguesa.

Historicamente, o art. 5º/1/b CP tinha como objetivo contemplar crimes como a bigamia e
o aborto. Pergunta-se, hoje, se este último crime pode ser entendido como crime contra
portugueses, sem o recurso a analogia, no caso do aborto consentido previsto no art.140º/2 CP, já
que o feto parece não ser, no sentido normal das palavras, um cidadão português.
Ora, apesar de o aborto consentido proibido ter como objeto da ação típica o próprio feto e
o bem jurídico ser a vida intra-uterina, são ainda os interesses da sociedade portuguesa como um
todo, como em qualquer outro crime, que são afetados. A vida intra-uterina de “futuro cidadão
português” é assim um bem jurídico cuja tutela penal se tem que justificar por um interesse
objetivo da sociedade.
Não há, portanto, neste caso, qualquer necessidade de recorrer à analogia, entre o
conceito de feto e o de cidadão português, na medida em que é possível através de
interpretação sistematicamente justificada referir o sujeito passivo do crime a toda a
sociedade, isto é, a todos os portugueses.
Por outro lado, em inúmeras outras infrações, há uma mera titularidade coletiva do bem
jurídico a justificar a incriminação, como acontece nos crimes contra a vida em sociedade ou
contra o Estados (arts. 247º-307º e 308º-385º CP).
Segundo esta argumentação não estaríamos, assim, perante qualquer analogia proibida.
Todavia, não podemos esquecer que o art. 5º/1, al. b CP é um paralelo da al. e) na alínea e
nesta última alínea pensamos em portugueses como pessoas jurídicas. Assim, o elemento
sistemático impede entender o sentido das palavras em termos meramente semânticos.
Assim, sendo a norma sistematicamente mais próxima o art. 5º, al. e), aparentemente referida
à direta proteção pessoal dos portugueses, na perspetiva da nacionalidade passiva, e não aos
interesses coletivos dos portugueses e sendo simultaneamente a alínea b) moldada pelo sentido
da alínea e), como uma sua extensão, o elemento sistemático da interpretação de uma norma

123
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

que consagra um alargamento excecional do princípio da nacionalidade não poderá integrar


interesses gerais e coletivos dos portugueses sem ultrapassar o sentido possível das palavras.
➢ Prof. Maria Fernanda Palma: deve restringir-se a interpretação da alínea b) só
as vítimas pessoais que estão abrangidas.
o Esta restrição na interpretação do sentido possível das palavras corresponde
à ideia dos limites da interpretação permitida em dois passos: sentido
possível das palavras e essência do proibido. Assim, para a Prof. deve haver
uma invocação da essência do proibido invocando o elemento sistemático.
Finalmente, a alínea g) do art. 5º/1 CP veio estender o princípio da nacionalidade, tanto ativa
como passiva, às pessoas coletivas com sede em território português. Esta norma tem de ser
articulada com o art. 11º CP, que estabelece os casos e pressupostos da responsabilidade penal
das pessoas coletivas.

Restrições à aplicação da lei penal portuguesa por força da aplicação mais


favorável do direito estrangeiro (art. 6º/2 CP)
O art. 6º/2 CP consagra igualmente uma restrição à aplicação da lei penal portuguesa menos
favorável, nos casos em que ela seja aplicável por força dos princípios da universalidade e da
nacionalidade, isto é, quando não estejam em causa os princípios da territorialidade e da defesa
dos interesses nacionais (art. 6º/1 e 3 CP) e sempre que o agente encontrado em território nacional
“não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total
ou parcial da condenação”.
Esta restrição é explicitamente excluída, porém, nos casos de terrorismo (art. 8º/2,
relativamente aos crimes de organização terrorista e de terrorismo previstos nos arts. 2º e 4º da
Lei nº 52/2003) e nos crimes de violação do Direito Internacional Humanitário previstos na Lei
nº31/2004, nos termos do art. 5º/2. Dada a gravidade dos crimes e o facto de o Estado Português
se assumir como representante da comunidade internacional de modo proativo e não meramente
para cobrir lacunas de punibilidade, não se justifica a aplicação da lei estrangeira mais favorável
nestes casos.
Consiste tal restrição na exigência de naqueles casos ser aplicada a lei do país em que o
facto tiver sido praticado sempre que aquela for concretamente mais favorável ao agente
(art. 6º/2).
A razão de ser de tal restrição à aplicação da lei portuguesa é a conjugação da
subsidiariedade do exercício do poder punitivo do Estado português nesses casos com os
princípios da culpa, da igualdade, da necessidade da pena e da segurança jurídica (arts. 1º,
13º/1, 18º/2 e 29º/1 CRP).
Na verdade, nessas situações o Estado português pune porque outro Estado não pôde
punir, mas não deixa de conceber a punição de acordo com os seus princípios
constitucionais.
➢ A punição, em termos mais graves, pelo direito português não garantiria uma
adequação da consciência da ilicitude do agente ao desvalor da ação e à gravidade
do ilícito para ele previsível.
A ratio do princípio da aplicação da lei estrangeira mais favorável não abrange as alíneas
a) e b) do art. 5º/1 CP, na medida em que, aí, o poder punitivo do Estado português não é de
modo algum subsidiário.

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Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

• Resulta assim do próprio art. 6º/1 e 2, que as situações contempladas naquele outro
preceito não deveriam ser incluídas.
• Na verdade, o art. 6º pressupõe que o facto seja punível em país estrangeiro,
enquanto a alínea a) ou b) do art. 5º/1 se baseiam, exatamente, em o facto não ser
punível no território em que é praticado nem em abstrato nem em concreto102 ou ser
menos gravemente punível.
Também a circunstância de o art. 5º/1/e ii, ter sido interpretado com referência ao princípio
da aplicação da lei penal mais favorável, fazendo uma interpretação da punibilidade pela
legislação estrangeira no sentido de punibilidade em concreto, não contende com a referida
subtração da alínea b) do art. 5º/1 CP ao mesmo princípio, pois os casos previstos neste último
preceito nunca são, por natureza, comparáveis (em termos de igualdade e necessidade) aos factos
semelhantes cometidos por estrangeiros no respetivo país.
A subtração ao princípio da lei mais favorável também se prevê, nos casos de terrorismo (art. 8º/2,
relativamente aos crimes de organização terrorista e de terrorismo previstos nos arts. 2º e 4º da Lei nº
52/2003) e nos crimes de violação do Direito Internacional Humanitário previstos na Lei nº 31/2004, nos
termos do art. 5º/2 CP. Dada a gravidade dos crimes e o facto de o Estado Português se assumir como
representante da comunidade internacional de modo proativo e não meramente para cobrir lacunas de
punibilidade, não se justifica a aplicação da lei estrangeira mais favorável.

A aplicabilidade da lei penal portuguesa e o princípio non bis in idem


O art. 6º/1 CP exprime um condicionamento geral da aplicabilidade da lei penal portuguesa
pelo princípio non bis in idem, segundo o qual ninguém pode ser julgado mais do que uma vez
pela prática do mesmo crime (art. 29º/5 CRP). Assim, pressuposto da efetivação dos princípios
da nacionalidade e da universalidade é o facto de o agente, encontrado em Portugal, não ter sido
julgado no país da prática do facto ou ter-se subtraído ao cumprimento total ou parcial da
condenação.
Por outro lado, este preceito traduz ainda a ideia segundo a qual o critério da territorialidade
deve constituir efetivamente o princípio prioritário e todos os outros assumirem a veste de
princípios supletivos.
O art. 6º/2 CP, por outro lado, prevê nos casos em que haja efetivamente lugar à aplicação
da lei penal portuguesa que a lei penal estrangeira mais favorável em concreto se imponha, sendo
a pena aplicável posteriormente convertida numa pena correspondente no sistema penal português
ou, se a correspondência não for possível, na pena que estiver prevista para o facto.
Questão que imediatamente se levanta é a de saber se, havendo condenação ou cumprimento
parcial da pena, no país estrangeiro, tal facto não deverá impedir o julgamento, em Portugal, pela
prática dos mesmos crimes com vista ao cumprimento da pena (total ou parcialmente) em
Portugal, por força do princípio non bis in idem?
Pressuposto da resposta a tal questão é o próprio âmbito constitucional do princípio non bis
in idem103. Abrangerá o art. 29º/5 CRP o julgamento anterior no estrangeiro pelo mesmo crime
ou apenas o julgamento pelos tribunais portugueses?

102
Punição em concreto significa punibilidade efetiva do facto, consideradas todas as circunstâncias da sua
ocorrência e até mesmo os aspetos relacionados com a culpa do autor.
103
Sobre esta questão, Gomes Canotilho e Vital Moreira referem, todavia, apenas o âmbito literal da
proibição constitucional, distinguindo o duplo julgamento da dupla penalização e concluindo que, embora
só o primeiro seja vedado expressamente pela CRP, o segundo é abrangido pelas finalidades da proibição
constitucional. Ora, essas finalidades não podem ser totalmente esclarecidas apenas pelo sentido histórico

125
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018


A resposta a tal questão, no puro plano da constitucionalidade, impõe o reconhecimento de
que o princípio non bis in idem é a expressão da garantia de que a perseguição criminal
mediante o processo penal não é instrumento de arbitrariedade do poder punitivo, utilizável
renovadamente e sem limites, mas é antes um modo controlável e garantido de aplicação
do Direito Penal.
Assim, tanto a repetição do julgamento pelo mesmo crime, de que se foi absolvido ou
condenado a certa pena, como a repetição da punição do agente já condenado e punido
constituem claras negações do valor geral do processo penal e do direito do arguido a que o
Estado se vincule ao desfecho do processo penal que desencadeou.
Esta lógica fundamentadora não restringe a aplicação do princípio aos julgamentos
realizados por tribunais portugueses. Por outro lado, o poder punitivo do Estado português terá
que se justificar pela estrita necessidade de intervir (julgar e punir), nos termos do art. 18º/2 CRP.
De um modo geral, a necessidade de intervenção do poder punitivo quando uma pessoa for
julgada e absolvida no estrangeiro ou já aí cumpriu a pena, não existe. Apenas quando a
intervenção penal se justifica pela proteção de interesses nacionais é legítima a renovada
intervenção punitiva do Estado português.
O princípio non bis in idem surge, deste modo, como uma emanação de duas ideias
fundamentais: a vinculação do poder punitivo do Estado de Direito pelo desfecho do processo
penal e o próprio princípio da necessidade da intervenção penal.
➢ Prof. Maria Fernanda Palma: este horizonte valorativo do princípio non bis in
idem assegura-lhe universalidade, mas pressupõe, igualmente, uma harmonização
dos direitos que não existe na comunidade internacional.
O sentido da expressão “julgado pelo mesmo crime”104, no art. 29º/5 CRP, é conferido
essencialmente pelos conceitos de processo penal e de julgamento na ordem jurídica portuguesa,
de modo que um “julgamento” sem quaisquer garantias de independência e imparcialidade
do tribunal não pode em rigor impor a aplicação do princípio non bis in idem.105

do princípio (dimensão de defesa contra o Estado e de obrigação do Estado à definição no caso julgado
material), mas terão de ser compreendidas na conexão desta proibição constitucional com a ideia de Estado
de Direito (princípio de limitação do poder do Estado pelo seu Direito – objetividade e confiança) e com o
princípio da necessidade da intervenção penal.
104
O que se entende por “o mesmo crime” não é fácil de compreender – são os mesmos factos sociais mas
com diferente nomem iuris? São somente o cartão de identidade do crime?
Ex: certos Estados não têm figura de violência doméstica, mas têm as ofensas corporais. Alguém que já foi
julgado por ofensas corporais pode depois em Portugal ser julgado por violência doméstica?
MFP: se o que fosse decisivo fosse apenas o nomen iuris ou a perspetiva do legislador nacional, podia-se
incorrer em duplicações, que do ponto de vista das garantias podiam ser muito restritivas da liberdade dos
destinatários e da segurança jurídica. O nomem iuris não é significativo. O que é significativo é que a
significação social e cultural dos factos sejam valorados/contemplados de forma essencialmente
idêntica nos diferentes Estados e o bem jurídico, aquilo que está protegido, é essencialmente idêntico.
O que dita é o significado pré-social do facto e o conteúdo do bem jurídico protegido pelas normas.
105
Quando não há convenção entre Estados, os Tribunais portugueses não fazem cumprir sentenças
estrangeiras de forma imediata e direta, porque poderão não respeitar as CRP e as garantias
processuais penais. Tem que haver alguma forma de se reconhecer as sentenças estrangeiras.
➢ Lei 144/99 dá solução.
o Art. 95º e 100º - permite executar em Portugal as sentenças estrangeiras nas condições
da lei
o Não se pode dizer que há violação do non bis inidem quando a lei nacional instaura um
procedimento que é de verificação de garantias – não há novo julgamento, há só

126
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

A questão de que se partiu sobre se a condenação e o cumprimento parcial de sentença


estrangeira não obstam a novo julgamento pelos factos em Portugal tem, assim, duas respostas
possíveis:

 Uma resposta moderada, segundo a qual os efeitos (negativos) das sentenças


estrangeiras previstos no art. 6º/1 CP são a máxima expressão possível e exigível
pela CRP. Tal resposta, sem excluir o princípio da transnacionalidade do non bis in
idem, limita o seu âmbito internacional a julgamentos absolutórios ou em que houve
cumprimento da condenação (isto é, em que não houve subtração ao cumprimento
total ou parcial da condenação);

 Uma resposta mais radical, considera o art. 6º/1 CP, in fine, incompatível com o art.
29º/5 CRP, na medida em que em caso de subtração ao cumprimento da pena se
viesse renovar, em Portugal, o julgamento pelo mesmo crime.
A inconstitucionalidade dessa parte final do art. 6º/1 CP seria sempre evitada,
todavia, pela interpretação do preceito no sentido de que o novo julgamento (pelo
qual nunca seria aplicável lei penal menos favorável a que fundamentou a
condenação) se limitaria a rever e confirmar a sentença estrangeira à luz da lei penal
mais favorável, nos termos preconizados pelo CPP.

Porém, a proteção mais absoluta do non bis in idem em situações em que não haveria qualquer
acordo internacional sobre a eficácia das sentenças estrangeiras não é exigível pela CRP, desde
que o novo julgamento preconizado esteja contido nos seus resultados pelo princípio do
“desconto”, isto é, desde que a pena já cumprida seja efetivamente descontada na condenação
(art. 82º CP). Deste modo, o princípio non bis in idem atinge em absoluto um efeito impeditivo
de dupla punição, mas não um efeito impeditivo de repetição do julgamento realizado em país
estrangeiro.

O art. 6º/2 CP estabelece ainda um sistema de conversão da pena aplicável naquela pena que
lhe corresponder no sistema português ou que a lei portuguesa previr para o facto. Tal sistema
refere-se não só à aplicação do Direito Penal estrangeiro em sentença proferida por tribunais
portugueses como também à revisão e à confirmação de sentença penal estrangeira pelos tribunais
portugueses.

A conversão é não só decorrência de um princípio de:


→ Praticabilidade – só a pena correspondente é necessária;
→ Necessidade da pena e non bis in idem – a pena aplicável nunca poderá, pela
conversão, vir a impor uma espécie de segunda punição (ou qualquer punição mais
gravosa) do agente que se subtrai total ou parcialmente à execução da pena.

verificação de requisitos se não há obstáculos ao cumprimento da sentença em


Portugal.

127
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Cooperação Judiciária Internacional


EXTRADIÇÃO
Instituto com muitos séculos em que se articula a soberania punitiva de diversos Estados. A
cooperação judiciária internacional coloca vários problemas relevantes quanto aos limites de
aplicação da lei penal no espaço106.
Há, com efeito, dois tipos de situações que interferem com a aplicação da lei penal
portuguesa a factos praticados por estrangeiros ou fora do território nacional por estrangeiros e
por portugueses no estrangeiro:

 O impedimento de extraditar certos agentes por razões legais e constitucionais;


 Os deveres de julgar nos casos em que não se possa extraditar ou em que se tenha decidido
não o fazer, dando expressão legal ao princípio aut dedere aut judicare.
Quanto aos impedimentos de extraditar, estão, desde logo, previstos nos arts. 33º/3, 4 e 6
CRP – há grandes princípios por onde se orienta a extradição.
1. PRINCÍPIO DA NÃO EXTRADIÇÃO DE NACIONAIS, limitado apenas por convenções
internacionais nos casos de terrorismo e criminalidade organizada, em condições de
reciprocidade, na condição de a ordem jurídica do Estado requisitante consagrar as garantias de
um processo justo e equitativo107, isto é, as garantias fundamentais da independência dos tribunais,
dos direitos de defesa e de recurso (em suma, todas as garantias que decorrem sobretudo do art.
32º CRP).

•Art. 33º/3 CRP – princípio mais comum a todos os Estados


•Norma incompleta, pois pretende ser exaustiva mas não pode dizer tudo e não diz que
não é admitida nos termos do art. 33º/4, 5 e 6 (apesar da flexibilização do art. 33º/3,
estes números vêm colocar mais exceções).
o Princípio geral com exceção desses casos.
2. PRINCÍPIO DA NÃO EXTRADIÇÃO POR CRIMES A QUE CORRESPONDE,
SEGUNDO O DIREITO DO ESTADO REQUISITANTE, PENA DE MORTE OU OUTRA
DE QUE RESULTE LESÃO IRREVERSÍVEL DA INTEGRIDADE FÍSICA (art. 33º/6
CRP e art. 6º, al. e da Lei nº 144/99108)

• Este princípio não admite qualquer flexibilidade na sua interpretação de que


resulte uma possibilidade de o Estado português se bastar com uma garantia política
concreta de que tais penas não se aplicarão.
• É verdade que o art. 6º/1 al. a) admite a cooperação no caso referido neste preceito;
mas, segundo, a interpretação que resulta de vários Acórdãos do TC e, por último,
do ACÓRDÃO DO TC Nº 1/2001, a interpretação consistente com a CRP é a de
que esta garantia corresponde a uma espécie de alteração da ordem jurídica do
Estado requerente em concreto, vinculativa em termos jurídicos dos tribunais e do
próprio poder político, uma vinculação jurídica no sentido essencial do Estado de
Direito e da correspondente interpretação de poderes.

106
Relaciona Estados que são parceiros no plano internacional e articulam-se as soberanias punitivas,
submetendo-os a alguns critérios.
107
A configuração concreta de um processo justo e equitativo não tem de ser moldada á imagem e
semelhança da CRP, mas apesar de estruturas processuais diversas oferecidas pelo Direito estrangeiro, têm
de estar asseguradas as garantias essenciais de um processo penal de Estado de Direito como resultam desde
logo das fontes internacionais, tais como a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (arts. 5º, 6º e 7º,
sobretudo) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (arts. 8º a 11º, fundamentalmente).
108
critério é muito importante porque há total coerência com a CRP e na cooperação judiciária internacional
com a posição de Portugal quanto à pena de morte.

128
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

o
Garantias diplomáticas nunca serão admitida.
o
O Estado requisitante tem de, de acordo com a sua ordem jurídica, vincular-
se juridicamente que, para aquele caso em concreto não haverá pena de
morte – não basta uma vinculação politica ou diplomática, tem que
haver uma alteração da ordem jurídica daquele Estado concreto para
que, naquele caso, não se aplique a pena de morte.
o Art. 6º/f Lei 144/99 não corresponde exatamente à CRP mas é lugar paralelo.
3. PRINCÍPIO DA RESTRIÇÃO DA EXTRADIÇÃO POR CRIMES A QUE
CORRESPONDA “SEGUNDO O DIREITO DO ESTADO REQUISITANTE PENA OU
MEDIDA DE SEGURANÇA PRIVATIVA OU RESTRITIVA DA LIBERDADE COM
CARÁTER PERPÉTUO OU DE DURAÇÃO INDEFINIDA” (art. 33º/4 CRP e 6º/1, al f da
Lei 144/99).

• Desde 1997, cf. o ACÓRDÃO DO TC Nº 474/95, tornou-se claro que, em matéria


de infrações a que corresponda pena de prisão perpétua no Direito do Estado
requisitante, a CRP flexibilizou a exigência de garantias do Estado que requeira
a extradição, não exigindo tal como na pena de morte uma autêntica alteração
da ordem jurídica em concreto, mas apenas uma vinculação convencional no
plano do Direito Internacional do Estado requisitante.
o Para a prisão perpétua (art. 33º/4) tem de haver garantias de direito
internacional, numa determinada convenção que prevê as garantias de que
a pena não será executada – enquanto nº6 exige uma alteração da ordem
jurídica, no caso da prisão perpétua não tem de haver uma alteração da
ordem jurídica interna mas tem de haver uma convenção a nível do DIP
para que haja uma garantia internacional, tendo em conta que o DIP tem
vinculatividade para os Tribunais internos.109

• Não se trata, é certo, de uma mera garantia diplomática ad hoc, mas de uma
vinculação com juridicidade, embora apenas no plano internacional110. Sobretudo
após 2004, tornou-se claro que as garantias estão associadas a uma convenção
internacional e não serão apenas um plus relativamente a uma convenção em matéria
de extradição. A interpretação de que seriam bastantes garantias diplomáticas
concretas ad hoc não resulta da norma constitucional.
• Deste modo, o sentido do texto corresponde a uma exigência de um acordo entre o
Estado português e o outro Estado em matéria de extradição, não necessariamente

109
Acórdão do TC foi muito discutido se já não se estaria a violar os limites materiais de revisão.
Acórdão diz que, diferente do que pretendia o provedor de justiça, não é inconstitucional o art. 6º/2/a Lei
144/98 – possibilidades de cooperação aí previstas
• MFP: deve ser entendido para não violar a CRP (art. 33º/6), no sentido de que há vinculação
jurídica dos Tribunais ex-ante, antes de ser concedida a extradição. Tem que haver alteração
jurídica interna, de modo vinculativo e irreversível para os Tribunais.
• Imprecisão do conselheiro Cardoso da Costa é em relação à prisão perpétua ou penas de caráter
indefinido – ainda tem de existir vinculação jurídica, não necessariamente de direito interno,
mas tem de haver uma vinculação ao nível do DIP, através de convenção que vincule o Estado
Português.
o Não é um acordo de extradição, é necessário uma convenção que contenha como objeto
as garantias (de DIP) de respeito e de não aplicação da pena perpétua – são garantia
jurídicas e não apenas políticas.

Grande tema de discussão do acórdão: desligar a pena de morte da pena de prisão perpétua não viola os
limites materiais de revisão da CRP?
• Não ultrapassa os limites do art. 33º/4 CRP pois ainda há garantias de DIP que têm de existir.
110
Cf. o Acórdão do TC nº1/2001 e nº348/2005.

129
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

bilateral, poderá ser multilateral, que contemple como condição as garantias


constitucionais de não aplicação da prisão perpétua.

Extradição – outros critérios legais

Para além destes princípios de matriz constitucional, a LEI Nº 144/99 estabelece critérios
gerais relativos à cooperação judiciária internacional em matéria penal, aplicáveis tanto à
extradição passiva (o Estado português é solicitado) como à extradição ativa (o Estado português
é requisitante), tais como a reciprocidade e a especialidade. Por outro lado, a lei também prevê,
para além dos requisitos gerais da extradição, requisitos concretos de inadmissibilidade da
extradição e outras razões apenas invocáveis facultativamente pelo Estado português.

• A reciprocidade está prevista no art. 4º como critério geral, embora não obste, no
caso de não se verificar, à cooperação se razões de política criminal várias o
aconselharem, tais como a prevenção geral, a prevenção especial e a própria proteção
de cidadãos portugueses.
• A especialidade prevista no art. 16º é uma garantia e uma condição da validade da
extradição.
Finalmente, para além dos requisitos gerais negativos constitucionais relativos à extradição
passiva, que a lei igualmente formula e densifica nos arts. 6º e 32º, prevê ainda a lei outros
requisitos tais como o facto ter sido cometido em território português (art. 32º/1 a), o facto de
o crime ser da competência do tribunal requisitante e ser punível pela lei portuguesa e pela
lei do Estado requisitante com pena não inferior a um ano de prisão (art. 31º/2) ou o crime
não ter uma determina natureza como, para além da já referida natureza política, a natureza
militar (art. 7º/1 b).
Note-se que a interpretação das garantias exigíveis para a extradição referidas no art. 6º/2 b,
foi objeto de fiscalização de constitucionalidade pelo Ac. do TC nº 1/2001, o qual embora apenas
tivesse tido como objeto a norma relativa à pena de morte prevista no art. 6º/2 a, acabou por
analisar ainda a própria al. b, referindo a sua compatibilidade com a CRP.
Outra causa de inadmissibilidade da extradição é a extinção da responsabilidade penal do
extraditando por extinção do procedimento criminal em Portugal ou noutro Estado em que
tenha sido instaurado o procedimento criminal pelo mesmo facto (art. 8º). Trata-se de uma
ausência de fundamento e de verificação do fim da extradição, a que se refere o art. 31º e em geral
uma decorrência do princípio non bis in idem, previsto no art. 29º/5 CRP.
A Lei nº 144/99 prevê ainda situações de recusa facultativa de extradição, como a reduzida
importância da infração (art. 10º), outros critérios atinentes de política criminal (art. 18º) ou ainda,
os casos de cidadãos nacionais em que, sendo possível a extradição, nos termos de convenção
internacional, de certos crimes como o de terrorismo ou de criminalidade organizada, o Estado
Português decida não o fazer, o que resulta do art. 32º/2 da Lei nº 144/99, que prevê a
admissibilidade da extradição nesses casos, mas não a sua obrigatoriedade.

MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU


Esta figura tem uma inserção constitucional diferente da extradição e surge como um
mecanismo de articulação judiciária internacional no âmbito do DUE.

130
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Previsto na LEI Nº 65/2003, de 23 de agosto, baseia-se numa racionalidade da União em


matéria de justiça e segurança correspondente ao chamado terceiro pilar da construção europeia que
resultou dos acordos de Tampere, ao chamado princípio do reconhecimento mútuo de sentenças – Baseia-
se num princípio, iniciado nos anos 90 (Acordos de Tampere), de que as decisões judiciais dentro da UE
devem ser reconhecidas mutuamente, devido a haver confiança recíproca mútua porque têm estatuto prévio
de Estado de Direito.

Originário na Decisão-Quadro do Conselho de 13 junho de 2002 (2002/584/JAI), constitui


hoje o principal instrumento de cooperação judiciária na UE. Ele permite a detenção e entrega
por um Estado a outro Estado de pessoas procuradas para efeitos de procedimento criminal
ou cumprimento de pena (incluindo cidadãos nacionais), com base num princípio de
reconhecimento mútuo.
Relativamente a um vasto catálogo de crimes graves, este instrumento de cooperação
dispensa a verificação da dupla incriminação (pelo Estado de emissão e pelo Estado de execução
do mandado). Esse elenco inclui, entre muitos outros, a organização criminosa, o terrorismo, o
homicídio, o tráfico de pessoas, drogas, armas e viaturas, a exploração sexual de crianças, a
corrupção e o branqueamento (art. 2º/2).
O mandado de detenção europeu pressupõe o reconhecimento mútuo de decisões judiciais,
que assenta na confiança recíproca e na tendencial harmonização dos Direitos dos Estados. A
sua aplicação não está isenta de dificuldades e, por exemplo, o TC alemão já a julgou
inconstitucional por mais de uma vez, por violação dos princípios da proteção de nacionais e da
legalidade.
Apesar disso, o mandado de detenção europeu tem uma utilização muito frequente e o seu
modelo inspirou o mandado europeu de obtenção de provas. Este novo instrumento permite a
um Estado solicitar a outro, para efeitos de utilização num processo, a apreensão e preservação
de meios de prova obtidos no território deste.

Regime geral e Mandado de Detenção Europeu


Art. 33º/3 CRP tem exceções, mas, também é limitado pelo art. 33º/4 e 33º/6.

• Mas já não é bem assim, devido ao Mandado de Detenção Europeu (Lei 65/2003).
• Art. 13º tem condições que não são tão rigorosas e exigentes como as do art. 33º/4

Há conjunto de crimes relativamente aos quais se dispensa a dupla incriminação – mesmo


que não haja incriminação desse crime no Estado que executa, ele tem de cumprir. Ou as
definições dos crimes não são exatamente as mesmas.
Catálogo de crimes no art. 2º/2 da Lei.
➢ Portugal não pode recusar e tem de entregar o cidadão.
Art. 2º /3 Lei 65/2003 – exige uma incriminação pela lei portuguesa.
➢ Fora dos casos do catálogo, Portugal só pode cumprir o mandado se para aqueles
factos corresponder uma punição pela lei penal portuguesa.

Art. 11º estabelece as causas de recusa obrigatória – não têm nenhuma flexibilização

131
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Art. 12º estabelece as causas de recusa facultativa


Art. 2º/3 é parcialmente contraditório com o art. 12º/1/a – têm os mesmos problemas e há
contradição sistemática direta. O último diz que Portugal não deve, mas pode entregar.111
Como se resolve esta contradição?
1. Verificar se alguma delas está em contradição com a Decisão-Quadro: art. 2º/3 lei
corresponde art. 2º/4 Decisão-Quadro.

• MFP: a nossa lei não viola a Decisão-Quadro, embora a nossa lei tenha
transformado o “pode” numa restrição. Nossa lei dá uma decisão no âmbito
possível da Decisão-Quadro que é mais restrita, mas também mais garantística,
mas nada disso viola a Decisão-Quadro.
2. MFP: O art. 2º/3 parece ter, de ponto de vista sistemático, alguma superioridade –
mas isso é apenas formalmente.

• Dizer que este artigo é compatível com Decisão-Quadro e está mais de acordo
com a CRP leva a que se faça interpretação abrogante do art. 12º (porque se
está a ler “deve” onde está escrito “pode”) que é justificada pelo princípio da
necessidade da pena, maior proteção do direito à liberdade e outros valores
constitucionais.

• Esta ab-rogação não é contraditória com os princípios da lei penal. Mas levanta,
na mesma, problemas. Se não se poder entregar, terá de se julgar. Mas é
possível julgar? Art. 6º CP resolve se é possível julgar. Que lei se aplica? A lei
estrangeira não é mais favorável e na lei portuguesa não é crime, logo, pelo
princípio da legalidade, não é possível punir. Se for contraordenação ainda pode
dar resposta punitiva, mas se não, não pode responder.

Comparação entre o regime do mandado de detenção europeu e a extradição


Se quisermos sistematizar e analisar as principais diferenças entre a entrega de arguidos em
cumprimento do mandado de detenção europeu e a extradição112, poderemos fazer o seguinte
elenco, relativamente ao mandado de detenção europeu:

→ Dispensa do princípio da dupla incriminação quanto a um vasto elenco tipificado de


infrações criminais graves (art. 2º/2);
→ Afastamento do princípio constitucional de não extradição de nacionais (art. 33º/3 CRP),
admitindo-se sempre a entrega de nacionais (com o beneplácito do art. 33º/5 CRP), que
faz prevalecer as normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da
cooperação europeia sobre os princípios gerais como o da não extradição de nacionais),
embora não seja obrigatório, dando origem a uma causa de recusa facultativa, desde que
“o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida
de segurança e o Estado português se comprometa a executar aquela pena ou medida de
segurança de acordo com a lei portuguesa” (art. 12º/1 g). Assim, a possibilidade de recusa
não prevalece nos casos em que não haja dupla incriminação, pois não seria aplicável a
lei portuguesa;

111
Helena Morão: art. 12º é disparate e configura um erro de transposição da decisão-quadro, pois teriam
de ser expostos quais os motivos desta alteração
112
Extradição é somente entre Portugal e Estados não-membros da UE

132
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

→ Afastamento do princípio da territorialidade como causa impeditiva da entrega, como


acontece na extradição, tornando-se apenas uma causa de recusa facultativa (art. 12º/1 h
e i);
→ Afastamento das garantias constitucionais do art. 33º/4, quanto às garantias exigíveis no
caso de infrações a que corresponde a pena de prisão perpetua ou de duração indefinida.
Com efeito, a decisão de entrega basta-se com a garantia de estar previsto no sistema
jurídico do Estado de emissão uma revisão da pena a pedido ou o mais tardar ao fim de
20 anos ou medidas de clemência com vista a que tal pena não venha a ser executada (art.
13º/1 a). Mais uma vez, o art. 33º/5 CRP dá cobertura à alteração dos princípios
constitucionais gerais de cooperação judiciária internacional.
Uma possível objeção constitucional a este regime seria a eventual ultrapassagem dos limites
da revisão constitucional (cf. art. 288º/d CRP), na medida em que se entendesse que estaria em
causa o núcleo do direito à liberdade (art. 27º/1 e os limites das penas e das medidas de segurança
nos termos do art. 30º/1 CRP).
A única resposta a esta argumentação no plano constitucional será o entendimento de que os
objetivos da cooperação na construção de uma união jurídica europeia se sobreporiam à conceção
constitucional (não maximilista) dos direitos, liberdades e garantias. A conversão de uma
proibição absoluta de penas de duração perpétua em penas de duração perpétua revisíveis seria
uma interpretação harmonizável com a prevalência dos objetos da cooperação. Assim, não se
violariam os limites materiais da revisão constitucional, dando-se cobertura através do art. 33º/5
CRP, a normas como o art. 13º/1 a da Lei nº 65/2003, tomando em consideração o facto de que o
empenhamento de Portugal na construção e aprofundamento da UE corresponde a um dos
princípios fundamentais do Estado português (cf. art. 7º/6 e 8º/4 CRP).

CASOS PRÁTICOS

A, português, e B, francesa, na Arábia Saudita, têm uma relação extra-matrimonial. Depois, entretanto, há um saudita
e uma saudita e a relação matrimonial violada tinha sido a dos sauditas. Estes factos consubstanciavam o crime de
violação do crime matrimonial. Fogem os dois para Portugal e agora a Arábia Saudita pede a extradição destas duas
pessoas.

Art. 7º CP – o lugar da prática do facto é a Arábia Saudita. Portugal não é territorialmente competente, mas temos
de aferir se PT pode julgar ou não nos termos do art. 5º.

Quanto ao A, temos de aferir se se aplica o art. 5º/e i está verificado; ii – exigir-se que seja punido na prática do
facto – está verificado; o iii não está cumprido – constitua crime

33º/3 CRP e 32º/2 Lei da extradição – não se extraditam nacionais a não ser que se verifiquem os requisitos.

Mandado de detenção europeu (art. 12º/g e 13º/b).

Dupla incriminação (art. 31º da lei da extradição; art. 2º, mas o nº2 tem exceções à dupla incriminação – porque
é que é assim? Por causa do princípio do mútuo reconhecimento; a lista não tem tipos penais, há varias alíneas que são
genéricas, dizem respeito a um certo tipo de atividade criminosa, não é propriamente um crime; causa facultativa de
recusa da entrega quando não esteja fora dos casos do 2º/2 da dupla incriminação, ou seja, quando não haja dupla
incriminação e não haja os requisitos da dupla incriminação, PT pode recusar a entrega. Há uma discussão a este
propósito que tem a ver com isto. Se não há dupla incriminação e não há estes requisitos, quem leia o 2º/3, parece que
PT não pode entregar. Parece que está a ser taxativo, vinculativo. Mas quando vamos ao 12º/a, o dever transforma-se
numa faculdade, porque a recusa nesse art. é facultativa. Há aqui uma discussão de saber como se deve interpretar isto:
é o 2º/3 que tem de ser interpretado no sentido de que é uma mera faculdade, ou é o 12º/a que tem de ser interpretado
no sentido que onde diz pode deve ser deve. JMV: neste caso, a decisão quadro quis dar liberdade ao julgador para
recusar ou executar o mandato. Seria abusivo admitir que o pode do art. 12º/a se transformasse num deve e, portanto,
a solução mais correta é admitir que neste caso é um caso de recusa facultativa – e 12º/a da lei do mandado de detenção
europeu).

O cidadão tem de ser português no momento do pedido!

133
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO ESPAÇO


Aula prática | Prof. João Matos Viana

1º - ONDE É A SEDE DO DELITO? | começar sempre pelo art. 7º do CP – diferente da


solução para o “tempus delicti” em que o legislador optou pelo critério da conduta e não
pelo resultado (art. 3º do CP) neste caso o legislador cumulou os 2 critérios, no sentido
daquela a que se chama: a solução mista.

2º- A resolução de um caso prático relativa à aplicação da lei no espaço terá de atender a
duas situações:

a) Ou a prática do crime foi no território português | art. 4º do CP


b) Ou a prática do crime dá-se extra- territorialmente | art. 5º do CP, ter em conta
o art. 6º do CP | que impõe limites aos elementos de conexão – o art. 6/1 e 6/2 –
Se Portugal vir que a lei onde o Estado onde foi praticado o crime for mais
favorável, então aplicar-se-á a lei mais favorável.

✓ Relativamente à prática de um crime fora do território português, teremos de


atender a duas leis:

a) Lei 144/99 de 31 de Agosto – Cooperação Judiciária Internacional em Matéria


Penal – aplicar-se-á se houver um pedido de extradição ao Portugal por parte de
um Estado (fora da União Europeia).
b) Lei nº 65/2003 de 23 de agosto – Regime jurídico do MANDADO DE DETENÇÃO

europeu.

❖ Quando se aplica a Lei da Extradição:


Teremos de averiguar no caso concreto ( imaginemos que temos 3 pedidos de extradição
no caso prático, de A, B e C) , teremos de analisar a responsabilidade de cada um deles
individualmente através dos seguintes pontos:

1. Ver a nacionalidade da pessoa. ( é uma das causa para a exclusão da extradição


de um individuo – art. 32/2/b) da Lei da Extradição – a qualidade de nacional é
apreciada no momento em que seja tomada a decisão sobre a extradição art. 32/6º
da Lei, ou seja é um desvio ao principio do momento da prática do facto, sendo
134
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

que o critério da tomada de decisão se justifica através dos fins das penas,
nomeadamente através da prevenção especial. ( Por exemplo A é luso-americano,
ele pode extinguir a nacionalidade americana antes da tomada de decisão sobre a
extradição, o legislador entendeu que este motivo , o momento importante é da
tomada de decisão e não da prática do facto). O art. 5/1/e) CP é uma norma
incriminadora, sendo que o art. 32/6º não o é, dái o critério ser diferente.
2. A Residência – veja-se o critério do art. 5/1/b do CP.
3. Onde o individuo se encontra no momento | - art. 5/1/c) d) + e) (i) + f) do CP.
4. Há ou não pedido de extradição? Se sim, porque crime e qual a pena? É
importante para fazer cumprir o requisito do art. 31/2 da Lei da Extradição – está
plasmado neste o artigo o critério da dupla incriminação: significa que só é
admissível a entrega da pessoa reclamada no caso de crime , ainda que tentando,
punível pela lei portuguesa e pela lei do Estado requerente. – Tem de haver
coincidência entre o crime em Portugal e o Estado requerente. E a pena não pode
ser inferior a 1 ano.
O art. 32/2º da Lei da Extradição tem de ser interligado com o art. 33/3 do CRP.

Quid iuris quando um pedido de cooperação incide sobre uma pena de morte ou perpétua?

1. Atendendo ao art. 6º e) e f) | sempre interligado com o art. 33/4 e 6 da Lei da


Extradição – o pedido é recusado sempre que incide sobre penas de morte ou
perpétuas, sendo que é possível de sanação:

✓ O art. 6/2 vem nos dizer que se o Estado que formula o pedido tiver previamente
comutado a pena de morte ou outra de que possa resultar de lesão irreversível
da integridade da pessoa ou tiver retirado carácter perpétuo ou duração indefinida
à pena, pode então considerar-se que nestes casos em que o Estado requerente
afasta a execução destas penas e promove garantias jurídicas de não as executar,
não há objeção à cooperação.

Relativamente à pena perpétua: art. 6/2/b) interligado com o art. 6/3 da Lei da
extradição.

135
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

|Quanto ao mandado de detenção europeu:

❖ Lei nº 65/2003 de 23 de Agosto – este regime é marcado pelo princípio do mútuo


reconhecimento
Artigos importantes:

1. Art. 2/1 + art. 2/3 – critério da dupla incriminação – a pena tem de ser superior a
12 meses.
2. Art. 2/2 – neste caso não se controla o critério da dupla incriminação- basta que
o crime seja reconhecido no Estado emissor – há uma atenuação da dupla
incriminação, isto deve-se pois neste tipo de crimes os Estados Membros
entendem que não é necessária a verificação do critério da dupla incriminação,
partem do princípio que o outro Estado-membro tem estes crimes tipificados no
seu ordenamento jurídico.
3. Atenção ao art. 11º ( causas de recusa da extradição obrigatória ) Neste caso
Portugal tem mesmo de recusar a extradição.
4. O art. 12º diz respeito a causas de recusa facultativas
5. No art. 13º - Portugal tem de entregar o individuo – mas com uma garantia ( esta
garantia é sempre jurídica) : ou seja quando estão em causa penas perpétuas.

136
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

ÂMBITO DE VALIDADE DA LEI PENAL QUANTO ÀS PESSOAS


Há uma tradição de que há certas pessoas que em certas circunstâncias, se podem subtrair
à lei penal.
Não se aplica a lei penal devido a um regime de imunidades.
As IMUNIDADES DE TITULARES DE CARGOS POLÍTICOS, nomeadamente as
parlamentares, têm origem histórica em dois modelos:

 O MODELO BRITÂNICO, que formalizou a tradição iniciada com o Bill of Rights de


1689, cujo art. 9º declarava que “the freedom of speech and debates or proceedings in
Parliament ought not to be impeached or questioned in any court or place out of
Parliament”. Assim, a tradição anglo-saxónica é mais restritiva no âmbito das
imunidades e está associada à liberdade de proteção do pensamento dos
parlamentares. A ideia era a de assegurar aos parlamentares a possibilidade de
criticarem o Governo enquanto parlamentares, enquanto exerciam a atividade
parlamentar, a um nível de verdadeira irresponsabilidade. Esta é uma ideia muito
ampla de irresponsabilidade, mas, por outro lado muito restritiva pois era só para garantir
a liberdade de expressão (existindo para o exercício funcional da atividade parlamentar).

 O MODELO FRANCÊS de 1789, que, por influência de Mirabeau, acentuava a vontade


do povo ante a autoridade real, convidando a Assembleia Nacional a assegurar a sua
proteção contra o poder das baionetas e afirmando a total inviolabilidade dos
deputados, protegendo-os mesmo fora do parlamento. Assim, a tradição francesa é
mais radical no seu âmbito, não conduzindo a irresponsabilidade e sim a inviolabilidade
– devido à preservação da instituição parlamentar (poder legislativo) requer uma
proteção mais extensa dos parlamentares contra os procedimentos criminais. Há uma
extensão superior que conduz a uma mera inviolabilidade.
Em ambos os casos, as imunidades parlamentares começaram por significar a proteção global
do poder legislativo em face do poder do rei. A ideia de inviolabilidade apontava para uma
proteção mais absoluta dos deputados perante o poder executivo, incluindo o próprio poder
judicial que emanava desse poder executivo.
Note-se que existe uma tradição mais restringida à liberdade de discurso e de expressão de
pensamento, como atividades parlamentares específicas, e uma tradição de inviolabilidade dos
deputados, na linha de uma absoluta separação dos poderes, incluindo o poder judicial. Essa
diferença de tradições tem repercussão na distinção entre imunidade absoluta ou material
(irresponsabilidade em função da atividade legislativa) e imunidade relativa ou processual
(inviolabilidade, na linha da defesa dos deputados, de pressões políticas exteriores, exercidas
através da instrumentalização do poder judicial).
A distinção entre irresponsabilidade e inviolabilidade é hoje reconhecida em quase todas
as constituições.
➢ Tal distinção apela a uma diferenciação entre a natureza da atividade parlamentar,
centrada na emissão de votos e opiniões, que constitui expressão da atividade
legislativa, e a proteção do estatuto de deputado como instrumento de uma
salvaguarda política do autogoverno do parlamento perante a pressão dos poderes
executivo e judicial.

Contexto atual das imunidades

137
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Imunidades são dadas devido a serem pessoas com uma certa categoria funcional
Houve uma evolução histórica:
→ A fragmentação do Parlamento, no seio do qual a luta entre maioria e oposição assume o
protagonismo, gerando a necessidade de proteger os deputados contra a própria maioria
parlamentar, representativa do poder executivo;
→ A autonomia do poder judicial em face do poder executivo, a par de uma desvinculação da
interpretação e aplicação do Direito de uma estrita vinculação à letra da lei;
→ A distribuição dos poderes democráticos representativos pelo Parlamento e por órgãos
executivos eleitos (como o Presidente da República, nos sistemas presidenciais e
semipresidenciais) retirando aos deputados o exclusivo da representação parlamentar.

Perante esta nova situação, colocam-se as seguintes questões:

 Que funções e valores justificam hoje as imunidades? Que sentido tem proteger os deputados,
como titulares do poder legislativo, dos restantes poderes e da própria sociedade?
 É pertinente manter a liberdade de discurso, enquanto tal, como fundamento de uma absoluta
irresponsabilidade, tendo em conta a natureza cada vez mais complexa da atividade parlamentar e
os efeitos discriminatórios de certas intervenções?
 A tradicional inviolabilidade que ultrapassa a liberdade de voto e opinião, abrangendo outras
condutas de deputados suscetíveis de responsabilidade criminal tem ainda justificação, à luz da
independência do poder judicial?
 Que papel pode assumir, legitimamente, o Parlamento no seu autogoverno, autorizando a sujeição
a processo dos deputados suspeitos de crimes?
 Relativamente a outros titulares de cargos públicos tais como os membros do Governo ou o
Presidente da República como se fundamental as imunidades?

Justificação das imunidades parlamentares no quadro do Estado de Direito


As respostas a dar a estas questões, partem dos seguintes princípios fundamentais:

 Só os poderes de representação parlamentar, enquanto expressão de livre manifestação


da vontade dos representados, justificam as imunidades; assim, deve estabelecer-se um
nexo funcional como critério de aplicação das imunidades;
 É o conteúdo dos poderes de representação parlamentar e da atividade necessária
ao seu exercício que determina, à luz do Estado de Direito, o âmbito das
imunidades, tanto ao nível das condutas como das pessoas abrangidas;
 A necessidade de proteção das minorias parlamentares corresponde a uma dimensão
essencial da proteção do Parlamento contra outros poderes;
 É preciso evitar confrontos sistemáticos entre o poder legislativo e o poder judicial,
impedindo que qualquer deles possa exercer uma supremacia absoluta; nesse
sentido, tem de existir algum controlo parlamentar da verificação dos pressupostos do
levantamento das inviolabilidades, para que o poder judicial não interfira na ação dos
representantes do poder político a partir de eventuais pré-compreensões.113

As imunidades do Presidente da República e dos membros do Governo


As imunidades do PR têm uma justificação semelhante às dos Deputados na perspetiva
da proteção da representatividade democrática, quando ele é diretamente eleito como no caso

113
O levantamento das imunidades ser pelo Parlamento e não pelos Tribunais é uma preservação do
Parlamento face ao poder judicial.

138
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

português, embora a sua intensidade se justifique historicamente pela mitificação do poder do monarca
como poder supremo.

Na CRP, o art. 130º exclui totalmente da prossecução penal os crimes estranhos ao


exercício de funções durante o mandato, suspendendo durante esse tempo toda a efetivação
da responsabilidade penal.
No que se refere aos crimes praticados no exercício de funções114 não existe qualquer
espécie de imunidade, estando o julgamento a cargo do STJ e implicando a condenação a
destituição do cargo e o impedimento de reeleição.

• A questão que se coloca é saber o que se deve entender por crimes praticados no
exercício de funções. 115
• Numa interpretação sistemática, restritiva, tratar-se-ia apenas dos crimes de
responsabilidade política a que se refere a Lei nº34/87, de 16 de julho, para onde
remete o art. 117º CRP
• No entanto, existem outros crimes nomeadamente contra o Estado (arts. 308º e ss)
ou contra a humanidade que pressupõem o abuso ou desvio dos poderes e que terão
de se enquadrar em função da ratio legis no âmbito dos crimes no exercício de
funções.
• A conexão com o exercício de funções deve ser entendida num sentido material,
abrangendo tanto o exercício de atividades próprias das funções como outras
ações ou omissões que tenham o exercício de funções como causa ou
finalidade.116 Assim, por exemplo, um homicídio para ocultar um erro político ou um facto
da vida privada que poria em causa a posição do Presidente, não deixaria de poder ser
entendido como um crime cometido no exercício de funções.
Por outro lado, a suspensão do procedimento criminal relativamente a crimes fora do
exercício de funções não deveria poder afetar os prazos prescricionais previstos no CP, embora
tal situação não esteja prevista nem para determinar o início do prazo do procedimento criminal
nem como causa de interrupção da prescrição. Apenas a referência no art. 120º/1 a) CP ao
impedimento legal do início do procedimento criminal como causa de suspensão permite regular
sem violação do princípio da legalidade a adequação do regime constitucional ao legal.

No que se refere ao PM e aos membros do Governo, a CRP prevê no art. 196º um regime
semelhante ao dos Deputados no que se refere à efetivação da responsabilidade criminal,
não reproduzindo obviamente a irresponsabilidade dos Deputados quanto às suas opiniões
e votos prevista no art. 157º/1 CRP.

Os parâmetros de Estado de Direito no plano europeu

114
JOMI: Crimes de Responsabilidade
115
MFP: ainda há um excesso de imunidade no caso do PR. Mas, como em Portugal nunca houve
problemas, não é facto problemático.
116
Alguns destes crimes, que não são crimes no exercício de funções, exercidos tipicamente a partir das
funções, se forem motivados pelo exercício das funções ou orientados para certa área dessas funções, a
CRP não impede essa interpretação extensiva.

139
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Em matéria de imunidades, os critérios normativos resultam, sobretudo, da experiência


constitucional dos Estados democráticos e do balanceamento dos prós e contras, sendo essencial
a compreensão dos modelos seguidos nos diversos sistemas jurídico-constitucionais.
O parâmetro internacional mais significativo resulta, porém, da interpretação do art. 10º da
CEDH pela jurisprudência do TEDH.
Entre as decisões jurisprudenciais mais significativas, encontram-se os acórdãos do TEDH
de 17 de dezembro de 2002 de 30 de janeiro de 2003 (“Acórdão Cordova”). Nesses acórdãos, o
Tribunal aceitou a proporcionalidade da irresponsabilidade dos parlamentares, mas apenas na
medida em que haja uma estrita conexão funcional. Mas a jurisprudência do TEDH tem
entendido, em geral, que as imunidades podem preservar a liberdade de expressão dos deputados
numa medida superior à dos outros cidadãos, na medida em que isso seja justificável pela
representação democrática.
Podemos, assim, entender que o TEDH reconhece a essencial importância das imunidades
parlamentares para a proteção da representação da vontade democrática, mas entende que só essa
função, em sentido estrito, justifica uma superior proteção da liberdade de expressão do
pensamento e a irresponsabilidade. Por outro lado, não deixam de merecer proteção os direitos
fundamentais postos em causa pelos crimes de injúrias e difamação.
Além disso, a própria Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa emitiu orientações no sentido
de a razão de ser principal da imunidade europeia ser contribuir de maneira eficaz para a salvaguarda das
missões dos membros da Assembleia Parlamentar. A imunidade parlamentar não é, portanto, concebida
como um privilégio pessoal dos parlamentares, mas antes como uma garantia para a instituição.

Finalmente, no plano do levantamento das imunidades, os casos recentes surgidos no âmbito do


Parlamento Europeu têm evidenciado que a proteção de liberdade de expressão e de pensamento e de
opinião pressupõem uma estrita relação funcional com a atividade de membro desse Parlamento.

As imunidades diplomáticas
As imunidades diplomáticas distinguem-se das imunidades políticas (que, como o
próprio nome indica, são de caráter político e tem origem em posições funcionais ocupadas por
uma certa categoria de pessoas), com razões históricas na defesa da soberania dos Estados e
na proteção da representação dos Estados fora do seu território, na proteção das relações
diplomáticas necessária à boa articulação entre Estados soberanos nas suas relações
internacionais.
De um modo mais absoluto ou mais restrito, está em causa a proteção da soberania do
Estado e a perspetiva de que um Estado não poderá exercer jurisdição sobre outro nem pôr em
causa o exercício das funções próprias de um outro Estado.
A primeira fonte jurídica positiva de Direito Internacional destas imunidades relativamente
aos diplomatas é a CONVENÇÃO DE VIENA, de 18 de abril de 1961, aprovada pelo Estado
Português em 27 de março de 1968.
Nela se consagra a inviolabilidade da pessoa do agente diplomático, membros da família
que com ele vivam e pessoal técnico e administrativo da missão (art. 37º) relativamente a
detenção ou prisão, bem como da sua residência e locais de missão (arts. 29º e 30º e a própria
imunidade relativamente à jurisdição penal, civil e administrativa do Estado acreditador (arts.
31º e 37º). No entanto, esta imunidade não é absoluta, na medida em que o Estado acreditante
pode renunciar à imunidade de jurisdição dos seus representantes e outros beneficiários da
imunidade. Por outro lado, os familiares e membros do pessoal administrativo e técnico não

140
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

gozarão da inviolabilidade e da imunidade penal se forem portugueses ou tiverem residência


permanente em Portugal (art. 37º/2). Também se os próprios agentes diplomáticos tiverem
nacionalidade portuguesa ou nacionalidade permanente no território português, o art. 38º apenas
prevê uma imunidade relativa estritamente aos atos oficiais praticados no exercício da sua missão.
Deste modo, pode dizer-se que as imunidades diplomáticas são em geral ratione personae,
mas quando esteja em causa este último tipo de casos, tornam-se ratione materiae117.
Nada impede, porém, o Estado acreditante de julgar aqueles agentes, no caso de não
pretender renunciar à imunidade.
A única solução para o Estado acreditador perante a responsabilidade criminal de uma pessoa
abrangida pela imunidade diplomática será proceder à expulsão dos referidos agentes, declarando-
os persona non grata.
Este regime inflexível é dificilmente compatível com a visão contemporânea da soberania e
das relações internacionais, nomeadamente quando estiverem em causa crimes de terrorismo ou
crimes contra a humanidade cometidos por tais agentes.
Esta última questão foi colocada sobretudo a partir do CASO PINOCHET, que dizia
respeito à imunidade diplomática de um antigo chefe de Estado.
Com efeito, nesse caso colocou-se concretamente a questão de saber se as imunidades
diplomáticas também protegiam antigos chefes de Estado em visitas privadas a países
estrangeiros por crimes praticados anteriormente.

• Com efeito, desde logo a Convenção de Viena não se refere aos Chefes de Estado,
os quais se identificam de um modo mais pleno com o exercício da soberania
estatal. Quanto aos chefes de Estado, existem outros instrumentos jurídicos de
Direito Internacional, tais como a Convenção de Nova York de 1969 ou a Convenção
das Nações Unidas sobre a Prevenção e Repressão de Crimes contra Pessoas
gozando de Proteção Internacional de 1973.
• Mas, independentemente dessa questão concreta, o caso Pinochet suscita
efetivamente a questão da existência no próprio Direito Internacional de princípios
conflituantes. Por um lado, a proteção dos representantes de um Estado fora do seu
território como emanação do respeito pela soberania desse Estado e, por outro, a
limitação da conceção tradicional de soberania pelos princípios internacionais do
Direito Humanitário.
Com efeito, várias convenções internacionais preservam das imunidades diplomáticas os
crimes contra a humanidade tais como a Convenção sobre a Prevenção e Repressão do Crime de
Genocídio de 1948, a Convenção Internacional de 1973 sobre a Eliminação e Repressão do Crime
de Apartheid, bem como a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos
Crimes contra a Humanidade de 1968. e uma conceção contemporânea de soberania não pode
deixar de fazer prevalecer a responsabilidade perante a comunidade internacional de quem pratica
crimes de tal natureza sobre uma visão nacionalista de soberania. A própria soberania só pode ser
justificada enquanto contribui para a repressão de tais crimes.
Assim, a perspetiva de que a Convenção de Viena e outras convenções que visam a proteção
de agentes diplomáticos representativos de um Estado são as únicas fontes jurídicas de Direito
Internacional Penal não é decisiva à luz do conjunto dos princípios do Direito Internacional Penal.

117
A consequência prática de uma tal diferenciação é a de que a imunidade ratione personae deverá cessar
quando as funções em causa deixem de ser desempenhadas, diferentemente dos casos em que as imunidades
sejam rationae materiae.

141
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

A jurisprudência internacional efetivamente derrogou esta perspetiva desde os Tribunais


Internacionais de Nuremberga e de Tóquio até ao próprio art. 27º do Estatuto de Roma de 1998,
que afasta explicitamente as imunidades como obstáculo à sua jurisdição.
Mas relativamente à aplicabilidade do direito interno, no caso Pinochet a decisão da House
of the Lords de março de 1999 e do tribunal inglês que decidiu sobre o pedido de extradição
orientou-se no sentido da não prevalência em matéria de extradição das imunidades
diplomáticas, concedendo do ponto de vista jurídico (embora não tenha sido concedida por
uma decisão o Governo inglês) a extradição para Espanha de Pinochet, a pedido do juiz
Baltasar Garzón, invocando o argumento de que os crimes contra a humanidade como a
tortura nunca seriam considerados como cometidos no exercício de funções.
Também é verdade, por outro lado, que o facto de tais crimes, cometidos a partir de posições
de poder político, serem considerados cometidos em funções será, na perspetiva do art. 130º CRP,
a única interpretação compatível com a imediata responsabilidade criminal e a perda do mandato
do PR e a melhor interpretação daquele preceito constitucional. Mas isso é contrário à própria
existência de imunidades funcionais no direito interno.
No plano das imunidades diplomáticas, já terá cabimento a especial proteção de
imunidades funcionais, mas tal categoria não pode servir de fundamento de
irresponsabilidade de crimes contra a humanidade, em que está necessariamente em causa
a essência do Direito Internacional Penal, seja ele aplicável pelos tribunais nacionais ou
pelos tribunais internacionais.

142
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

Primeira aula teórica João Matos Viana

Sistemática do Código Penal


CP não esgota toda a legislação penal e há legislação extravagante sobre várias temáticas,
embora tenda a ser mais sobre a temática económico-social.
➢ No CP: aqueles que correspondem aos interesses mais diretos e relacionados com a vida
humana
➢ Legislação avulsa: matérias mais técnicas, económicas ou de organização da sociedade.
CP tem apenas uma regulamentação parcial das matérias penais.

I – Parte Geral
Metanormas118
Normas que esclarecem como as normas da parte especial serão aplicadas – conjunto de normas
que esclarecem em que medida as normas da parte especial estão disciplinadas.
Ex: art. 15º é essencial para se aplicar o art. 137º; art. 26º é essencial para se aplicar o art. 131º;
art. 22º é essencial para o art. 217º

Regime das Sanções Criminais


Como estão previstas e como se aplicam
• Regime das penas – em que o pressuposto é a culpa do agente e ser pessoalmente
censurado (pelo Direito) pela prática dum facto
• Regime das medidas de segurança – em que pressuposto é o perigo

II – Parte Especial
Cujo critério de sistematização é segundo o Critério do Bem Jurídico – os crimes estão
organizados pelo bem jurídico que tutelam.
• A vida é o valor supremo pois é o primeiro crime que aparece. No 1º CP, de 1852, o
primeiro crime era o lesa-majestade – diz muto sobre a sociedade em questão

Art. 40º a 130º CP – consequências jurídicas do crime

Aula prática Catarina Abegão Alves


Espécies de Penas (previstas no CP):
Principais
• Pena de prisão – art. 41º e 42º; mínimo 1 mês e máximo 20 anos (em certos casos
pode ser 25)
• Penas de multa – art. 47º a 49º
o Aplicadas independentemente de qualquer outra

Acessórias
• Tem que se cumprir o art. 30º/4 CRP – não pode haver aplicação automática das
penas. Elas são aplicadas numa lógica de ser cumulativa face à pena principal. A pena
acessória é aplicada cumulativamente à pena principal e tem que haver
fundamentação nessa pena principal para se aplicar a acessória. Art. 66º, 68º. Art. 69º
CP – aparentemente viola o art. 30º/4 CRP pois parece que há efeito direito na
aplicação desta pena, mas, TC já veio dizer que não é inconstitucional pois é pena

118
Normas referentes a normas.

143
Sebenta Penal I – DNB + CC 2017/2018

acessória formal, pena acessória compósita (vertente de pena principal + proibição


acessória).

Substitutivas
• Não funcionam cumulativamente.
• Art. 43º
• Juiz aplica pena de prisão (principal) e entende que as finalidades da pena de prisão se
satisfazem com outras medidas.
• Art. 50º = pena suspensa na sua execução (art. 51º e 52º CP). Sendo revogada cumpre
a principal. Apenas se aplica como pena substitutiva da pena principal.
• Art. 56º: só se aplica a suspensão se não for condenado em tempo superior a 5 anos
(art. 52º)
• Em agosto de 2017 revogaram-se 2 penas substitutivas: prisão dias livres e regime
semi-detenção.119
• Existe pena substitutiva que só vale para a pena principal de multa: art. 60º
• Estas penas servem para a pequena e média criminalidade. Podem ser revogadas e só
são aplicadas quando o juiz achar que cumpre a finalidade da pena.

Medidas de Segurança
Quanto às sanções criminais, o sistema é dualista: Penas + Medidas de Segurança120

Se não tiver capacidade de culpa, pode aplicar-se uma medida de segurança, que não é
automática e é aplicada após juízo de perigosidade do agente.
Pode complementar a pena, atendendo à perigosidade do agente. Fundamento não é só a
perigosidade mas é resultado de facto ilícito típico praticado pelo agente.

FD aponta 2 fins – Função de segurança:


• Finalidade primária de prevenção especial – lógica de prevenção especial negativa e
positiva em que o agente carece de socialização
• Finalidade secundária de prevenção geral – também visa tutelar bens jurídicos e as
expetativas da comunidade; função autónoma de prevenção geral positiva, associada à
prevenção especial.

Art. 91º CP – legitimação das medidas de segurança é a necessidade de defesa social e defesa
do interesse comunitário preponderante.

119
https://www.publico.pt/2017/08/21/sociedade/opiniao/o-fim-da-prisao-aos-finsdesemana-e-outras-
alteracoes-nas-penas-de-substituicao-1781724
120
O que fundamenta a pena é a realização de crimes pelo agente; o que fundamenta as medidas de
segurança é a perigosidade do agente.

144

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