CONTEÚDO ADULTO
Sumário
Prólogo
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Epílogo
Nota da autora
Um CEO poderoso.
Uma babá desastrada.
A paixão do CEO.
Nuno
Se o carro caindo aos pedaços dessa velha não sair da minha frente, vou
passar por cima...
Luise
Se esse maluco não parar de me pressionar, meu carro vai pifar aqui
no meio da estrada...
Detesto essas velhotas dirigindo como caracóis. É isso o que deve ser
essa louca de lenço vermelho enrolado na cabeça e óculos escuros. Dirige
sua carroça descapotável[i] agarrada ao volante como a idosa que é. Posso
ver sua coluna rígida e o peito próximo da direção. Devia estar em casa,
como tento manter a minha Margô, mesmo que ela não me obedeça.
Não tenho o que fazer nesse momento. Preciso me livrar desse chato.
Puxo forte o nó do lenço ao redor da cabeça para que não voe e piso no
acelerador antes que esse cretino encoste atrás de mim.
Ah, mas ela não vai me deixar ultrapassar mesmo? Vou dar sinal de luz.
Louca.
Sinal de luz? Ai, meu Pai. Será que ele é um assassino, psicopata,
maníaco?
Porra! Ela não cede. Está indo ainda mais rápido. Velhas... como a
minha em casa. Aquela criatura não obedece a ordens de ninguém. E é a
mulher que mais amo na minha vida. Um sorriso me escapa. Era. Isso até
Sofia chegar.
Pelo amor de Deus, cara. Meu carro vai parar. Não posso perder a
entrevista de emprego hoje. Simplesmente não posso. A minha vida está
em jogo. Mas isso não fica assim. Vou ir o mais rápido que puder. Aí
aproveito e já chego antes para não correr o risco de me atrasar.
Sofia... Se eu ficar aqui parado atrás desse caco velho, vou até tarde na
reunião e quando chegar em casa, Sofia já estará dormindo. Chega! Vou
ultrapassar. Agora! Não está vindo carro nenhum do outro lado.
Filho da mãe. Olho para o lado quando o Bentley esportivo passa
por mim. Ergo a mão e faço um sinal feio com o dedo do meio. Não
consigo ver os detalhes do cara que está dentro. Aposto que para estar
correndo assim, o carro é do papai ou do patrão. Isso. Esse babaca deve
ser o motorista, pagando de grandão com o carro do chefe.
Aleluia! Me livrei dela. Agora tenho a estrada toda para mim. Relaxo as
costas e a pressão no volante. Aumento o volume e deixo Us[iii] tocar. “Foi,
você se foi. Difícil pensar uma maneira fácil de começar.”
Ah, não! O caco velho está parando. Posso vê-lo cada vez mais longe no
retrovisor e não é por causa da minha velocidade, porque já estou
desacelerando. A porcaria morreu. Droga. Não posso deixar a vovozinha
sozinha nessa estrada. Margô teria vergonha de mim. Ah! Inferno.
Tento de tudo. Giro a chave. Acelero. Engato a ré. Nada. Ai, o que é
aquilo? Meu Paizinho, ele está voltando. Não, não pode ser. É um
psicopata, afinal de contas? Anda carrinho, liga. Não me abandona agora,
bato no painel.
Vou de ré até quase encostar na coisa dela. Coisa, porque aquilo não
ganha a classificação de carro. Se a porta cair quando ela a abrir, vou
deixar lá. Não vou estragar meu terno feito sob medida na minha última
viagem a Paris para fazer caridade. Só estou fazendo isso porque Margô
sempre me faz um interrogatório quando volto de Lisboa, ainda mais dessa
vez que saí escondido para ir sozinho, e minha avó saberia que tenho algo
guardado no peito se eu deixasse uma velhota como ela abandonada na
estrada.
A luz de ré. Apagou. Ai! Vou morrer. Ele está descendo. Nossa. É
alto. Ok. Tudo bem. Também sou. Tremo. É bonito. Eita! Assassino de
aluguel. Isso. Tem cara disso. O carro. Não era do pai. Nem do chefe. Ele
ganha bem. É assassino. Mas por que eu? Só por que não consegui
acelerar? Rezo uma Ave Maria com a cabeça enfiada na direção
enquanto ele caminha até mim. Abriu o terno. Vai pegar a arma. Adeus,
mundo.
Que louca. Está rezando. Margô também é assim. Qualquer coisa, vai
rezar e bate com a bengala em nossas cabeças como punição. Continuo
andando e abro um botão do terno. Está fazendo mil graus aqui ou o quê?
Será que ela fala português ou será que é uma dessas britânicas sozinhas por
Portugal? Paro ao lado da porta e a senhora continua rígida. Será que
morreu?
Estou ganhando tempo. Quando ele chegar perto, pego minha bolsa
e dou na orelha dele. Ai, Ane Luise. O que você está pensando, que vai
vencer esse cara com uma bolsada no ouvido? Ah, mas posso derrubá-lo e
roubar seu carro. Fugirei até encontrar alguém na estrada. Isso. Vou
fazer isso. Três. Dois. Um. Chegou. Nossa. Ele é cheiroso pra caramba.
Suas mãos se apoiam na lataria vermelha do meu carro e ele se curva
para a frente. Vai falar. Não vou deixar. Vou sair daqui e enchê-lo de
porrada. Ou bolsada.
Abro a boca para falar mas a velhota pula do carro com uma agilidade
impressionante. O vento quente bate em seu vestido branco e desenha um
corpo torneado. Ela tenta segurar o lenço, mas ele decide ir embora com o
ar. O tecido cai e rasteja como uma cobra pelo meio da estrada. Seus
cabelos loiros descem em cascata até o meio das costas, ela tira os óculos
escuros e... Espera. O quê? Ela não é uma velhota afinal. É uma bela de uma
gata. O perfume delicioso me deixa enfeitiçado.
Ele está na minha frente. É lindo, com uma barba negra por fazer,
tatuagens nas mãos, saindo pela manga da camisa. Acho beira os
quarenta, talvez. Não confie, Ane. Não confie. Ergo o braço com a bolsa e
ele segura meu pulso.
O que significa esse choque que senti ao tocá-la? Que mulher é essa?
Merda. Preciso me livrar dela. Não quero sentir algo do tipo. Nuno, você
não vai se interessar por alguém.
Ane Luise
— Você vai me agradecer me dando uma bolsada? — Senhor Psicopata
Sexy pergunta com um lindo e melodioso sotaque.
— Agradecer? Por que eu faria isso? — Afrouxo a mão, que vai
descendo devagar pela lateral do meu corpo.
Senhor Psicopata Sexy parece impaciente.
— Por te ajudar?
— Me ajudar? Achei que você quisesse me matar.
Ele estende o braço e o aponta em direção ao meu carro.
— Para roubar isso?
Trinco os dentes. Passei meses trabalhando pra comprar isso para poder
ir trabalhar, porque sem isso eu não teria como manter três empregos para
poder um dia voltar ao meu Brasil. Empregos que perdi, no caso. Porque sou
meio esquecida e um pouco desorganizada para ser atendente de mesa ou
trabalhar numa linha de produção. Chegou uma hora em que meu chefe
número dois achou melhor me demitir antes de ter que juntar meu dedo
dentro de um pacote de pão.
— Não para roubar isso, mas para me matar, despedaçar o meu corpo e o
enterrar na estrada.
— Sei...
— Sou mulher, oras. E minimamente aceitável. Pelo menos para um
serial killer[iv], imagino.
Senhor Psicopata Sexy me analisa. Talvez para confirmar se vale a pena
me matar, se sou minimamente aceitável.
— Mesmo que eu fosse um assassino de mulheres lindas e exuberantes
— ui, ele diz isso me olhando como se eu fosse uma. —, pensei que você
fosse uma vovozinha, dirigindo a sessenta por hora na estrada.
— Meu carro não anda muito bom — justifico.
Quando termino de falar, um vento forte sopra, fazendo meu lenço
ondular pela linha divisória do asfalto e preciso correr para pegá-lo. Quando
volto, Senhor Psicopata Sexy está olhando dentro do meu capô, quer dizer, do
carro, mas se fosse olhar dentro de mim eu acho que não me importaria.
— É, dá pra ver que seu carro não está muito bom mesmo, mas eu não
vou mexer, porque tenho uma reunião — para a qual já estou atrasado, por
sua causa — e não posso me sujar pois terei que ir direto para lá, por sua
causa.
Enrolo o lenço e o prendo na cabeça como uma faixa. Levanto um ombro
e me sento sobre a minha porta em seguida.
— Ok. Obrigada então.
—Pelo quê, se não vou conseguir arrumar o seu carro? — Ele ajeita as
abotoaduras do terno de corte contemporâneo.
— Por me ajudar. Não é isso que você disse que faria?
— Mas eu não estou te ajudando. Estou indo embora, inclusive.
— Tá, mas sei que você é um cara legal e vai chamar um guincho pra
mim. Que vai pagar, no caso, porque meu carro pifou por sua causa. —
Balanço as pernas sem me preocupar em amassar a lataria, que já está toda
remendada.
Senhor Psicopata Sexy dá a volta no próprio corpo como se fosse um
cachorro. Acho engraçado ver um pouco da sua confiança sendo abalada.
— Está procurando seu rabo? — brinco, mas ele me fuzila com o olhar.
— Engraçadinha, você. Olha, eu vou ligar para o meu seguro e mandar
alguém vir te buscar.
Fico quieta enquanto ele pega o celular — que provavelmente custa mais
que o meu carro — e fala com alguém. Seu semblante até então impassível
fica rígido enquanto ele desfia ordens.
— Isso. Na IC1. Três horas? Você sabe com quem está falando. Resolva
isso para ontem.
Ergo uma sobrancelha. Nossa, quem será esse cara na minha frente para
estar dando carteiraço assim? Melhor nem saber.
— Ok. E traga um carro extra. Sim. Por minha conta.
SPS desliga e nem agradece. Grosso.
Não me dou ao trabalho de pular para longe da porta. Continuo
balançando os meus pezinhos enquanto um filete de suor escorre da minha
orelha pela lateral do meu rosto.
— Tudo certo. Daqui a três horas vão rebocar seu carro e te trazer outro.
Devolva até amanhã no aeroporto do Faro, por favor. Adeus.
Ele me dá as costas e sai andando. Não me despeço. Ele vai voltar. Por
favor, ele precisa voltar. Sem chance de que eu vá sair daqui em três horas.
Preciso estar em Vilamoura daqui a pouco ou vou perder mais uma
oportunidade e se eu perder mais uma, talvez eu nunca consiga recuperar
aquilo que perdi. Volte. Volte, por favor.
Senhor Psicopata Sexy para no meio do caminho e meu coração também.
Ele gira nos calcanhares e me dá uma olhada.
— É melhor você baixar a capota. Está fazendo uns mil graus. Pode
pegar uma insolação, sentada aí.
— Agradeço a sua preocupação, mas a capota está estragada.
Ele olha para os lados, para o nada. Quilômetros e mais quilômetros de
terra cor de areia nos cercam. Sobre ela, pacotes gigantescos de feno e
oliveiras com quase nenhuma sombra. Talvez o suficiente para cobrir a minha
cabeça.
— Bom, esse seu vestido longo de mangas compridas também não ajuda.
Melhor você trocar por outra coisa. Tem roupas na mala?
— Até tenho, mas não tinha grana para comprar um protetor solar então,
como a capota está estragada, achei melhor me cobrir toda para não pegar
uma insolação, como você disse. — Mordo o canto da unha como se
estivesse despreocupada com a situação, mas o medo de morrer torrada
debaixo do sol do Alentejo só aumenta.
Senhor Psicopata tensiona os lábios de um lado para o outro. Pensa por
alguns segundos e depois suspira.
— Vou mandar arrumar sua capota também, ok?
— Ótimo. Vai ser muito útil se eu sobreviver por três horas nesse sol —
respondo sem olhar para ele.
Suas mãos se contraem e sinto de longe sua rigidez. É agora. Ele vai
ficar com pena de mim e me ajudar a chegar no Algarve. Pelo amor de Deus,
que seja.
— Escuta, para onde você está indo?
Yes!
— Para o Algarve — balbucio, como se isso não fosse importante.
Ele fica impaciente. Bufa.
— Ok. Mas onde no Algarve? É um lugar grande, sabia? Os turistas
acham que é tudo a mesma coisa, mas não é.
— Não sou turista.
— Mas ao menos sabe aonde vai?
— Vilamoura.
A boca dele se abre e já não parece mais um psicopata. Apenas Senhor
Sexy.
— Tudo bem. Te levo até lá.
Ai, sim! Obrigada, meu Deus. Obrigada.
— Não vou te atrasar para sua mega importantíssima reunião de grã-
finos alinhados?
Seu maxilar quadrado se contrai e ele bate os dentes. Imagino que deva
estar de saco cheio de ficar torrando no sol, porque eu já cansei.
— Não. Também vou para Vilamoura.
Bom, aí já não consigo mais me conter. Pulo da lataria do carro e bato
palminhas.
— Ótimo. Então vamos pegar minhas malas.
2
Nuno
As malas dela parecem tiradas do lixo. Estão limpas, mas ninguém em sã
consciência desfilaria com umas coisas dessas que parecem saídas dos anos
oitenta. Meu porta-malas agora tem mais areia do que a beira da praia. Fecho
a porta e limpo as mãos, palma com palma.
— Onde você estava hospedada, num parque de campismo?
Ela pisca e me olha como se minha pergunta fosse a mais estúpida do
mundo.
— Óbvio. Onde mais eu estaria? Foi o mais barato que consegui depois
que perdi meus empregos e não pude mais pagar o aluguel. — Ela levanta a
barra do vestido branco — que também parece saído dos anos oitenta — e
entra no meu carro, até então limpo.
Fico me perguntando se ela é algum tipo de hippie, com suas roupas
alternativas, faixa na cabeça e o cabelo enorme e despenteado. Morando em
um camping e dirigindo um Punto velho, só pode ser isso.
Tomo meu lugar e paro no meio do processo de colocar meu cinto de
segurança. Fico com a fivela no ar ao vê-la com os pés bem descansados
sobre o painel. O revestimento, antes preto, agora está manchado de branco,
da poeira dos pés dela. Quando ela sobe as mangas do vestido e desabotoa os
botões diante do peito até metade, me dou conta de que, com tanta intimidade
assim e dividindo um carro por duas horas, eu deveria saber seu nome.
— Como se chama?
— Ane Luise. — Ela sorri e me olha nos olhos.
Os dela são verdes como as olivas das árvores ao nosso redor. Brilhantes
como o sol que torra as suas folhas pequeninas. Ane Luise puxa a saia ainda
mais para cima, até os joelhos, e joga a cabeça para trás. Algo primitivo se
instala em mim e me vejo desejando tocar uma mulher como há tempos não
sentia.
— Não vai me perguntar o meu nome?
— Ai, desculpe. Estou com tanto calor que mal consigo pensar.
Calor. Fogo. Ardência ou seja lá o que estou sentindo entre as pernas.
Seu olhar volta para mim e ela aguarda enquanto luto para não ter uma ereção
bem agora.
— Então, não vai falar? Ah, pode me chamar de Ane. Não gosto muito
de Luise.
— Ok, Luise. Fique à vontade no meu carro de trezentos e cinquenta mil
euros. Não me importo nadinha com os seus pés no painel. Nadinha. Sinta-se
em casa, serei o seu motorista até Vilamoura, Nuno. Prometo que vou tentar
não virar aquele assassino que você achou que eu fosse. Só não sei se consigo
cumprir a promessa. — Encaro seus pés, que prontamente descem até o
tapete, para alívio do meu pau, que já estava ficando descontrolado de
vontade de se esfregar nas coxas dela.
— Trezentos e cinquenta mil euros? Minha mãe! Não sei, não. Acho
melhor eu descer. A limpeza desse carro deve custar o preço do meu.
Luise se empertiga no banco do passageiro e olha para todos os lados
como se um monstro com linguetas de ouro fosse sair do buraco do ar-
condicionado. Suspiro e solto a minha fivela para pegar a dela. Tomo cuidado
para não roçar nossos corpos um no outro. Não quero que pense que sou um
tarado. Ela fica me olhando, as mãos no ar.
— Com licença. Vou fazer isso de uma vez ou não saímos daqui hoje. E
tenho pressa. Muita.
— Imagino que alguém com um carro de trezentos e cinquenta mil euros
tenha mesmo bastante pressa.
Acabo tocando de leve seus seios e o mamilo se enrijece de pronto,
marcando o tecido macio entre nós. Ela arfa e eu desconto colocando energia
na pressão que faço em seu sinto de segurança. Minha mente vagueia em
imagens da garota imóvel, com as pernas de fora, abertas, assim como sua
boca, pronta para receber a minha.
Pigarreio e me ajeito no meu lugar. Nossa viagem começa e percebo que
ela agora está tensa. Deve ser a história do valor do carro. Fico com pena.
Não quis intimidá-la. Apenas estou cansado e irritado porque não consigo
chegar nunca na minha próxima reunião depois da última ter sido um
fracasso.
A presença dela me trouxe algo animalesco e agressivo. Não de raiva
pela pobre menina, mas por uma sensação de posse, proteção. Algo tosco
como se eu fosse um macho alfa, tentando intimidá-la antes de a levar para
uma caverna. A culpa bate na minha porta e decido abri-la.
— Então, Luise — observo de canto o modo como ela revira os olhos
quando digo seu nome menos favorito. —, conte-me o que veio fazer em
Portugal.
Pelo retrovisor, vejo desaparecer o ponto vermelho que era o carro dela.
Seu rosto desvia para a janela, mas sei que não há nada para olhar, apenas
chão batido.
— Vim atrás de uma pessoa.
— Namorado? — arrisco, sem preconceitos, mas corroído de curiosidade
e inveja.
Ela comprime a boca quando me olha com fúria.
— Olha, não é porque sou brasileira que vim atrás de homem.
— Não foi isso que eu disse. E também sou brasileiro.
Luise não esconde a surpresa. Gosto quando ela abre a boca assim, como
se fosse uma boneca inflável.
— Sério?
— Não notou o meu sotaque?
— Bom, é verdade, mas tem muito de português aí.
— Minha avó é portuguesa mas na minha casa quase todo mundo ainda
fala um bom brasileiro. Fui criado aqui, então fico no meio do caminho. Os
brasileiros acham que eu sou português. Os portugueses acham que sou
brasileiro.
— Que droga. Sei como é. Não pertencer a lugar nenhum.
Minha sobrancelha se ergue. Ficamos em silêncio por um tempo. Ela
provavelmente analisando se pode mesmo confiar em mim, se mereço saber
de quem ela veio atrás.
— Ele não era meu namorado, o cara que vim encontrar. Quer dizer, pra
mim era.
— Hummm. E ainda está atrás dele? — Meu coração se aperta, não sei
por quê.
Outro silêncio.
— Agora estou atrás de um emprego. Vou morar em Vilamoura.
— Legal — respondo, fingindo que não há nada de mais em suas
palavras, mas, em meu íntimo, uma pequena felicidade surge com a hipótese
de voltarmos a nos cruzar na cidade.
É muito remota, mas existe. Imagino que jamais frequentaremos os
mesmos tipos de lugares. Na verdade, gostaria de saber que tipo de coisas faz
a minha companhia hippie. Será que ela é vegana? Sempre quis saber o que
eles comem. Será que reza?
— Você é hippie? — a pergunta me escapa e me arrependo dela assim
que Luise começa a rir.
Rir não, ela chora de tanto gargalhar. O barulho que faz me deixa irritado
no início, mas depois rio também. Ela é leve, engraçada.
— Eu? Sou de uma família absurdamente católica e moralista. Essas
minhas roupas excêntricas foram tudo pelo que pude pagar nas feiras de
usados que frequento. Especificamente essa, peguei na Cruz Vermelha. Mas
eu gosto. Curto o estilo dos brechós e, se pudesse, desenharia minhas próprias
roupas.
— Ah, Entendi. Achei que fosse um estilo de vida. Ia até perguntar se
você era vegana. Queria saber como é.
— Eu? Não. Acho legal, mas gosto de comer peixe. Quem sabe um dia.
— Eu também adoro peixe. Quem sabe um dia... — repito, completando
a sentença na minha cabeça: quem sabe um dia não saímos para jantar, comer
peixe juntos.
Outra vez o silêncio. Fico angustiado e pego meu celular para avisar em
casa que no fim das contas vou me atrasar. Sofia. Será que ela vai ficar triste?
Mando uma mensagem e me remexo, desconfortável com a ausência das
palavras de Luise.
— E você faz o quê? — continuo, tentando não deixar o silêncio invadir
todos os cantinhos do meu carro.
— Sou pedagoga. Quer dizer, quase. Faltou um semestre para me formar.
— Nossa, que pena. Mas... — eu estou prestes a perguntar por que mas o
celular velho dela começa a tocar, um toque dos anos oitenta, como as roupas
e as malas dela.
Luise olha para a tela e parece nervosa. Noto suas mãos trêmulas quando
atende.
— Estou[v]! Sim. Claro. Entendo. Amanhã. Ótimo.
Ela desliga e fica olhando para o aparelho, o olhar desolado.
— Tudo bem?
Sua cabeça balança de um lado para o outro e desacelero para poder
prestar atenção nela. Tenho vontade de segurar sua mão, seja lá o que tenha
acabado de ouvir do outro lado da linha.
— Não. Quer dizer, nada de grave, mas não está tudo bem.
— Hummm. Posso ajudar?
Sei lá por que essas palavras pulam da minha boca. Não posso ajudar
ninguém. Tenho minha própria vida cheia de problemas. Não posso
administrar os dos outros. Mas algo na tristeza dela me faz lembrar a de outra
pessoa: a minha.
— Talvez você possa, mas já fez demais por mim, me dando carona e
cuidando do meu carro — que você fez estragar. — Ela sorri e vejo que está
brincando, mas sua expressão continua frustrada.
— Imagina. Talvez ainda tenha que te compensar por tudo aquilo. Vai te
atrapalhar ficar sem o carro, né?
Luise ergue um ombro, como se estivesse tão ferrada que o problema do
carro fosse indiferente.
— É que ligaram cancelando meu compromisso de hoje. Passaram para
amanhã. Só que eu tentaria ficar hospedada lá nesse lugar onde iria. Se não
desse certo, dormiria no carro. Mas não tenho mais carro e agora não tenho
onde dormir.
Troco os pés e piso no freio com tanta intensidade que nós dois somos
arremessados para a frente. Luise se segura no painel, os cabelos balançando.
— Droga. Desculpe. Achei que tinha visto algo na estrada — minto.
Nuno, seu filho da mãe. Você não vai levar essa mulher para dormir na
sua casa. Você não vai. Não. De jeito nenhum. Problemas demais. Cuide dos
seus. Sofia. Margô. Reunião.
— Você pode ficar na minha casa, se quiser — alguém enfia as palavras
na minha boca, me deixando chocado.
Luise enche os olhos de água e parece que vai chorar quando une as
mãos diante do peito. Ela solta o cinto e envolve meu pescoço com um
abraço. Fico rígido. Talvez em mais lugares do que deveria.
— Ah, Senhor Psicopata, muito obrigada. Muito mesmo.
— Senhor Psicopata?
Ela volta para seu lugar e ri. Fica corada enquanto prende a fivela.
— É um pequeno apelido que te dei quando vi seu carro dando a ré até o
meu. Mas deixa pra lá. Você salvou o meu dia, no fim das contas.
E você salvou o meu. Há muito que eu não pensava no meu próprio
amanhã com um sorriso no rosto, Luise. Há muito...
3
Ane Luise
O que esperar da casa de um cara cujo carro vale trezentos e cinquenta
mil euros? Um château no alto de uma falésia com acesso privativo ao mar,
lógico. E é mais do que óbvio que dentro da mansão vive uma horda de
empregados que correm vacilantes ao ouvir de longe o ronco do motor do
Bentley do seu mestre. Senhor Psicopata Sexy ou SPS, para os íntimos.
Abafo uma risadinha tola por me imaginar íntima de Nuno, afinal, pelo
menos por essa noite serei sua convidada na mansão.
Elegantemente, ele desce do carro e me ignora. Faço as vezes de abrir a
minha própria porta e tirar minhas malas do carro enquanto ele caminha
apressado até os cerca de dez funcionários que tentam se organizar em uma
fileira diante da casa, mas não conseguem, porque rodeiam como pombas em
torno de algo que berra.
Oh, minha nossa. É um bebê, percebo, jogando as malas aos meus pés.
Coloco os óculos de sol no meu decote e analiso a cena. Nuno tira um
bebê do carrinho e cheira seu pescoço. A criança para de berrar por alguns
segundos, mas logo retoma a gritaria, para o nervoso das pessoas ao redor.
Uma senhora abre caminho até ele se apoiando em uma bengala, que ergue
no ar e baixa a ponta revestida de madeira diretamente na cabeça de Nuno,
que grita:
— Ai!. Olá, avó. Também estava com saudades — ele diz, esfregando o
cocuruto.
Sorrio. SPS é o queridinho da vovó e, aparentemente, um amoroso pai.
— Avó é o caramba. Trazendo mulher pra casa, Nuno?
Senhor Psicopata fica confuso e então seu rosto suaviza. Ele olha para
trás e se recorda de mim. Aceno com um sorrisinho e ando até ele quando me
faz sinal com a mão.
— Margô, essa é Ane Luise. Ane Luise, essa é Margô, minha avó.
— Encantada. — Curvo o corpo para a senhora e seguro as laterais do
vestido.
Ela estreita os olhinhos de águia e ergue a bengala. Olha para o varão e
parece pensar se eu mereço uma bordoada de boas-vindas. Então sua mão
enrugada desce, fazendo a bengala tocar a grama novamente.
— Muito prazer, Tatiane.
— É Ane — corrijo, educada.
— Certo, mas eu gosto mais de Fabiane. Então me conte, o que você fez?
— ela pergunta para mim e não entendo o que espera que eu responda.
— Margô, seja razoável. Ane Luise vai passar a noite aqui conosco —
Nuno diz, embalando fervorosamente o bebê, que agora percebo ser uma
menina, em seus braços.
Seu suor começa a escorrer pela têmpora e a inquietação da pequena o
deixa cada vez mais nervoso. Ela dá gemidinhos e estica os braços, lutando
com o peito de Nuno e enganchando os dedos em seu terno caro.
— Passar a noite? Responda, menina. O que você fez para que o Nuno te
trouxesse até aqui? Esse homem não tem coração. O pedacinho que havia
sobrado ele deu à Sofia.
Nuno olha para mim, exasperado, implorando que eu não diga nenhuma
bobagem e consiga explicar que não sou a acompanhante que sua avó
aparentemente acha que sou.
— Na verdade, a senhora tem razão.
— Senhora é o...
— Margô — Nuno a repreende.
— Desculpe, Margô. A verdade é que Nuno estragou o meu carro e
voltou para me ajudar quando se sentiu culpado por pensar que eu fosse uma
vovozinha abandonada na estrada.
Enquanto Margô decide se acredita na minha resposta, analiso sua
camisa e a calça brancas. Ela tem sobre os ombros um lenço e, nos pés, um
par de sapatos muito brilhantes. Não gosta de ser chamada de senhora ou vó e
seu figurino não poderia ser considerado nada caricato.
— Entendi. Estranho. O Nuno que eu conheço teria rido se o seu carro
explodisse na estrada.
Um calafrio passa pelo meu corpo e estremeço. Faço uma careta e Margô
ri.
— Estou brincando. Esse idiota deve ter lembrado de mim e voltado para
te buscar. Ficou com medo do que eu poderia fazer caso soubesse que
abandou uma amiga minha depois de estragar seu carro. E aposto que sei
como foi. Ele ficou te apertando na estrada, não é? Ele sempre fica gritando
ao meu lado quando estou dirigindo, me apressando. Tenho todo o tempo do
mundo. Ando na velocidade que eu quero, ora bolas.
— É, foi exatamente isso o que ele fez. Até estragar o meu carro.
— Deu. Chega. Ou então vocês duas vão passar o resto do dia falando
mal de mim — Nuno protesta, tentando passar a bebê para Margô, mas ela se
recusa a pegá-la.
— Nem pensar. Meus braços já estão doendo. Sofia não para de chorar.
Ninguém aguenta mais.
— Onde está Marta?
— Bem longe da bebê.
Fico parada, assistindo a conversa dos dois, passando os olhos pela
mansão e tentando contar quantas janelas consigo ver, mas são muitas e
misturadas com o vidro excessivo na decoração. O jardim tem os arbustos
mais verdes e as flores mais bonitas que já vi. Então meus olhos param nos
funcionários e percebo que estão todos intrigados olhando para mim. Desvio
o rosto, corando.
Acabo parando de novo em Nuno e seus joelhos balançantes. Nada cala a
pequena, que luta com uma manta leve de linho cor-de-rosa, tentando se
libertar.
— Posso tentar? — digo, me aproximando deles.
Ouço os cochichos atrás de mim. Margô me olha com desdém e Nuno,
com uma expressão severa.
— Ela não vai parar com você. Não para com ninguém.
— Ok, mas tentar não custa.
— Não gosto que desconhecidos peguem a Sofia.
— Não pode pegar a Sofia, mas pode dormir na sua casa... — Margô
zomba e Nuno bufa.
A contragosto, ele me entrega a pequena. Revelo seu rostinho sob a
manta e encontro uma linda boneca de alguns meses. Seus joelhinhos se
apoiam sobre meu estômago e ficamos nos olhando por longos segundos que
acabam produzindo pequenas lágrimas abaixo dos meus cílios.
— Olá, querida — murmuro e ela sorri.
O silêncio que nos circunda é como um alívio depois de tanto tempo
ouvindo seus gritos. Quando ela se joga em meu peito e repousa a bochecha
em meu colo, sinto algo sem explicação. Deito a palma da mão em seu
ouvido e a embalo. Sofia adormece em segundos.
— Podemos ficar com ela? — Margô murmura perto do ombro de Nuno.
Ele enfia as mãos nos bolsos e fecha a cara. Contenho um impulso de
xingá-lo, mas me lembro que é o dono da casa e não tenho onde dormir.
Além do mais, o que eu esperava? Ele é o Senhor Psicopata. Aquele que me
apertou na estrada até pifar o meu carro. O grosso que encontrei no caminho
para o Algarve e que só me socorreu porque me associou a sua vovozinha de
quase uma centena de anos.
— Bom, tenho que ir. Ane Luise já arruinou o meu dia e me fez perder
uma reunião importantíssima. Não fez nada de mais agora, botando Sofia
para dormir. Está apenas retribuindo tudo o que fiz por ela.
Nuno nos dá as costas e Margô lhe dá outra bengalada, que ele ignora e
continua andando em direção ao seu carro luxuoso. Os funcionários tremem
quando ele passa.
Seus calcanhares giram quando ele percebe ter se esquecido de algo.
Caminha até mim e ficamos em uma dança constrangida quando ele tenta se
aproximar de Sofia sem encostar o rosto nos meus lábios. Ele beija e afaga a
menina, que dorme um sono profundo.
— Até logo, meu amor — sussurra em seu ouvidinho.
Nuno entra no carro e baixa o vidro. Ajeito Sofia no colo como se tivesse
feito isso por toda a minha vida.
— Vou passar no cassino. Volto mais tarde. Digam para Marta não
aparecer na minha frente amanhã sem a babá de Sofia — ele rosna e sai de ré,
seguido por um carro com outro funcionário, e se dando ao trabalho de fazer
o motor do carro roncar apenas quando está longe o suficiente para não
assustar Sofia.
Uma aura de alívio recai sobre todos os funcionários da casa, que
prontamente ficam mais leves e sorridentes. Eles se dispersam e apenas
Margô fica ao meu lado, nós duas olhando para o caminho onde Nuno
desapareceu e deixou minhas malas.
— Ele vai ao cassino jogar a essa hora? — pergunto, preocupada em
estar na casa de um viciado em jogos e, por isso mesmo, um milionário.
Longe de mim acabar presa na casa de um desconhecido por coisas
ilegais. Margô acena com a mão e solta o ar, franzindo a boca com um
biquinho.
— Nah, vai trabalhar. Isso aí é viciado em trabalho desde que a mulher
morreu.
Meu coração entala na garganta. Ele é viúvo.
— Nuno trabalha em um cassino?
Margô me olha como se eu fosse louca.
— Ah, não, querida. Ele é o dono. De vários.
4
Ane Luise
É difícil conter uma exclamação quando entro na casa. Se Sofia não
estivesse no meu colo, eu teria gritado um minha nossa bem alto. A casa tem
uma decoração modernista ao estilo dos anos setenta e começo a entender a
conexão com o lado externo e suas vidraças e curvas. Amo desenho e o
suporte artístico dessa mansão tem uma base profunda na arte. Cada um dos
detalhes me prende, me imagino inclinada sobre um papel, usando essas
linhas e formas como inspiração para novos cenários.
Dou um passo atrás e saio para o jardim, observo mais uma vez a
fachada e me lembro das minhas malas. Olho para o lugar onde as deixei,
mas não estão mais lá.
— Matilde levou suas coisas — Margô diz, dando batidinhas com a
bengala na porta.
— Ah, obrigada.
— Vamos. Vou te mostrar onde fica o seu quarto.
Fico empolgada com a menção ao meu quarto. Adoraria viver aqui, mas
me forço a lembrar que é apenas por uma noite.
— Desculpe, é que estou impressionada com a beleza dessa casa. Tem
uma exuberância e uma simplicidade. Adorei as curvas e os vidros. Parece...
— Brasília — Margô completa.
— Sim. Isso mesmo. Parece Niemeyer.
A avó de Nuno coça o queixo com indiferença.
— E é.
— O quê? — Engasgo e Sofia se remexe no meu colo.
— Ele era amigo do meu falecido marido na época que moramos no
Brasil. Eu nunca quis voltar para cá, mas não havia muita opção. Disse que só
moraria outra vez em Portugal se minha casa me lembrasse Brasília, o lugar
onde vivemos. Queria, inclusive, os meus móveis aqui. Bom, aí está. Uma
casa modernista numa falésia à beira da praia.
Minha cabeça tenta guardar tudo o que vejo e ouço enquanto passeamos
pela mansão com toda a calma. Mal posso acreditar nessa oportunidade.
Acordei de manhã como uma garota pobre, em um camping, arrumando todas
as poucas coisas que tinha em apenas duas malas e agora sou uma princesa.
Lembro da entrevista e de como preciso de um emprego. Quem sabe
posso vir visitar Margô quando estiver morando aqui em Vilamoura? Isso
seria divertido. Me deparar com a cara irritada de Nuno quando me visse
tomando chá com sua vovozinha.
De alguma forma essa casa me dá a sensação de que tudo vai ficar bem.
Pelo menos é no que quero acreditar. Atualmente nem dinheiro para comprar
uma passagem para casa eu tenho. Tampouco posso voltar para o Brasil de
mãos vazias e meu visto está relacionado a ter um emprego, coisa que no
momento não tenho. Mas fé, tenho muita.
— Ah, meu Deus. Quem é essa com Sofia? — Uma mulher corpulenta
desce as escadas com pressa e me olha como se eu fosse um urso pardo
carregando sua bebezinha.
— Aí está você. Nuno veio e partiu e não te vimos — Margô rebate e
desconfio que é apenas para tirar o foco da mulher sobre mim.
Observo sua roupa perfeitamente alinhada. Blusa branca com decote.
Saia lápis de um verde esquisito e cinto no meio para dividir.
— Estava numa ligação. Nuno não me deu certeza da hora que viria,
então precisei reorganizar toda a agenda dele. — Ela movimenta as mãos,
gesticulando como uma italiana.
— Sofia estava chorando, pra variar. Mariane nos salvou.
— Ane — corrijo Margô. — Ane Luise.
Margô cutuca o cotovelo da mulher e ela estende a mão para mim.
Mesmo parecendo a contragosto.
— Essa é Marta, nossa governanta.
— Assistente pessoal do Nuno, na verdade. Mas, como estamos sem
governanta no momento, tenho passado mais tempo aqui do que no escritório.
— É que a Raquel não gostava de ter alguém administrando a casa. Ela
mesma queria fazer isso. Depois que ela morreu, Nuno quis manter as coisas
assim, intimamente.
— Às minhas custas, claro. — Marta revira os olhos.
— Ah, você ganha bem para isso. Pare de reclamar. — Margô assopra o
ar com desdém.
Marta consulta um relógio caro em seu pulso e volta a focar em Sofia,
que dorme no meu peito.
— Precisamos acordá-la. Já passou da hora do banho. Não sei quando
Nuno vai chegar, mas ele gosta de dar o jantar e colocar a menina para
dormir.
Abraço forte o pequeno corpinho em meu colo. Não quero me desfazer
dela.
— Ai, coitadinha. Está dormindo um soninho tão bom. Por que acordá-
la?
— Essa soneca fora de hora vai deixá-la irritada depois.
— Depois? Essa criança está sempre irritada desde que Raquel morreu
— Margô diz, subindo as escadas e fazendo sinal para que eu a acompanhe.
— Assim como o Nuno — Marta fala baixinho, como para si mesma.
Ela estende os braços alinhados mas me recuso a entregar Sofia. A
mulher de cabelos castanhos bem presos em um coque pisca para mim,
impaciente. Aperto a menina contra o peito, sem querer me afastar dela.
— Pode me dar. Vou levá-la para o banho.
— Eu mesma levo — digo, seguindo uma Margô sorridente.
Acho que ela gosta do meu jeito. Mais ainda do fato de que eu fiz
alguma coisa diferente que tocou Nuno, ou não estaria aqui agora. Isso me
faz estufar o peito ao seguir uma Marta irritada.
— O segundo andar está dividido em quatro alas. Antigamente, uma era
minha e do meu marido, a outra do meu filho e da esposa e as demais eram
das crianças. O único que ficou foi Nuno, porque ele é o CEO do grupo da
família. Então hoje, das duas alas da frente, uma é minha e a outra dele, na
parte de trás da casa, a terceira é para Sofia e a quarta de visitantes, que agora
é sua.
Marta ultrapassa Margô com impaciência.
— Vai ficar muito tempo?
— Só essa noite. — Afundo, já com saudades de Sofia e de Margô,
mesmo as tendo conhecido a menos de uma hora.
— Ah, entendi. De onde conhece Nuno?
— Da estrada. — Ergo um ombro e Margô ri.
Minha resposta parece satisfazer Marta. Talvez Nuno viaje bastante, não
sei.
— Aqui. Esse é o quarto de Sofia.
Penso na minha casa no Brasil, no fato de termos uma geladeira menor
do que essa que a bebê de Nuno tem no seu quarto. Ando pelo espaço
boquiaberta e logo sinto um par de dedinhos entrar na minha boca. Sorrio.
— Olá, querida. Adorei o seu espaço. Moraria aqui fácil.
— O cômodo foi pensado com base nos conceitos do método
Montessori[vi]. A cama fica junto ao chão, os brinquedos dispostos de modo
que Sofia possa pegá-los e...
Aprendi na faculdade de pedagogia um par de métodos educativos. Sei
do que está falando, ela desfia o conceito todo da coisa e até presto atenção
no início, mas logo me distraio fazendo caretas para a neném, que dá
gargalhadas altas.
— As vantagens do modelo foram...
— Ai, Marta, chega disso. Adriane não está interessada nessa sua
conversa chata.
Abafo o riso. Margô é uma figura.
— Ótimo, então pode me entregar a bebê. Hora do banho. Se não se
importa, Margô poderia levá-la até o seu quarto agora.
Desanimada, estendo os braços e ofereço Sofia. Isso acelera meus
batimentos e me dá vontade de chorar. Talvez seja apenas uma reação
espelhada do que a menina sente, porque ela começa a berrar na mesma hora.
— Ah, querida, por favor, vamos. Não faça assim — Marta choraminga.
Pequenos bracinhos e perninhas parecem se multiplicar, chutando e
socando para todo o lado. Sofia tenta se agarrar à minha roupa e se manter
protegida comigo.
Olho para Marta e ela faz um muxoxo. Franzo a testa para ver se entende
que a menina não quer ir com ela, que já tem os cabelos caídos para fora do
coque, de tanto lutar.
A mulher caminha em direção à porta do banheiro. É maior do que o
quarto que eu estava alugando em Lisboa e muito mais limpo também.
— Eu posso fazer isso — me ofereço.
— Ah, não. De maneira nenhuma. Nuno não vai gostar. Eu sempre dou
banho nela quando ele não está.
— Tudo bem. — Dou alguns passos para o lado e entrego Sofia com o
coração partido.
O choro da menina soa mais estridente. Enquanto Marta enche a
banheira e despe bebê, Margô observa da porta, sempre sorrindo, como se
finalmente algo de divertido estivesse acontecendo nessa casa.
O rosto da menina fica arroxeado e ela parece prestes a perder o fôlego.
Marta deixa os ombros caírem e murmura que posso ajudar. Tão baixo que
nem tenho certeza de ter ouvido.
Arregaço as mangas e ergo o vestido para me sentar na borda da
banheira, onde mergulho Sofia. Ela se distrai com os brinquedos de banho
enquanto Marta cruza os braços diante do peito e me fuzila com o olhar.
Lavo a cabecinha com cabelos macios da bebê com uma ducha que eu
não duvidaria se fosse de prata. Ela sorri para mim e seus cílios molhados
pingam gotas pelas bochechas.
Suas mãozinhas fofas pegam a ducha e fazem bolinhas na água. Então
ela ergue o braço e me molha toda. Grito e tento me proteger, mas paro
quando percebo suas gargalhadas.
— Isso é a coisa mais linda que eu já vi. Sofia nunca riu assim. Também
pudera, Marta é tão chata quanto Nuno — Margô diz.
A assistente dele revira os olhos para a senhora e sai do banheiro
bufando e falando:
— Olha essa bagunça. Vou pegar mais toalhas. Francamente, vamos nos
atrasar para o jantar. Nuno vai me comer viva.
Olho preocupada para Margô enquanto Sofia continua a me molhar até
os cabelos.
— Vocês iam sair para jantar? — questiono, começando a ficar nervosa
por atrapalhar a rotina da casa.
Nunca fui boa com rotinas. Talvez por isso tenha trocado os horários dos
meus empregos algumas vezes e aparecido no café com o uniforme da loja.
Margô ri.
— Nuno sair para jantar? Não. Marta disse isso porque ele controla cada
minuto de Sofia para que tudo corra bem. Ele pensa que assim vai ser o
melhor do mundo para ela.
— Entendo — digo, mas na verdade não entendo nada.
Como um pai pode achar que sua rigidez e controle poderiam ser
saudáveis para um bebê? Mas ok, não tenho nada a ver com isso.
Marta volta e saímos do banho. Ela tenta distrair Sofia enquanto enxugo
minha roupa e vou atrás das duas. Margô boceja pela quinta vez e me olha
com seus olhinhos cada vez menores.
— Bom, já passou da hora de estar na cama. Marta, depois leve a Juliane
até o quarto dela. Boa noite, minha bisnetinha amada. — A senhora deixa um
beijo no pezinho de Sofia e sai.
A porta volta a se abrir e penso que ela esqueceu algo mas vejo Nuno.
Senhor Psicopata não parece nada sexy agora, apenas muito irritado. Ele olha
para os meus pés encharcados e fica vermelho de raiva.
— Mas que merda é essa no quarto de Sofia?
Droga, acho que ele não está feliz.
5
Ane Luise
— Você está molhando todo o carpete. Isso pode mofar e deixar Sofia
doente. Francamente, Marta, por que você ainda não levou Luise para o
quarto dela?
— Sofia não parou de berrar quando tentei pegá-la para o banho. Luise
praticamente teve que entrar na banheira mas você devia ter visto a
gargalhada que Sofia deu quando molhou toda sua namorada.
Prontamente Nuno e eu nos entreolhamos.
— Ela não é minha namorada — ele corre a dizer.
— Ah, claro. Sinto muito.
— Guarde seus sentimentos e vá logo preparar o quarto de Luise. Deixa
que terminamos aqui.
Marta põe a bebê na cama e sai. Corro até Sofia quando ela ameaça
chorar. Termino de vesti-la e Nuno desaparece, voltando em seguida com um
tecido escuro nos braços.
— Tome. Vista isso de uma vez ou vai molhar tudo.
Ele pega Sofia no colo e vou para o banheiro. Coloco o vestido e ele fica
ligeiramente apertado em mim. Abro a lixeira e jogo minha própria roupa no
lixo. Tenho fé que amanhã terei um novo emprego e não vou mais precisar
desse pedaço de pano que, apesar de lindo, está bastante surrado.
Quando volto, Nuno me olha por um tempo mais longo do que o
necessário. Ele esfrega os cabelos e suspira. SPS de volta para me tirar o ar.
Sento ao lado da cama de Sofia e brinco com ela enquanto ele nos observa.
— Quanto tempo ela tem? — pergunto.
— Seis meses — ele responde, seco.
Uma vontade súbita de abraçá-la me invade mas tento me conter.
Percebo um porta-retratos perto da cama e a beleza da mulher me
impressiona, assim como sua magreza e palidez. Nuno vê e baixa a
fotografia.
Um estrondo alto nos assusta e faz Sofia chorar. Olho para trás e vejo
Marta com uma bandeja caída aos seus pés.
— Minha nossa. Por um momento, pensei ter visto um fantasma. Assim,
com os cabelos molhados e soltos imaginei ter visto Raquel.
As palavras de Marta são o estopim para o estouro de Nuno.
— Não seja ridícula. O que houve com você hoje? Olha essa bagunça, os
horários quebrados. Sofia vai ter uma péssima noite.
— Ela sempre tem uma péssima noite — Marta murmura, abaixada,
juntando a bandeja e a louça que deixou cair.
— Fora daqui — ele grita, me fazendo pular.
Sinto o desapontamento da mulher por ser tratada dessa maneira e cogito
que a minha presença nessa casa só esteja piorando as coisas para Marta.
Pego Sofia no colo e me levanto com ela.
— Desculpe. Imagino que tudo isso seja culpa minha. Acabei estragando
a rotina de vocês — digo, esperando que Nuno me contrarie.
— Sim. Você tem razão. É melhor você ir. — Ele estende os braços.
Entrego uma Sofia relutante. Saio cabisbaixa por deixá-la chorando.
Procuro porta por porta até encontrar a que abriga minhas malas. Deveria
estar animada por poder passar a noite num lugar como esse, mas alguma
coisa amassa meu coração. Me jogo na cama e, exausta depois de tudo que
me aconteceu no último dia, acabo adormecendo.
Acordo um tempo depois ouvindo um chorinho. Fico atordoada por não
saber onde estou e não reconhecer minhas próprias roupas. Quando me
lembro de Nuno e de Sofia, me sento prontamente na cama.
Vou até o quarto dela na ponta dos pés. Entro sem acender a luz para não
a assustar. Deito ao lado do seu corpinho e ela logo silencia. Adormeço de
novo.
O barulho das cortinas sendo arrastadas é o que me acorda. Depois vem a
luz e então o grito.
Não é da bebê. É de uma das empregadas que estavam diante da casa
ontem, aguardando a chegada de Nuno.
— Ah, meu Deus, me desculpem — ela diz, cobrindo os olhos.
Esfrego os meus até perceber que, do outro lado da cama de Sofia, quem
estava dormindo a apenas alguns centímetros de mim era Nuno. Somente o
pequeno corpo da bebê nos separou a noite toda.
— Não é o que você está pensando — digo para a empregada, que nos
encara, constrangida.
Nuno se levanta em um pulo e tento não focar em sua barriga de
tanquinho nua. Ou no elástico da calça caído nos ossos do quadril. Puxa, ele é
gostoso. Por um instante me pego imaginando como é dormir em seus braços.
Fico orgulhosa de mim. Nunca erro em um apelido. Senhor Psicopata
Sexy.
— Que merda você está fazendo aqui? — ele rosna para mim.
— Vim quando Sofia chorou.
— Não. Eu vim quando Sofia chorou.
— Bom, parece que isso foi ótimo, porque é a primeira vez em meses
que não preciso vir ao quarto dela no meio da noite — a empregada se
intromete.
— É, mas isso nunca mais vai se repetir. A senhorita Luise está indo
embora agora.
— Mas...
— Seu carro já chegou, você teve onde passar a noite. Minha parte no
trato está feita. Agora fora da minha casa. — Ele aponta para a porta.
Beijo a testa de Sofia enquanto ela ainda dorme. Lágrimas quentes
brotam descontroladas dos meus olhos. Busco minhas malas, tiro a roupa que
Nuno me deu e visto as minhas. Faço tudo isso sonhando que alguém vai me
interromper e me pedir pra ficar. Desço as escadas carregando as coisas e
implorando mentalmente que Margô surja e me salve, mas nada acontece.
Parto da vida de Nuno assim como entrei: inesperadamente.
O ar praiano bate em meu rosto. Está fresco e percebo que ainda é cedo.
Meu carro está no gramado e a capota está fechada. Ele mandou arrumar.
Deixo minhas coisas ao lado da roda e decido seguir o caminho até a
praia particular da família. Nuno não vai se importar. Já deve até ter se
esquecido de mim.
Paro no meio da escada de madeira. A vista é incrível. O azul escuro do
mar se mistura com o céu claro. Meu telefone toca e me assusto.
— Sim.
— Luise, é a Ágata da agência de empregos. Consegui reagendar sua
entrevista, mas é daqui a pouco. Nove horas. Vou mandar o endereço por
mensagem. Veja se consegue chegar a tempo. Qualquer coisa me avise.
Segundos depois, estou colocando no mapa do celular o local indicado.
Ergo o braço e sacudo o telefone ao constatar algo errado. Meu mapa não está
funcionando. Droga. Preciso de um telefone novo.
Apago o endereço e o digito outra vez. Mesma coisa. Meu ponto de
partida e meu ponto de chegada continuam iguais. Então meu queixo cai
quando percebo o que está acontecendo.
6
Nuno
A campainha toca duas vezes e sei que ninguém vai atendê-la. Sofia está
berrando tanto que não há uma pessoa na casa que não esteja em seu quarto
tentando acalmá-la.
— Eu vou — Marta diz, fazendo um esforço para libertar as próprias
roupas das garras afiadas da bebê.
— Não. Deixa que eu atendo. Sofia não quer soltar você.
— Na verdade, ela não quer soltar nada que surja entre seus dedos há
mais de uma hora.
— Desde que você mandou a Cassiane embora. — Margô olha para o
teto.
Trinco os dentes. É Ane. E estou absurdamente irritado por isso.
Que porra foi essa, Nuno Prado Ribeiro? Mandar a garota embora. Está
com medinho?
Os berros não cessam. Até Tenório está correndo de um lado para o
outro, tentando fazer palhaçadas para Sofia.
Ding Dong.
De novo.
— Vou lá. Deve ser a babá que vai nos salvar — digo, sem querer
parecer que estou fugindo do campo minado que é o quarto de Sofia.
Cada passo pode irritá-la e causar uma explosão. É exatamente como eu.
Quando se sente assustada, qualquer coisa pode detonar a pequena bombinha
que é.
— Sim. Espero que sim. A mulher da agência de empregos disse que ela
chegaria um pouco antes. Teremos o nosso primeiro teste.
Marta balança a bebê de um lado para o outro. Uma mecha de cabelo cai
e se cola na lateral do seu rosto.
— Se ela fizer a Sofia parar, está contratada — resmungo, batendo a
porta do quarto.
Já tivemos dezessete babás. Dezessete. Todas elas pediram demissão. A
maioria saiu daqui chorando. Por causa de Sofia ou por minha causa. Viro
uma fera quando não cumprem o combinado. Ficar inventando coisas sem
rotina para ela não vai fazê-la se acalmar. Sofia precisa de carinho e
compreensão, lógico, mas precisa seguir sempre a mesma rotina. Quando não
se sente segura, acaba inconsolável. Sei como ela se sente mas fico frustrado
que nem o meu abraço a deixe mais tranquila.
Eu mesmo preciso de rotina. Acordar cedo. Treinar um pouco. Um
banho gelado para espairecer. Sofia e trabalho até o resto do dia.
Desço as escadas correndo e suspiro antes de abrir a porta de entrada.
Tudo vai dar certo. Dezoito é um número bom. Já posso ver a silhueta da
mulher e uma esperança começa a se construir. Isso até eu abrir a porta e me
deparar com ela.
— Você?
— Eu — Luise diz, sorridente.
Observo sua boca grande e cheia de dentes reluzentes. O cabelo agora
está preso e alinhado. A roupa é uma camisa branca e umas calças jeans
claras. Até parece um pouco mais confiável.
— O que está fazendo aqui? Seu carro não está funcionando?
— Ah, está sim. E muito obrigada. Seus caras são bons. Até deram uma
polida e o lavaram. Tudo isso em tão pouco tempo. Fico agradecida, apesar
de achar que não vou mais precisar tanto do carro, porque espero conseguir a
vaga de emprego à qual estou me candidatando. Assim, vou morar e trabalhar
no mesmo lugar. — Ela fala isso tudo muito rápido, quase colando uma
palavra na outra.
Observo o estalar da sua língua e penso no quanto combina com a cabeça
do meu pau. Maldita boca deliciosa. Só me faz perceber uma coisa: não tenho
condições de ficar perto de uma mulher dessas sem pular em cima dela.
— Ótimo para você. Se me dá licença, tenho um compromisso
importante agora. — Começo a fechar a porta enquanto Luise olha para cima,
o local de onde vêm os gritos de Sofia.
— Sim. Sei. Por isso estou aqui. Sou o seu compromisso. — Ela ergue os
braços e consegue sorrir mais ainda, mesmo com a minha cara incrivelmente
fechada.
Impossível disfarçar a minha surpresa. Não pode ser.
— Você é a candidata à vaga de babá?
— Sim.
— Não acredito.
— Pois acredite.
— Não pode ser. Você deve ter ouvido alguém comentar sobre isso e
está se oferecendo antes da verdadeira babá chegar.
Luise olha para as unhas como quem não quer nada. Percebo que suas
malas continuam do lado de fora do carro, onde estavam quando saiu daqui.
— Pode checar, se quiser. Inclusive, já deviam ter feito isso. A moça da
agência de empregos disse que enviou a minha ficha.
Sinto meu rosto queimar. Óbvio que ela mandou uma ficha. E onde está
essa porcaria de papel?
— Marta — grito, mais um rugido do que um chamado.
Desesperada, minha assistente corre até a entrada da casa. Ela ainda
carrega Sofia nos braços, que se debate e geme, caindo de sono, mas sem
ceder.
— Sim, senhor. O que houve? Ué, e a babá? — Ela olha confusa para
Luise.
— Eu que pergunto. Onde está a babá, Marta. Essa senhorita acabou de
me dizer que ela é a candidata encaminhada pela agência mas me recuso a
acreditar. Disse que foi enviada uma ficha com seus dados. Onde está?
Aposto que essa impostora a encontrou e trocou por uma dela própria.
— Ai, dá licença. — Luise me empurra com o ombro e tira Sofia dos
braços de Marta, que solta o ar, aliviada.
A menina para de gritar imediatamente e deita a cabecinha no peito da
desconhecida como se fizesse isso todos os dias. Quero arrancá-la dali, onde
eu mesmo gostaria de repousar, mas tenho pena. Finalmente está sossegada
depois de tanto tempo.
Marta esfrega a testa suada e lembra que estou aguardando uma resposta.
Ela vai até o chapeleiro e remexe em sua bolsa. Encontra um papel e o sacode
no ar.
— Aqui está. Ela me enviou, mas você estava fora. A casa ficou uma
confusão com Sofia tão agitada na sua ausência. Nem pude ler o currículo. —
Ela passa os olhos na folha e ergue o rosto para mim com um sorriso forçado.
Fecho a cara. Estou ficando incrivelmente irritado.
— É ela mesma — Marta confirma e Luise revira os olhos.
— Claro que sou eu. Pode olhar no e-mail, se está desconfiando que
troquei os papéis.
— Isso é ridículo. Pode me dar a bebê. — Estendo os braços para ela e
Luise se vira de costas para mim.
Percebo Margô surgida do nada, tocando meu ombro e aproximando a
boca do meu ouvido.
— Lembra do que você disse lá em cima?
— Não. Só lembro que essa garota fez uma bagunça na minha casa, tirou
as coisas do lugar, mudou a rotina de Sofia e...
— E a fez parar de chorar. Você disse que se a candidata a babá
acalmasse Sofia, ela estaria contratada.
Encaro Marta e ela se encolhe.
— Você não está achando essa história toda muito estranha? — pergunto
a ela. É Margô quem responde:
— Não.
— Pois eu estou. Encontro essa mulher na estrada, a trago para casa e no
outro dia descubro que ela é a babá da Sofia. É coincidência demais para o
meu gosto.
— Ah, Nuno, dê um tempo. É apenas o jeito de Deus de dizer que está
ao seu lado.
Bufo e consulto meu relógio. Já gastei tempo demais com essa
palhaçada.
— Deus nunca está do meu lado. Ele me tirou o que eu tinha de mais
precioso e agora preciso proteger o que me restou. Tenho que ir. Essa
discussão não vai levar a lugar nenhum.
Luise se vira em minha direção e apoia a mão em meu braço. Ela me
olha de um jeito sincero e confiante. Feliz. Sempre feliz.
— Estou aqui para isso, pra te ajudar a proteger o que te restou. Me deixe
ficar uma semana. Se você não gostar do meu trabalho, tem todo o direito de
me mandar embora. Sofia gostou de mim.
— Eu gostei dela também — Margô fala, já tendo subido parte da escada
do hall, indo em direção ao seu quarto como se tudo estivesse resolvido.
Ela ergue a bengala no ar e a aponta para mim.
— Só não te dou uma bordoada nos cornos porque vou demorar para
descer até aí outra vez. Deixe de ser teimoso e egoísta. Contrate a menina e
deixe o resto das pessoas dessa casa dormirem em paz.
Luise sorri de orelha a orelha.
— Obrigada, Margô.
— Imagina, minha querida. Seja bem-vinda de volta. Essa agora também
é a sua casa.
7
Ane Luise
Em poucos minutos meu cérebro é invadido pelo excesso de informações
sobre a casa. Descubro que a roupa de corte reto e cores sem graça dos
funcionários é parte do uniforme que devo usar. Os empregados que não
saem da casa a serviço usam um modelito azul. Claro para as mulheres,
marinho para os homens. Como ganhei essa roupa estranha cor de burro
quando foge, já sei que tenho que sair com Sofia.
— Aleluia! Nem acredito que não vou mais usar esse conjunto
asqueroso. — Marta estende as peças em minha direção e não sei o que fazer.
— Devo ficar com elas?
— Não seja ridícula. Com esse seu corpinho poderia fazer três conjuntos
desse tecido. Apenas coloque fora, jogue no lixo.
— Se ninguém gosta do uniforme, por que temos que usar?
Ouço o suspiro de Marta e a imagino desejando revirar os olhos para
minha pergunta.
— Querida, quando trabalhamos na casa de alguém muito rico logo
descobrimos que a vida não é igual para todo mundo. E muito menos é justa.
Esse tipo de gente não quer lembrar que somos humanos enquanto os
servimos. Isso torna tudo pessoal. Tente não ser assim... hummm... como
você é. Nuno não gosta disso.
— Como eu sou?
— Feliz.
Por todo percurso que fazemos pela propriedade, enquanto Marta me
mostra as tarefas e as coisas que preciso saber, fico com isso na cabeça. Não
ser feliz perto de Nuno.
Talvez de alguma forma a morte da esposa o tenha tornado insensível.
Idiota. Psicopata sexy. Não importa. Meu novo chefe não quer saber se a
minha vida está tão horrível quanto a dele, se também perdi um alguém ou
vários. A alegria alheia o atinge.
Tanto faz. Isso não muda quem eu sou e o que vim fazer aqui: mostrar
que posso ser responsável e me manter como uma mulher adulta.
Estou indo bem. Já tenho um emprego, ganhei roupas novas —
horrorosas — mas novas e o teto sobre a minha cabeça é branco e não verde
como uma floresta tropical pingando de umidade.
Isso me faz sorrir na hora em que Marta abre a porta do meu novo
quarto. Sua boca se franze e ela faz sinal para que eu entre.
— Bem, parece que você não se inteirou do seu espaço ontem, mas essa
é sua suíte.
Coro ao lembrar como eu e Nuno fomos flagrados dormindo juntos na
mesma cama. Então a notícia já correu a casa.
— Não tenho nada com Nuno. — As palavras saltam da minha boca.
— Não precisa se justificar. Sei das exigências de discrição desse
emprego. Também sei que não é qualquer uma que consegue essa vaga.
— Mas comigo já são dezoito.
— Você não faz ideia da qualificação de cada uma das meninas que
trabalhou aqui. Pelo que vi, você nem formada é.
Eu poderia ficar me explicando. Contar como conheci um cara lindo em
uma festa e me apaixonei por ele justo no meu último semestre. O modo
como ele me fez juras de amor e desapareceu. O quanto meus pais se
decepcionaram quando larguei tudo para vir atrás dele e dei com os burros
n’água. Mas só sorrio. Mesmo que de maneira forçada.
— Desconfio que isso valha mais que qualquer graduação — Marta
resmunga, revisando armários e gavetas do quarto depois de me encarar por
alguns segundos.
— Isso o quê?
— Sua linda boca.
Tento não ficar ofendida. Sei que sou até bonita mas isso não me ajudou
a conseguir nenhum emprego em Portugal. E eu nem queria que tivesse.
— Desculpe. Falei demais.
— Tudo bem. Só quero que saiba que não consegui essa vaga por minha
beleza ou por dormir com Nuno.
— Sei que não. Ele não faria isso.
— Ok. Agora está me ofendendo.
— Não por você não ser interessante. Olha, conheço o Nuno há muito
tempo e acho que ele nunca colocaria alguém no lugar da esposa. Você é
jovem e bonita mas não tente ser esperta. Apenas faça seu trabalho, que, em
resumo, se baseia em manter Sofia sem chorar. — Ela solta um pequeno
suspiro.
Começo a formar um pensamento. Será que ela tem algum interesse...
Refreio a ideia antes que se complete.
Marta se vai depois dessa e olho para o meu quarto. Fiquei com o
mesmo, na ala dos hóspedes, porque é perto do de Sofia. Mais tarde,
perceberia com isso algumas caras tortas dos empregados. Eles dividem
espaços menores em um corredor apertado no andar de baixo. Alguém
resmungou um “essa não dura” quando eu passei. Sorri. Ninguém precisa
mais desse emprego do que eu. Se tem uma coisa que vou fazer nessa casa é
durar. Pelo menos o tempo que preciso para poder voltar para o que é meu.
Pulo sentada na cama e depois me atiro de costas. Faço um anjo com os
braços e solto uma gargalhada. Sei lá, um ano e tal? Talvez seja esse o tempo
que não tenho uma cama confortável.
— O que você está fazendo?
Pulo e rolo de lado, caindo no chão com um baque surdo. Tiro os cabelos
bagunçados do rosto e esfrego o pulso.
— Ai! Nuno?
— Você está bêbada? — Ele estende o braço para me juntar do chão.
— Claro que não. Só estou feliz. Minha cama não tinha propriamente
todo esse conforto.
Fricciono os punhos na calça, constrangida por ter sido pega em
flagrante no meio do meu surto de felicidade.
— Hum. Ok. Só vim te trazer o iPad. Você precisa administrar a agenda
de Sofia por aqui. Ela deve ser integrada à minha. Banhos, refeições,
consultas, eventos. Está tudo aí.
Pego o aparelho da mão dele. Não faço ideia de como usar. Será que se
eu perguntar isso vou mostrar que não estou preparada para o cargo? Melhor
não falar nada.
— Agora vamos — ele ordena.
Corro para acompanhar seus passos.
— Onde?
Nuno para no meio do caminho e quase o atropelo. Ficamos a milímetros
um do outro. Sexy. Cheiroso. Psicopata.
— É hora do banho de Sofia. Gosto de dar eu mesmo. Apenas em casos
imperiosos passo essa função, como ontem, quando você me atrasou.
— Mas você não trabalha em um cassino? Quer dizer, não trabalha de
noite?
— Luise, eu não “trabalho” no cassino. Sou dono de dois cassinos e
administro os negócios da família que envolvam todos os outros cassinos. Os
que estão sob cuidados dos meus pais e irmãos. Não fico sentado diante de
uma roleta, fumando e controlando apostas.
Sorrio, olhando para o nada enquanto luto para desfazer a cena na minha
cabeça.
— Ah, entendi. Bem, era isso que eu estava imaginando. Senhor
Psicopata Sexy fumando um charuto e contando cartas.
— Sexy? Mais respeito, senhorita Macedônia. — Nuno me lança um
olhar inflamado, disfarçado por sua tentativa formal de se dirigir a mim, e
volta a andar pelo corredor acarpetado.
Minhas bochechas esquentam como um abajur velho. Percebo seu
sorriso pelo reflexo em uma porta de vidro no caminho. Entramos em seu
quarto e meu queixo cai.
Descubro o conceito de elegância na simplicidade. A cama de dossel
preto ocupa o centro e uma escrivaninha com sua cadeira diante da janela é
todo o resto de mobília no lugar. Sou atraída pela imagem atrás das cortinas.
É como se estivéssemos voando. Do alto da falésia, vejo o mar sem fim.
— É lindo, não é? — A voz de Nuno perto do meu pescoço me arrepia.
— Agora entendi por que tão poucos móveis no seu quarto. Não é
necessário. Tudo o que você precisa está aqui.
A porta se abre bruscamente e os ganidos de Sofia invadem o quarto.
Marta ergue uma sobrancelha e percebo que analisa a proximidade entre o
meu corpo e o de Nuno. Ele pigarreia e se afasta.
— Obrigado, Marta. De agora em diante Sofia não é mais atribuição sua.
Está liberada para voltar a organizar a minha agenda.
Ele pega a bebê no colo. Marta tem claramente uma mudança de postura.
É como se soltasse um vagão de trem e não uma bebezinha de menos de dez
quilos. Ela sai e Nuno me passa Sofia. Ela sorri e balança as perninhas contra
minha barriga.
— Olá, querida!
— Luise, as coisas do banho de Sofia devem estar sempre organizadas
no meu closet. Vou preparar a banheira enquanto você as coloca na minha
cama. Já venho pegar a bebê. Deixe-a com a fralda a prova d’água. — Nuno
se aproxima e beija a testa dela.
Seu perfume me atinge como um tapa e acordo para a realidade do quão
íntimo é o que estamos fazendo. Ei! Se liga, Luise. Ele já fez isso com
dezessete outras garotas. É só uma assessoria no banho da bebê.
Nuno desaparece no banheiro e eu empurro a porta do closet com a mão
livre. Ternos, gravatas, relógios, gavetas. Tudo preto, azul, cinza. Menos uma
prateleira com coisas cor-de-rosa. Encontro uma cesta com os acessórios de
banho e um pijama minúsculo. Anoto mentalmente que preciso repor a roupa
no lugar amanhã.
Arrumo as coisas sobre a cama enquanto Sofia brinca com uma pomada
para assaduras. Meu coração balança. Levo um pequeno par de meias até o
rosto e o esfrego contra a bochecha.
Como ele seria se nada daquilo tivesse acontecido?
— Sofia está pronta?
Largo as meias com o susto. Ergo a cabeça e não consigo falar. Nuno
está parado diante da porta do banheiro.
De.
Cueca.
Boxer.
E.
Só.
Tento não contar os músculos do abdômen dele mesmo sabendo que
todos os homens possuem seis. Tento também não contar as coisas que eles
têm dentro das cuecas. Nem as tatuagens descendo pelo tórax, pelos braços.
Engasgo e balbucio um bê-á-bá mais enrolado que os de Sofia.
— Luise, ah, não! Ela ainda está vestida. Você precisa ser mais ágil.
Sofia tem que jantar ainda. Pelo amor de Deus.
Desvio o olhar para esconder minhas bochechas afogueadas. Começo a
despir a menina e coloco a fralda de banho. Ele a pega dos meus braços e se
vai.
— Eu chamo quando ela estiver pronta, ok?
— Ok! — falo para a deliciosa e torneada bunda que terei que encarar
todos os dias daqui pra frente.
SPS.
Ai, Deus! Isso vai ser mais difícil do que eu imaginava.
8
Ane Luise
Espero com a toalha no braço. Olho para o entardecer pela janela de
Nuno. Ele tem sobre a mesa apenas um iPad como o meu e uma fotografia
dele com Raquel e Sofia. Fico aliviada por ver o quanto somos diferentes, eu
e ela. O modo como Marta se assustou quando me viu com aquela roupa
trazida por Nuno me deixou pensativa. Graças a Deus era só o meu cabelo
um tom mais escuro por estar molhado.
Meus desenhos viraram ursinhos coloridos para a alfabetização durante
os meus estágios na faculdade Sem dúvidas Raquel era uma mulher da
aristocracia. A gente sabe disso apenas pela postura e os tecidos caros que
alguém veste. Não ligo para isso, os preços. Gosto dos cortes, desenhos,
cores. Amo criar. Pena que minha mãe confundiu minhas habilidades com
uma grande e chata chance de seguir na carreira de professora.
Meus desenhos viraram ursinhos coloridos para a alfabetização durante
os meus estágios na faculdade. Mas era o que me daria um emprego, ela
garantia. Não posso discordar porque não esperei terminar o curso para
descobrir.
Larguei tudo e vim atrás de Biel. DJ Biel.
Uma estrela piscante passando na rua me faz pensar se ele está olhando
para o céu nesse momento, se existe a possibilidade de estarmos
compartilhando algo mesmo que ele não queira, porque aquele cretino lindo
de morrer desapareceu no mundo quando soube que cruzei o oceano para
encontrá-lo.
— Luise.
Nuno consegue até berrar com elegância, mas mesmo assim me assusto.
Abro uma fresta na porta e enfio a cabeça.
— Posso entrar?
— Se está se referindo a minha nudez, sua cabeça dentro do banheiro
significa que já entrou. Tampouco tomo banho com Sofia completamente nu.
Estou de cueca.
— É, reparei antes. Do tanto que têm medo de você nessa casa, achei que
fosse daqueles cheios de pudores.
Nuno passa a mão no cabelo molhado e sacode a cabeça. Sofia ri. Esse
penteado bagunçado o faz parecer mais novo, menos sisudo.
— As pessoas aqui não têm medo de mim. Têm respeito. Se não fosse
por mim, estariam desempregados ou ganhando uma miséria. Reergui a
empresa da família depois que meu avô morreu e todos são gratos por isso.
Acho que um viúvo tem o direito de ser mau humorado às vezes. E sobre
meu despudor, faço triátlon. Todo mundo aqui já me viu de calções.
Acostume-se.
Dou de ombros. Afinal, não vai ser difícil me acostumar com isso. Entro
com o resto do corpo no banheiro. Não é como se eu me importasse de ver
Nuno sem roupa. Na verdade, gosto muito da ideia. Ao entrar, entendo então
o motivo dos portugueses chamarem de casa de banho. É algo tipo metade da
casa dos meus pais no Brasil.
Olho para os patinhos de borracha ao redor de Nuno na banheira e uma
risada me escapa. Sua expressão séria me faz baixar o rosto para Sofia, que
espalma a mãozinha na água.
— Você assinou o acordo de confidencialidade, Luise?
— Acordo? Quer dizer, acho que sim. Marta me deu uns papéis. Assinei
tudo e devolvi a ela.
— Então não leu nada daquilo?
— Bem, não exatamente.
Nuno se estica na água da sua banheira de louça com pés em garra e
tento não olhar para o corpo que agora sei ser esculpido por esportes de alta
performance. Tento, mas não consigo. Meus olhos são desobedientes e focam
por alguns segundos nas sombras que o tecido molhado da cueca dele faz.
Uau, que grande. Engulo em seco ao notar o tamanho.
Observo os detalhes das suas tatuagens espalhadas pelo corpo: dados,
cartas. Uma ficha de aposta. Claro, o trabalho dele. Letras, asas de águia, pés
de bebê. Uma cruz.
— Vou resumir para você. Nunca, jamais, fale a ninguém sobre o seu
chefe tomar banho com patinhos de borracha. Nunca. Jamais.
— Nunca. Jamais — repito como uma tonta.
— Hora de ir com a Luise, meu amor. — Nuno tira a bebê da água e eu
me abaixo para pegá-la.
Piso em algo no chão e tropeço. Droga!
Meu punho tenta sustentar meu peso contra a parede mas desabo dentro
da banheira como um saco de batatas. Tranco a respiração e subo de volta à
superfície, cheia de espuma nos cabelos. Nuno me olha enfurecido enquanto
brigo para colocar o ar de volta nos pulmões.
— Você podia ter deixado Sofia cair!
— Ei! Eu caí e você nem está preocupado comigo — falo, lutando para
me endireitar na água.
— Meu Deus. Você não vai durar dois dias nesse trabalho. Preciso fazer
um seguro de vida pra você. Anda, saia ou não conseguiremos levantar.
Tento me sustentar no corpo escorregadio de Nuno e ele afasta Sofia de
mim. Sua raiva crescente deixa os músculos do braço cada vez mais saltados.
— Ave Maria. — Ele bufa e sai da água.
Nuno puxa meu braço para me tirar da banheira e me entrega seu roupão
branco felpudo delicioso e quentinho vindo do toalheiro aquecido. Me sinto
rica. E envergonhada.
— Pegue Sofia. — Ele joga o capuz da toalha sobre a cabecinha dela e
me entrega a bebê.
Suas mãos ágeis enrolam uma toalha na própria cintura.
— Desculpe. Sinto muito. Não sei onde escorreguei.
— Você não tem culpa de ser atrapalhada. Só talvez precisemos rever
sua adequação ao cargo. Sofia requer cuidados muito sérios. Preciso de
alguém com plena atenção.
As palavras dele me fazem tremer o lábio. Não posso perder essa chance.
Não sou chorona, mas a possibilidade de ficar sem o trabalho me faz derrubar
uma lágrima.
— Prometo que não vai acontecer de novo. Serei mais cuidadosa. Vou
me atentar a tudo — repito as palavras que já disse a todos os meus outros
chefes portugueses.
Nuno me encara surpreso.
— Pare de chorar. É só um emprego.
— Não. É “O” emprego. Preciso dele. Mais do que você possa imaginar.
Minha família não quer me ajudar e preciso de dinheiro para encontrar uma
pessoa, pra poder finalmente ajeitar a minha vida.
— Pessoa. Aquele homem, né? — Nuno esfrega uma toalha nos cabelos
e abre a porta com irritação.
Seguro o braço dele e seus olhos param na minha mão antes de se
fixarem nos meus.
— Sei o que dizem das brasileiras aqui. Não quero homem para ter visto.
Preciso apenas da chance de mostrar o meu trabalho e me sustentar por conta.
Esse emprego vai me ajudar a ter de volta algo que perdi: minha dignidade.
Os olhos escuros de Nuno me analisam. Eles se estreitam, tentando
encontrar sinceridade. Sofia se estica em direção ao peito do pai e agarra uma
corrente dourada com uma cruz que ele carrega no pescoço.
— Enquanto fizer minha filha feliz, te darei uma chance, Ane.
Sorrio aliviada quando ele fala meu nome favorito. E é bem nessa hora
que Marta abre a porta e desanda a falar até nos ver tão próximos, em trajes
de banho e completamente molhados.
— Ane Luise, esqueci de te entregar seu iPhone e te mostrar como
funciona o iOS[vii] e...
Marta cobre a boca com a mão e volta em silêncio até a cama, onde larga
o telefone. Ela vai até a porta caminhando de lado como um caranguejo.
— Desculpe, não quis interromper.
Quando ela desaparece, Nuno joga as mãos ao alto e suspira.
— Ótimo, agora todos vão achar que estamos dormindo juntos.
— Mas você não disse que os funcionários têm um acordo de
confidencialidade?
— Ah, Luise, aprenda uma coisa. Todos aqui me conhecem desde que
nasci. Marta e Tenório são meus primos. Por isso preciso manter a cara
fechada e dar uns gritos. Eles estão nem aí para o acordo de confidencialidade
e minha avó é a mestre nisso tudo. Eles me respeitam mas ainda me veem
como um menino, mesmo eu tendo reerguido os negócios da família. Os
Prado Ribeiro pensam que isso é uma brincadeira. Sofia é o que me fez
homem para eles e todos os dias preciso provar que sou o melhor para ela.
Então escute, se você me ajudar a fazer isso, terá seu emprego garantido, de
acordo?
Fico pensando se essa demonstração toda de que ele é capaz, as rotinas e
compromissos se referem ao fato de ser um pai viúvo, se a família tenta se
meter no modo como cria a menina. Talvez Nuno queira fazer do seu jeito e
ninguém mais concorde. Não importa. O que é relevante aqui é o fato dele
estar desesperado, ou não estaria se abrindo assim para mim. E de desespero
eu entendo.
— De acordo. — Estendo a mão e ele a aperta.
— Agora vamos. Precisamos vestir Sofia e dar o jantar a ela. Ainda
tenho que te ensinar a usar o iPad ou amanhã nada funciona nessa casa. Você
precisa ser sincera comigo, Luise. Não finja que sabe algo que não sabe. Ok?
Mordo o lábio. Minha cara de alívio quando Marta disse que me
ensinaria a usar o iPhone deve ter chamado a atenção de Nuno.
— Ok, senhor respeitável chefe.
— Não era Senhor Psicopata Sexy? — Nuno ergue uma sobrancelha.
— Não se apegue nas bobagens que eu falo.
Ele sorri e descubro que pode ser muito mais lindo do que já vi até
então.
— Agora vê se para de se deitar na cama ou se atirar na banheira
comigo, ok?
Sinto o rosto esquentar e Nuno entra no closet.
— Seu namorado não vai gostar de ouvir fofocas sobre o modo como
você mantém o emprego — ele fala lá de dentro e eu me contraio.
Quem me dera ter um namorado que se importasse com o que eu faço ou
deixo de fazer. Quem me dera ter sido convidada por Nuno para o seu banho
ou a sua cama. Quem me dera...
9
Ane Luise
Descemos para o jantar. Nuno de camiseta e calça de flanela. Sofia em
seu pijama fofo e eu com uma das minhas roupas puídas da Cruz Vermelha.
O que encontro no salão de refeições é uma mesa azul-turquesa que mais
parece metade de um disco voador com vinte cadeiras dispostas ao seu
entorno. Elas têm o estofado branco. O tapete colorido por baixo e a parede
lateral completam a decoração anos setenta. Acho tudo muito a cara de
Margô. Inclusive o revestimento de madeira pelas paredes.
A senhora é a única sentada à mesa, na ponta. Os funcionários da casa
olham para o chão quando entramos. Nuno passa por eles como um senhor
feudal e os dispensa com a mão.
— Podem ir. Boa noite. Sabem que não gosto que fiquem me olhando
comer.
— Já disse isso, mas eles querem garantir que o “senhor” não precisa de
mais nada para a menina — Margô fala sem olhar para ele.
Coloco Sofia no cadeirão e fico me perguntando se devo me juntar à
parede de criados que observa a matriarca se servir de arroz de pato. Uma
mulher se atira para ajudá-la e ganha um tabefe na mão.
— Não sou inválida, Matilde. Posso me servir sozinha.
A outra retorna ao seu lugar com os ombros caídos.
— Ela só quer ajudar, Margô — Nuno diz, resolvendo minha aflição ao
puxar uma cadeira e fazer sinal para mim.
Afinal, devo me sentar a um dos lados de Sofia e ele do outro.
— Eu sei que ela só quer ajudar. Foi isso que disse quando você desceu e
reclamou da presença deles. Era só para te mostrar o quanto é estúpido.
Nuno ergue a cabeça para os empregados. Duas senhoras parecidas.
Marta, um homem grande e bonito ao lado dela. Outra mulher com dolmã de
cozinheira.
— Só falta o jardineiro vir observar nosso jantar, Margô.
— Não vejo problema nisso. São todos muito discretos e como da
família. Alguns, inclusive, dormem na cama e dividem o banho com o chefe
— ela explode em uma enorme gargalhada.
— Bem que disseram que as brasileiras são assim — alguém murmura
alto o suficiente para que todos possamos ouvir.
Nuno cerra os punhos e soca a mesa. Seu olhar fulmina Marta, que penso
que vai desaparecer por dentro da camisa branca colada junto ao corpo.
— Muito discretos, não é? Marta, sua incompetente, Luise não recebeu
as orientações adequadas quanto ao cargo. Ganhou apenas um uniforme. Não
sabe usar tecnologias. Não leu o contrato de confidencialidade. Estou em
dúvida qual das duas devo demitir primeiro.
Arregalo os olhos e me atrapalho ao colocar o babador em Sofia. Ela
puxa o tecido do pescoço e o joga longe. Por uma fração de segundos, me
lembro que Nuno e eu temos um acordo, na qual ele vai fingir ser arrogante e
mandão — um pouco mais do que o normal. Eu só preciso fazer a minha
parte.
Engulo em seco e, trêmula, balbucio ainda com certo temor:
— Sinto muito, senhor, prometo não o decepcionar nessa primeira
semana. Nem nas próximas — acrescento, buscando o olhar de Marta. —
Você não se importa de me conseguir outro par de uniformes? Escorreguei e
caí no banho de Sofia.
— Ah, achei que a brasileira tinha sido liberada de usar as vestes da casa
— a mulher com roupa de cozinheira resmunga.
— Não, Mafalda, ela não foi. Luise é apenas tonta demais para manter a
roupa intacta por algumas horas — Nuno resmunga e faz novamente aquele
sinal para que os empregados se dispersem.
— Podem ir. Podem ir. Boa noite — Margô ordena e aí sim todos se vão,
menos o homem.
Começo a entender como funciona a casa. Nuno é visto como o menino,
o neto da senhora a quem todos serviram por uma vida. Ele não vê outro
modo de mostrar ser o senhor desse lugar sem ser pelo excesso de controle.
— Está liberado, Tenório. Tenha uma boa noite.
— Obrigado, senhor. Vou ativar os alarmes e me recolher. Estarei à
disposição caso necessite.
Ficamos sozinhos na mesa de jantar. O pratinho colorido de Sofia está
diante dela. Saladas e outros pratos enchem meus olhos e percebo que não
lembro quando foi a minha última refeição. Nuno me encara e algo em sua
expressão muda.
— Coma, Luise. Eu posso dar o jantar de Sofia.
A humanidade em Nuno chama a atenção de Margô, que nos encara,
desconfiada.
— Vocês não estão mesmo trepando?
— Margô!
Ela ergue os braços e sorri.
— Desculpe. É que nunca te vi se oferecendo para fazer o serviço dos
outros.
Puxo o prato de Sofia para mais perto antes de Nuno pegá-lo.
— Não precisa. Estou atrapalhada. É meu primeiro dia. Logo me
habituo.
Jantamos com nossas conversas paralelas. Eu com Sofia e Nuno com a
avó. Enquanto canto todas as músicas infantis que aprendi no estágio da
faculdade, os ouço falar em aquisições, investimentos e moedas estrangeiras.
Os dois então terminam o jantar e Nuno se levanta e pega Sofia. Ele
ajuda a avó, a puxando pelo braço.
— Vamos deixá-la à vontade. Boa noite, senhorita Luise.
— Obrigada. Vou arrumar tudo quando acabar.
Margô ri.
— Não seja tola. Coma sua comida e vá se deitar.
— Mas todos já foram também.
— Menina ingênua. Essa casa não dorme. Há sempre alguém esperando
do outro lado da parede para tudo o que nós precisarmos. Aproveite e vá
descansar. Esse é o único dia da semana que Nuno está disponível a noite
inteira para Sofia. Depois será apenas com você.
Troco olhares com Nuno e ele suspira, me parecendo cansado disso tudo.
— Vamos, Margô. Nem sei se vale a pena ensinar as coisas todas para
ela. Mal sabemos se semana que vem já não terá ido embora como as outras.
Eles desaparecem e percebo que perdi a fome. Será que ele falou sério
dessa vez? Ai, meu Deus, esse homem vai me enlouquecer.
Enfio um pedaço de croissant na boca apenas para não desmaiar. Esfrego
as mãos na roupa e começo a recolher os pratos da mesa. Como num passe de
mágica, Matilde aparece ao meu lado.
— Não faça isso. O senhor não gosta que um se meta no trabalho do
outro. Ouviu o que Margô disse.
— Ok. Entendi. Só quis ajudar.
— Ótimo. Ajude fazendo a bebê parar de berrar. Isso vai facilitar as
nossas vidas. Nuno nunca foi santo depois que virou o chefe da casa, mas
depois que Sofia chegou, ele se tornou um homem insuportável. Pelo menos
é nisso que ele quer que a gente acredite — ela deixa escapar.
— Imagino que não seja por causa dela, talvez pela dor da perda da
esposa, mas você parece achar que é tudo fachada.
— Sim. No fundo ele quer provar que é capaz de tudo. De gerenciar os
cassinos Prado Ribeiro, de criar a bebê sozinho, de abraçar o mundo. E isso
piora quando a família toda está por perto.
— Eles vêm muito para cá?
— Graças a Deus não. Só nos aniversários de Margô ou quando fazem
um negócio importante.
Assinto com a cabeça, tentando assimilar todas as informações de um dia
só. Pensei que essa seria apenas mais uma vaga para cuidar de uma bebê.
Parece que há muito mais por trás disso.
Subo correndo para buscar o iPad ao me lembrar que Nuno esqueceu de
me ensinar a usá-lo. Paro na porta de Sofia e colo o ouvido na madeira.
Silêncio.
Droga. Se eu entrar e acordá-la ele vai me matar. Tenho que dar um jeito
de descobrir como essa porcaria funciona, porque, pelo jeito, amanhã estarei
sozinha nessa jaula de leões.
Penso na sorte de hoje de manhã, de me sentar na escada que leva à praia
privativa dos Prado Ribeiro e de como meu telefone tocou dizendo que eu
estava no lugar certo, na hora certa. Ótimo. Vou para lá.
Não há silêncio na casa porque as ondas do mar cantam sua música, mas
todos já dormem. A sala de jantar está impecável quando passo por ela em
direção ao hall. Abro a porta de entrada e aperto o casaco contra a barriga ao
sentir o ar frio.
Paz. Em algumas horas sentada sob o luar aposto que consigo aprender
como funciona essa coisa.
Então uma sirene aguda soa alto e levo o iPad ao peito com um grito. As
luzes do jardim se acendem e o alarme berra cada vez mais forte. Duas
janelas se abrem sobre a minha cabeça e vejo o rosto sorridente de Margô
aparecer. Ele não se parece nada com a cara enfezada de Nuno, agarrado em
uma Sofia berrando estridentemente.
— A casa vai ficar divertida com a presença dela — Margô fala para ele
da sua janela.
— Pelo menos enquanto ela durar aqui — Nuno responde, me
encarando.
10
Ane Luise
Sou escoltada até a praia por um Tenório inexpressivo e uma Marta de
pijama com cara de emburrada.
— Você podia ter avisado que queria sair da casa.
— E você poderia ter me passado todas as regras e o funcionamento da
casa, como a questão dos alarmes.
Marta esfrega o rosto e senta no primeiro degrau, enterrando os pés na
areia. Faço o mesmo, tentando me afastar dela um pouco. Sua expressão não
é nada amigável.
— Entenda uma coisa, Ane. Nuno é muito rico. Muito muito.
Aconteceram algumas coisas aqui na mansão. Tenório é segurança pessoal de
Sofia e Margô. Ele administra tudo o que for relativo a isso, inclusive Jorge,
mais um dos nossos seguranças. Escondidos por essa casa temos alarmes,
câmeras... A integridade de Sofia e Margô é tudo o que importa para ele.
Você não está presa dentro da mansão, mas não, não pode simplesmente abrir
a porta e sair andando. Nuno é um carrasco, com tantas babás que vêm e vão
você só será mais uma. Só estou te falando porque conheço Nuno
intimamente...
Ergo uma sobrancelha. Ela continua:
— Eu e Tenório somos irmãos. E primos de Nuno por parte de mãe.
O segurança olha discretamente para os lados vez ou outra. Percebo
agora que tem um pequeno microfone de comunicação em sua lapela.
— Ele dorme assim, de terno? — Aponto para o irmão de Marta.
Ela sorri de um jeito orgulhoso.
— Praticamente. Moramos ali. — Marta indica uma casinha atrás da
mansão.
— Imagino que tenha uma vista linda.
— E tem. Poderia te convidar para passar lá um dia para um café, mas
não acredito que nessa vida nós três estejamos sem fazer nada ao mesmo
tempo tendo um chefe como Nuno, mas quem sabe o dia de amanhã, não é
mesmo?
Ela pega o iPad das minhas mãos e toca a tela com agilidade. Pega meu
dedão e registra minha digital.
— Cuide disso como a sua vida. Tudo sobre Sofia está aqui. Nuno te
mata se alguém colocar as mãos nesse aparelho.
Assinto, observando o que ela indica. Agenda, contatos, anotações,
câmeras, coisas que eu sequer sabia serem possíveis.
— Nuno liga várias vezes por dia. FaceTime[viii]. Sabe o que é isso?
Nego então ela me mostra. Olhamos uma para a cara da outra brilhando
no escuro, ela com seu próprio iPhone e eu com o meu novo.
Depois de meia hora de explicações Marta, se levanta e olha para
Tenório.
— Nem acredito que amanhã poderei voltar ao escritório.
Um friozinho na minha barriga me faz estremecer. Amanhã estarei por
conta própria, sozinha com Sofia.
— Posso ficar aqui um pouco? — pergunto para Tenório.
Ele busca com os olhos por algo na escuridão. Identifico uma silhueta e
entendo que não ficarei sozinha.
— Jorge vai acompanhá-la quando quiser voltar para casa. Preze por sua
segurança, senhorita. Nuno é o CEO da empresa mas deve imaginar que
pessoas envolvidas com cassinos são muito visadas.
— Entendi. Há muita coisa para aprender nesse emprego. Eu devia ter
desconfiado do salário tão alto para o cargo de babá.
Marta sorri torto.
— Você vai pegar o jeito. Nuno é assim, meio rabugento, mas nós o
amamos. O vimos crescer e sabemos tudo o que passou. Seu avô Antônio
deixou dívidas milionárias que ele recuperou. Depois perdeu Raquel e Sofia
tem sido difícil. Entendemos o quanto é duro para ele.
— Parece que todos têm medo de Nuno nessa casa.
— Todos têm medo de vê-lo arrasado outra vez. Esse é o problema.
Emprego se arruma em outro lugar, mas paz não é assim que se conquista.
Trabalhar para os Prado Ribeiro é ótimo quando estão em uma fase boa. Não
podemos simplesmente abandoná-los quando as coisas ficam difíceis. Mesmo
na fase mais sombria da empresa, Nuno lutou para nos proteger e não demitir
nenhum de nós. Ainda mais eu e o Tenório, que somos da família. Vocês
babás é que vêm e vão, então nem se dê ao trabalho de se apegar. Imagino
que já tenham se conhecido um pouco mais, visto que chegaram juntos de
Lisboa.
Engasgo e preciso de uns segundos para me recuperar.
— Não, Marta, você está enganada. Eu juro que foi um acaso. Conheci
Nuno na estrada, literalmente. Não temos nada um com outro. Foi um engano
você nos ter visto na mesma cama e minha queda na banheira foi um
acidente. Você nem deveria ter contado a ninguém.
Marta toca no meu rosto de leve.
— Claro, mas não seja tola. Nuno teve babás tão bonitas quanto você e
pode até ter levado algumas para a cama. — Ela cutuca o ombro de Tenório
para que ele ande e os dois desaparecem no breu da noite.
Ouvindo o barulho das ondas, leio e releio o e-mail antigo da minha
prima com o coração acelerado.
De: Camila
Para: Ane
Então... Imagino que quando você conseguir ler esse e-mail as coisas já
tenham mudado. Quer dizer... Eu gostaria que elas mudassem. Tenho certeza
de que tia Telma não te odeia. Quem odiaria uma filha? Ninguém odiaria.
Enfim. Se você está lendo isso agora quer dizer que já tem dinheiro o
suficiente para comprar um telefone razoável ou algum lugar para ficar com
internet. O que significa que você está melhor. Espero que sim.
Bem, acho que não está ainda. Imagino que ninguém fique bem quando
faz um aborto.
Droga. O assunto ficou pesado. Eu podia deletar isso e digitar algo mais
agradável, mas realmente me preocupo com você e quero saber como está a
sua cabeça em relação a esse assunto.
Responda o mais rápido que puder.
Camila
Ane Luise
Sento na cama e olho para os lados, confusa. Recordo que não virei
garota de programa para estar num quarto luxuoso desses. É apenas parte dos
benefícios do meu novo cargo. Levo a mão ao peito ao identificar o que me
acordou.
Um beagle [ix]de orelhas enormes cava em meu cobertor como se eu
tivesse escondido ossos embaixo do colchão. Parada na porta, Margô ergue
sua bengala.
— Vamos, Alok, acorde essa tonta antes que ela perca o emprego.
— Ah, meu Deus, que horas são?
Agarro o telefone e percebo que meu despertador ainda nem tocou.
— Está cedo. Segundo a agenda de Sofia só temos compromisso daqui a
mais de uma hora e meia — digo, um pouco mais aliviada.
A senhora de camisola colorida masca algo que não consigo ver, mas que
tem aroma de cravo. Seu rosto é pura decepção.
— Você é mais tonta do que eu pensava. Nuno vai acordar em cinco
minutos. Quem você acha que deve estar pronta para cuidar de Sofia?
Abro a boca e a fecho em seguida.
— Mas ninguém me avisou.
— Eu estou avisando.
— Agora?
— Antes tarde do que nunca. Corra, pois logo os gritos começam.
Olho a tela do iPad. Antes de dormir, abri o aplicativo da babá
eletrônica. Nuno estava na cama de Sofia, os dois dormiam abraçados. Como
os vi ontem, permanecem na mesma posição.
— Droga. Droga. Droga — resmungo enquanto pulo para dentro do
uniforme.
— Isso é horrível, não é?
— A coisa mais asquerosa que já vesti. E olha que peguei muita coisa na
Cruz Vermelha. Aposto que essa cor foi ideia do seu neto.
Margô sorri.
— Nuno é ranzinza mas tem o coração mole. Precisa colocar as pessoas
o mais distante possível ou então passa tentando encontrar formas de ajudá-
las. E acredite, menina, nem todo mundo quer ajuda — Margô reitera o que
Marta já havia me dito antes.
Alok enfia a cabeça por baixo do meu edredom e surge do outro lado.
Seu rabo enorme faz uma bagunça nos lençóis.
Saio calçando os sapatos e enfiando o iPad debaixo do braço.
— Obrigada pela ajuda, Margô. Ah, adorei o nome do seu cãozinho.
— Foi meu neto quem me deu. Ele o batizou. Disse que às vezes o
cachorro parece que está em uma rave[x], seja lá o que quis dizer com isso.
Tento não me preocupar com o que vai ser do meu quarto quando eu
voltar e ando apressada pelo corredor. Abro a porta da suíte de Sofia no exato
instante em que o relógio de pulso de Nuno vibra para despertá-lo.
Ele estica os braços e esfrega o rosto. O cabelo bagunçado o deixa
bonito. Bonito demais, pra falar a verdade. Então ele abre os olhos e me vê.
Estufo o peito, certa de que vou receber um elogio por estar disponível no
momento adequado. Seu rosto impassível me analisa brevemente antes dele
sair da cama.
— Bom dia — digo animada.
— Não apareça de cabelos soltos amanhã. Há uma etiqueta para a sua
aparência. Leia os arquivos no iPad.
Ele passa por mim e tento conter o tremor da raiva, do medo de perder
essa chance, da dúvida do que devo fazer agora sem que esteja agindo errado.
Olho para Sofia e tento me lembrar se é hora da mamadeira, se ela toma café
com o pai ou sei lá o quê. Abro o iPad e reviro tudo atrás de alguma ajuda.
Nuno para com a mão na maçaneta e bufa.
— Você não sabe o que fazer, não é?
Mordo a boca.
— É pior se eu admitir? — Me encolho.
Ele se aproxima de mim. Seu jeito confiante de andar, o olhar de quem
sabe exatamente tudo o que precisa fazer e na hora certa. Alguém sem erros
ou dúvidas.
Ele tira o aparelho das minhas mãos e abre um armário com dezenas de
mamadeiras.
— É sua tarefa manter o estoque organizado. As quantidades certas de
leite em pó devem estar disponíveis para quando eu precisar preparar a
mamadeira de Sofia à noite. Aqui está uma chaleira elétrica. Aqueça a trinta e
sete graus. Também pode usar o aquecedor. A água está na geladeira de
Sofia. Use sempre Evian[xi]. Esterilize tudo no aquecedor de mamadeiras a
cem graus. O resto das refeições são as do cardápio. A nutricionista vem uma
vez por mês. Ligue para ela hoje para se inteirar do plano alimentar de Sofia.
Agora dê o leite a ela e coloque uma roupa de passeio. Verifique a
temperatura. Vocês duas vão comigo e Margô. Sofia caminha com a bisavó
na Marina de Vilamoura alguns dias pela manhã. Eu fico no escritório e
Tenório volta trazendo vocês para o almoço. Tudo isso está detalhado no
PDF Rotina de Sofia, mas desconfio que você ainda não o tenha encontrado.
Olho para os pés.
— Desculpe, é tanta informação. Estou um pouco atordoada ainda.
— Espero que passe logo esse seu atordoamento. Você só tem uma
semana para me mostrar ser capaz de cuidar do meu bem mais precioso. Até
agora nenhuma outra conseguiu.
— Acho que estou começando a entender o motivo — falo baixinho mas
Nuno não deixa passar.
— Não. Você não sabe o quanto eu posso ser exigente e controlador,
Luise. Cuido muito bem do que é meu.
Seu olhar me prende, amedronta e excita. Quero desafiá-lo, mas acho
que não é um bom momento. Melhor deixar para depois de ter o meu contrato
de trabalho assinado
— Agora ande, prenda esse seu cabelo indomável e prepare Sofia. Não
esqueça de comer alguma coisa antes de sair. Não quero você desmaiando
com ela nos braços.
Ele vai embora e fico repetindo na minha mente as palavras que me
disse: exigente e controlador.
12
Minutos antes
Nuno
Só por um dia. Uma única manhã. Uma perna enroscada na minha, uma
cabeça deitada em meu peito e nós dois dormindo até a hora do almoço.
Meus braços fechados junto ao peito como se isso fosse materializar o
corpo sinuoso dela dentro deles. O que surge, na verdade, é uma mãozinha
rechonchuda espalmada na minha cara.
Os dedos gordinhos puxam minha barba enquanto Sofia balbucia:
— Apá! Apá!
— Eu não estou aqui. — Cubro os olhos com o braço.
Na hora, me arrependo do que disse. Como sou cruel. Penso na hipótese
de Sofia não ter mais a minha presença. Quem cuidaria dela? Quem a amaria
como eu amo? Nunca mais repito isso para a minha menina. Ela já perdeu
tanto.
— Sim, princesa, o seu apá já acordou — murmuro em seu pescocinho.
Aninho Sofia em meu braço, o pijaminha branco macio e cheiroso
roçando na minha pele. Ela não reluta e fico feliz e orgulhoso. Antes de Luise
chegar, seu comportamento estava arisco. Frequentemente sinto estar fazendo
algo errado. Por mais que eu compre todos os livros, assista a todas as
palestras, nada funcionou tão bem quando a presença de Luise. O choro era
sempre crescente. Agora tenho uma bebê deitada em meu peito, coisa
improvável até uns dias atrás.
A imagem de Luise me vem em mente e fecho os olhos. Ela é tão bonita.
E feliz. E dorminhoca.
— Quem ainda não levantou pelo jeito foi a sua babá, Sofi — falo,
passando a mão nos cabelinhos com reflexos dourados.
Logo escuto o ressonar de Sofia. Voltou a dormir. Gostaria de fazer o
mesmo. Ficar aqui, rolando na cama com ela, mas li em algum lugar que
pode ser ruim que ela durma demais. Ciclos vulcânicos, sonecas, picos de
crescimento.
É tanto para a minha cabeça. Como seria bom ter alguém para dividir
essas dúvidas e inseguranças. Se Sofia tivesse uma presença materna, acho
que as coisas seriam mais seguras em seu coraçãozinho.
Sim. Deve ser isso. Ela está se sentindo protegida com Luise por perto.
Tão poucas horas e já noto a diferença.
Não é ciúmes o que sinto, mas confesso que fico com um pouco de
medo. E se ela se acostumar com a mulher e depois Luise for embora? E se
Luise acabar com as rotinas que estabeleci tentando manter um ritmo
constante e protegido para a bebê?
Estou no meio das minhas dúvidas quando Luise entra no quarto. Seu
bom dia me deixa irritado. Não com ela. Comigo mesmo. Maldita voz
melodiosa e sensual. Faz com que eu me sinta sozinho no mundo para criar
Sofia.
Queria esse bom dia ao pé do meu ouvido, uma linda cabeça como a dela
deitada no meu peito tal qual a da bebê.
— Não apareça de cabelos soltos amanhã. Há uma etiqueta para a sua
aparência. Leia os arquivos no iPad — digo, seco.
Luise se abala e parece esquecer que está aqui para trabalhar. Perco a
paciência, porque não era isso que eu queria. Gosto muito mais da ideia dela
à vontade pela casa do que como funcionária. Isso me faz relembrar o motivo
de eu tê-la obrigado a usar esse uniforme horroroso que veste: distanciamento
emocional.
Entramos num looping [xii]de alfinetadas e instruções para a manhã dela
com Sofia. Depois de deixar claro o funcionamento do iPad e da rotina,
desapareço de volta para o meu quarto.
Pela primeira vez em muito tempo me pego olhando meu corpo no
espelho sem saber qual roupa escolher. Ajeito a gola branca da minha camisa
favorita por fora do terno desalinhado propositalmente, para parecer casual e
não o cara que ficou um tempão se arrumando. Puxo minha corrente dourada
por cima. Não. Melhor por baixo. Não, puxo pra fora de novo.
Arrumo o cabelo depois de passar gel. Borrifo perfume. Me olho de lado
e faço uma expressão sexy. Imagino o olhar de Luise me retribuindo no
reflexo do espelho e então meus ombros caem.
O que está fazendo seu pervertido? Essa garota é uma menina. O quê?
Vinte e um, vinte e dois? E você quase fazendo quarenta.
Isso só pode ser resultado de tanto tempo sem sexo. Nem minha última
transa dá pra ser chamada de decente. Primeiro foram os anos tentando
engravidar Raquel. Depois a doença dela e então Sofia entre nós.
Estufo o peito e sacudo a cabeça. Talvez uma trepada bem boa já
resolveria o meu problema e eu conseguiria limpar da minha mente suja a
imagem da bunda deliciosa de Luise.
Mas o quê? Chego para a garota e digo: ei, você, eu sei que é a babá
gostosa da minha filha, mas podemos foder um pouco aqui em cima da minha
escrivaninha? Juro que vai ser vergonhosamente rápido.
Rio quando a imagem da expressão horrorizada de Luise surge em minha
mente. Cara, ela é uma menina.
É escandaloso o quanto parece inocente e ingênua, com toda sua alegria
de quem não levou rasteiras de verdade da vida. Aparentemente, seu
problema mais grave foi ter vindo para a Europa atrás de um louco que não a
queria. E talvez por isso mesmo me deixou doente por descobrir o que sabe
ou não sabe da vida. Ok, admito, curioso para descobrir o que sabe ou não na
cama.
A cabeça do meu pau parece ter sido picada por uma abelha de tão dura
que está. Alguém bate na porta e a abre. Me enfio no closet, tentando
esconder minha dolorosa ereção.
— Mas o que é isso? Está tentando se intoxicar, borrifando tanto
perfume nesse quarto? — Margô brada e meu pau amolece.
— Bom dia, vó.
— É, Margô. Pare de me irritar já de manhã. Você está muito lerdo hoje.
Luise e eu estamos lá embaixo te esperando com Sofia já faz meia hora.
Ela estreita os olhos para mim quando saio do closet. Analisa meu corpo
de cima a baixo.
— Eh, pá[xiii]! Onde é que você vai?
— Trabalhar. — Dou de ombros.
— Sei...
Engancho no braço dela e descemos. Paro na metade da escada e quase
deixo Margô cair. Ela enfia as unhas na carne do meu braço mas não sinto
nada. Estou anestesiado com a cena na entrada de casa.
Luise, com seu cabelo agora domado em um coque no alto da cabeça,
balança Sofia sentada em seu braço. Ela sorri do jeito mais sincero que já vi e
me vem à cabeça as imagens das outras babás, irritadas por terem de aguentar
os gritos da menina apenas pela excelente quantia que eu estava pagando.
Dessa vez não é nada daquilo.
É lindo e doce. Minha menina gargalha como eu nunca tinha escutado e
penso no quanto eu queria proporcionar isso para ela de alguma forma. Algo
que eu mesmo não tive, porque os meus pais, por mais atenciosos que
tentassem ser, estavam apostando nas mesas de jogos os próprios cassinos da
família até perdermos tudo e eu ter que abandonar a minha juventude para
salvar os Prado Ribeiro da sarjeta.
Odeio lembrar da minha primeira infância, do quanto, apesar de eu amar
demais os meus irmãos, podemos ser tão diferentes. Até hoje, os três veem os
nossos pais como um alegre casal que abraça a vida com entusiasmo. Eu os
vejo como dois adolescentes que não perceberam terem chegado à fase
adulta.
Talvez isso tenha me moldado frio demais. Objetivo demais. Tive um
casamento sem romance. Um relacionamento calculado para atingir
determinadas coisas, como a formação de uma família perfeita como eu
mesmo não tive. Falhei. Minha juventude foi trabalho, trabalho e mais
trabalho.
Conheci Raquel através de um casal de amigos dos meus pais. Ela era
bonita, rica e ansiosa por uma família, assim como eu, que estava
desesperado para reviver a minha infância em meus próprios filhos, só que
com a segurança que meus pais não me deram. Depois que meus irmãos
foram embora de casa, eles partiram para os Estados Unidos, Margô e eu
queríamos encher a casa de crianças. Ela, para reviver os jantares bagunçados
de antigamente.
Raquel topou fazer isso ao meu lado. Quando vimos, estávamos nos
casando em uma cerimônia intimista que saiu em alguns jornais como uma
união de famílias distintas do país. Ela se mudou de Lisboa para Vilamoura e
assumiu a minha casa, as nossas vidas. Passamos o primeiro mês de casados
descendo até a praia e fazendo longas caminhadas, sonhando com as seis ou
sete crianças que teríamos correndo atrás de nós na areia. As filas
intermináveis para o banho dado pela mamã e os muitos pratos na mesa.
O primeiro ano passou rápido. Simplesmente o vivemos, organizamos a
casa, fizemos amor sem compromisso. Parecia natural que a gravidez
demorasse um pouco para acontecer.
Então no segundo ano acrescentamos ao nosso calendário uma noite por
mês onde haveria uma maior chance de concebermos. Não era uma
obrigação, apenas um empurrãozinho. Mesmo assim, ao final do segundo ano
nada havia acontecido.
Raquel procurou ajuda e o médico iniciou pelo mais simples, me pedindo
exames que deram ótimos resultados. Tentamos não pensar que a culpa podia
ser dela ou que havia algo errado com seu corpo. O médico insistiu que era
normal, talvez uma pequena alteração hormonal que poderíamos corrigir com
um indutor de ovulação.
Aqueles seis meses já não foram como antes. O entusiasmo e o desejo
viraram obrigação. Estávamos focados em fazer aquilo acontecer, então não
nos importamos em lidar com tudo com seriedade.
O resultado valeu a pena. Contamos para todo mundo quando o positivo
chegou. Raquel estava radiante e eu, aliviado. Enfim iniciaríamos nossa
grande família.
No dia da ecografia, nosso mundo desabou. Não havia conteúdo no saco
gestacional.[xiv] Essas palavras impessoais e duras começaram a transformar
nossos corações.
Raquel foi forte. Apesar das minhas insistências para que esperássemos,
ela quis continuar tentando. Assim, no nosso terceiro aniversário de
casamento ela me deu de presente um palito branco e azul com duas linhas
cor-de-rosa, indicando que começava a nossa segunda gestação.
Não contamos a ninguém daquela vez. As dezenas de ligações e palavras
de pesar pela primeira perda tinham nos marcado. Por segurança, ficamos em
silêncio até o dia da ecografia.
De mãos dadas, choramos quando o coração bateu no monitor em preto e
branco. Era real. Nosso bebê existia. Podíamos fazer aquilo.
Voltamos para casa como se carregássemos no peito uma grande
medalha.
Contamos para a família e vivemos dias felizes. Cuidei e protegi Raquel
de tudo que me parecesse arriscado. Mesmo assim, não adiantou. No segundo
ultrassom o coraçãozinho havia parado de bater.
Peguei Raquel sentada na beira da falésia por muitas vezes. Ela olhava o
mar em silêncio, como se esperasse que ele lhe dissesse palavras de conforto,
lhe entregasse os filhos que perdeu.
Disse a ela que não queria mais tentar. Seríamos felizes sem a casa cheia
também. E fomos. Pelos dois anos seguintes fomos muito felizes. Então
Raquel engravidou novamente. Aí fomos mais do que felizes.
Silenciamos. Guardamos para nós aquela alegria. Um mês. Duas
ecografias. Cento e cinquenta batimentos. Vinte e duas semanas. Os números
eram otimistas.
As pessoas notaram sua barriga redonda. Nos permitimos iniciar o
enxoval. Um cômodo inteiro de roupinhas brancas para ela que ainda não
tinha nome. Ah, se soubéssemos o quanto nos culparíamos por isso depois...
Então do nada nossa bebezinha simplesmente partiu, quebrando nossos
corações. Raquel ficou internada para exames e saiu do hospital triste, mas
esperançosa, mesmo com um diagnóstico assustador de trombofilia.
Existia uma chance, dizia ela. Sabendo o que havia de errado,
poderíamos corrigir o problema. Ela não se importava com as injeções, as
dores, todo o processo. Faria tudo o que precisasse para encher a nossa casa.
Relutante, aceitei.
Depois da alta, o médico nos chamou para uma conversa. Raquel
acreditava que nos falaria sobre o tratamento, nos instruiria sobre o processo.
Não foi o que aconteceu.
Ele não sabia como nos contar. Recém havíamos passado por tudo
aquilo. Achou melhor dar um tempo, mas não tinha jeito, precisava falar: os
exames de Raquel haviam indicado mais uma coisa: ela estava com leucemia.
Uma nova batalha se infiltrava nas nossas vidas. Muitas vezes achei que
a perderia apenas para a falta de vontade de viver. Então, como um milagre,
durante o tratamento, Sofia chegou para iluminar as nossas vidas.
Raquel viveu ao lado dela os dois meses mais felizes que havia visto em
seus dias. Nosso sexto aniversário de casamento foi exatamente como
sonhamos desde o primeiro dia: cansados, trocando talheres pela mamadeira
e ouvindo um chorinho como sinfonia.
Minha esposa não queria mais continuar a terapia. Para ela, não fazia
sentido. O câncer que surgira depois de tanto sofrimento, logo iria embora,
ela tinha certeza.
Foi Margô quem me alertou que havia algo errado com o choro insistente
de Sofia. Subi as escadas e a encontrei envolta pelos braços de Raquel, que
não tinha mais vida. Minha esposa havia partido.
Coloquei em Sofia todo o amor que me restou. Ela virou a única alegria
que me permiti ter. Meu medo de perdê-la se tornou gigante e me cegou para
qualquer outra coisa. Precisava provar a cada dia ser merecedor do seu amor,
se não, imaginava a vida a tirando de mim como me tirou tudo o que me era
importante.
Bastava andar na linha e dedicar a ela todo o meu amor, assim seríamos
felizes para sempre. Por isso, jurei ignorar todo resto. Prometi nunca mais
me interessar por nada nem ninguém que não fosse minha pequena Sofia e o
meu trabalho. E tudo corria normalmente. Pelo menos até a chegada de Luise.
Agora, me deparar com Sofia rindo dessa maneira para Ane Luise me faz
despertar de um transe. É isso que eu quero com todas as minhas tentativas de
lhe dar a vida perfeita: fazê-la rir como Luise consegue.
Não quero ser um idiota invejoso. Na verdade, percebo que estou mais
para um cara com pensamentos traiçoeiros. Gostaria que a garota me fizesse
rir da mesma maneira. Na cama.
Aproveito que Luise está de lado e analiso a curva da sua bunda. Como
um todo, ela é magra, talvez até demais. Mas sei que Margô vai mudar isso
em poucos dias, enchendo a nova babá com comidas portuguesas afetuosas
feitas pelas empregadas da casa.
— Nuno, você bebeu ou o quê? — Margô me cutuca nas costelas.
— Desculpe. Não é todos os dias que tenho a oportunidade de presenciar
essa cena — digo, olhando para as duas ao pé da porta, iluminadas pelo sol
ainda branco na rua.
— É isso que eu te digo. Sofia precisa de uma mulher nessa casa. Não
uma empregada ou uma bisavó. Sim. Admito que esse é o meu papel. — Ela
revira os olhos enquanto descemos o restante dos degraus.
— Achei que você não soubesse que é bisavô da Sofia, que pensasse ser
irmã dela — zombo.
— Ah, vá se danar. Você é outro que precisa de uma mulher pra te fazer
rir.
Fico chocado em como minha avó é hábil em ler meus pensamentos.
Margô fala isso exatamente quando paramos na frente de Luise. Nossos
olhares se encontram e a menina fica vermelha de um jeito inocente. Ela tem
atitudes tão puras que me vem à cabeça a magnitude da sua inexperiência e a
possibilidade de ensiná-la me faz sentir o sangue correr em minhas veias,
desesperado para chegar ao meu pau.
— Então, vamos? — Passo a mão nos cabelos e acabo fazendo uma
bagunça.
Luise assente com a cabeça e segue pelo caminho que indico apenas
porque quero ver as curvas do seu corpo por mais alguns minutos. Ter o que
pensar pelo resto do dia.
Nós dois ficamos perigosamente perto um do outro para prender Sofia na
cadeirinha do carro. Eu podia deixar que Luise fizesse isso sozinha, mas a
oportunidade de sentir seu cheiro assim tão de perto me estimula a ajudá-la.
— Desculpe pelas bobagens que minha avó diz — murmuro enquanto
Margô contorna o veículo.
— Sobre você precisar de uma mulher para te fazer rir?
Dessa vez sou eu quem fico surpreso. Luise é tão ingênua que acaba
sendo direta sem perceber.
— Sabe, não quero ser desrespeitosa, mas talvez isso fosse te ajudar. Sei
que sua vida é corrida e não tem tempo para nada, criando Sofia sozinho.
Mas agora tem a mim. — Ela se ergue do lado de fora do carro e sorri.
Maliciosamente, me vem em mente se ela estaria se oferecendo para ser
aquela que vai me fazer rir. Óbvio que sei que não, mas seria uma delícia.
Passo o polegar pelos lábios, que ficam úmidos quando penso nela deitada
debaixo do meu corpo, as coxas tenras lutando contra as minhas investidas.
— Obrigado, Luise. É bom saber que você está se disponibilizando para,
ahn, me fazer rir.
Ela abre a boca e fica visivelmente constrangida.
— Não foi exatamente o que eu quis dizer.
— Você lembra de que logo quando a gente se conheceu você disse que
era minimamente aceitável?
— Sim...
— E se lembra do que eu disse?
Ela morde o lábio inferior e desvia o olhar.
— Insinuou algo sobre eu ser linda e exuberante.
— É exatamente o que você é. Mas, infelizmente, é minha funcionária e
nova demais para mim.
Sinto a frustração em seu rosto e fico com vontade de engolir de volta o
que disse, mas minha avó surge, nos afastando com sua bengala.
— É mesmo muito nova. Acho que Luise vai gostar mais do Diniz.
Agora dá licença que o Alok já está ficando nervoso — Margô nos
interrompe e o cachorro dela pula entre Luise e eu, tomando seu lugar no
assento traseiro.
Elas entram no carro e partem. Não sem Luise virar a cabeça para trás e
me observar uma última vez.
Sorrio. Mas que droga. Essa mulher é uma deliciosa ladra de sorrisos.
13
Nuno
Olho para meu computador e não consigo me concentrar em nada. Giro a
cadeira e deixo minha mesa com irritação. Soco a parede de vidro do meu
escritório.
Merda. Não consigo parar de pensar nela. Olhar para ela.
Luise caminha pela Marina empurrando o carrinho de Sofia. O jeito
como sorri às bobagens que Margô deve estar dizendo me faz desejar mais do
que tudo estar lá com as três. Preciso trabalhar. Estou com uma oportunidade
de retomar um cassino que tivemos que vender quando reestruturei os
negócios da família e agora não consigo raciocinar.
Sorrio. Luise está ridícula com o uniforme verde oliva. Mesmo assim
continua linda. Seu coque já está todo bagunçado e os cabelos não resistem
ao vento que corre entre as velas dos barcos atracados ao redor delas. Tenório
vai atrás, silencioso, observando cada passo das duas, protegendo as minhas
mulheres: Margô, Sofia. Ane Luise...
Minha. Essa palavra faz meu abdômen se contrair. Meus punhos se
fecham. Quantas babás tivemos até então e nenhuma delas me fez ter mais do
que vontade de despedi-las? Claramente Luise não é a melhor cuidadora que
existe, com seu jeito desaforado e atrapalhado. Como consegue acalmar Sofia
assim? Talvez ela imagine que todas as nossas noites foram pacíficas como
as últimas duas, mas não. Nem acredito que pude finalmente dormir.
Alok puxa a guia, arrastando Margô com ele. A bengala claudica
apressada e a minha avó sorri. Não sei como gosta tanto desse cachorro
desordeiro. Apoio a testa no vidro observando cada movimento de Luise,
assim como fiz ontem à noite quando ela deixou a mansão.
Adormeci pensando em com quem ela estaria falando no telefone.
Observei da janela a garota ligar para alguém longe dos olhos e ouvidos da
casa, mas ela não imagina que tenho como saber tudo o que faz. Estava
escrito naquele acordo de confidencialidade que Luise não leu.
Volto para minha mesa e acesso através do meu computador o iPad dela.
Há dois novos registros de contato: Camila Prima e Mãe. Um e-mail pessoal
foi cadastrado e utilizado. alumacedonia é o endereço de login. Alu. Imagino
Luise deitada de costas sob mim, os cabelos enrolados no meu punho e meus
lábios em seu ouvido: Alu. Minha.
Meu pau se enrijece na hora. Começo a ler o e-mail quando a porta abre.
Tatiana, a assistente de marta, aparece afobada.
— Mas que inferno, Tatiana. Quantas vezes vou ter que dizer para bater
na porta antes de entrar? — Me remexo, tentando acalmar o meu pau.
— Desculpe, senhor Prado Ribeiro. É uma ligação urgente do escritório
de advogados do cassino de Ibiza. Parece que estão dispostos a aceitar o
prazo da proposta de recompra.
Merda. Não tenho condições de negociar nada nesse momento. Eles
podem perguntar qualquer coisa que eu vou responder: Luise.
— Não posso agora. Inclusive, estou de saída. — Pulo da cadeira e passo
por uma Tatiana atônita.
Ela corre atrás de mim com suas perninhas finas.
— Senhor, mas o senhor está há tanto tempo atrás desse contato.
— Verdade. Melhor não parecer desesperado. Diga que retornamos
assim que possível. Agora estamos ocupados.
Tatiana abaixa o rosto e seus ombros caem.
— Marta vai me matar.
— Diga para ela tentar me matar primeiro.
Atravesso o hall espelhado até o teto e desço pelo elevador de
funcionários. Quero dar uma passada por dentro do cassino antes de ir.
Quando a porta abre, o clima é outro. Luzes coloridas e o cheiro de cigarro
aromatizado me lembram que sou o cara do escritório, que é por isso que
salvei os negócios da minha família, que está espalhada pelo mundo fingindo
administrar cassinos enquanto jogam mais do que os clientes.
Atravesso o carpete em meio às máquinas barulhentas, com suas moedas
caindo sem parar. É cedo e já temos uma boa quantidade de viciados dando
gargalhada a cada ficha ganha ou chorando o dinheiro perdido. Uma ideia me
vem à cabeça. Será que Luise gostaria de conhecer o cassino um dia?
Mas que merda. No que diabos estou me metendo? Preciso parar com
isso. Ela é a babá da Sofia e ponto. Não me envolvo com funcionários. Isso
seria ridículo da minha parte.
O sol do lado de fora do cassino me faz apertar os olhos por alguns
instantes. Percebo Jorge a uns passos atrás de mim. Deve estar achando
suspeito essa minha saída repentina do escritório. Me viro de repente e ele
estaca na minha frente.
— Tudo bem, senhor?
— Sim, Jorge. Só vou dar uma caminhada pela marina com Margô e
Sofia. Dias difíceis no escritório.
— Imagino, senhor. — Ele me analisa, provavelmente à espera de um
dos nossos sinais de alerta.
As palavras saudades do Brasil ou uma mão levada à testa são nossos
códigos. Nada acontece, então ele relaxa.
— Prepare o meu carro. Vou levá-las para casa. Volte com Tenório no
seu carro.
— Tem certeza de que está tudo bem, senhor? Nunca o vi deixar o
trabalho mais cedo.
Aceno com a mão, o dispensando. Não quero inventar uma desculpa
ridícula para a minha vontade de passar a tarde em casa com Sofia... E Luise.
Meus olhos logo a encontram e tento conter o sorriso. Está do outro lado
da rua e ainda não me percebeu. Margô continua lutando com Alok e Sofia
aparentemente está dormindo no carrinho.
Então o beagle maluco que meu irmão deu a nossa avó me enxerga e seu
rabo começa a balançar como um liquidificador. Ele se solta das mãos frágeis
da dona e atravessa a rua como um jato.
É tão rápido que não consigo gritar ou impedir. Luise simplesmente sai
correndo atrás do cachorro. Ela ignora a rua ou os carros vindo. Alok se safa
e para aos meus pés, baixando a cabeça e pedindo carinho.
Ouço uma buzina alta e o arranhar dos freios. Luise está a poucos metros
de mim. Pulo como um jaguar para protegê-la. Caímos com um baque surdo
na calçada, meu corpo sobre o dela, sua respiração no meu ouvido.
— Ai, minha cabeça — ela diz, rouca.
Tenório estende a mão para me ajudar e eu o ignoro. Saio do chão e
levanto Luise. Ela leva a mão à nuca e a palma volta sangrando.
— Merda. Tenório, coloque Sofia num carro e volte para casa com Jorge
no outro. Vou levar Luise e Margô. Chame a doutora Elsa.
— Sim, senhor.
— Não precisa — Luise protesta.
Ela parece zonza. Olha para os lados em busca do carrinho de Sofia.
— Vamos. Você é minha funcionária. Não posso deixá-la assim.
— Certo. Ou eu posso processar você.
Não respondo, mas não é exatamente o que me passa pela cabeça. Estou
realmente preocupado com Luise.
O Rolls-Royce Cullinan preto para ao nosso lado e Tenório desce. Ele
ajeita Sofia no banco de trás e Margô recusa sua ajuda, se abraçando ao
cachorro endiabrado. Ela está muda, provavelmente se sentindo culpada por
tirar Alok de casa. Abro a porta do passageiro e conduzo Luise.
— Acho que é melhor você fazer uma tomografia.
— Que exagero. — Ela revira os olhos para mim.
Puxo o cinto de segurança bem apertado contra o seu corpo e aproximo
meu rosto do dela.
— Eu determino o que é exagero ou não.
— Ok, Senhor Psicopata... — Ela joga as mãos ao alto.
Sorrio.
— Continue — ordeno e ela cora.
— Deixa pra lá.
— Anda, Luise. Diga o que ia dizer.
Seus dentes se cravam nos lábios antes dela murmurar:
— Sexy.
Puxo o cinto de segurança para checar se está bem preso e ela solta o ar.
— Desculpe. Às vezes coloco muita pressão — digo, sugestivamente,
erguendo uma sobrancelha.
Ela abre a boca e desvia o olhar. Dou a volta no carro e partimos para
casa.
— Você não precisava fazer isso. Sério.
— Quem vai cuidar de Sofia? Marta me mata se eu a chamo de volta.
— Eu posso trabalhar. Foi só uma queda.
— A médica é quem vai determinar isso.
Luise olha para o mar que passa em nossa janela.
— Você vai me dispensar, não é? Meu segundo dia e já estou dando
trabalho. Não consigo cuidar de Sofia sem uma intercorrência.
— Falaremos disso quando chegar a hora.
Percebo uma lágrima escorrer pela bochecha de Luise. Nem um ruído lhe
escapa. Olho pelo retrovisor e vejo minha avó mascando seus cravos-da-índia
nervosamente.
— Margô, Alok está proibido de sair da área da mansão, entendido? —
A encaro, tentando mudar de assunto para que Luise não chore mais.
— Já sei. Já sei. Sou a culpada dessa merda toda. Sinto muito, Luise.
Esse traste do meu neto não vai te demitir. Se tem alguém que ele deseja
colocar na rua agora, com certeza sou eu.
Funciona. A garota ri. Ela funga e seca o nariz. Percebo o sangue
tingindo o couro branco do carro e a minha preocupação aumenta. Acelero
para chegar mais rápido. Ela definitivamente precisa de pontos.
***
A médica sai do quarto de Luise e me empertigo.
— E então? Não é melhor levá-la ao hospital.
— Ela está bem. Dei dois pontos no corte e um remédio para dor.
Provavelmente vai dormir a tarde toda. É uma querida. Me fez rir como o
diabo e quase lhe deixei uma cicatriz feia de tanto que me contorci. Graças a
Deus temos aqueles lindos cabelos para esconder tudo.
Disfarço minha concordância e o nervosismo.
— Tem certeza de que ela não precisa uma tomografia?
— Absoluta. Precisa de repouso. Duas semanas sem pegar peso, fazer
exercícios. Essas coisas. Não sei como você vai fazer com Sofia, mas
mantenha essa menina em sua casa. A bebê está em ótimas mãos.
Elsa desaparece no corredor e percebo Matilde me observando com seu
lábio franzido.
— O que faremos para o jantar, senhor, hoje é sexta-feira.
Suspiro. Era o dia de Raquel escolher o que comer e isso se manteve
mesmo depois da morte dela. Sempre opto por algo que ela gostaria. Uma
ideia me surge.
— Luise pode escolher hoje. Ah, e ela vai ficar em repouso por uns dias.
Preciso da ajuda de todos vocês.
Matilde faz uma careta.
— Mas a brasileira mal chegou e já está de folga.
— Ela não está de folga. Ela caiu.
— Sei.
Perco a paciência e imagino a indelicadeza de Matilde ao perguntar o
que Luise gostaria de comer. Decido eu mesmo fazer isso.
— Vá ver se Margô precisa de ajuda com a bebê. Eu mesmo verifico o
que iremos jantar.
Empurro a porta. O quarto está escuro e antes de entrar vejo o uniforme
horroroso de Luise jogado no chão. As manchas de sangue no colarinho. Me
abaixo para pegá-lo e chamo Matilde no corredor antes que se vá.
— Matilde, aqui. Pegue isso.
Ela retorna e pega as roupas.
— Vou lavar.
— Não. Jogue fora.
— O quê? Como assim?
— Assim. Não tenho que te dar satisfação.
A senhora me olha em choque. Me conhece desde que nasci e nunca falei
assim com ela, mas estou farto.
— Sim, senhor.
Ela sai de cabeça baixa mas ainda posso ouvir seu murmúrio ao virar no
corredor.
— Depois não quer que o povo fale que a novata está se deitando com
ele.
14
Nuno
Entro no quarto quando Luise está saindo do seu banheiro. Ela se senta
na cama com o telefone colado à orelha e coloca o iPad apoiado nos joelhos
dobrados. Luise estende a mão para mim, pedindo silenciosamente que
espere.
— Sim, para daqui dez dias.
— O que você está fazendo? — pergunto, me aproximando dela e
olhando para a tela sobre suas pernas.
Vejo a agenda de Sofia e os dedos atrapalhados de Luise arrastando
tarefas de um lado para o outro.
— Estou reorganizando a agenda — ela sussurra depois de cobrir o
telefone com a mão.
— Desligue agora, Luise — digo com irritação.
Ela faz uma cara de sofrimento e o lábio inferior salta pra fora.
— Ok, obrigada. Adeus. — Sua voz trêmula fala para alguém no outro
lado da linha.
Observo enquanto seu rosto baixa e ela desliga a tela do iPad.
— Você vai me demitir, não é? Desculpa, olha, só quis ajudar. Agora
estou aqui, nessa porcaria de repouso.
Sua expressão se ilumina e um sorriso esperançoso surge. Ela chuta o
lençol para longe e arrasta o quadril até a borda da cama.
— Isso é exagero. Óbvio que qualquer médico me mandaria descansar,
mas foi só um tombo.
— Um tombo com dois pontos na cabeça.
Ela levanta e fica perigosamente perto de mim, nossas bocas a
milímetros uma da outra.
— Sério. Estou bem. Não foi nada de mais. Não precisa me demitir. Vou
cumprir a agenda de Sofia. Inclusive, estou indo agora mesmo cuidar dela.
Acho que estou ouvindo um chorinho.
Seguro em seus ombros e a coloco sentada na cama de novo. Solto Luise
antes que fique difícil para mim me desfazer do nosso contato. Ando até a
janela, ignorando o olhar dela. Meu telefone vibra no bolso mas não o atendo.
— Sofia está bem. Não se preocupe.
Sorrio ao ver Margô sentada em uma das poltronas de vime do jardim.
Lá embaixo, alguém colocou uma toalha quadriculada sobre o gramado e
Sofia brinca esparramada sobre seus brinquedos. Alok corre e late ao redor
dela, fazendo com que solte gostosas gargalhadas.
— Viu! Ela está chorando. — Luise ergue um dedo, atenta.
— Ela está rindo, Luise. Pare de se punir. Eu vou cuidar dela.
— Mas você tem que voltar ao trabalho.
— Ah, é, senhorita minha secretária. — A encaro e Luise brinca com os
dedos, constrangida.
— Desculpe. É que todo mundo nessa casa fala o quanto você é
importante e blá-blá-blá, Whiskas Sachet.[xv]
Faço uma careta e ela ri. Puta merda, como pode ser tão linda?
— Deixa pra lá. — Ela abana o ar quando percebe que não entendi sua
piada.
Enfio as mãos nos bolsos da calça e ando sem pressa até ela. Toco seu
queixo de leve e a faço sustentar meu olhar.
— Eu vou ficar em casa. Porque eu posso. Porque eu sou o chefe. Porque
eu dito as regras aqui. E você, você vai ficar descansando até segunda ordem.
Margô vai me ajudar com Sofia.
— E Marta? Ela vai me odiar se tiver que voltar para cá.
— Ela não vai voltar. Marta pode cuidar de tudo no escritório para mim.
Além do mais, preciso de um tempo daquele lugar. Estou tendo certas
dificuldades com uma negociação.
Luise salta da cama.
— Então, aí mesmo que você precisa estar lá.
Ela leva a mão à nuca e faz uma careta.
— Ai.
— Viu. Você precisa descansar.
Ela revira os olhos e começa a procurar por algo no quarto. Levanta
roupas espalhadas, o lençol.
— O que está procurando, Luise?
— Meu uniforme. Posso até ficar de repouso, mas vou ajudar com Sofia.
— Ótimo. Mas temos uma questão aí. Ou melhor, duas. Primeiro, você
não pode pegar peso.
— Ok. Apenas acompanho vocês. Sofia já senta sozinha. Posso fazer
tudo sem pegá-la no colo — ela me interrompe.
— E segundo, mandei colocar fora o seu uniforme.
O lábio dela estremece e suas mãos agarram as minhas. Enquanto isso,
sinto meu telefone vibrar no meu bolso.
— Pelo amor de Deus, Nuno, não me demita. Eu preciso desse emprego.
Tenho que encontrar aquele filho da mãe e mostrar que não sou a vadia que
ele pensou. Não vim atrás de dinheiro. Eu era uma boba, mas agora cresci. Eu
vou provar. Tenho responsabilidade.
Franzo a testa. Seu desespero me deixa enojado. Não dela, mas do
desgraçado que tratou Luise como lixo.
— Já disse que não vou te dispensar. Mandei colocar fora aquela droga
cheia de sangue.
Ela toca o peito e os ombros caem em alívio.
— Ah, graças a Deus. Tenho certeza que tenho outro em algum lugar. —
Prontamente, ela recomeça a procurar.
Seguro em seu braço e nossos olhares se encontram.
— Pare, Luise. Não quero mais te ver usando aquela coisa. Não adianta
mais. Você é humana demais. A melhor armadura não esconderia esse seu
jeito.
— Isso é ruim?
Porra, se ela morder esse lábio mais uma vez eu vou ter que fazer o
mesmo.
— Não. E é por isso que você vai ficar. Sofia precisa de você. Nenhuma
das outras mulheres ficou porque queriam o emprego, o dinheiro apenas. Sei
que você também precisa disso, mas há uma alma bem colorida aí dentro e
Sofia sente isso. — Toco o lugar onde fica seu coração e Luise abre a boca.
Ela olha para meu dedo e depois para meu rosto antes de pular em meus
braços e gritar.
— Ai, muito obrigada, Nuno. Eu juro, vou ser a melhor babá para Sofia.
Juro. Quer dizer, depois de me recuperar e tal. Mas até lá irei ajudar. Se você
quiser ir para o escritório, eu vou ajudar. Prometo.
Ela me solta e sinto um vazio.
— Não precisa. Quero ficar.
Meu telefone continua tocando e só não o atendi antes porque tudo o que
é mais importante para mim está sob meus olhos, Margô e Sofia juntas no
jardim. Mas é insistência demais então peço à Luise para aguardar e atendo.
— O que é, Marta?
— Mas que diabos está acontecendo na sua vida, Ribeiro? Seja lá o que
for, não pode afetar os negócios.
— Minha vida pessoal não é da sua conta, Marta.
— Ah, é? Não foi o que me pareceu nos últimos tempos, quando você
largou tudo nas minhas mãos.
— Marta, o que você quer?
— Quero saber por que você não atendeu os advogados do cassino de
Ibiza depois de meses de negociação.
Suspiro. Ando em círculos pelo quarto de Luise, passando a mão pelos
cabelos e cruzando olhares com ela volta e meia.
— É complicado.
— Complicado é o trabalho que tive para cuidar da sua casa, de Sofia e
desse negócio que os Prado Ribeiro me exigiram há meses. Anos, pra ser
sincera.
— Eu sei, Marta, mas não estou certo disso ainda.
— Não está certo disso ainda? Quando foi que isso surgiu, Nuno?
— Escuta. Me dê uns dias. Vou conversar com Margô e resolver isso.
Preciso ficar em casa um tempo.
Marta silencia na linha por alguns segundos. Luise se vira de costas e
vejo o curativo abaixo do seu coque. Ela tira a camiseta e joga um vestido por
cima. Tento não olhar quando desce as calças e se olha no espelho, satisfeita
por não estar usando aquele uniforme tinhoso.
— A garota sofreu um acidente, não é? Quer que eu arranje outra? Há
muitas por aí e...
— Não. De forma alguma. Está tudo bem. Eu só... Eu só preciso desse
tempo, ok.
Desligo e os olhinhos piscantes de Luise estão focados em mim. Está
linda em um vestido colorido dos anos noventa. Aponto para a roupa.
— Cruz Vermelha?
— Exército da Salvação. — Ela sorri.
— Topa um piquenique no jardim?
— Claro.
— A propósito, você pode escolher o que vamos jantar hoje.
— Pizza está ótimo.
Apoio a mão nas costas dela e a conduzo até o corredor. Tenho medo que
sua pressão baixe. Ou apenas quero tocá-la.
— Posso fazer uma pergunta? — Ela me encara ao pé da escada.
— Pode. Só não sei se eu posso responder.
Seu sorriso é tão sincero.
— Desculpe ser intrometida, mas acabei ouvindo sua conversa com
Marta. Por que está fugindo do negócio que quis tanto fechar?
Empurro levemente Luise para que continue andando. Minha voz sai
rouca quando falo:
— Porque isso significa ter a minha família inteira de volta nessa casa.
15
Nuno
Luise se abaixa para fazer cócegas em Sofia, sentada no gramado do
jardim. A bebê está cercada de brinquedos e entre mim e ela, está Margô,
mascando um de seus paus de cravo que são bons para a saúde, segundo
minha avó. Os empregados tentam se organizar ao nosso redor, mas estão
visivelmente atrapalhados com a fuga da rotina.
— Alok que ir à praia. Querem ir também? — Margô pergunta, olhando
para o horizonte.
— Alok quer ir à praia? — Luise ergue o rosto, surpresa.
Ela afaga as costas do cachorro como eu gostaria de ser afagado por suas
mãos macias. Filho da mãe sortudo.
— É. Ele gosta.
— Como não vi esse pestinha quando cheguei? — ela questiona Margô.
Alok pula no colo da dona e se enrosca ali, entre carinhos e tapinhas no
quadril.
— Ele estava na terapia comportamental.
Luise sorri. O vento já bagunçou seu cabelo e soltou alguns fios loiros
pelo pescoço.
— Ah, nem imagino porque Alok precise de terapia comportamental. —
Luise finge surpresa e Margô parece satisfeita.
— Acho uma boa ideia irmos à praia. Só vou me trocar — digo, saindo
do chão.
Corro até meu quarto e quando retorno de bermuda e camiseta, Luise se
levanta e me olha constrangida.
— Você precisa de mim lá embaixo? Porque eu acho melhor não ir.
Talvez o sol e toda essa escadaria não sejam muito bons para a minha
recuperação.
— Você é mesmo muito ingênua, menina. — Margô se apoia na bengala
para erguer o corpo.
Alok pula para o chão. Estendo a mão para ajudá-la, mesmo sabendo que
serei ignorado.
— Ingênua? — Luise a encara sem entender.
— Você acha mesmo que eu uso aquela escada ou coloco minha linda
pele de porcelana ao sol?
Tento não rir mas é impossível. Levo uma bordoada da bengala de
Margô ao lado da orelha, mas já nem me encolho mais.
— Pelo menos a cor da minha pele ainda é a da porcelana.
Luise solta o ar pelo nariz ao rir e minha avó faz cara feia.
— Pegue a Sofia, Nuno, ou Luise vai acabar abrindo os pontos e você
sabe o quanto odeio ver sangue.
Pego a bebê no colo e faço sinal com a mão para que Luise vá atrás de
Margô. Matilde surge entre as duas e abre um para-sol enorme sobre suas
cabeças. Surpresa, Luise segue com Margô até a parte lateral da casa, logo à
beira da falésia, cruzando a área da piscina. Mafalda faz o mesmo que
Matilde para proteger Sofia do Sol de verão do Algarve português.
O gramado verde termina onde o pequeno elevador de cadeirantes foi
instalado. Tenório passa na frente das mulheres e aperta o botão vermelho
para abrir a porta, por onde minha avó passa e cutuca Luise com a bengala
para que a siga.
— Vamos. E não fique aí pensando que esse elevador é pra mim. Isso foi
coisa do meu falecido marido. Ao fim da vida já estava debilitado,
coitadinho. Ele amava a praia, mas nem conseguia descer as escadas. Agora
eu o uso, porque uma dama não pode ficar suando no sol escaldante.
— Claro, Margô. Você está certíssima.
Alok corre entre as pernas de Luise e quase a derruba. Seguro seu
cotovelo e nossos olhares se encontram. Em um ato de ousadia meu, roço o
polegar em sua pele.
— Você está bem?
— Sim. Alok já não me derruba tão fácil — Luise responde com seu
habitual sorriso.
O que é necessário para enfurecer essa garota? Entro no
elevador. Tenório vem junto carregando o guarda-sol. Não tiro os olhos dos
de Luise, que se arregalam quando vê nosso pequeno oásis privativo na beira
da praia. Descemos sobre a passadeira na areia e chegamos no deque
decorado com futons [xvi]japoneses listrados de azul e creme. As cortinas
amarradas nos postes laterais voam e retornam aos seus lugares. O enorme
chapéu-de-sol[xvii] faz uma boa sombra onde Alok rapidamente acha um canto
para se atirar. Largo Sofia no seu lugar habitual, organizado com várias
almofadas e brinquedos para a praia.
— Isso é incrível. — Luise rodopia como uma criança e para,
observando o mar ruidoso.
— Você pode vir para cá com Sofia sempre que quiser — falo,
orgulhoso do espaço dos meus avós que aprimorei para que Raquel
aproveitasse seus dias com a bebê.
— Quase não o usamos mais. Aproveite o verão com a menina, porque
Nuno não sai daquele escritório nunca.
Dou a mão para ajudar Luise a subir no deque e se sentar numa poltrona.
Margô senta ao lado dela devagar e eu faço o mesmo.
— Vou ficar uns dias em casa, Margô. Com Luise se recuperando, Sofia
precisa de mim.
— Acharia razoável se não soubesse que está fugindo de alguma coisa.
Diga, Prado Ribeiro, o que está acontecendo?
Coloco meus óculos escuros e olho para o mar. Margô me escrutina,
aguardando. Não quero entrar no assunto agora. Preciso mesmo esquecer mas
ela não vai me deixar fazer isso.
— Os espanhóis ligaram. Querem negociar o outro cassino de Ibiza.
Minha avó une as mãos em uma palma barulhenta que chama a atenção
de Sofia e a faz sorrir.
— Mas isso é uma ótima notícia. Seu avô ficaria tão feliz. Foi o primeiro
cassino que meu marido comprou. Ele entrou como sócio e depois negociou a
parte do amigo, ficando como único dono. Mas o perdeu quando quase
falimos — ela explica para Luise, que assente.
— Vó, você sabe por que sou contra essa compra.
Ela franze os lábios e abana o ar.
— Ah, Nuno, deixe de ser chato. Seu irmão vai cuidar bem do cassino
favorito do avô.
— Diniz é um irresponsável — me exalto, apertando os braços de vime
da poltrona.
— Mas será o dono do cassino por direito. É a regra.
— Vovô não sabia no que se transformaria essa família quando fez o
testamento — digo, seco.
Luise se abaixa para brincar com Sofia. Ela faz uma careta de dor e a
ajudo a se sentar.
— Tudo bem? — murmuro e ela concorda.
Imagino que esteja constrangida em ouvir nossa pequena discussão
familiar. Odeio entrar nesse assunto.
— Quer saber? Já cansei de praia. Fiquem aí. Vou mandar trazerem o
almoço de vocês e subir para rezar um pouco por suas almas perdidas. Está
quente demais para uma velha não respeitada como eu. — Margô se levanta
empurrando a bengala e passa por mim com raiva.
— Margô, por favor...
— Não aja como um moleque ciumento, Nuno. Você não pode culpar
Diniz por viver com intensidade quando você mesmo já fez isso.
Não respondo. As coisas não foram bem assim. Deixo Margô ir e faço
sinal para que os empregados a acompanhem. Tenório vai junto, mas Jorge se
posiciona ao longe, observando atentamente tudo que possa parecer um risco
para mim e Sofia. A verdade é que agora minha cabeça anda preocupada com
outra pessoa também: Luise.
— Desculpe te fazer ouvir tudo isso. Margô não aceita que falem mal do
netinho preferido dela.
— Achei que esse fosse você, já que mora com ela e a protege tanto.
Minha risada é sarcástica.
— Eu sou o responsável. Fiquei com compromissos de consertar o que
eles estragam. Diniz é o bon-vivant[xviii], igualzinho ao meu avô, por quem
Margô foi perdidamente apaixonada até o dia da sua morte. Não tenho como
lutar contra isso. Óbvio que ela me ama, assim como as minhas irmãs, mas
ela vê naquele safado o próprio marido, feliz, apaixonado pelas coisas boas
da vida.
Luise me analisa, um olho meio fechado por causa do sol. Ela entrega
um brinquedo nas mãos de Sofia, mas não está prestando atenção nisso. Sei
que sua cabeça está em mim, na história da minha família.
— Você assusta as pessoas. Tem esse jeito irritadiço, mandão.
— Já falamos sobre isso. Preciso impor respeito. Tudo o que faço nessa
casa ou no escritório para nos ouvidos dos meus pais e irmãos. O que eles
mais querem é jogar na minha cara que sou igual a todos os Prado Ribeiro,
porque pensam que meu jeito é uma tentativa de me mostrar melhor do que
eles.
— E não é?
O vento morno faz a barra do vestido de Luise voar um pouco e vejo
suas coxas. Desvio o olhar para fugir da vontade de me sentar ao seu lado,
cobrir seu corpo com o meu e enfiar a mão por dentro do vestido.
— Não sou melhor. Apenas quero proteger o patrimônio da família
enquanto eles só pensam em se divertir. Mas tenho um suposto passado que
eles gostam de jogar na minha cara.
— E esse negócio do cassino da Espanha, comprá-lo não seria proteger o
patrimônio da família? Preciso concordar com Margô. Parece birra que você
não queira fechar o acordo para não trazer sua família pra cá e dar o cassino
ao seu irmão.
Endireito a coluna, me sentando em alerta na espreguiçadeira. Era só o
que me faltava que Diniz vai ganhar a proteção de Luise sem que ela nem
mesmo o conheça.
— É mais complicado do que parece. Cada um de nós fica com a
administração de um cassino e os negócios envolvidos nele. Hotéis,
restaurantes, bares. O mais velho recebe primeiro, o mais novo por último.
Foi assim que meu avô determinou quando morreu. Margô não quis nada. Ela
sempre odiou se envolver, só queria aproveitar.
— Como os outros — Luise completa, pegando Sofia no colo e a
embalando quando percebe que a bebê está caindo de sono.
Faço menção de impedi-la, pois não pode carregar peso, mas ela apenas
acena um não enfático, me proibindo de me aproximar para retirar a bebê dos
seus braços. Garota teimosa. Lindamente teimosa.
— Como os outros. Aqueles que só aparecem para vê-la na hora de
repartir bens, como nas aquisições de cassinos ou quando Margô dá uma de
suas joias aos herdeiros.
— Entendo.
Ajeito os cabelos com os dedos quando uma rajada de vento passa. Luise
fica me olhando e a encaro. São segundos que nos conectam de um jeito
diferente. Bom. Uma mecha de cabelo fica presa em seus lábios e me
aproximo para tirá-la.
— Está segurando Sofia com as duas mãos, por isso não consegue —
murmuro uma desculpa para mim mesmo e ela sabe disso.
— Obrigada.
Seus lábios são suaves, mornos. Voltamos a nos encarar e é ela quem
percebe que passamos tempo demais.
— Então, como você estava falando, se cada um fica com seu cassino, o
que você faz? — ela pergunta, olhando para Sofia apenas para fugir dos meus
olhos.
— Eu sou o CEO de toda a corporação. É como se eles fossem os
gerentes dos seus próprios cassinos, mas sou eu que garanto que não estão
levando os negócios à falência mais uma vez.
— Ah, entendi. De novo você é o cara que faz a parte chata.
Rimos.
— Eu não sou chato — protesto.
— Eu sei. É só um pouco psicopata.
— E...
Luise cora e eu começo a rir. Sento ao lado dela e pego Sofia nos braços
quando percebo estar desconfortável para a babá recentemente ferida. Minha
paixão dorme com a paz que nunca vi antes.
— Você é sexy, droga. O que eu vou fazer quanto a isso? Tenho um
chefe bonito. Pronto. Admito. — Luise me dá um soquinho no ombro de
brincadeira.
— Você também é bonita. Pra falar a verdade, não entendo o que está
fazendo aqui.
Luise franze a testa e fica de joelhos. Ela senta nos calcanhares e brinca
com o tecido do vestido, uma linha se desfiando.
— Como assim?
— Você disse que veio atrás de um cara, mas você não é o tipo de garota
que deveria ir atrás de ninguém. No meu mundo, os homens cairiam aos seus
pés. Deus me livre meus amigos portugueses descobrirem que tenho uma
brasileira como você em casa.
A boca deliciosa de Luise se escancara. Ela finge estar ofendida e depois
surpresa.
— Você tem amigos — ela fala, me zoando.
Trinco os dentes.
— Você tem sorte que estou com os braços ocupados.
— Ou o quê? Iria me bater, Senhor Psicopata Sexy? — ela debocha.
Demoro a responder.
— Sei lá se você gosta dessas coisas BDSM. Posso até ser sádico, mas
sou mais do tipo que derramaria uma calda de chocolate morno entre as
pernas de alguém e a chuparia inteira. Não sou do tipo que bate.
Luise fica azul de vergonha. Pigarreio.
— Merda. Falei isso em voz alta, não foi?
— Ahn, foi...
Olho para Sofia em meu colo e meu modo protetor me coloca de volta
nos trilhos. Não está sendo fácil manter a compostura perto de Luise.
— Na verdade, iria te jogar no mar — continuo, tentando fazer parecer
brincadeira tudo o que disse.
— Ei, estou machucada. Ia arder.
— Falei que eu era um pouco sádico. — Ergo um ombro e ela sorri,
constrangida. — Não é a parte de bater, mas tem umas coisas que o
sofrimento alheio me dá prazer.
Chocada, Luise se ergue dos calcanhares.
— Tipo o quê?
— Ah, tipo ver o meu irmão se corroer por eu me dar melhor do que ele.
Sei que isso o estilhaça por dentro. Acredito que deva até doer.
Luise solta o ar dos pulmões e vejo que está aliviada.
— Não sou o psicopata que você imaginou quando me conheceu.
Ela aponta o indicador para mim e sorri.
— Mas é sexy.
Nossa, como essa mulher me faz dar altas gargalhadas assim? Há tempos
que não me via feliz dessa forma. Sofia se remexe e faço um chiado enquanto
a balanço para que volte a dormir.
A mão delicada de Luise se apoia em meu ombro e ela se levanta.
— Então, Senhor Psicopata Sexy, vamos fazer o seguinte. Feche o seu
negócio com o cassino de Ibiza. Sua família vem para cá, seu irmão recebe a
herança dele e eu te ajudo a fazê-lo sofrer um pouquinho.
— Como?
— Vamos mostrar a ele quem é que manda nessa casa.
Ela fecha a mão em punho e dá um soquinho nos nós dos meus dedos.
— Está falando sério?
— Quero esse trabalho como a minha vida e um chefe feliz é emprego
feliz.
Coloco Sofia em seu ninho acolchoado com a delicadeza com que se
desarma uma bomba. Levanto e gosto da sensação de ter os olhos de Luise
presos aos meus.
— Você foi contratada pelo que pode fazer e isso se resume a Sofia não
chorar. Não precisa me ajudar com mais nada, Luise, não quero abusar.
Percebo as empregadas chegando com o almoço. Elas o arrumam sobre a
mesa baixa de madeira, espalhando saladas, sucos, camarões e ostras. Luise
franze a testa e sorri. Ela espera Mafalda e Matilde se afastarem. Entendo a
garota, há algo naquelas duas irmãs que faz qualquer um hesitar antes de
falar. Quando elas retornam ao elevador, os braços de Luise se abrem como
uma saudação ao sol[xix], indicando o lugar onde estamos, as comidas diante
de nós e o mar aberto.
— Olha, Nuno, estamos quites então, porque, sinceramente, se eu não
estou abusando, não sei o que é isso.
— Está sugerindo que eu abuse de você e você abuse de mim? —
pergunto, baixando para pegar uma ostra, que derramo na boca.
— Só um pouquinho. — Ela indica, unindo o indicador e o polegar.
Ótimo. Talvez eu possa interpretar tudo isso em outros termos.
16
Nuno
Luise pega Sofia no banho, mesmo contra minha vontade. Nossas mãos
se tocam no momento em que passo a bebê a ela.
— Tudo bem mesmo? Não quero que seu corte comece a sangrar.
— Ai, Nuno. Sério. Estou bem. Só vou carregar Sofia até a sua cama.
Elas vão para o quarto e eu saio da água. Vou direto para a ducha. O dia
ao lado de Luise foi difícil. Não consigo tirá-la da minha cabeça. Volta toda
hora nos meus pensamentos o sol fazendo sombra na área entre seus seios.
Ela de joelhos diante de mim, seus cabelos colados nos lábios. Merda. Ela é
minha funcionária. Não posso agir assim.
Não é agir, Nuno, é só pensar, meu lado mau ecoa no fundo da minha
mente. É isso. Só uns minutos de alívio pensando na babá de Sofia.
O jato de água bate forte nas minhas costas. Jogo a cueca longe e começo
a me tocar.
Fantasio Luise e sua boca entreaberta roçando em minha pele. A língua
brincando com o meu pau. Sua bunda deliciosa presa entre minhas mãos e
uma mordida no mamilo rijo.
Subo e desço com a mão.
Visualizo o vento batendo e fazendo o vestido azul entrar em suas
nádegas, minha vontade de enfiar os dedos ali, de agarrá-la por trás e tirá-la
do chão. Mordo seu pescoço.
Perco o ar, minha respiração fica difícil, meus batimentos se aceleram e
explodo quando me imagino levantando a roupa de Luise e a penetrando por
trás. Gemo alto e pressiono a parede com o punho, enfiando o rosto na água.
A porta abre quando ainda estou com o pau na mão. Luise luta para olhar
nos meus olhos, mas suas pupilas dilatadas escapam para baixo e sua boca se
escancara.
— Ai, meu Deus! Desculpa, desculpa. Ouvi um barulho e fiquei
preocupada. Eu não devia ter entrado sem bater. Eu não sabia que...
— Luise, você pode simplesmente ir embora e fechar a porta sem ficar
dando desculpas? — pergunto, rouco, tentando reestabelecer os pensamentos
depois da gozada que dei pensando nela.
— Ok. — Luise deixa o banheiro, a mão trêmula brigando com a
maçaneta.
Merda. Depois de vê-la, meu pau se recusa a baixar. Ligo a água gelada e
isso me ajuda.
Saio do banheiro com minhas calças de pijama caídas no quadril. Eu
poderia muito bem vestir uma camiseta, mas quero que ela me veja, quero
que babe por mim e não me tire da cabeça. Não vou aguentar essa sozinho.
Ah, não vou. Entro no quarto esfregando a toalha nos cabelos.
Puxo a cadeira da minha escrivaninha e jogo a toalha nas suas costas.
Percebo meu telefone vibrando, mas ignoro ao ver que é Marta. Sento e
começo a digitar no meu iMac. Não quero olhar para Luise, mas ela para ao
meu lado e só então percebo que Sofia não está em seu colo.
— Nuno, me desculpa, por favor. Eu sei que sou uma pessoa um tanto
invasiva. Eu juro que tento passar despercebida, mas ouvi um barulho e nem
me passou pela cabeça que você poderia estar... estar...
Ela afasta as mãos abertas e olha para elas. Então afasta mais um pouco.
E mais um pouco. Fico me perguntando o que está querendo dizer e quando
entendo que quer representar o meu pau, tento não levar a mão à barriga e
cair na gargalhada. Levanto e olho em seus olhos. Gosto como vai ficando
cada vez mais corada.
— Que eu poderia estar em uns minutos de prazer? Sinto muito se não
tranquei a porta. Não queria que você visse isso. — Indico suas mãos, ainda
mostrando o tamanho do meu pau.
Ela as baixa e esconde atrás do quadril.
— Desculpe.
— Para de pedir desculpas, ok? Não vai mais acontecer. Achei que você
tivesse ido para o quarto de Sofia com ela.
— Não. Eu estava aqui na sua cama, colocando a roupinha nela.
— Por falar nisso, onde ela está?
— Com Matilde. Não quis atrasar o jantar. Marta me alertou para sua
fúria quando isso acontece.
— Relaxa, Alu. Não vou trabalhar amanhã. Podemos fazer as coisas com
calma, ok?
O alívio que passa em seu rosto é muito rápido. Logo seus olhos se
apertam e ela entreabre os lábios. O indicador surge diante do meu nariz e a
outra mão vai parar na cintura.
— Alu? Alu? Nuno, de onde você tirou isso?
Pigarreio. Merda. Meu telefone começa a tocar de novo e percebo que é
uma boa hora para atender Marta. Indico com a mão para que Luise espere,
mas ela fica furiosa.
— Não, Nuno. Responda. De onde saiu esse Alu?
— Sim, Marta. — Atendo à videochamada, ignorando o pedido de Luise
para escapar de responder sobre o apelido que vi no seu e-mail.
Pensa, Nuno, pensa.
— Então, Ribeiro? Estou indo dormir. Sua última chance de fechar com
os espanhóis. Eles ligaram e falaram que amanhã vão assinar com outra
corporação.
— Não, eles não vão. Diga que vamos comprar.
Marta dá um berro e a imagino comemorando com Tenório na casinha
atrás da mansão.
— Não acredito. Aleluia. Achei que nunca deixaria de ser teimoso.
— Você sabe que não é teimosia. Meu problema é o Diniz.
— Diniz, Diniz. Ele não vai tirar o que é seu.
— Isso ninguém nos garante.
Marta fica em silêncio. Ela sabe dos meus medos. Seu suspiro se une ao
meu.
— Vou preparar os documentos para assinatura e comunicar à família.
Quer que eu organize a casa para recebê-los?
Olho por cima do telefone, para Luise. Ela tem os braços cruzados diante
do peito e já me pergunto se vai mesmo me ajudar a lidar com tudo o que
prometeu mais cedo: os Prado Ribeiro. Parece que não está muito satisfeita
da minha parte no acordo em abusar dela.
— Não precisa. Vou ficar em casa por causa do tombo de Luise. Prefiro
que toque a empresa. Matilde e Mafalda podem cuidar de tudo aqui.
Marta ergue uma sobrancelha.
— Nuno, você tem certeza disso tudo? Eu sei que você já negou, mas
essa sua história com a babá está muito estranha. Ainda não sei o que foi
fazer sozinho em Lisboa. Nem o Tenório ou o Jorge você levou. Ainda por
cima apareceu com a brasileira a tiracolo.
Reviro os olhos. Não preciso me explicar para Marta, mas tenho muita
consideração por ela, que é meu braço direito. Às vezes parece que dizer a
verdade é muito pior, que as pessoas acreditam mais nas mentiras, porque a
verdade parece simples demais.
— Fui tentar postergar o negócio de Ibiza, ok? Por isso eles estão
infernizando essa semana.
— Por que você fez isso? Era a minha negociação. Estou trabalhando
nisso há meses. Você parece ir contra todo o meu trabalho, sabia?
— Não queria a família aqui tão cedo. Você sabe como foi a última vez.
Recém faz seis meses.
Marta tamborila os dedos sobre a mesa da sua pequena cozinha. Está
pensando em algo para salvar o meu rabo, como sempre. Se ela pudesse,
destituía minha mãe e assumia seu lugar, apenas para poder me proteger.
— Vou chamar seus pais e suas irmãs. O Diniz é complicado de achar
mesmo. Imagino que demore para encontrá-lo.
Sim. O babaca do meu irmão deveria estar o tempo inteiro em Ibiza,
cuidando do seu cassino, mas passa metade do ano viajando pelo mundo.
Volta e meia tenho que ir lá antes que o barco afunde e acabemos perdendo
um negócio já recuperado. Agora o cretino vai ter a sorte de ganhar outro
cassino ao lado do primeiro.
— Vou preparar tudo para que. quando Diniz chegar, o contrato seja
assinado e você não precise mais fazer circo para ele.
— Ótimo. Sou capaz de pegar Luise e ir viajar, nem que seja nos enfiar
no meu barco e desaparecer no mar até Diniz ir embora.
— Sofia — Marta diz.
— Perdão?
— Você falou Luise, mas era pegar Sofia e ir velejar.
— É. Luise e Sofia. Sozinho é complicado, você sabe — desconverso o
meu erro.
Marta ri.
— Você está gostando da garota, não é?
Olho para Luise de novo e quase engasgo. Ela me encara de um jeito
furioso.
— Marta, Luise está aqui, ouvindo nossa conversa, só para você saber.
— Ah, desculpe. É verdade. É hora do banho. Deixe-me ver minha bebê.
Pigarreio.
— Ela não está aqui.
Marta me analisa com as pálpebras semicerradas.
— E Luise está no seu quarto, com você sem camisa, depois do banho e
não dando o jantar à Sofia.
— Adeus, Marta. Não sou obrigado. Bom negócio com os espanhóis.
Desligo o telefone e olho para a fera diante de mim.
— Estou esperando, Nuno. Como você descobriu que meu apelido é
Alu? Isso é muito privado, sabia?
— Estava na sua ficha, seu e-mail — minto, andando pelo quarto apenas
para desviar dela.
— Mentira. Eu cadastrei o e-mail que sempre uso para empregos:
anemacedonia@.
Giro os calcanhares e ergo as mãos. Luise olha para a minha barriga por uns
segundos e depois para a minha boca.
— Ok. Admito. Tenho acesso ao seu iPad e iPhone. Fiquei preocupado,
está bem? Está tudo lá no termo de confidencialidade.
— Caramba, Nuno. Isso é demais. Você não devia. O que encontrou lá,
eu posso explicar. Não quero que fique com uma má impressão minha.
Ando devagar até ela e seguro seu queixo. Nossos olhos se prendem uns
aos outros.
— Luise, eu não li nada. Vi o e-mail cadastrado, mas não li. Só que
agora você me deixou pensativo. Deveria me preocupar, além no normal,
com quem está cuidando do meu bem mais precioso?
Ela foge do meu olhar. Seu alívio se traduz nos ombros relaxados. O que
havia naquele maldito e-mail que não consegui ler porque ela não me saía da
cabeça?
— Aquilo era sobre o meu passado, as coisas que me trouxeram até aqui.
Não quero que isso vire assunto na minha vida de novo. Só isso.
Essa é a hora em que eu deveria beijá-la, mas parece inadequado agarrar
a babá da sua filha quando se está seminu e sozinho com ela no quarto. A
força que preciso fazer para não enterrar as mãos em seus cabelos e a língua
em seus lábios é enorme, mas para evitar de me enterrar dentro dela, é
descomunal.
— Ok. Não vou revirar seu passado. Entendo como é ruim. Por isso
mesmo não queria trazer minha família de volta para essa casa. Mas vamos
nos ajudar, não é? Eles estão vindo e vamos sair por cima, Alu, posso te
chamar assim?
Ela morde o lábio e seus olhos claros brilham enquanto analisa se sou
merecedor dessa possiblidade. Sua cabeça sobe e desce em uma concordância
silenciosa.
— Ótimo, porque você também vai se aprofundar na minha vida a partir
de agora.
17
Ane Luise
— Ai!
Levo a mão à nuca quando a médica retira o último ponto. Faz duas
semanas que caí. A sala de estar dos Prado Ribeiro gira suavemente, mas
consigo retomar o controle da minha pressão quando me atiro na poltrona cor
de mostarda. Se eles tivessem uma televisão de madeira dos anos setenta, eu
me sentiria na década certa, mas uma enorme lareira de recortes modernos à
la Niemeyer ocupa todo o espaço da parede não coberta por madeira. Nuno é
avesso à televisão e Margô gosta de passeios. Tanto pela propriedade quanto
pela cidade. Volta e meia Tenório surge para levá-la ao cassino. Confesso que
fico com inveja. Tenho uma vontade de conhecer, mas com Sofia não dá.
— Prontinha.
— Finalmente. Os avós de Sofia chegam hoje e não quero que pensem
que sou uma abusada, desfrutando da casa enquanto Nuno deixa de trabalhar
para cuidar da bebê que eu sou paga para tomar conta.
A médica sorri com gentileza.
— Falando nisso, se você não se importa, Luise, Marta vai providenciar
um uniforme novo pra você — Nuno fala, consultando seu relógio milionário
no qual não sei ver as horas.
Marta está atrás dele carregando Sofia. Ela me encara como quem diz:
viu? Eu te avisei. Ele é bom, mas é seu chefe.
— Claro. Imagina. — Olho para baixo para que ele não note meu
desconforto.
— É que meus pais vão estranhar, sabe... Você sem uniforme.
— Tem razão.
— Já mandei fazer. Não é tão ruim quanto o anterior. Deixei na sua
cama. Calça preta e camisa branca.
Obrigo meus lábios a darem um sorriso. Podia ser mais sem graça?
— Podemos fazer uma saia? — arrisco e Nuno não deixa Marta
responder quando ela abre a boca.
— O que Luise quiser, Marta.
Ela revira os olhos e estende os braços, me entregando Sofia.
— Ok. Agora vamos. Temos uma última reunião antes da assinatura do
contrato.
— Ótimo. Quero estar com tudo pronto quando Diniz chegar para que
ele fique o mínimo possível.
Margô surge na porta e, como num passe de mágica, fica boa da coluna e
acelera o passo até sua bengala alcançar as canelas do neto.
— Deixe disso, seu mal amado. Meu bebê está vindo e quero ficar com
ele. Vamos nos divertir muito.
— Ah, claro. Diniz nunca vem ver a senhora e ele é o seu favorito.
— Pelo menos não é ciumento e rabugento como você.
Nuno abotoa o terno bem cortado e se aproxima de mim. Quando vejo
seu olhar apaixonado, meu coração se infla e penso que vai sair voando. Pelo
menos até me dar conta de que não é para mim que olha. Sua paixão é toda
para Sofia. Estava desacostumada a tê-la entre nós dois, a sentir o perfume
forte de Nuno tão de perto, a desejar que o beijo que dá na menina seja meu.
— Tenha um bom dia, Luise. Não hesite em me ligar se necessário.
— Claro.
— Te amo, meu bebê. Essas duas últimas semanas ao seu lado foram as
melhores da minha vida — ele sussurra no ouvidinho de Sofia, que brinca
com meu colar.
Realmente foram dias ótimos. Me senti de férias. Uma recompensa
depois de tudo o que passei desde que cheguei em Portugal e trabalhei como
uma louca, desesperada por não conseguir parar em emprego nenhum.
Nuno admitiu muitas vezes, não sem certa rabugice, que para ele estava
sendo ótimo também, pois finalmente tinha um tempo com Sofia sem que ela
estivesse chorando.
Já me perguntei se era a ausência da mãe, a minha referência materna, sei
lá. Alguma coisa faz a bebê se acalmar e isso acaba acalmando Nuno
também. Resumindo, a casa toda fica em paz e Matilde e Mafalda já não me
olham tão torto. Imagino que gratas pelo silêncio.
Nuno sai de casa apressado, seguido pelo séquito, Tenório, Marta, Jorge
e uma Matilde tentando tirar um fio de cabelo do terno dele. Fico chateada
por estar sem sua companhia depois de tantos dias e mais ainda por ver o
modo como ele parece tranquilo sobre voltar ao escritório. Isso pelo menos
até ele parar na porta e me olhar por cima do ombro. Posso estar viajando,
mas agora parece ter vontade de ficar.
Então, quando ele se vai e meia hora depois um carro preto luxuoso
estaciona no jardim, eu entendo do que fugiu. Vou para a janela com Sofia no
colo quando escuto o barulho. Tenório está de volta, agora conduzindo esse
carro. Ele desce e abre a porta do passageiro.
Um homem alto e forte surge como um lorde. Seu terno tem o corte dos
mafiosos italianos antigos. Sorrio ao pensar que os de Nuno se parecem com
os dos mafiosos modernos do leste europeu, com uma ligeira abertura no
peito, por onde sai sua corrente com a cruz.
O homem que suponho ser o pai de Nuno é bonito e tem até um lenço
dobrado no bolso do paletó de risca. Ele estende o braço e uma mulher
maravilhosa coloca a cabeça pra fora. Suas pernas devem ser tudo o que
tenho de altura. Obviamente é a mãe de Nuno, porque são muito parecidos.
Seus cabelos negros estão presos em um coque no alto da cabeça e ela parece
ser pouco mais velha do que o filho. A imagino passando os dias no spa de
um dos cassinos deles em Vegas, o marido fumando charutos, jogando sem
parar enquanto Nuno trabalha como um camelo e lida com uma Sofia que até
poucos dias era a Maria Madalena das lágrimas.
Depois do casal Prado Ribeiro, os carros não param de chegar. Uma
mulher mais jovem e seu marido, com uma menina de cerca de cinco anos,
são os próximos.
Penso na fotografia na parede da sala de estar. Margô rodeada do filho, a
nora, os netos e bisnetos. Alguns casados, outros não. Nuno ainda estava
acompanhado de Raquel. Todos na imagem estavam com aquele sorriso
preparado, nada natural, à exceção do irmão mais novo de Nuno, que na hora
do clique se abaixou para acariciar Alok e acabou quase não aparecendo.
Calculo que a recém-chegada deva ser Mônica, irmã mais velha de Nuno
e tão parecida com a mãe quanto ele. Os cabelos escuros e curtos mais
perfeitos que já vi. E olha que nada para no lugar com o vento de Portugal.
O carro seguinte deixa uma garota nova, com jeito de influencer de
Instagram, magra, alta e em um vestido embalado à vácuo. Quase fico cega
quando o sol reflete em seus dentes.
Depois que chega um outro carro e despacha uma adolescente, começo a
ficar nervosa. Nuno me pediu que ficasse no andar superior com Sofia até ele
chegar, mas tenho medo de que os burburinhos acabem lá embaixo e alguém
venha atrás de Sofia. Ele não tinha outra hora pra ir para o escritório, não?
Sei que ainda falta Diniz chegar e imagino que isso — e o frenesi do
reencontro — ainda não os trouxe até a bebê. Ando de um lado para o outro
em meu novo, e sem graça, uniforme.
Achei que ia me livrar dessa. Estava começando a me animar com o
salário a receber daqui uns dias, imaginando um novo guarda-roupas. Morar
aqui vai me possibilitar poupar quase tudo, mas queria comprar umas
coisinhas, só que agora não teria nem onde usá-las, já que preciso passar o
tempo todo de uniforme. Talvez consiga algo bonito para as minhas folgas,
mesmo que de brechó Pra falar a verdade, essas roupas são as melhores. Os
cortes são lindos e volta e meia me pego replicando os desenhos das peças
antigas que compro. O problema das minhas é que estão bem surradas.
Essa camisa dura e apagada do uniforme me faz lembrar do Brasil e do
modo como minha mãe escolhia minhas roupas. Não foi à toa que Biel me
notou: segundo mamãe, eu estava usando uma das roupas "afasta bons
pretendes", da minha prima Camila. Era um vestido tomara que caia com
tantas cores quanto um tie dye [xx]permite.
Nunca tinha tido um namorado. Lógico, quem assumiria o
constrangimento de andar de mãos dadas com alguém que se vestia de freira,
como eu?
Aquele estilo, ou a falta dele, foi ótimo para o estágio que consegui em
um colégio particular, mas foi péssimo para o meu início de vida adulta.
Talvez por isso eu tenha me atirado de cabeça no relacionamento com Biel.
Ninguém nunca tinha me olhado daquele jeito, como se eu tivesse seios e as
minhas pernas pudessem ser devoradas.
O engraçado é que mesmo com o meu uniforme antigo aqui da casa eu já
tive a impressão de que Nuno estava me olhando assim. Ou podia estar
pensando no trabalho, sei lá. Nuno é estranho.
Sinto o rosto esquentar ao lembrar de quando o flagrei se tocando no
banho. Agora ele me xinga quando bato na porta e pergunto trinta e cinco
vezes só pra garantir que posso mesmo entrar.
Ouço as vozes aumentando de volume e passos se aproximando. Droga!
A família de Nuno está vindo e ele ainda não chegou.
A porta do quarto de Sofia abre e dou as costas à mãe de Nuno,
protegendo a menina como se ela fosse minha. A bebê olha a avó por cima do
ombro e se encolhe, agarrada na minha roupa. Gosto da sensação de ser seu
porto seguro e começo a entender o ciúmes de Nuno com ela quando cheguei
nessa casa, algo que foi rapidamente dissipado por seu cansaço extremo ao
tentar lidar com as crises de choro de Sofia. No meu caso, ainda não estou
disposta a abrir mão do meu ciúme dela.
— Ah, querida da sua avó, como você está grande! — A mulher abre os
braços e para ao perceber como me agarro na menina.
— Seu filho pediu que esperássemos a chegada dele — Margô surge
atrás da nora seguida de um fervoroso Alok, que cheira minhas canelas e
lambe o que deve ser a papa derramada de Sofia nos meus sapatos.
— Que tolice. Nuno continua com essa coisa de ser o pai perfeito?
— Sim. E se não fosse Jociane, Sofia estaria ainda em regime militar.
A mãe de Nuno pisca para mim com um olhar de pena. Seus cílios
alongados por caras extensões só faltam fazer um clique quando descem.
— Meu nome é Ane — corrijo.
Margô faz uma careta e masca o seu cravo. Sua mão sempre afastando o
ar como se o que os outros dizem não fosse relevante.
— Bléh! Ane é muito sem graça. Gosto mais de Adriane.
Percebo o grupo de pessoas se amontoando na porta e me sinto
encurralada. Nuno me deu ordens estritas para banhar Sofia, a alimentar,
fazer a soneca e aguardar por ele. Queria passar boa impressão aos pais.
Agora a bebê já está nervosa, descabelada e prestes a começar a chorar, como
eu.
— Você deve ser a nova babá. — A versão mais nova da mãe de Nuno
se aproxima e assim, uma do lado da outra, parecem iguais.
— Sou sim. Ane Luise. E Nuno pediu que aguardassem lá embaixo. Está
na hora da soneca de Sofia e ela vai estranhar vocês, chegando todos assim de
repente.
O pai de Nuno se enfia entre as duas mulheres e estende o braço. Recuo
antes que toque a bochecha de Sofia.
— Imagino que você tenha medo do meu filho. Ele sabe ser duro às
vezes.
— É. Nuno quer mostrar que é diferente de nós, que está aqui para
resguardar o que consumimos, mas não precisa manter distância da gente —
diz uma terceira mulher e sei que ela é a irmã mais nova de Nuno, a que vive
no Uruguai.
Ouço os passos antes de ceder e mostrar Sofia a eles. O mar de cabeças
vai se abrindo e dando lugar para Nuno passar. É engraçado como ele parece
diferente deles, que são agitados, barulhentos e coloridos. O filho mais velho
dos Prado Ribeiro caminha até mim com os dentes cerrados, o cabelo sem gel
começando a cair na testa e a cruz dourada saltando para fora da roupa.
— Luise precisa fazer o que eu mandar. Eu sou o chefe dela. E pedi que
seguisse o cronograma de horários de Sofia, mesmo com a chegada do
comboio louco de vocês. O que foi isso? O baile de gala do MET?
A adolescente e a menininha ao fundo riem e Nuno as percebe. É
impressionante como seu semblante se transforma.
— Olá, queridas.
— Oi, tio — elas dizem juntas.
Então Nuno dá as costas a todos eles e pega Sofia dos meus braços.
— Está tudo bem, Luise. Obrigada por não a entregar aos leões — ele
sussurra.
— Desculpa, Nuno, mas eles não parecem tão maus assim — devolvo
baixinho para que não me ouçam.
Nuno murmura perto do meu ouvido e isso me faz estremecer:
— Nem tudo é o que parece, Alu. Nem tudo.
18
Nuno
Preciso admitir que quando Luise chegou, mais do que o cheiro de
naftalina e fraldas que acompanhavam Margô e Sofia mudaram. Não era o
perfume adocicado dela ou o cheiro do xampu. Ela passa e temos poeira de
purpurina caindo ao seu redor. Alegria demais fica pairando no ar e acho que
os bebês podem sentir isso. Assim ela acalma Sofia.
Agora a transformação na minha casa transcende a decoração, imaculada
por Matilde e Mafalda, que já colocaram as malas da minha família nos
lugares e organizaram tudo para eles. É algo na energia do lugar que muda
outra vez. Se essa coisa toda de aura existe, aqui com certeza ela mudou e as
purpurinas de Luise viraram lantejoulas.
Olho exasperado para o pátio onde a minha família se instalou em
espreguiçadeiras com bebidas coloridas que precisam se proteger do sol com
guarda-chuvinhas bregas. Com o tamanho dos chapéus de Mônica e da minha
mãe, nem precisavam daquele pergolado coberto com seda das arábias ou
seja lá da onde tiraram aquilo.
Trinco as mãos. Ele não veio. Óbvio que Diniz daria seu show. Vir com
todo mundo, como uma pessoa normal, ofuscaria seu brilho. Aposto que
quando ele chegar as mulheres da casa vão estender um tapete vermelho. Saio
para o jardim a passos largos e irritados. Meu pai está esparramado no ofurô
ao lado da piscina, os óculos de sol cobrindo metade do rosto voltado para
cima. Me vem à cabeça a facilidade com que eles largam seus negócios e
vêm desfrutar a vida nesse “encontro de família”.
Isabel, minha irmã mais nova, nada preguiçosamente de uma ponta a
outra da piscina com seu corpo esguio e cabelos enormes. Ao menos dessa
vez ela não trouxe outro dos seus namorados babacas.
Paro entre a espreguiçadeira de Mônica e a que Margô divide com
Liliana e Margarida. A menor está sentada no colo minha avó e a mais velha
recebe um carinho de suas mãos enrugadas.
— Ah, minhas meninas, não sabem o quanto senti saudades. Essa casa é
muito chata sem vocês. O Nuno só trabalha. Ele nunca se senta aqui com sua
avó para um drinque na piscina, um carteado.
Dou uma risada seca, debochada. Era só o que me faltava. Eu
sustentando essa cambada de delirantes da alta sociedade e ainda tenho que
fazer hora com Margô na piscina. O que ela quer? Que eu traga a roleta do
cassino?
Ela ergue o rosto para mim e aperta os olhos contra o sol. Está se
sentindo mais segura do que nunca para me atacar agora que tem seus
comparsas de boa vida debaixo das asas.
— Se bem que precisamos admitir que Cassiane melhorou muito os ares
da mansão, né, Nuno?
Finjo que não ouvi tudo o que ela disse e olho para a janela do quarto de
Sofia. Mandei Luise terminar a rotina da bebê antes de descer com ela. Eles
que não pensem que vão estragar a minha filha como estragaram Liliana.
A menina viveu a infância toda com Mônica e o marido, mesmo sendo
filha de Diniz, que a teve na adolescência com uma menina pobre da
Romênia. A garota voltou para sua terra e deixou a criança. Minha irmã
assumiu a questão e partiu com ela para Miami. Liliana começou a trocar
mensagens com o pai assim que a adolescência bateu à sua porta. Quem não
teria os olhos brilhando ao se imaginar vivendo em Ibiza nessa fase da vida.
Lili terminou a escola e foi morar com o pai, para a tristeza de Mônica, que
não pôde evitar. Acho que, na real, ela nem tentaria. Nessa família fazem
questão de prezar pela alegria e diversão, não pela segurança e
compromissos.
Luise surge na janela com Sofia nos braços e Margô me assusta quando
grita.
— Aí, está você. Desça aqui essa sua bunda.
— Vó, isso não é jeito de falar com os empregados — protesto e vejo a
mão de Margô tentar alcançar a bengala.
Chuto o objeto para debaixo da espreguiçadeira dela e levo um tabefe no
joelho mesmo assim.
— A menina é minha amiga. Todos eles aqui nessa casa são meus
amigos. Acho até que deviam vir para a piscina conosco. Você que acaba
com a alegria das pessoas.
— Luise está aqui para cuidar da Sofia para que eu possa trabalhar, já
que ninguém aqui faz isso.
— Viva um pouco, querido. Olhe para o seu irmão e tente ser mais leve.
Esse seu terno não combina nada com a nossa tarde no jardim.
A irritação me sufoca com seus tentáculos presos no meu pescoço.
Explodo ao ser mais uma vez comparado com quem não agrega nada para
família. Desabotoo o terno e o jogo numa cadeira.
— Diniz enviou a própria filha e não apareceu, porra. Vocês acham isso
normal?
— Querido, Diniz leva a vida de um jeito diferente do seu.
— Sim. Torrando o patrimônio dos Prado Ribeiro.
— Isso é uma acusação muito grave. Seu irmão é um artista. Ele não tem
o seu dom para administrar empresas, mas o cassino dele é muito famoso
pelas festas que ele organiza.
— Festas. Era só o que me faltava chamar isso de trabalho. Lili, quando
foi a última vez que você teve notícias do seu pai? — Encaro minha sobrinha,
que parece despertar de um transe provocado por seu celular.
A menina balança a cabeça para tirar a franja dourada dos olhos. Ela
observa as unhas com esmalte descascando e fala com desinteresse:
— Ele liga toda semana. Da última vez, me garantiu que estava por perto
e que me encontraria aqui.
Mônica se aproxima, sentando na mesma espreguiçadeira que Liliana.
— Ai, como sinto sua falta em casa. Você tem certeza de que está bem
morando na Espanha?
Lili franze a boca para minha irmã. Ela ainda a chama de mãe e isso
amassa meu coração.
— Mãe, você sabe que eu amo você e nossos anos juntas foram
maravilhosos, mas você criou uma mulher que não acredita na América como
ela é. Jamais viveria para sempre naquele país. A Espanha é muito mais a
minha cara. Não vejo a hora de acabar o verão e ir para a universidade.
— Mulher — desdenho, chocando Liliana. — Você é uma criança. E
vocês são todos loucos por permitirem esse absurdo.
Não há um par de olhos que não se revire para mim. Isso me faz lembrar
que é hora de sair de perto deles. Trinta minutos é tempo demais ao lado da
família para um único dia.
É bem nessa hora que Luise aparece com Sofia.
19
Nuno
Fico observando Luise atravessar o jardim como se desfilasse sua beleza
pelo shopping. Ela empurra o carrinho e quero verificar se Sofia está
acordada, mas meus olhos se grudam no decote excessivamente aberto da
babá.
Ela não podia ter fechado todos os botões até o queixo?
Eu devia ter desconfiado que alguém tão bonita poderia me tirar do
prumo. Pior de tudo é que tivemos outras funcionárias bem ajeitadas, mas sei
lá, nenhuma tinha graça. Não essa graça que a minha atrapalhada Luise tem.
Alheia ao que está acontecendo fora do alcance dos seus olhos, ela
facilmente se deixa seduzir pela alegria contagiante do resto dos Prado
Ribeiro que dominam a piscina. E eu, completamente zonzo com toda sua
perfeição, sou lento o bastante para protegê-la.
— Aqui, querida. Traga a minha bisnetinha. — Margô acena com o
braço para ela.
Tarde demais para eu querer fugir agora. Esfrego o rosto e olho para a
mesa ao lado do ofurô. Meu pai pediu o melhor uísque e é dele que preciso.
Ando até lá enquanto as mulheres da casa se curvam sobre o carrinho de
Sofia que, pelo silêncio, com certeza está dormindo. Encho um copo sem
gelo e o viro na boca. Arde, mas não o suficiente para me acalmar. Repito,
enchendo outro copo cowboy. No terceiro, meu pai para de fingir que não
está prestando atenção em mim e se endireita na água, tirando a nuca do
encosto protegido com couro.
— Meu filho, por que está tão tenso? Relaxa.
— Quero resolver a negociação de uma vez e acabar com essa palhaçada.
— Ter a sua família em casa é uma palhaçada, Nuno? — Ele ergue os
óculos de sol e me encara.
Solto o ar, me preparando para uma conversa que não quero ter.
— Você sabe do que estou falando.
— Sim. Eu sei. E acho que está exagerando. Diniz vai aparecer não vai
acontecer nada. Ele vai embora e a vida vai seguir normalmente. Agora
aproveite que a sua mãe e as suas irmãs estão aqui e deixe que tomem conta
da menina. Vá viver. Transar, sei lá. Deve ser isso que está precisando, porra.
Você está um controlador do caralho.
Jogo as mãos para o alto quando ele se enfia na água morna até o
pescoço. Contorno a piscina olhando para Luise, pra ver se ela se toca de que
não deveria estar sentada numa espreguiçadeira, bebendo um drinque
colorido enquanto minha mãe embala Sofia no carrinho. A garota sequer me
percebe, conversando animada com Lili e Isabel, minha irmã completamente
encharcada e molhando as meias da bebê.
— Que porra você está fazendo, Luise? Não te dei autorização para
beber no trabalho.
Ela olha assustada para a bebida em sua mão.
— Isso tem álcool?
— Lógico que tem.
— Putz, já é o terceiro. Merda. Falei palavrão. Merda. Falei merda. —
Ela cobre a boca e faz as outras explodirem em gargalhadas. — Desculpa. Eu
quase nunca bebo.
— Maninho, deixa ela beber. Está um lindo dia. Acho até que Luise
devia colocar um biquíni e tomar um banho — Isabel diz, colocando a mão
molhada no meu ombro.
— Você está me molhando. Luise, Isabel molhou a meia de Sofia. Você
precisa trocar ou ela vai ficar doente. Já passou da hora da fruta. Você deu?
Hoje é dia de maçã.
Minha mãe tenta disfarçar o riso e se levanta. Ela engancha no meu
cotovelo e segura meu rosto. Percebo de canto de olho Margô tirando o copo
vazio das mãos de Luise e lhe dando outro cheio. A garota suga o canudo
com uma voracidade impressionante e seca o copo em segundos.
— Nuno, se não consegue relaxar com a gente aqui, vá fazer outra coisa.
Aproveite esses dias. Sei o quanto os últimos meses foram pesados. Eu quero
muito ficar com a minha neta o máximo de tempo que conseguir. Dê um
descanso à Luise. Ela está fazendo um ótimo trabalho — minha mãe diz.
— Ela teve duas semanas de descanso — rosno.
Luise enfia a cabeça entre minha mãe e eu e sorri. Merda. Ela está
começando a ficar bêbada.
— Sério? — dona Sônia Prado Ribeiro desconfia.
— Sério. Eu caí — Luise fala como se fosse divertido cair e partir a
cabeça.
— Oh, querida, sinto muito. O que houve?
Olho para os lados, me desvencilhando da minha mãe. Não quero que
Luise pense que sou um menino. Procuro por Alok e quando o encontro
roendo o sapato de alguém aponto para o meliante.
— O bebê de Margô quase matou Luise.
— Mentira — minha avó o defende.
— Como assim, mentira? Luise levou pontos por causa dessa praga de
cachorro que meu irmão te deu.
Todos ficam em silêncio, me olhando como se eu fosse um lunático
perseguidor de Diniz, o santo. A mão de minha mãe acaricia meu ombro.
— Querido, vá descansar. Eu assumo Sofia por hora. Você também,
Luise.
Prontamente Luise começa a andar em direção à mansão. Reviro os
olhos. Está até trocando os passos já.
— Mãe, gosto de tomar conta de Sofia.
— Ótimo. Eu também. Agora vá.
— Você não conhece a rotina dela.
De algum modo, Luise me escuta. Ela para no meio do jardim e gira o
corpo como se estivesse dançando. Suas pernas longas correm até nós e ela
pega o iPad debaixo do carrinho de Sofia.
— Aqui está. Toda a rotina da bebê está detalhada aqui. Hora da papa,
qual papa. Frutas. Não pode dar suco, ok? E tem que limpar as gengivas
depois. O banho é em trinta e sete graus. Tem um ter...
— Luise, cale a boca — brado.
Ela arregala os olhos para mim e se encolhe enquanto minha mãe tira o
iPad das mãos dela.
— Simplesmente vá. — Suas mãos empurram minhas costas. — E você
também, Ane.
Saio bufando, mas Luise fica para colocar a digital no aparelho e liberar
os acessos da minha mãe. Entro na casa e quase atropelo Matilde. Ela me
olha com medo e tenho vontade de rosnar como um cão furioso.
Subo para o meu quarto e bato a porta. Segundos depois escuto passos no
corredor. Enfio a cara na fresta e vejo Luise de costas, o tecido preto do
uniforme apertando sua bunda deliciosa.
— Luise — grito e ela pula.
— Sim, senhor.
— Venha aqui.
Ela gira nos calcanhares e dança uns passos estranhos, mesmo sem
música. Reviro os olhos.
Bato a porta do meu quarto atrás dela e ando de um lado para o outro.
Fecho a janela, irritado com as risadas no jardim.
— Achei que você ia me ajudar a mostrar minha autoridade para eles e
você se senta na beira da piscina e enche a cara com as minhas irmãs, porra?
— Desculpa, é que faz tanto tempo que não bebo. Na verdade, no Brasil
eu raramente fazia isso e aqui não tinha dinheiro mesmo. — Ela parece
calcular alguma coisa, olhando para os dedos e murmurando.
— O que você está fazendo.
— Quando eu cheguei eu nem podia.
— Não podia o quê?
— Beber.
Faço uma careta. Luise está completamente bêbada. Alguém aumenta o
som lá embaixo e Bruno Mars toca That’s What I Like, para o meu
desespero, pois Luise começa a rebolar os quadris com os olhos fechados.
— You deserve it baby, you deserve it all. And I'm gonna give it to you.
Você merece isso, baby, você merece tudo. E eu vou dar para você.
Puta que pariu, Luise. Por que raios você tinha que ser tão gostosa?
Em algum momento da dança ela se perde nos pés e tropeça no meu
tapete, caindo diretamente nos meus braços. Olhamos um para o outro e não
sei o que dizer, apenas quero beijá-la. Luise ri e faz uma careta.
— Credo, SPS, que bafo de uísque.
— SPS? — pergunto, rindo.
— Ah, meu Senhor Psicopata Sexy, você sabe...
Minha virilha se contrai quando ela sussurra as palavras assim tão perto
do meu ouvido.
— Isso é porque tive que tomar uns drinques pra aliviar a tensão.
Diferente de você, que nem sabe identificar se uma bebida tem álcool ou não.
Como vou confiar em você sozinha com Sofia, pelo amor de Deus?
— Ah, estava tão docinho. Me confundi. — Ela solta um soluço e tenta
se endireitar no meu colo, rindo.
Coloco Luise em pé e ela procura algo nos bolsos.
— Olha, aqui está. Pegue uma goma de mascar.
Ela desembrulha um pacote e enfia uma pastilha na minha boca. Gosto
da sensação de seus dedos em meus lábios. Seu nariz se aproxima e ela me
cheira.
— Bem melhor.
Ela dá um passo para trás e coloca a mão na nuca. Fico preocupado se o
machucado voltou a abrir.
— Tudo bem?
— Não. Acho que vou vomitar. — Ela escorrega as costas na parede e
puxo a lixeira debaixo da minha escrivaninha.
Suas mãos abraçam a lata de metal e seu rosto se enfia ali. Pigarreio
quando Luise deixa o almoço todo lá dentro.
Seu sorriso volta maior e mais aliviado, mas a roupa surge toda suja.
— Droga. Você precisa de um banho.
Tiro Luise do chão e a carrego até meu banheiro. Mas que merda! Não
posso tirar a roupa dela. Seria impossível disfarçar uma ereção e essa garota
está bêbada, além de ser minha funcionária.
— Ah, adoro tomar banho na sua banheira — ela fala, sorridente.
— Você está falando do dia em que caiu aqui? — Ergo uma sobrancelha.
— Não. — Ela alonga o a mais tempo do que o necessário.
Coloco Luise sentada na ducha e ela começa a desabotoar a blusa. Viro
de costas para não ver.
— Eu venho dar banho aqui em Sofia nos dias em que você não chega a
tempo de dar. É bem melhor. Depois entrego a bebê para Matilde e tomo meu
banho. — Agora ela alonga o e de bem e fala o r de um jeito enrolado.
Sorrio. Filha da mãe. Era melhor eu não saber que Luise toma banho
aqui. Agora vai ficar ainda mais difícil não pensar nela na hora da minha
ducha.
Olho por cima do ombro e Luise está sentada no chão, apenas de
calcinha. Ela abraça os joelhos e deita a cabeça sobre eles. Dou alguns
minutos para que se recomponha.
— Está melhor?
— Uhum. Preciso de um chiclete. — Ela faz menção de rastejar até sua
camisa, mas eu pego a peça de roupa antes.
Não sem olhar seus seios sem querer e acabar ficando
desconfortavelmente duro.
— Deixa que eu procuro. — Reviro os bolsos e não acho nada.
— Acho que eu só tinha um. — Ela se esforça para sair do chão e se
enrola em uma camisa minha que encontra jogada no toalheiro.
— É. Não tem mais.
— Droga.
Luise para na minha frente, os cabelos loiros pingando de um jeito sexy
selvagem enquanto veste minha camisa, que fica gigante nela.
— Vamos, vou te escoltar até o seu quarto para ninguém te ver saindo da
minha suíte assim.
— Mas é que eu queria muito um chiclete. — Luise faz beicinho.
— Tem que ser agora?
— Sim.
— Não dá pra esperar?
— Não.
— Por quê?
— Porque eu queria te beijar.
Ah, Luise, não fode com a minha cabeça.
20
Nuno
— Luise, pelo amor de Deus, você está bêbada — sussurro, exasperado.
Sua cabeça nega e um sorriso devasso brilha em seus lábios.
— Nah. Só levemente corajosa.
— E por acaso antes de beber você queria me beijar?
— O tempo todo — ela diz baixinho.
Não quero perder esse momento. Minha vontade é congelá-lo antes que
acabe. Antes que Luise desista e vá embora do meu quarto sem me beijar.
— Vem, vamos escovar esses seus dentes para te dar mais um tempo de
garantia de não estar mesmo bêbada.
Puxo Luise até a pia e entrego a ela minha própria escova. Sua cara de
espanto me faz rir.
— Vai, escova.
— Com a sua escova?
— Sim, porque se for com a sua você vai embora para o seu quarto sem
fazer o que queria.
Ela ergue um ombro e enche as cerdas de pasta de dentes. Ficamos nos
olhando enquanto ela esfrega a escova de um lado para o outro. É incrível
como algo corriqueiro pode virar tão sensual quando é com a pessoa certa.
Gosto do jeito como o seu cabelo consegue ser tão parecido com a dona,
bagunçado e lindo.
Luise cospe na pia e enxágua a boca. Ela para com o quadril encostado
na louça e as mãos para trás.
— Pronto.
— Quero ver — digo, me curvando sobre ela e cobrindo seus lábios com
os meus.
Sinto a língua de Luise passear pelos meus dentes, brincar com a minha e
encontrar meu chiclete, que passamos de um lado para o outro. Fico
dolorosamente excitado e pressiono meu quadril no dela, tentando não pensar
na camisa fina e na calcinha molhada que nos separam.
Seus seios roçam na minha roupa. Pressiono sua nuca, desejoso por
devorar mais ainda sua boca.
Puxo a coxa dela até a minha cintura e a coloco contra a parede. Ficamos
nos beijando até eu não aguentar mais.
Viro Luise de costas e tiro a calcinha úmida. Ela me olha por cima do
ombro, me observando desafivelar o cinto.
— Não sou assim muito experiente — ela murmura e sinto um ciúmes
absurdo do que nem sequer é meu.
— Pelo amor de Deus, não me conte quantos caras tiveram você — digo,
pressionando seu clitóris com a palma da mão.
Luise joga a cabeça para trás e geme alto.
— Só um — ela arfa.
Luto entre focar no prazer dela e desejar matar o único cara a quem
Luise se entregou. O odeio com todas as minhas forças e quero matá-lo se for
esse que a deixou ferrada e sozinha em outro país.
— Isso é tão bom — ela murmura, agarrando meus cabelos por trás.
Sinto seu líquido escorrer e pingar no chão enquanto a acaricio, tentando
manter seus joelhos afastados com meu cotovelo.
Até me assusto quando Luise goza em um uivo delicioso. Me levanto
rapidamente e a beijo para que não chame a atenção.
— Shiu, sua louca.
Rimos um nos lábios do outro, o gosto dela em mim. Ela luta para
respirar e se manter em pé.
— Agora é a sua vez — ela fala sorrindo, bêbada, mas agora de gozar.
— Merda, não tenho camisinha. Não vai dar.
— Ah, não. Olha, não posso te prometer nada, porque nunca fiz isso,
então é com você — ela diz de um jeito inocente.
— Isso o quê?
— Te beijar todo.
Ela se ajoelha diante de mim sem tirar os olhos dos meus. Trinco os
dentes e o que sinto entre as pernas é que meu pau cresceu e está daquele
tamanho que Luise tentou demonstrar quando me pegou batendo uma no
banho.
Uma breve descrição do que temos aqui. Opção a: posso pensar nisso
como a minha funcionária de joelhos diante de mim e eu podendo ser
processado, ficar sem babá e voltar a ouvir Sofia chorar todas as noites. Ou
opção b: posso ver a situação com os olhos de um cara com o pau inchado
nas mãos e uma gata linda e loira com a boca a milímetros da sua glande
gotejante. Escolho a segunda opção e me permito escorregar para dentro dos
lábios mornos de Luise.
Fecho os olhos e ouço Luise sorrir. Filha da mãe. Isso não é justo. Vou
passar a vergonha da minha vida depois de ser tocado por uma mulher tipo
ela. Tipo perfeita. Perfeita para mim.
Sua boca morna e macia me faz dissolver. Seguro sua nuca com
delicadeza, incerto se seu machucado ainda dói. Meus dedos brincam em um
carinho que faz cócegas nela. A cada movimento meu, ela franze o nariz e me
aperta mais ainda com o final da língua.
Agora eu podia dizer que até então a bunda dela era só mais uma,
gostosa como as outras. Os olhos brilhantes como o de uma jovem mulher. O
jeito cativante como o das brasileiras. Enfim, sou sensato. O conjunto da obra
me conquistou e essa deusa que — céus, não sei como fui tão sortudo —
encontrei na estrada umas semanas atrás, vai penar para se ver livre de mim,
por quê, porra, eu a quero. Muito.
Pensar que acabei de tê-la gozando em minhas mãos me faz estremecer.
Movimento os quadris e com um gemido suave me entrego na boca de Luise.
Deixo vir um prazer nunca sentido dessa maneira. Isso ou eu tinha me
esquecido de como era.
Jogo a cabeça para trás e a coloco em pé, a puxando até mim. Estou
prestes a aninhá-la em meu peito e cheirar seus cabelos quando ela dá um
passo atrás.
— Ok. Ok. Vou te poupar da parte dura. — Luise passa o indicador no
queixo, limpando a substância branca em sua pele.
Ergo uma sobrancelha. Não vou arriscar falar. Minha voz sairia
esganiçada depois de toda a energia que ela acabou de me roubar.
— Quer dizer... sobre a parte dura... você continua assim, ahn... duro.
Enfim. — Ela gesticula, olhando para o meu pau que se recusa a baixar.
Espertinho. Mesmo depois dessa gozada incrível, ele não quer perder a
chance de entrar em Luise. Sinto muito, amigo, mas parece que isso não vai
acontecer.
— Então... não precisa me dispensar. Somos adultos. Foi um momento
de alívio embalado por uma pequena dose de álcool. Tesão de duas pessoas
jovens e solteiras. Sem constrangimentos. Vou para o meu quarto e quando
sair de lá volto a ser apenas a sua funcionária, ok? — Ela anda para trás até
tocar a porta do meu quarto com a mão tateante.
Parte de mim está despedaçada, porque estava me imaginando
aconchegado com Luise na minha cama, mas parece que ela não deseja nada
disso. Penso nas coisas que sei sobre ela e seu passado. Como sou tolo. Óbvio
que ela tem alguém que não consegue tirar da cabeça.
— Ok — respondo tentando não transparecer meu desapontamento.
Ela gira a maçaneta e se vira para sair, mas leva a mão ao peito quando
dá de cara com Lili. Merda. Agarro minhas roupas no chão e pulo dentro das
calças, mas é tarde demais. Minha sobrinha pigarreia bem alto e com um bom
sorriso sádico no rosto.
— Peguei vocês!
21
Ane Luise
Saio da suíte do meu chefe vestindo apenas a camisa dele como se fosse
a coisa mais normal do mundo enquanto sua sobrinha me observa com um
dar de ombros simplista. Nuno e eu gastamos cinco segundos para convencer
Liliana de que não temos nada um com o outro, o que nos fez trocar olhares
suspeitos. Atualmente estou achando muito mais fácil quando alguém se opõe
ao que eu digo e conseguimos discutir do que quando alguém simplesmente
concorda e não tenho que debater.
Esfrego o rosto diante do espelho do meu quarto. Estou ótima, só que
não.
Puta que pariu, Luise, que você foi fazer, menina? Parece que já não se
lembra das consequências da última vez que bebeu.
A minha inocência diante da vida parece estúpida agora, mas, na época,
jurava ouvir o diabo ao lado do meu ouvido falando que me aprisionaria com
ele por mil anos se eu não seguisse o que os meus pais diziam ser certo. E
assim eu fiz até ter um pouco mais do que vinte anos.
O mundo de pecados não me pegou até minha prima Camila convencer
minha mãe que seria ótimo me levar para um retiro espiritual de final de
semana em uma fazenda no interior do estado. Ela só não explicou que a
parte espiritual se baseava em encontrar seus ancestrais depois de entrar em
uma barraca enfumaçada com ervas que te faziam ver suas duas linhagens
anteriores. Ela contou para minha mãe que os cinco palcos distribuídos pelo
lugar nos fariam transcender até Deus, não que aquilo era uma rave. Mamãe
achou ótimo. Eu pensei ter descoberto um mundo novo dentro daquela
garrafa que Camila me deu e que me fez gargalhar e ficar bastante corajosa.
Tanto a ponto de ignorar que o cara lindo, caminhando seguido de dois
homens de terno, destoante das roupas coloridas do resto dos mortais da festa
poderia ser alguém importante. Gritei que ele era um gato e seus pés pararam
de andar para onde quer que estivesse indo.
Não pude ver seus olhos atrás dos óculos escuros, mas a expressão era de
deleite quando me viu. Fiquei impressionada com o modo como ele se
comunicava com o cara maior de terno. Com um sinal, ele entendeu que
deveria me pegar pelo cotovelo e me levar junto com eles.
Camila sorria de orelha a orelha, fazendo joinha com os dois polegares.
Bom, achei que a bebida na garrafa estava me ajudando a fazer algo
divertido. Descobri mais tarde ter entrado no camarim do popstar da festa: DJ
Biel. Aparentemente todas as garotas deveriam adorar fazer isso. Foi algo que
descobri depois também, quando já estava apaixonada demais para me dar
conta do que estava acontecendo.
Biel falava manso, sedutor. Passou a língua nos lábios e me enlaçou pela
cintura. Não foi como os beijinhos rápidos dados nos fundos da igreja, depois
da catequese.
Em resumo, fiz escolhas que sabia que teriam consequências, mas a
cabeça leve e o coração cheio me fizeram pagar pra ver. Tudo o que eu sabia
sobre ele tirar minha calcinha e a própria cueca se resumia a três pontos:
Número um: Eu não deveria fazer sexo antes do casamento.
Número dois: Se eu fizesse sexo antes do casamento, significava que eu
teria que me casar com quem estivesse tirando minha calcinha.
E número três, não menos importante, mas apenas consequência dos
outros dois: eu poderia ficar grávida.
Com aquelas mãos exploradoras — me fazendo sentir partes
desconhecidas do meu corpo — presas em braços musculosos dentro de uma
camisa branca de palmeiras e uma coisa bem grande balançando entre as
pernas, apaguei os pontos número um e número três.
Batia forte na minha mente a voz da minha mãe: Ane Luise, se um dia
um homem tirar a sua calcinha, ele vai ter que se casar com você. Beleza,
estava ótimo para mim me casar com o delicioso de cabelos longos o
suficiente para eu perder as minhas mãos neles. Do meu ponto de vista,
estava ótimo ouvir pelo resto da minha vida aquele sotaque espanhol
misturado com inglês e algumas palavras em português enrolado.
Em resumo: beber me empurra para escolhas tendenciosas, tipo me atirar
para o gostoso do Senhor Psicopata Sexy. Ou tipo dar o telefone para o DJ
mais lindo da festa e continuar tirando a calcinha para ele até chegarmos ao
ponto número três e nunca ao número dois.
Então Biel veio para a Europa continuar sua turnê e eu acreditei estar
literalmente adoecendo de amor. Me jogava na cama depois de chegar do
estágio e abraçava uma almofada para conter a enxaqueca. Achava que minha
insônia era a angústia da paixão ou as idas constantes ao banheiro uma
infecção causada por baixa imunidade de tanta saudade. Tonturas eram
vertigens de amor, opressão do meu coração triste pela ausência dele. O fato
é que Camila me deu um pontapé nas canelas quando contei tudo isso e me
alertou para a realidade: eu estava grávida.
Parecia óbvio. Resolveríamos tudo com base no ponto número dois.
Bastava eu encontrar Biel em Portugal, casar com ele e viver feliz para
sempre.
Acontece que gastei o que não tinha em uma passagem, abandonando a
faculdade logo antes de terminar e levando comigo o segredo da gravidez, o
que entristeceu mais ainda meus pais, que pensavam que eu havia largado
tudo apenas para encontrar uma paixão na Europa. Cada atitude minha era
uma sugestão de Biel que, por telefone, me orientou a não contar nada para
ninguém. Lógico que concordei com ele. Achei que ficaria feio para a minha
mãe se soubessem na igreja que a filha não se casaria virgem.
O fato é que cheguei em Portugal e me deparei com um homem gordo e
feio esperando por mim com um cheque — tão gordo quanto ele e que
rasguei ao meio de tanta raiva — nas mãos e me orientando a procurar o
sistema público de saúde para fazer um aborto. Ele se identificou como o
advogado do Senhor Gabriel, um muitíssimo ocupado DJ que já não estava
no país e cujo número novo de telefone nem adiantava me dar, pois onde quer
que ele estivesse eu nem teria dinheiro para pagar o interurbano, pois não
queria aceitar nada financeiro vindo dele.
Bom, essa é a história da minha primeira bebedeira, o que me faz temer
pelo final da história da minha segunda bebedeira, pois ainda estou tentando
recuperar a minha dignidade e mostrar para Gabriel que eu sou uma mulher
decente e vou voltar para o meu país com a cabeça erguida. Isso se as minhas
atitudes de hoje não colocarem tudo a perder.
Ai, droga. O que foi que você fez, Ane Luise?
22
Ane Luise
Fico desapontada quando desço para o jantar e descubro que Nuno não
está. Fiz o favor de facilitar as coisas e ele não ter que passar pelo
inconveniente de se livrar de mim e Nuno foge desse jeito? Ah, francamente.
Na hora da sobremesa — frutas orgânicas para Sofia — fico aliviada por
Nuno não estar. Margô decide que amanhã faremos um lindo passeio nos
barcos da família e desconfio que Nuno não concordaria com isso caso
estivesse aqui.
Sem que ele saiba, a senhora ordena aos empregados que organizem tudo
para o almoço e fico contente, porque nunca andei de barco. Quando todos
sobem para dormir ou se reunirem em seus quartos em conversas animadas,
estou surpreendentemente feliz.
Sempre quis uma casa assim, com pessoas falando alto, taças retinindo,
risadas e alguém te dando olhadas furtivas, como Liliana fez a noite inteira
para mim.
Ok. Essa parte não foi tão boa. Fiquei com medo várias vezes e, a cada
abrir dos lábios dela, pensava que ia sair um: Nuno e Ane estavam pelados no
quarto dele. Mas nada aconteceu e agora estou subindo para o quarto de Sofia
com ela adormecida nos braços, o que eu acho ótimo. Tenho que aproveitar
quando o chefe não está para burlar regras, como subir mais cedo com Sofia,
ler um livro para ela e embalar a bebê até que adormeça. Não que eu ache
isso chato, mas a menina ficou realmente feliz em ter uma grande família na
mesa de jantar hoje à noite.
E, bom, percebi mais cedo que Nuno também estava precisando de uns,
ahn — bem, foram minutos, não foram? — de alegria. Quase mordo a língua
ao recordar da textura da pele dele, de como lambi meus lábios mil vezes e
me senti vazia quando acabou.
Olho para baixo, para o pacote delicioso que tenho nos braços. Uma bebê
rechonchuda e satisfeita. Foco no trabalho, Ane. Foco no trabalho.
Ajeito Sofia em sua cama montessoriana junto ao chão sem ousar colocar
um pijama nela. Decido dormir aqui e trocar sua roupa quando acordar para
Nuno não notar minha falha. Bem capaz que vou despertar esse anjo agora
apenas para que durma vestida com o tecido de cinco mil fios de não sei o
quê orgânico.
Aninho o corpo perto do dela e adormeço. Acordo no meio da noite
quando alguém entreabre a porta e noto ser Nuno apenas pelo cheiro
masculino absurdamente gostoso. Ele nos observa por um tempo e então se
vai.
Sofia dorme direto, cansada da agitação da casa com a vinda da família
Prado Ribeiro. Levanto antes dela e beijo seus pezinhos para que desperte.
Nuno me pega terminando de pôr o sapatinho e enfio a roupa com que Sofia
dormiu embaixo do quadril.
— Bom dia, Luise.
— Bom dia, senhor.
Ele se abaixa ao meu lado e cheira o pescoço de Sofia com gosto. A
menina ri e um sorriso me escapa também.
— Bom dia, princesa. Aproveite essa sua família de loucos tanto quanto
Luise está fazendo. Sei que ela te deixou dormir ainda na mesa de jantar e
que você dormiu suja de sopa.
Engulo os lábios e olho para o alto, fingindo inocência. Nuno se levanta
com a bebê no colo e olha para a minha roupa.
— Parece que você tem aversão a pijamas.
Sorrio amarelo ao alisar meu uniforme.
— Na verdade, gosto de dormir sem nada, mas tem que ser no meu
quarto.
Ele me olha, espantado.
— Pelo amor de Deus, Luise. Você podia ter me poupado dessa imagem
na minha cabeça.
Meu rosto incha e esquenta. Levanto um ombro como que em desculpa.
— Não sou assim uma modelo, mas também não é uma imagem de
pesadelo.
— O quê?
— É. Sei que você, Senhor Psicopata Sexy, deve ter visto coisa muito
melhor.
Ele engasga e tapa os ouvidos de Sofia.
— Não seja ridícula. Você é a coisa mais gostosa que já tive nos braços.
Ah, droga, Luise. Esquece. Você tem razão no que disse ontem. Nada daquilo
aconteceu. Melhor a gente pensar assim. Anda. Você já deve estar sabendo da
invenção de moda de Margô. Um dia no mar. Separe as coisas de Sofia,
protetor solar, mala e vista-se. Será um longo dia e espero conseguir me livrar
disso antes do entardecer.
Nuno sai e fico para preparar as coisas para o dia fora. Quando desço,
depois de me arrumar, os Prado Ribeiro estão relaxadamente conversando na
entrada da mansão, com seus chapéus ou uma taça de champanhe nas mãos.
Chego ao mesmo tempo que um carro preto de onde descem dois
homens vestidos como Nuno: camisa branca de botões dobrada até os
cotovelos e bermudas de tons pastel. Sorrio ao pensar que isso deva ser o
uniforme de domingo do homem rico.
Eles são altos e bonitos e caminham até Nuno, que os cumprimenta com
batidinhas nas escápulas.
— Então Margô arrebanhou até vocês dois para o passeio?
— O quê? Essa mulher linda e maravilhosa ligou ontem pedindo
desculpas por ter que nos dispensar como pretendentes mas informou que
Isabel segue solteira e que a casa dos Prado Ribeiro agora conta com a
brasileira mais bonita de Portugal.
— É, chefe, não tivemos como recusar o convite para o passeio, apesar
da frustração de Margô não aceitar se casar com nenhum de nós dois.
Margô anda abrindo espaço entre seus descendentes. Os dois homens
beijam sua mão um de cada vez de forma exagerada e lisonjeira e ela pisca,
fingindo timidez.
— Ah, queridos, sou uma herdeira. Não posso aceitar qualquer um
assim. Mas minha neta precisa de um bom macho bonito como vocês. E a
pobre da Luise vai explodir se não tiver onde deixar escapar toda a pressão
que Nuno coloca nela.
Arregalo os olhos quando ela diz isso. Nuno prontamente me entrega
Sofia e fica entre os caras bonitos e eu.
— Nem sonhem. Luise é minha funcionária e está em dedicação
exclusiva para Sofia. Lutem pela minha irmã, como sempre fizeram.
— Eu não me importo. — Isabel se aproxima e é beijada nas bochechas
pelos dois ao mesmo tempo.
— Ah, Bel, querida, quanto tempo?
— Alguns meses.
— Infelizmente nenhum de nós dois conseguiu te fazer ficar da última
vez em que esteve em Vilamoura.
— Para ficar comigo, só morando em Punta Del Leste, docinhos — ela
devolve do alto do seu imaculado vestido amarelo de verão.
— Isso. Podem ir. Os dois para Punta e longe da minha casa — Nuno
rosna e me pergunto se isso é um pingo de ciúmes por mim ou mais um dos
seus mi-mi-mis sobre os cuidados integrais de Sofia.
O moreno um pouco mais alto afasta Nuno com o ombro e estende a mão
para mim. Troco Sofia de braço e o cumprimento. Seus olhos me devoram.
— Thiago Moreira, advogado de Nuno, ao seu dispor.
O outro toma minha mão da dele e sorri com galanteio.
— Eduardo Brás, contador e assessor de investimentos de Nuno.
Meu chefe se interpõe entre nós e os afasta com as mãos como se fossem
pombos. Sua tromba quase arrasta no chão.
— Ignore esse dois. São meus amigos de infância. Não valem nada.
— Que mentira — Eduardo protesta.
— Esses meninos são ótimos e quase como da família. Eu adoraria que
você namorasse com um deles e ficasse para sempre na nossa casa — Margô
fala, passando entre nós e entrando no carro onde Tenório a aguarda com a
porta aberta.
Nuno bufa e vai atrás dela, prendendo Sofia na cadeirinha no banco de
trás.
— Luise vai ficar, vó. Pelo menos até Sofia fazer dezoito anos.
Sorrio amarelo e desvio o olhar sem responder. Ai, se ele soubesse...
Tomo meu assento ao lado da bebê e partimos em silêncio até a marina
de Vilamoura junto da comitiva de carros dos Prado Ribeiro.
O dia está lindo e a água tão azul quanto o céu. A mãe de Nuno pega
Sofia assim que consegue escapar dos olhos atentos do filho. Fico
impressionada com o barco da família e me preparo para entrar nele quando
Liliana quase me atropela.
— Você já andou de veleiro?
— Não — respondo, tentando não cair da plataforma de madeira
enquanto meus olhos passam das gaivotas para as palmeiras e tudo o mais de
lindo que há no lugar.
— É muito legal. Tio Nuno tem um, sabia?
— Ah, não fazia ideia de que Nuno tinha outros interesses além do
trabalho e de Sofia.
— Ouvi o meu nome? — Ele se aproxima com Eduardo e Liliana sorri.
— Estava contando pra Luise que você tem um veleiro. Ela disse que
nunca andou mas adoraria.
Abro a boca para falar que não, eu não havia dito aquilo, mas Eduardo se
empolga e é mais rápido do que eu com as palavras.
— Que ótima ideia, faz tempo que não velejamos. Depois do almoço,
podemos fazer um trecho e encontrar o pessoal em alto mar, o que acha,
Nuno?
— Não sei.
Nuno olha para dentro do barco onde a sua família se instala em meio a
risadas, bebidas distribuídas por funcionários e música cada vez mais alta.
— Ah, vamos lá. Sei que está louco para fugir da alegria promovida pela
sua vó — Thiago ajuda na insistência e Nuno faz uma careta.
— Tem Sofia e eu não pedi que preparassem o veleiro. Pode demorar.
— Cara, você é que deveria ser o advogado, sabe? Nunca vi alguém com
tantas justificativas pra se divertir. Vou aliviar pra você. Vou pedir pra
prepararem o veleiro e o trazerem depois do almoço. Damos uma volta, Luise
vê como é e você fica mais calmo de ver que estará tudo bem com Sofia e a
sua mãe.
Nuno ajeita a camisa, que não está desalinhada, e percebo sua hesitação.
Ele está se preparando para recusar quando Liliana se atira em seu pescoço.
— Por favor!
Sua mão acaricia os cabelos dourados da menina e ele cede, assim como
cede sempre para Margô ou Sofia. Agora vejo que nem sua mãe consegue
receber um não dele. Isso me faz sorrir. Nuno é um rabugento de coração
bom.
Partimos no barco de dois andares e me sinto uma diva. Ninguém quer
compartilhar Sofia comigo e meu único trabalho é manter meu chapéu no
lugar. A família Prado Ribeiro gargalha alto, atirada nas poltronas do deque,
comendo canapés de frutos do mar e bebendo do melhor champanhe que,
adoraria, mas não tenho coragem de provar depois de ontem.
Nuno conversa com os amigos dele. Eu fico um pouco com Margô, outro
tanto com Mônica e Isabel. Assim, a tarde chega e o veleiro de Nuno logo
nos alcança. Imaginava uma pequena embarcação e estava me perguntando
como iríamos caber Liliana, Nuno e seus amigos e eu, mas fico
impressionada com o enorme veleiro de três velas. Um homem estende uma
passarela e Nuno olha para a mãe.
— Vou e volto rápido. Nem vou sair de perto de vocês.
— Pelo amor de Deus, Nuno. Estamos próximos a Benagil. Luise precisa
conhecer — Sônia diz, carregando uma bebê adormecida pelo balanço
gostoso do mar.
— Então vamos, Luise. Quanto antes sairmos...
— Antes voltamos — murmuro, revirando os olhos e todos riem.
Nuno olha para os lados e sua expressão muda. Ah, não. Eduardo e
Thiago estão na proa, conversando com Isabel de um jeito próximo, bem
próximo. Nuno faz menção a ir em direção aos três, mas Margô o agarra pelo
braço.
— Nem sonhe. Se você não arruma uma diversão, deixe os outros
fazerem isso.
— Mas eram eles quem queriam andar no veleiro e não eu — Nuno
protesta.
— Queriam. Aposto que agora não querem mais.
— Onde está Liliana? Ela que inventou essa história.
— Ah, você não viu? Está passando mal. Deitamos a menina em um dos
quartos e se você a levantar, vai ganhar um belo banho de vômito.
Nuno franze o cenho e passa as mãos nos cabelos. Mordo a boca e evito
olhar para ele. Droga, preciso livrá-lo da responsabilidade de me levar para
passear.
— Olha, podemos ficar aqui. Está ótimo. Estou adorando o passeio.
Percebo o alívio em seu rosto mas antes de ele poder concordar comigo,
Margô o empurra passarela adiante em direção ao veleiro.
— Na-na-ni-na-não. Vá. Velejar um pouco vai te fazer bem. E Joane vai
amar conhecer a gruta de Benagil.
— Ane — eu e ele falamos em uníssono.
Então, sem mais discussão, eu e Nuno seguimos para o veleiro e
deixamos o rapaz que o trouxe descer a passarela em direção ao barco com a
família, que se afasta aos poucos. Observo sentada em um canto enquanto
Nuno ajeita tudo, arrasta cordas e puxa velas em silêncio. E assim, minutos
depois ele se senta ao meu lado e me encara. Não há nada ao nosso redor
além de mar e céu. Azul por todo o lado.
— Então...
— Relaxa, Nuno. Sua família não está aqui pra te pressionar. Eu também
não vou te pressionar. Está tudo ok, de boa. Você não precisa ficar com medo
de mim, não vou me atirar pra você.
Ele joga a cabeça para trás e solta o ar sem pressa, quase assoviando.
— Você acha que ela vai contar pra alguém? Digo, Liliana, sobre ontem.
Dou de ombros.
— Ela é adolescente. Provavelmente acostumada a guardar segredos da
família.
Nuno concorda com a cabeça e então me encara de um jeito que faz meu
rosto esquentar.
— Que foi? — pergunto, começando a ficar com vergonha.
— É que estava pensando, se Liliana falasse, as pessoas iriam imaginar
algo maior do que foi.
— Ah, é?
— É. Tipo que nós transamos.
— Hum. É. O que não foi o caso.
— Pois é.
Arrasto o pé na madeira do piso. Um lado. O outro. Nuno ainda me
observa.
— Sabe aquele ditado, fez a fama agora deita na cama?
— Sei.
Sinto um friozinho na barriga quando ele encara a minha boca por tempo
demais.
— Só mais uma vez, Luise, só mais uma vez.
Nuno levanta meu queixo e me beija. Só mais uma vez, Luise, só mais
uma vez, repito mentalmente como um mantra enquanto sua língua brinca na
minha.
23
Ane Luise
Deixo Nuno deslizar os indicadores pelo cós dos meus jeans enquanto
me beija no pescoço. Minha cabeça luta para continuar funcionando, mas é
difícil pensar. A única coisa que insiste em ficar é o tamanho da diferença
entre meus amassos com Biel e o modo como todo meu ser reage ao toque de
Nuno.
Antes era uma curiosidade somada à fantasia de ter finalmente
encontrado alguém para mim. A inocência de pensar que esse cara estaria
justamente numa festa e não nos círculos que eu frequentava. O roteiro
faculdade, estágio, igreja não tinha me apresentado ninguém que me olhasse
com aqueles olhos de lobo.
O melhor agora é que Nuno não me olha assim. O que sua expressão diz
quando me observa segundos antes de me beijar é que eu sou uma joia rara
que acabou de desencravar de uma caverna secreta. Arfante, apoio as mãos
em seu peito e o afasto de mim.
— Nuno, para. Preciso de sinceridade aqui antes de continuarmos. Não
quero promover esperanças e muito menos perder o meu emprego. Então, por
favor, seja honesto. É só mais essa vez e acabou, né?
Uma centelha de frustração passa pelo rosto dele e me pergunto se é por
eu ter interrompido o fluxo de sangue indo para o meio das suas pernas com
minha conversa. Contudo, o olhar dele volta a ser o do cara que acabou de
encontrar uma pedra preciosa.
— Porra, Ane, eu não sei o que é isso que você está fazendo comigo. É
pra ser honesto? Então eu vou ser honesto. Fiquei puto ontem quando você
disse que não ia acontecer de novo. E agora que estamos aqui, nós dois,
caramba, não tenho condições de te dizer que é só mais essa vez e acabou.
Você é a criatura mais linda que já tive em meus braços.
Fico pasma. Sua sobrancelha se ergue e ele desvia o olhar. Sorri e então
me beija de leve.
— Ok. Estou mentindo. Sofia é a mais linda.
Nuno me rouba um sorriso e uma concordância.
— É sério, Nuno. Isso é só pra comer sua babá gostosa? Fiquei sabendo
que você teve funcionárias lindas e a mesma fonte me garantiu que pode até
mesmo ter levado algumas delas para a cama.
Nuno se ajeita entre as minhas pernas e tensiona o maxilar. Está
desconfortavelmente duro e acho que se estivesse em outro lugar seria bem
melhor.
— Por acaso a sua fonte se chama Marta? — ele fala com irritação.
— Não importa.
— Importa, porque ela adora fazer os outros acreditaram que controla
toda a minha vida. Com quem eu durmo é problema meu, não da minha
assistente.
— Acho fofo o jeito como você fala. Meu ex diria: com quem eu fodo,
trepo ou como. Droga. Isso faz com que eu me sinta ainda mais burra por não
ter visto onde aquilo terminaria.
Nuno segura meu rosto e tento não ficar hipnotizada por sua beleza, o
cabelo voando na testa, a barba que está fazendo minha pele latejar nesse
exato momento. Ok, tem a boca carnuda e quente também.
— Se você não se importa, agora que temos intimidade, prefiro ser
honesto e te dizer o quanto estou desesperado para te foder e não para dormir,
porque, juro, essa seria a última coisa que eu faria se estivesse ao seu lado em
uma cama. E não, eu não estive com ninguém desde Raquel. Poderia ter
estado? Poderia. Mas você vê há um mês como é a minha vida. Amo o meu
trabalho no escritório, passo praticamente reto pelo cassino e uso todo meu
tempo livre com Sofia. Nenhuma, repito, nenhuma mulher me fez pagar com
a boca como você.
Franzo a testa e me seguro em uma corda quando uma onda mais forte
nos faz balançar com intensidade. Nuno me segura, pressionando,
intencionalmente ou não, mais ainda sua ereção contra mim.
— O que você quer dizer com pagar com a boca? — pergunto enquanto
observo Nuno em uma luta interna para admitir seus sentimentos.
— Eu falei pra Deus e o mundo que não sairia de perto de Sofia mais do
que o estritamente necessário. Que seria o principal cuidador dela e que
mulher nenhuma valia o tempo longe da minha bebê. Agora veja onde estou.
Onde eu estava ontem? Onde estarei amanhã? Porra, Luise, eu quero estar
com ela, mas só me imagino dentro de você.
Mordo a boca dele de leve e depois o beijo.
— Ok. Não diga mais nada. Não posso me apaixonar de novo. Paixão é
uma porcaria. Perdi tudo o que eu tinha por causa disso. Eu sei como é.
Minha prima me explicou, tarde demais, mas agora eu já sei.
— Do que está falando, Luise?
— Esse fogo que a gente sente por alguém novo. Não é amor, nem
paixão. É só uma curiosidade mesmo.
— Luise...
— Vamos fazer assim. Nós transamos, a graça acaba e seguimos a vida
normalmente. Eu com meu emprego e você com toda sua cabeça voltada à
Sofia outra vez. Marcamos um dia, você compra camisinhas e vai ao meu
quarto no meio da noite.
Nuno leva a mão até o bolso da bermuda e me mostra constrangido um
pacote de camisinhas que me faz cair o queixo.
— Já comprei.
— Mas você disse...
— Eu não disse nada. Você falou que a gente não ia repetir. Mas fiquei
querendo me jogar da ponte por não ter uma filha da mãe de uma camisinha
pra transar com você naquela hora. Jurei que isso nunca mais ia me acontecer
e saí pra comprar.
Jogo a cabeça para trás em uma gargalhada e, bom, é isso o que me
impede de me entregar perdida e completamente para o meu chefe delicioso.
Ouvimos um latido estridente e nos assustamos com o cachorro agarrado em
uma corda com os dentes. Alok empina o quadril para cima e balança o rabo.
Então ele corre, puxando a corda com tudo para longe.
— Não, seu cachorro filho da mãe — Nuno grita, correndo atrás dele,
mas é tarde demais.
O veleiro de Nuno resolve que é uma boa hora para se revoltar por seu
dono estar mais preocupado com uma boa transa do que com conduzi-lo.
Uma das velas gira em nossa direção e conseguimos nos abaixar, mas a corda
presa aos dentes de Alok é puxada e o leva diretamente para o mar gelado.
— Ah, meu Deus, Nuno, o cachorro da sua avó. — Me jogo contra o
peitoril, olhando em vão para as ondas.
— Merda. — Nuno sobe no estrado de madeira e pula na água.
Segundos depois, a cabeça dele surge entre as ondas e levo a mão ao
peito.
— Você está bem? Pelo amor de Deus, quase me matou do coração.
— É de outro jeito que vou te matar do coração, Luise. Mas primeiro vou
matar esse cachorro quando o encontrar.
Ele olha para os lados e aponto com o indicador quando vejo as orelhas
lavadas e Alok nadando tranquilamente em direção ao neto da sua dona.
Meu rosto queima e tento não rir como uma idiota. Nuno se agarra no
cão e sobe de volta ao barco com agilidade. Ele para diante de mim e solta o
bichinho, que se sacode e me dá um banho. Nuno me encara e até sua
expressão irritada é linda. Gosto como sua camisa molhada marca o corpo
perfeito.
— Nuno, você não acha que isso é um sinal para não irmos a diante? —
falo, rindo ao me aproximar dele.
Ele sorri, encharcado e delicioso, perfeito para lamber.
— Se você não se importa, vamos fingir que não vimos esse sinal, ok?
24
Ane Luise
Inocência nossa pensar que seria possível que outro beijo acontecesse
com a presença de Alok no veleiro. Como dois malucos, lutamos para segurar
o cachorro ao entrarmos na gruta de Benagil.
Alok não é bobo e percebe que o lugar é o paraíso, mas Nuno estava
cansado de se jogar na água — e eu diante de veículos motorizados — para
salvar o maluco do cãozinho de Margô. Apreciamos a beleza do lugar de
dentro do barco com um Alok se debatendo como um selvagem.
Ele é o primeiro a saltar quando chegamos na marina de Vilamoura,
caindo sobre o deque com um baque e nos fazendo franzir o rosto. Como se
não fosse nada, Alok sai correndo até Margô e quase a derruba tentando
lamber seu nariz.
— Ah, meu querido, praticamente enlouqueci quando não o encontrei no
barco.
— Seu cachorro gostou muito da Praia de Benagil, Margô — Nuno diz
enquanto estende os braços fortes para me ajudar a descer. — Inclusive,
aproveitou para tomar um banho de mar.
— E Nuno não resistiu e foi junto — digo, apontando para a roupa ainda
úmida dele.
Impossível não trocarmos olhares na hora em que ele me pega pela
cintura e me coloca sobre o deque. Sua boca tão próxima da minha, nossas
peles roçando uma na outra. Percebo o frisson no contato, a contração dos
músculos dele ao aspirar o meu perfume e lutar para não fechar os olhos.
A atração é evidente. Não há mais como negar o jeito como ele me olha,
selvagem, penetrante. Sinto no âmago uma vontade louca de agarrá-lo, mas
lembro que não estamos sozinhos e que preciso muito que ele continue me
dando um emprego.
A família Prado Ribeiro segue pela marina, conversando agitada e
apresso o caminhar para alcançar a mãe de Nuno que está com Sofia. Melhor
ficar longe do que não posso controlar. Ele fica para trás com Margô, mas
ainda posso ouvir a conversa dos dois.
— O que houve que você ainda não reclamou do meu cachorro? — ela
questiona a Nuno entre os intervalados tiques da sua bengala no chão.
— Nada.
— Como nada? Eu te conheço.
— Está tudo bem, Margô, sério.
A bengala para de bater e viro a cabeça de leve para olhar para avó e
neto. Ela o encara com desconfiança, os olhos apertados. Nuno tem as mãos
no bolso da bermuda. Caminha de um jeito leve, algo que nunca vi antes.
— Você está estranho — Margô insiste.
— Impressão sua.
— Não. Sei o que estou dizendo. Você até parece feliz.
— Eu sou feliz — Nuno teima com um sorriso e volto a olhar para
frente, mas agora diminuindo a velocidade.
Quero ouvir essa conversa. Ah, se quero ouvir.
— Pode até ser, mas faz questão de fazer de conta que não é.
— Bom, então aproveite que não estou fazendo isso agora.
— Por quê? Há algo aí. Você não passa um dia sem reclamar de Alok.
Sequer tocou no assunto de ele ter saído de casa quando você disse que eu
não deveria mais permitir isso.
— Está tudo bem. Ele precisa de um passeio às vezes.
— Nuno... — ela diz com a voz grave e lenta, quase um alerta.
— Sério, Margô, não há nada.
— Sou uma velha, mas não sou tola. Conheço os homens. Ainda mais os
Prado Ribeiro. Seu avô só sorria assim de lado quando... Ah, meu Deus, você
transou.
Quase cuspo a língua quando a escuto.
Droga. Preciso disfarçar o meu sorriso, mas ele está preso no meu rosto
como uma máscara de concreto.
Céus! Se ela soubesse que não, nós não transamos mas que sim, Nuno
teve uns minutos de prazer comigo, acho que me pediria para fazer isso mais
vezes apenas para não ter de aguentar o neto reclamando do seu cachorro.
— Margô, eu não transei. Eu não tenho tempo para isso. Você me vê ir a
outro lugar além do escritório?
— Você está mentindo.
— Não estou mentindo. Juro pela vida de Alok.
— Nuno!
A gargalhada dele é o que o entrega.
— Essa risada, essa leveza. É mulher, admita.
— Você está certa, vó. É uma pequena mulher chamada Sofia.
Ouço o ruído de um beijo estalado e Nuno passa correndo por mim. Ele
pisca e sorri, me deixando com uma sensação de estar em uma sauna, quente
e úmida, mesmo com tanto vento perto da praia. Ardo em uma febre louca
que faz os músculos da parte interna das minhas coxas se contraírem
Observo enquanto pega Sofia no colo de Sônia e a ergue no ar. Quando
vejo, Margô está ao meu lado.
— É um homem bom, esse meu neto. O melhor. Mas não deixe que
saiba ou fica um metido a besta. Daria a minha vida para vê-lo sorrir desse
jeito todos os dias. Ele não merece perder mais ninguém, nem um dia de
alegria. O que quer que o tenha deixado assim, que se repita.
Margô segue caminhando, mas as palavras dela me tiram o ar de tal
maneira que fico para trás. Não sei se ela finge não perceber ou está tão
concentrada na alegria de Nuno e na presença da família, mas ela apenas me
deixa sozinha. Fico rindo e sonhando pela marina, os meus pulmões
bloqueados de tanta pressão que seguro para me impedir de gargalhar alto.
25
Nuno
É difícil adormecer sabendo que a mulher mais linda do mundo está no
quarto ao lado do seu. E possivelmente pensando em você. Giro para um
lado, coloco o pé pra fora do lençol, cubro os olhos com o braço. Nada. Não
sei qual é o melhor momento e se existe momento para invadir o quarto de
uma funcionária no meio da noite.
Vou até a janela e vejo a lua refletida na água do mar. Lembro do sinal
de que Luise falou, do fato de não deveríamos seguir adiante e de como
combinamos de esquecê-lo.
Olho Sofia na babá eletrônica. Está tudo bem. Posso arriscar. Ela dorme
tranquila como desde que Luise chegou a essa casa.
Na ponta dos pés, saio do meu quarto e sigo pelo corredor apenas com as
calças de pijama. Espero honestamente que Luise tenha sido sincera comigo
quando disse que dormia nua.
Abro sua porta e entro. Ela ressona sob o lençol com a paz de quem sabe
que está em segurança. Me sinto um adolescente. Sei que não estou fazendo o
certo mas não consigo parar.
Merda! Eu vou atacar a babá no meio da noite. Isso não parece decente.
Foda-se. Se por fazer isso eu fosse para o inferno, mesmo assim o faria. Me
exibiria para o diabo, dizendo como foi ter estado no paraíso sem nunca ter
colocado os pés nele.
Uma tábua no assoalho range quando me aproximo e Luise respira
profundamente. Ergo o lençol e me enfio ao seu lado. Adormecida, Luise se
aninha em meu peito.
Sim. Ela de fato dorme nua, para desespero do meu pau, que começa a
subir até ficar dolorosamente desconfortável tê-lo entre nós dois.
Luise se remexe e tiro uma mecha do seu cabelo caída na testa dela.
— Luise. Ane Luise. Acorde — sussurro em seu ouvido e ela me ignora.
Isso que estou fazendo me parece tão errado. Não o fato de estar na cama
dela agora, pois era o que tínhamos combinado, mas acordá-la. Está tão linda
dormindo.
Por um momento, me passa pela cabeça que transar com ela não é algo
tão íntimo quanto dormirmos abraçados sem fazer nada. Me ocorre também
que eu adoraria fazer as duas coisas. Fui um tolo quando pensei que não
conseguiria dormir se estivesse ao lado dela em uma cama. Eu faria qualquer
coisa com essa mulher.
Beijo o topo da cabeça de Luise e decido esperar. Acabo adormecendo
como uma pedra.
Em meu sonho, a boca aveludada de Luise me chupa e a língua brinca
com a minha pele. As unhas percorrem a parte interna das minhas coxas, me
fazendo contrair o umbigo.
— Ah, Luise — gemo.
— Não goze antes da hora, Nuno.
A voz dela me faz sentar na cama com um pulo. Droga! Isso não é um
sonho.
— O que você está fazendo? — pergunto, colocando a cabeça dela entre
as mãos.
— Tentando dormir. — Ela dá de ombros.
— Não foi assim que eu aprendi a tentar dormir.
— É que você me acordou com todo esse negócio duro me cutucando e
eu achei que assim poderia voltar a dormir mais rápido.
— Mais rápido? Mas você acabou de dizer que não era pra eu gozar
antes da hora.
— Sim, porque agora que estou aqui eu também quero. Você trouxe as
camisinhas dessa vez?
O modo como ela fala, com uma naturalidade sussurrada, quase me deixa
com vergonha. Não acho que Luise esteja acostumada a falar isso, mas dá pra
ver que ela quer tanto quanto eu.
— Espera. — Tiro do meu bolso o pacote e o rasgo com os dentes.
Parece que tenho quinze anos de tanto que minhas mãos tremem quando
começo a desenrolar a camisinha.
— Nossa.
— O que foi? — pergunto enquanto ela fica me olhando ajeitar o
preservativo.
— Parece que ficou pequena.
— É — resmungo, querendo mesmo é não ter que usar isso, mas fazer o
quê?
É a regra.
— Se você disser que eu sou apertada, vou saber que é por causa da
camisinha.
Rio mas logo passa quando Luise se senta no meu colo. Ela não desvia
os olhos dos meus e não há nada mais sério do que isso nessa vida.
Minhas mãos descem por sua coluna e apertam a bunda, a erguendo o
suficiente para que se posicione sobre a cabeça do meu pau, mas ainda sem
entrar nela.
— Gosto do modo como seus cabelos caem pelas suas costas — falo,
rouco.
— Gosto do modo como minhas mãos se enterram nos seus cabelos —
ela responde, me acariciando e beijando meu pescoço.
— Alu...
— É estranho quando você me chama assim — ela diz, invadindo minha
boca com a língua.
— Estranho ruim ou estranho bom.
— Não sei se já achei algo ruim vindo de você.
— Mas eu sou um chato e controlador e objetivo demais.
— E meu Senhor Psicopata Sexy.
Porra, sexy é a voz dessa mulher linda e de pernas enormes sentada no
meu colo, tocando meu umbigo com o seu. Talvez Luise nem consiga acabar
de sentar em mim se continuar falando como sou dela e esse tipo de coisa.
Ela então deixa o corpo escorregar e o ar do meu pulmão vai saindo
conforme vou entrando nela. A abraço forte e a beijo.
— Me toque, Nuno, me beije — ela geme.
Tento controlar meus impulsos mas é absolutamente impossível. Mesmo
com a quantidade de vezes que me peguei batendo uma por essa mulher,
parece que tenho todo o líquido do mundo preso em minhas bolas.
— Preciso te falar uma coisa — arfo, entrando e saindo dela, que joga a
cabeça para trás enquanto cavalga delicadamente em mim.
Tenho que lutar para controlar o impulso de fodê-la com força,
possivelmente até machucar.
— Humm. — Luise parece em outro planeta enquanto suas coxas sobem
e descem na coisa mais gostosa que já fiz na vida.
— Essa vez não conta.
— Aham — ela responde, aérea.
— Sério. Vamos ter que fazer de novo — falo pausado e as palavras
saem rasgando da minha garganta.
Luise não responde. Ela escorrega a mão entre os seios e desce pelo
umbigo, púbis, parando no clitóris. Sinto seus dedos a acariciando enquanto
me desmancho aos poucos mas ela consegue ser mais rápida do que eu.
— Nuno — ela grita, se amolecendo todinha em meus braços.
Cubro sua boca com a minha mão e luto entre conter o riso por causa do
seu grito e gozar, porque meu pau ignora o perigo do que ela acabou de fazer
e só consegue pensar: puta que pariu, essa mulher deusa gritou o meu nome,
preciso jorrar nela.
E é o que faço. Mil fragmentos de mim tentam entrar em Luise. Bom,
pelo menos é o que parece quando gozo como um foguete sendo lançado.
Ainda estamos tremendo quando ouvimos alguém bater na porta e dessa
vez é ela quem leva a mão até a minha boca.
— Ane Luise, está tudo bem? Ouvi você gritar — minha irmã Mônica
pergunta do outro lado da parede.
Nos entreolhamos e tentamos conter o riso. Suados, pelados e ainda
montados um no outro, seria tragicômico se fossemos pegos dessa maneira.
— Shiu — Luise sussurra para mim e mordo a boca.
— Luise? — Mônica insiste.
— Sim. Tive um pesadelo — a mulher mais linda do mundo responde,
lutando para destravar as pernas do meio das minhas.
— Ah, bom. Faz sentido. Ouvi você gritar o nome de Nuno.
Arregalo os olhos e Luise se atira em cima de mim. Caímos os dois
deitados na cama, ela com os seios deliciosos na minha boca.
— Pois é. Um terror. Mas está tudo bem. Obrigada.
— Boa noite.
— Boa noite.
Ouvimos os passos de Mônica indo embora e mordo o mamilo de Luise.
— Ai.
— Teve um pesadelo comigo, foi?
— Foi o seu lado psicopata. — Ela ri.
— Ah, é? Mas foi o meu lado sexy que te fez gritar. E isso me faz
lembrar de uma coisa.
— O quê?
— Ainda preciso conhecer melhor algumas curvas desse seu corpo.
Giro Luise e a coloco por baixo de mim. Ficamos nos olhando por tempo
demais. Tempo além da conta para quem estava planejando apenas uma
transa. Tempo que eu não gostaria que acabasse jamais.
— Alu?
— Hum?
— Posso voltar amanhã? — pergunto em um rompante de loucura.
O sorriso dela brilha na luz fraca que entra por sua janela nessa noite
quente de verão.
— Tudo bem. Não é como se eu achasse isso ruim.
— E depois de amanhã? — Beijo sua clavícula e vou descendo.
— É, eu acho que eu mereço.
— E depois? — Lambo seus seios.
Luise se apoia nos cotovelos e me encara.
— Nuno, e o que nós vamos fazer quando a sua mãe for embora?
— Acho que vamos precisar contratar uma babá — digo, deslizando
entre suas coxas e a fazendo rir e gemer.
A noite se esvai em gozos contidos e beijos aflitos, terminando com ela
adormecendo nos meus braços. Já eu, eu não consigo dormir. Só olho para
ela e fico pensando em como tenho sorte. Em como agradeço por ela não ter
falado mais em uma última vez.
26
Nuno
Desço do carro ao chegar do escritório e Tenório bate a porta atrás de
mim. Cumprimento os empregados que encontro pela casa mas mudo a rota
do meu caminho ao ouvir burburinhos e risadas na sala de estar. Há quanto
tempo não a usávamos mesmo?
Depois que Raquel partiu, entrei em um turbilhão tentando administrar
Sofia e ser o CEO do grupo Prado Ribeiro. Ficar sentado na sala
aproveitando a vida era a última coisa que me passava pela cabeça.
Abro a porta e todos ficam em silêncio. Meus olhos se focam
diretamente em Luise sentada no chão com Sofia entre as pernas dobradas. A
bebê estende o bracinho para a babá, mostrando seu brinquedo e sorrindo,
contudo, a garota loira não consegue tirar os olhos de mim.
Ando até as duas e abraço Sofia. Cheguei tarde. Seu cheiro doce me diz
que já está banhada e o bafinho de sopa, que já jantou. Odeio esses dias em
que não posso passar a noite com ela. Ainda mais quando a culpa é do meu
irmão, que anda complicando a minha vida no trabalho.
Meu punho roça levemente no braço de Luise e é difícil não a beijar.
Seus lábios murmuram um oi que retribuo, como se essa palavra fosse um
segredo nosso.
— Nuno, meu filho, boa noite. Teve um bom dia de trabalho?
— Sim. Consegui encaminhar a auditoria no cassino de Ibiza antes do
fechamento do contrato, então está tudo certo, infelizmente. Você sabe como
sou contra essa negociação. Agora só falta seu filho irresponsável aparecer
porque o filho comprometido já resolveu tudo.
Nunca fui de dar explicação ou falar mais do que o necessário, mas sinto
um prazer excessivo quando se trata de deixar claro em palavras meu
descontentamento com as atitudes de Diniz.
— Falando nisso, ele disse a você quando vem, Lili? — Margô questiona
a menina sentada ao seu lado, no braço do sofá.
— Está muito ocupado. Falou que quando puder vai aparecer.
Dou uma gargalhada e nessa hora surgem atrás de mim Thiago e
Eduardo.
— Opa! Nuno rindo alto? Adoro quando vocês vêm passar uma
temporada em casa — meu advogado diz.
— Queridos, que bom que estão aqui. Vieram para o jantar? — Minha
mãe se levanta e os beija no rosto com mais entusiasmo do que deveria.
Ela então me encara como se pedisse permissão para me tocar. Assinto
com a cabeça e seus braços longos me envolvem para um beijo no rosto.
— Eu disse que não, mãe, mas eles já não me escutam.
— Imagina se a gente acatasse cada não do Nuno. Não viveríamos mais.
— Têm razão. Meu filho precisa dizer sim à vida, se divertir.
— Isso, igual ao Diniz, não é? — pergunto, me aproximando do meu pai
quando ele ergue um copo de uísque para mim.
— Não esquenta a cabeça, meu filho.
— Eu não esquento. Sei que isso nunca vai mudar. Só faço o meu papel.
Liliana escorrega o quadril até o chão e se senta ao lado de Luise. Ela
brinca com um fio solto na roupa da babá.
— Você também tem um irmão que não goste de você, Luise, tipo o meu
tio não gosta do meu pai?
Percebo como a garota fica nervosa e volta a buscar conforto em mim.
— Não, quer dizer, meus pais acho que não gostam muito de mim.
Meu coração se parte com a agonia no que ela diz. Como alguém pode
ter abandonado minha garota assim?
— Amanhã teremos um show no cassino. Vitor Kley. — As palavras
pulam da minha boca em uma tentativa desesperada do meu cérebro em
mudar de assunto.
— O quê? Não acredito. Eu amo ele. — Isabel se levanta em um pulo,
deixando Thiago sozinho no sofá, para onde ele havia sorrateiramente se
aninhado ao lado da minha irmã.
O filho da mãe não está disposto a desistir dela. Não sei o que ele pensa.
Duvido um dia ver Isabel largar a vida boa que leva para se casar com
alguém. Muito menos para morar em Portugal. Nesse sentido, ela é a versão
feminina de Diniz e eu sou a masculina de Mônica. Talvez um pouco mais
obcecado por controle, admito.
— Nuno, Nuno, meu caro, sempre guardando as notícias boas e nos
entregando as péssimas — Thiago reclama e todos riem.
Isabel se vira para ele e dá pulinhos como uma adolescente.
— Faz muito tempo que não vou ao cassino de Nuno.
— Nem eu. Ele só me deixa subir direto para o escritório. Mas acho que
o viciado em trabalho do seu irmão poderia nos conseguir uns ingressos VIP.
O que você acha, Eduardo?
Percebo então o motivo de Eduardo, que até então só havia falado para
cumprimentar as pessoas, estar tão calado. Ele se empertiga ao notar todas as
atenções em si, mas não disfarça para onde está com o olhar vidrado: Luise.
Inspiro lenta e profundamente para conter a ira. Quero chutá-lo para fora
da minha casa.
— Acho que eu adoraria acompanhar vocês se Ane Luise me desse a
honra de levá-la como acompanhante. O que acha, Ane?
— Agradeço, mas tenho que cuidar de Sofia.
— Querida, estou aqui para isso. Aproveite antes que eu volte para casa.
Saia e se divirta. Cuido da minha neta — minha mãe se intromete enquanto
Luise pede confirmação para mim com o olhar.
— E então? — Eduardo insiste.
— Eu acho que não temos mais ingressos — brado, irritado quando
Luise me olha com pavor.
Todos protestam e lá vou eu ser o chato mais uma vez.
— Só um pouquinho que eu vou ali fora ligar para o cara das relações
públicas. Tenho certeza de que ele consegue isso para a gente, já que o CEO
da empresa só sabe nos escravizar. — Eduardo pega o telefone e sai da sala
enquanto Mônica me fuzila com o olhar.
— Eu também adoraria ir, sabia?
Tento não revirar os olhos para ela e acabo cedendo.
— Ok. Vou resolver isso.
Saio da sala, indo atrás de Eduardo. O encontro no corredor com o
celular colado ao ouvido e o arrasto até a biblioteca. Antes de poder fechar a
porta, Thiago se intromete e entra conosco.
— Desliga essa merda — digo, entredentes.
— Ele está vendo lá, Nuno. Calma.
— Desliga, Eduardo.
Ando de um lado para o outro enquanto ele desliga e coloca o telefone
sobre uma prateleira de livros sem deixar de me encarar.
— Ok. Vamos lá. O que está rolando, Nuno?
— É, você está estranho. Por que trouxe o Eduardo até aqui?
— E por que você veio atrás? — Me aproximo de Thiago e ele ergue os
braços.
— Cara, sou seu advogado. Se acho que você está metido em treta, eu
tento te livrar.
Olho para o alto, para os detalhes incrustrados no teto de gesso. Lembro
da minha vida. Um emaranhado de caminhos sem conseguir achar a saída.
No meio das linhas, pontos surgem para me distrair. Agora, no caso,
positivamente.
— Para de convidar a Luise para sair, ok?
Eduardo empurra uma poltrona de couro marrom e se atira sobre ela.
— Você está escravizando a babá, Nuno?
— Claro que não, seu idiota.
— Então deixe a menina se divertir.
Bufo como um touro antes de admitir:
— Eu deixo. Comigo.
— Ahá! — Thiago grita e eu faço sinal para que fale mais baixo.
— Wow, wow, wow! O que temos aqui? Senhor Prado Ribeiro está
pegando a babá da filha?
Vou até a janela e olho para o jardim. Tento medir as palavras. Não sou
obrigado a explicar nada, mas não posso aceitar que Eduardo leve Luise para
sair bem debaixo do meu nariz.
— Aconteceu, ok? Não é nada demais.
— Transaram?
Puta que pariu.
— Sim.
Os dois começam a rir como dois adolescentes e fecham as mãos em
punho para um soquinho.
— Cara, eu não te falei que ele tava muito felizinho hoje?
— Bem que eu achei estranho.
— Shiu. Deu, chega, vocês dois. — Me coloco entre eles.
— Transar com aquela gata é algo demais. Não desdenhe isso, porque eu
jamais deixaria passar como uma coisa ínfima.
— E não é. Foi bom pra caralho. Como eu nunca transei. Ou estou há
tempo demais sem fazer isso. Mas, porra, ela é minha funcionária, eu estou
cheio de problemas agora. Não sei nem se ela vai querer repetir. Estou
ferrado.
— Mas você quer?
Ergo uma sobrancelha.
— O que você acha?
— Que não é nada mal repetir uma foda com uma garotinha daquelas.
Fico roxo de raiva.
— Ela não é uma garotinha.
— Ah, não? Isabel é uma garotinha e ela é mais nova que Isabel.
Engulo em seco quando me dou conta do que ele está falando. Eduardo
tem razão. Quando Luise nasceu, eu já tinha perdido a virgindade.
— Cara, eu não quero entrar em detalhes. Só estou te pedindo para não
ver a garota como mais uma das suas conquistas.
— Ok, chefe, você que manda. — Eduardo salta da poltrona e toma a
frente.
Thiago e eu andamos atrás dele de volta até a sala de estar. Assim que
abrimos a porta, todos nos olham, esperançosos.
— E aí? Conseguiram os ingressos? — Mônica sorri.
— Sim. Tudo resolvido. Teremos show no cassino.
Então o mundo fica em câmera lenta quando Eduardo caminha até Luise
e pega sua mão. Ele a beija e ela sorri desconfortável.
— Vou adorar ser a sua companhia amanhã, querida. Eu vou adorar.
27
Ane Luise
Em um dia não tenho vida social e nada decente para vestir, no outro,
estou sendo vestida por uma madame com uma de suas peças que vale mais
do que o meu — incrivelmente maravilhoso — salário. Mônica dá um passo
atrás e confere meu look pelo espelho.
Vestido branco colado, com mangas caídas nos ombros e tomara que
caia expondo meu busto de um jeito que faria minha mãe acreditar nas
fofocas das vizinhas sobre eu ter vindo à Europa para ser garota de programa.
Tirando esse toque sensual, todo o resto é muito elegante, inclusive o colar de
pérolas de Mônica preso bem justo ao meu pescoço.
— Só falta uma coroa e eu poderia dizer que você é a substituta da Lady
Di. Príncipe Harry já se casou? — ela fala, zombeteira.
— Já sim. E não faz o meu tipo. — Puxo a barra do vestido para baixo,
logo acima dos meus joelhos.
— Ah, é? E qual o seu tipo, o Eduardo?
O sorriso de Mônica se desmancha quando ela me vê ficar tensa.
— Não exatamente. Nem eu sei explicar. É até engraçado como os dois
únicos homens que tive na minha vida se parecem. Talvez esse seja o meu
tipo.
Sua mão dá uma batidinha reconfortante no meu ombro.
— Entendo perfeitamente. Meu marido é fisicamente a cópia do meu
primeiro namorado, um babaquinha que me chutou na primeira oportunidade.
Graças a Deus são diferentes em todo o resto.
Sinto uma conexão com ela e perco um pouco da vergonha de ter sido
uma boba apaixonada. Talvez um dia eu seja uma pontinha de uma mulher
como Mônica, exuberante e mãe dedicada. De resto, quero ser independente
financeiramente.
— Ainda bem que eu te peguei no corredor. Aquela sua roupa faria
Eduardo fugir. Se bem que estou começando a achar que é isso o que você
quer.
Acho graça.
— Sou assim tão fácil de ler?
— O quê? Você não faz ideia.
Mônica me coloca de frente para ela, segura em meus braços e fecha os
olhos como uma médium.
— Garota talentosa, podada pelas regras de pais dominadores, que
precisa se virar, abandonando seus sonhos em troca de fazer sobreviver a sua
essência. Acertei? — Ela abre seus enormes olhos castanhos com
alongamento de cílios
— Uau! Você é mesmo boa. Intuiu tudo isso?
Ela ri e segura meu queixo.
— É claro que não. Pesquei informações aqui e ali. Isso foi apenas para
te mostrar que precisa ficar mais atenta se não quiser cair nas garras de
predadores como o Eduardo.
Meu queixo cai e ela o levanta.
— Agora vamos. Estão todos esperando por nós.
— Só vou me despedir de Sofia.
— Nos encontramos lá embaixo então.
Caminho devagar até o quarto de Sofia porque não estou acostumada
com os saltos. Mônica me emprestou um par muito confortável, mas fora da
altura na qual costumo estar. Abro a porta e espio ali dentro. A bebê dorme
como um anjo, protegida pela companhia da avó.
— Boa noite, querida. Aproveite sua festa — a mãe de Nuno sussurra
assim que sinto uma mão enorme pressionar a minha cintura.
Olho para trás e ele está quase colado em mim, hipnotizado pelo meu
semblante.
— Boa noite, mãe. — Ele fecha a porta sem desviar o olhar da minha
boca.
— Oi — digo, trêmula.
— Era isso o que você estava fazendo enquanto eu cumpria a rotina
noturna de Sofia?
Seu olhar sério me assusta. Será que ficou irritado? Mas fui dispensada
por Sônia essa noite.
— Do que você está falando?
— Disso. — Ele olha para o meu corpo de um jeito que faz com que eu
me sinta realmente a Lady Di em uma noite em Cannes.
Nuno aperta com mais força a minha cintura e me puxa contra seu corpo.
Sinto a ereção inchada e minhas pernas falham.
— Porra, Luise, você não está facilitando para mim. Por que está tão
linda para passar a noite com Eduardo?
Abro a boca, mas penso antes de falar. Bobagem. Não vou filtrar minhas
palavras. Nuno precisa saber o quanto fiquei incomodada por ele ter
permitido que o amigo me convidasse para sair.
— Em primeiro lugar, eu não ia com essa roupa. Mônica me viu saindo
do quarto e me fez voltar. Em segundo lugar, ah, em segundo e terceiro e
milésimo lugar, fiquei muito frustrada quando você deixou Eduardo me levar
para sair. Entendo que não queira que sua família saiba que está dormindo
com uma empregada, mas achei que o que tivemos era especial. Desculpe se
me enganei e agora você está disposto a me dividir. Mas só para você saber,
sou mulher de um homem só.
Nuno gira nossos corpos com violência e choca minhas costas contra a
parede do corredor, me tirando o ar.
— É claro que você é mulher de um homem só: eu. E saiba que saí da
sala ontem para avisar o Eduardo que você era minha, mas aquele babaca
resolveu que era uma boa me zoar e ir contra o que eu falei. Mas sabe de uma
coisa? Eu não vou dar paz para aquele amigo da onça essa noite. Se ele quiser
companhia, vai ter que buscá-la debaixo de mim.
— O quê? — Olho atônita para ele e bem quando Nuno se aproxima para
me beijar, ouvimos passos se aproximando.
Ele se afasta e ajeita o cabelo. Remexe o quadril para disfarçar a ereção e
me coloco diante dele para ajudar enquanto volto a descer minha saia branca.
Por um momento, fico com medo de que minha excitação escorra pelas
coxas.
— Ah, vocês estão aí. — Eduardo aparece, sorridente.
Ele é um homem bonito. Alto, forte. Mas não tem comigo a conexão que
sinto ao lado de Nuno. Ninguém nunca teve, de fato. Nem Biel. Agora sei
que era apenas uma fantasia de adolescente e o que nos faz perder a
consciência dos atos nem sempre é o melhor para nós.
Eduardo beija minha mão e ergue meu braço, me fazendo rodar.
— Sou ou não sou um cara de sorte, Nuno?
Nuno não responde. Enfia as mãos nos bolsos e passa a língua nos
lábios. Gosto do tecido do terno que está usando hoje. É jovial e a camisa
entreaberta me faz querer ver o que já sei estar ali dentro, ao contrário da
roupa um pouco mais antiquada de Eduardo. A imagem da corrente dourada
com a cruz que Nuno carrega no pescoço me deixa excitada. O balançar dela
sobre meu corpo enquanto o tive dentro de mim.
— Eduardo, você se importa de ir na frente? Sofia está acostumada a nos
ver antes de dormir. Luise e eu já vamos descer.
Fico confusa, porque nós dois já vimos a bebê completamente caída de
sono, mas não falo nada.
— Claro. — Eduardo bate as mãos nas coxas e se vai.
Nuno espera um pouco antes de agarrar meu cotovelo. Seu olhar
desesperado me aprisiona.
— Você é minha, entendeu? Nem pense em beijá-lo. Acione o alarme de
incêndio. Buzine. Qualquer coisa. Mas não deixe Eduardo tocar em você.
Assinto com a cabeça, inebriada por ter alguém me desejando tanto.
— Agora me dê sua calcinha. Ande.
Sorrio discretamente.
— Não tenho. Mônica disse que estava marcando então eu tirei. — Ergo
um ombro e Nuno me agarra, me beijando com uma força visceral
desesperada.
Sua testa cola na minha e ficamos nos olhando.
— Ane Luise, eu quero entrar em você agora, mas não tenho camisinha.
Você se importa? Juro que estou limpo e que se você ficar grávida eu serei o
melhor pai do mundo.
As palavras dele me deixam zonza. Não. Não. Já sei como o mundo é.
Nuno parece perfeito. Responsável, apaixonado, mas não vou cair nessa de
novo. No fundo, talvez seja só mais um querendo gozar entre as minhas
pernas.
— Não. Nuno, a gente precisa conversar sobre isso, mas agora não é a
melhor hora. — Estremeço.
Desvio o rosto mas ele me puxa de volta para encará-lo.
— Ok. Você tem razão. Estou perdendo a cabeça por você.
Seu suspiro em meus cabelos é um alívio para minha mente, mas o
desgraçado do meu corpo treme como se estivesse em abstinência, desejando
contrariamente à minha razão ter Nuno se refestelando dentro de mim.
— Eu gosto que você perca a razão por nós, mas você é homem. Pode se
dar esse luxo. Eu não.
Nuno me abraça e pega na minha mão.
— Por que é mesmo que estou deixando você ir ao show com o
Eduardo?
Meu riso tímido ecoa no corredor.
— Porque não queríamos expor para toda sua família que estamos, ahn,
tendo algumas experiências juntos.
— Foda-se. Eu não ligo pra isso. Vamos lá contar a eles. O Eduardo que
ache outra companhia. — Nuno me puxa pela mão mas eu finco no chão o pé
com o salto alto de Mônica.
— Nuno, não. Calma. Ainda não é o momento. Você pode acabar
mudando de ideia e eu preciso muito desse emprego. Se ninguém souber de
nós dois e você não quiser mais, pronto. Encerramos aqui e você segue sendo
meu chefe.
— Não, não vou desistir de você. Quero contar pra minha família que
achei alguém.
Coloco minha mão em seu peito e olho para os meus dedos.
— Eu também quero contar a todo mundo, mas agora não posso. A gente
precisa se conhecer melhor, saber dos detalhes um da vida do outro. Tem
tanta coisa que preciso te contar. — Suspiro, pensando em minha ligação
para Camila há umas semanas.
— Sim. Eu também preciso te falar tantas coisas, mas só me passa pela
cabeça te colocar de costas e levantar esse seu vestido.
Sorrio.
— Viu? Temos que fazer muito disso antes de podermos contar a alguém
sobre nós. E temos que conversar muito mais antes de deixar de lado a
camisinha, ok?
Nuno me olha do jeito do pecado. Quente, louco, sem medo.
— Posso não concordar, mas vou aceitar. Me sinto um garotinho com a
metade da minha idade, Alu, mas vou confessar: a ideia de te engravidar e te
ter para mim pelo resto da vida quase me faz gozar nas calças.
Meu peito vibra. Parece que o destino quer pregar uma peça em mim.
Testar se vou me deixar cair outra vez numa armadilha. Deixar de lado minha
razão e agir na emoção.
Acontece que não posso. Dessa vez eu não tenho escolha. Primeiro
preciso recuperar o que é meu.
28
Ane Luise
Descemos dos carros diante do Vilamoura Cassino, contornado de luzes
amarelas e um enorme letreiro em neon com o seu nome. Palmeiras
iluminadas indicam o trajeto até a porta de entrada e fico embasbacada
olhando para cada detalhe. Eduardo para ao meu lado e não sei se o seu braço
sobre os meus ombros causa mais calafrios em mim ou em Nuno. Seguro o
riso. A cara dele é impagável.
Funcionários nos recepcionam, inclinando suas cabeças para Nuno e sua
família como se eles fossem da realeza. Sinto ferver em mim o ritmo do
lugar, a música, as dezenas de pessoas circulando com bebidas e risadas em
uma noite onde ambas não têm limites.
— Isso é incrível. Quero jogar. — Me atiro sobre uma máquina piscante
e barulhenta, talvez mais para me livrar do contato com Eduardo do que por
interesse pelas apostas.
— Deixa que eu te mostro. — Nuno me entrega uma ficha e segura
minha mão, a levando até a abertura onde inserimos juntos a moedinha
plástica colorida.
A energia dele somada à minha é um vórtice da qual não consigo fugir,
ficando presa em seu olhar. Seu quadril roça no meu quando se posiciona
atrás de mim e me conduz até a manivela que puxamos juntos. As fileiras de
letreiros com desenhos de frutas ou joias na máquina se movimentam até que
os desenhos virem um borrão. A boca de Nuno toca a minha orelha e me
arrepio.
— Apostar aqui é fácil. Quero ver é colocar todas as fichas no amor —
ele sussurra.
Cerro os olhos e posso ver estrelas, ouvir anjos, sentir o paraíso. Por que
isso está acontecendo comigo? Mereço tanto? Viro o rosto na direção do dele
e sinto o calor saído de seus lábios, a mistura com o meu.
— Nuno, estamos indo rápido demais.
— Eu sei. E não posso esperar. Te quero, Ane.
A máquina de apostas emite um ruído estridente e um monte de moedas
começa a cair. É tanto que elas cobrem os meus pés. Isabel grita e Lili bate
palminhas. As duas se enfiam entre Nuno e eu, quebrando nossa sintonia e
passando potes plásticos de mão em mão na tentativa de conter o fluxo de
moedas.
— Mas olha, estou com uma companhia de sorte hoje à noite. Acho que
Ane pode me deixar rico na roleta mais tarde. — Eduardo surge e se
engancha em meu cotovelo.
Dou um sorriso amarelo e olho para o chão quando Nuno joga a cabeça
para trás, indignado.
— Sorte no jogo, azar no amor — murmuro para Eduardo e todos riem.
— Acho melhor irmos de uma vez. O show já vai começar — Mônica
fala para a irmã e a sobrinha quando vê as duas tentando conter o mar de
moedas que ganhei.
— Deixem isso aí. Vocês não precisam. Agora vamos — Nuno ordena e
abre o caminho até o salão de eventos, mas é interceptado por um homem
enorme e marrento.
A cara de mau logo vira um sorriso e ele e Nuno trocam um
cumprimento estalado que chega a doer em mim.
— Cara, eu não sabia que você estaria em Portugal — Nuno diz.
Os dois se abraçam enquanto analiso quantas pessoas diferentes ele deve
conhecer em essa sua vida agitada de CEO de cassinos.
— Olívia veio se apresentar. Vai dançar no show de hoje à noite aqui no
cassino.
— Que legal. Eu lembro dela. É uma dançarina incrível, cheia de talento.
Vocês lembram do Dante[xxi]? Ele é lutador de MMA. — Nuno indica com a
cabeça para nós.
— Claro que sim. — Isabel se atira para um abraço caloroso, deixando o
enorme lutador constrangido.
Trocamos apertos de mão e breves palavras até que ele olha para o
relógio do celular.
— Bom, está na hora de ir. Se eu perder a entrada de Olívia, ela me mata
— Dante fala e acho fofo como um cara do tamanho do dele pode se deixar
intimidar por uma garota por quem é apaixonado.
Seguimos para o salão de eventos com ele e logo tomamos nossos
caminhos em separado. Tudo é lindo e luxuoso. O piso acarpetado, a
iluminação baixa. Paramos na zona VIP e nos acomodamos. Eduardo do meu
lado esquerdo, Thiago e Isabel ao lado direito, com uma Marta emburrada
por algum motivo desconhecido em seu encalço. Me remexo e tento disfarçar
todas as vezes em que a minha cabeça gira à procura de Nuno. Meu peito
murcha quando o vejo longe, mas em um lugar onde nossos olhares podem se
cruzar.
As luzes se apagam e o burburinho da plateia acaba, prendo a respiração.
Vem na minha mente a vida de seis meses atrás.
Os banhos gelados porque meus colegas de apartamento acabavam com
a água aquecida do boiler antes de eu chegar do serviço. As roupas de
trabalho cheirando a fritura até que eu conseguisse juntar dinheiro pra mandar
lavar e secar no mesmo dia.
Acordar com uma gota de umidade pingando fria na bochecha, vinda de
um jardim de mofo no teto sobre a minha cabeça. Mas nada disso era grave.
As memórias mais fortes são as do vazio da minha alma. A nuca no
travesseiro, a mente focada em trabalhar até restabelecer a vida. Aquela
mesma que despedacei em caquinhos. É difícil não chorar.
Uma voz me toca fundo e me pega de surpresa, revirando tudo o que já
senti um dia. Vitor Kley começa a cantar ainda no escuro:
— Fazia tempo que não sentia o meu peito bater. Daquele jeito, de
levantar a camiseta.[xxii]
É inevitável. Nuno me observa com tanta intensidade que chama meu
olhar. Sinto queimar o rosto e um sorriso me escapa.
Um holofote no palco se acende, revelando o garoto loiro. As mulheres
da plateia vão à loucura e gritam pelo cantor. Por dentro, eu grito também,
mas por Nuno.
— Fazia tempo que não queria alguém com tanto querer. Daquele jeito,
de avermelhar até a bochecha. Ainda bem que chegou [xxiii]— ele canta
enquanto dedilha seu violão.
— Você. — Nuno faz com os lábios e estremeço.
Música vem, música vai. Eduardo bate palmas, canta, me deixa
envergonhada e me faz rir em segredo com Nuno.
Então a melodia muda e não consigo mais segurar ao ouvir as palavras.
— Um dia me disseram que nada vai adiantar. Que o mundo tá perdido
e não sai do lugar. Pena de quem acreditou. Se a gente existe, ainda existe o
amor. Então eu te quero muito bem. Quero te amar sem medo. Sorrir sem
saber por quê. O amor é o segredo que falta a gente entender.[xxiv]
Uma lágrima fugitiva percorre a maçã do meu rosto. Pisco e vejo a
surpresa na expressão de Nuno. Ele baixa a cabeça e digita em seu celular.
Instantes depois, o meu vibra na bolsa. Olho a mensagem ainda ali dentro
para não chamar a atenção.
NUNO: Um dia me disseram que a razão vence o coração. Que não vale
arriscar uma nova paixão.
Ele repete o trecho da música que Vitor Kley toca para nós. Mas não
para por aí. Recebo uma nova mensagem sua.
NUNO: Estavam errados.
NUNO: Foda-se.
NUNO: Ane Luise Macedônia. Saia daí agora e me encontre no
corredor.
Mordo a boca bem, mas bem forte pra ver se estou acordada ou
sonhando. Dói muito e nunca gostei tanto disso. Ótimo. Estou acordada.
— Vou ao banheiro — sussurro para Eduardo.
Imerso na música, ele assente com a cabeça e continua batendo palmas.
Fujo no escuro, apertando as coxas em excitação, medo, ansiedade.
Olho para todos os lados, confusa com a escuridão, à procura de Nuno,
nervosa, em dúvida. Não por ele, mas pelo temor de me entregar à uma
loucura do coração outra vez. O que estou fazendo? Ah, céus, quero tanto
recuperar a minha vida, mas quero — preciso — ser feliz.
Saio do salão de eventos e chego ao corredor ainda pouco iluminado.
Ando sem saber para onde ir, meus olhos tentando se acostumar até que sinto
a pressão na cintura, as mãos quentes dele me girando e me pressionando
contra a parede do corredor vazio.
— Eu sou homem o suficiente para te dizer que estou caindo, estou
caindo de paixão por você, Ane Luise. E eu juro por Deus que nunca mais te
deixarei sair com outro cara. Você é minha. — Sua voz rouca reverbera em
meu ouvido enquanto os lábios se perdem em beijos na minha pele.
— Nuno...
— Minha.
Ele morde meu ombro e fecho os olhos. A mão desliza até a barra do
vestido e sinto seus dedos buscando desesperados pelo contato com a minha
intimidade.
— Nuno, é sério, precisamos conversar.
— Nós vamos. Muito. Durante a vida toda. — Ele intercala palavras e
beijos.
— Eu não sei...
Ele para e me analisa. Tira as mãos de mim e as apoia na parede, ao lado
da minha cabeça.
— Você não quer? Não vou te forçar, Ane.
Suspiro. Como explicar a ele? Como dizer que estou trabalhando em sua
casa, cuidando de sua filha, mas que pretendo ir embora assim que tiver
dinheiro o suficiente para voltar ao Brasil e terminar a faculdade? Que
revalidar as cadeiras que fiz no Brasil e terminar o curso aqui levaria anos?
Tenho vontade de gritar tudo isso, mas, se eu contar, ele pode me demitir e
todos os meus planos vão por água abaixo.
— Claro que eu quero, só acho que estamos indo com muita sede ao
pote. Você não me conhece. Eu não te conheço. Não quero que se
decepcione. Eu tenho um passado.
Nuno cerra as pálpebras e cheira minha cabeça, a apertando com a mão e
bagunçando meus cabelos.
— Por favor, não me diga que você ainda está apaixonada por aquele
cara por quem veio atrás.
A agonia nele me deixa zonza. Esse cara lindo e poderoso realmente está
a fim de mim.
— Não. Claro que não. Só que talvez eu não seja essa Ane inocente e
ingênua que você pensa que sou.
— Já te fiz essa pergunta, mas, para garantir, vou repeti-la. Devo me
preocupar com a segurança de Sofia? — Ele se afasta sorrindo.
— Nuno, não zombe. Não sou perigosa, mas não sou santa.
— Ótimo. O que pretendo fazer com você não se encaixa com a imagem
de uma santa.
— Estou falando sério.
— Eu também.
Solto o ar. Não é o momento de falar a verdade para ele.
— Mais cedo ou mais tarde a gente vai ter que conversar.
— Ótimo. Acho justo. Agora me deixa te mostrar meu escritório, já que
quer tanto que saibamos mais um do outro antes de seguir em frente.
Sorrio e alivio a tensão nos ombros.
— Ok. Está bem.
Nuno me conduz pela mão por uma área de acesso apenas para
funcionários. Volta e meia ele passa os olhos pelo meu corpo.
— O que foi?
— Estou sofrendo — ele diz, lambendo os lábios.
— Por quê?
— Por saber que a mulher mais linda do mundo está ao meu lado sem
calcinha e não estou dentro dela.
— Nuno...
Paramos diante de uma porta de vidro e ele me envolve em seus braços.
Seus beijos são maravilhosos, mas não sei explicar o poder que apenas
encostarmos nossas bocas uma na outra e ficarmos nos olhando tem sobre
mim.
— Chegamos.
Nuno não me solta para abrir a porta. Ele não acende a luz e vejo apenas
pontos piscantes dos computadores e equipamentos eletrônicos enquanto
passamos por várias mesas.
— É daqui que absorvo o mundo — ele diz quando baixa outra
maçaneta. — E é aqui que vou absorver você.
29
Ane Luise
Nuno fecha a porta e fico paralisada, observando a vista da sala dele. A
lua, o céu, o mar. Agora entendo o que quis dizer com absorver o mundo
daqui. Está escuro lá fora e meus olhos estão presos nas estrelas piscantes, no
reflexo prateado das ondas. Pouco vejo pelo caminho no escritório, mas Nuno
se encaixa em mim por trás e coordena meus passos até tocarmos sua mesa.
— Nunca gostei do modo como as pessoas se vulnerabilizam durante o
sexo, por isso, sempre mantive os olhos fechados — ele diz, me virando.
— Mas eles estavam abertos quando nós dois...
— Fizemos amor — ele completa, roçando o polegar em meus lábios.
Perco as palavras enquanto seus dedos passeiam em meu rosto, acariciam
meus cabelos até desprendê-los. Sinto a cascata de fios fazendo cócegas em
minhas costas.
— Não foi a primeira vez que tentei, digo, abrir os olhos. Mas foi a única
em que permaneci assim.
Sua boca toca a minha e nossas línguas se entrelaçam. Nuno não para de
me beijar enquanto se curva sobre meu corpo, me deitando em sua mesa,
empurrando tudo para o chão. Abro os olhos de repente e ele está me
encarando, preso em mim e mantendo sua luta para despir o casaco e o colete
do terno sem deixar de ter seus lábios nos meus.
Nuno abre as calças e o desespero para entrar logo em mim é palpável.
Seus dedos longos descem com o zíper do vestido e depois se espalham por
meu quadril, me apertando forte. Minhas mãos deslizam pelas costas dele e
puxam sua camisa.
Nuno levanta os braços para que eu a tire. Deslizo as unhas por seu peito,
traçando cada detalhe dos músculos. Nuno me puxa, pressionando suas
palmas nas minhas costas, me fazendo arqueá-las. Então finalmente paramos
de nos beijar para que ele possa baixar sua boca até o meu seio e deslizar a
língua pelo meu mamilo. Gemo alto quando o cobre com seus lábios e o
suga. Dobro os joelhos e o enlaço com as pernas em sua cintura.
Enquanto endireita o corpo para ficar em pé. Nuno percorre meu corpo
com as mãos como se analisasse uma obra de arte.
— É tarde demais, Luise. Estou apaixonado.
Sorrio.
— Nuno, apenas entre em mim de uma vez. Não aguento mais esperar —
imploro, rouca.
A malícia em seu olhar me faz abrir as pernas por impulso, mas ele
segura minhas coxas apertadas contra seu corpo. Quando vejo, está rasgando
o pacote de camisinha com os dentes.
Puxo o elástico da cueca boxer para libertar o que me interessa e suas
calças caem, sendo chutadas por ele para longe. A tensão da pele, o calor que
emana do meio das suas pernas, ambos me sugam para um vórtice de desejo.
Não quero parar de olhar para o rosto dele, mas observar enquanto
desenrola a camisinha é excitante ao extremo.
— Você não sabe o que causa em mim — ele diz e me faz sorrir, pois eu
sei sim.
Deve ser o mesmo que faz comigo.
Sua outra mão ergue meu quadril enquanto se posiciona com o dele
contra mim. Nuno segura em meu ombro e nós dois prendemos o ar ao
mesmo tempo.
Estou tão molhada que não há atrito. Assim que está todo dentro do meu
corpo, suas mãos apertam minhas costas, me puxando contra ele.
— Olho no olho — balbucia e posso ver como luta para soltar as
palavras.
— Peito com peito — sussurro.
— Não. Coração com coração.
— Mas agora quero sexo com sexo, Nuno — peço, desesperada por ele.
— Você que manda.
Sua boca beija meu pescoço, me morde, chupa, mas estou presa no modo
como passa a investir em mim, forte, decidido, intenso. Os pés da mesa
rangem de um lado para o outro.
— Você vai marcar o chão.
— E vou sorrir a cada vez que ver essa marca e me lembrar de como é
bom fazer amor com você — ele fala, entrando ainda mais fundo em mim,
roçando seu púbis no lugar onde, se ele continuar fazendo isso, vou explodir
de prazer.
Nossos corpos se movimentam em sincronia, rápidos, batendo forte em
conjunto, num ritmo frenético que dura minutos, mas, para mim, não existe
mais tempo.
— Quero gozar com você — Nuno fala ainda colado à minha boca.
As palavras reverberam abaixo do meu umbigo e faço uma força enorme
para me segurar. Olho no olho. Coração com coração. Quero gozar com
você.
Cretino, não pode continuar me falando coisas assim se não quer que eu
goze. Tento responder que sim, vou me esforçar para segurar e deixar vir
somente quando ele estiver pronto, mas não consigo formular uma resposta
decente, então apenas solto um grunhido.
— Isso quer dizer sim?
Concordo com a cabeça e ele me beija, empolgado.
— Ok. Parece que você está pronta.
Pronta? Eu já estou muito além. Começo a me preocupar se vou
sobreviver a isso.
É estranho pensar em Biel agora, mas me vem em mente que, com ele,
eu me sentia despedaçar, partir ao meio e deixar de ser eu para tentar ser
quem ele desejava que eu fosse. Com Nuno, imagino todas as partes
quebradas em mim se sentindo confortáveis para se unirem, voltarem a
formar quem eu sou e mostrar isso ao mundo. Vem de dentro, uma sensação
tal qual uma ânsia, forte, convulsiva, de resgatar meu corpo, minha essência.
— Não aguento mais. Vou gozar, Luise — Nuno diz o que eu já havia
sentido, com sua velocidade e rigidez aumentando.
— Ok — é o máximo que consigo responder.
Deixo vir tudo. A pressão em minhas extremidades encontra caminho até
meu clitóris. Enquanto Nuno urra e deixa rolar os olhos, jogo a cabeça para
trás e encontro no universo um lugar só nosso, um ponto onde não existimos
fisicamente, onde somos apenas sensações.
Suados e arfantes, nos pegamos gargalhando. Ele com a cabeça deitada
no meu peito. Eu, com a mão brincando em seus cabelos.
— Promete que assim que possível vai tomar anticoncepcional? Preciso
sentir como é me derramar em você.
Fico tensa. Sei que ele quer aumentar a intimidade entre nós, mas sei
também que ainda não é o momento. Não tenho um euro furado pra me
garantir se esse sonho virar um pesadelo e já tendo vivido isso, sei que não é
nada impossível.
Arrasto o quadril para trás sobre a mesa. Nuno escorrega para fora de
mim e tira a camisinha, que amarra e joga no lixo.
— Nuno, meu corpo inteiro está contra mim. Meu íntimo deseja te sentir
escorrer entre as minhas pernas, mas calma. Tudo tem seu tempo. Vou pensar
na possibilidade de tomar pílula, mas já te disse que precisamos nos conhecer
melhor, temos muito o que conversar, dois mundos inteiros para descobrir um
sobre o outro — falo, colocando seu rosto entre minhas mãos.
Ele beija meus dedos, sobe pelo pulso e franze a testa ao me olhar.
— Desculpe, estou tão ansioso. Parece que preciso correr atrás do tempo.
Que agora achei o motivo de viver e há muito a aproveitar ao seu lado. Por
mim, saíamos daqui agora e contávamos pra minha família que estamos
juntos.
— Ah, meu Deus. Sua família. Eduardo.
Pulo para fora da mesa e cato meu vestido no escuro. Nuno me enlaça e
me coloca de frente para ele.
— Eu praticamente te pedi em casamento e você fingiu que não ouviu.
Que mulher difícil que arranjei.
Dou uma gargalhada e um selinho nele.
— Não posso negar que não sou fácil. Agora ande, vista essa roupa antes
que eu engula tudo o que acabei de dizer e sente em você.
Ele ergue uma sobrancelha e solta o ar pelo nariz. Seus braços se
levantam e Nuno gira devagar, mostrando o corpo lindamente esculpido.
— Tudo seu, baby.
Não consigo tirar os olhos do seu pênis, rijo e teimoso, esperando que eu
faça o que disse. Gosto do modo como balança enquanto ele caminha.
Pulo dentro do vestido e dou as costas a Nuno.
— Feche o zíper.
— Claro. Mas é uma pena.
Ele se aproxima e encaixa o sexo por dentro da minha roupa, se
esfregando nas minhas nádegas enquanto morde meu pescoço e fecha o
vestido.
— Só mais um pouco, Alu.
— Vou passar a noite aqui desse jeito. Você nunca vê fim.
— Com você? Impossível — ele diz, passando os braços pela minha
cintura e me embalando de um lado para o outro.
Fecho os olhos e sorrio.
— Mas agora temos que ir. O show já deve estar acabando e vão sentir
nossa falta. Sofia precisa de nós. Não podemos nos atrasar.
— Ora, ora, olha quem está me chamando à razão. A senhorita
atrapalhada.
— Sim, Senhor Psicopata Sexy.
— Parece que alguém aqui tem tanto medo de compromisso que até
assume seu improvável lado controlador.
Sou girada em seus braços e ganho um beijo no nariz.
— Não vá achando que vai ser fácil. Vou te ter para mim, Ane. Tome o
tempo que precisar, mas vou te ter para mim.
30
Nuno
Nem quando estava tentando engravidar Raquel eu fazia tanto sexo
quanto tenho feito agora. Meu irmão Diniz ainda não apareceu e não sei onde
estava com a cabeça quando fiz de tudo para impedir minha família de vir
para a mansão. Adoraria se minha mãe ficasse, com sua atenção desmedida
por Sofia, banhos dados por ela, passeios pela praia com a tia Mônica, noites
embaladas pelos colos das mulheres da família.
Enquanto isso, carrego em meus braços o corpo febril de Luise. Ontem
ela reclamou. Disse que estava dolorida. Perguntei se queria fazer uma pausa,
mas se atirou em meus braços e beijou meu pescoço até me ver duro, o que
aconteceu bem rápido.
Eu já tenho algumas certezas sobre essas últimas semanas. A principal é
que quero muito mais de Luise do que ela está me dando. A questão é que
logo que tento entrar no assunto, ela foge.
É difícil para mim não pensar nisso. Já não durmo mais. Ela deita a
cabeça em meu peito e fecha os olhos. Acaricio seus cabelos e fito o teto,
pensando no dia de amanhã. Calculando o que vai acontecer quando Diniz
chegar para assinar o contrato e toda a minha família for embora. Quando
Luise voltar a ser apenas uma babá, como ela mesma diz. Mas não é o que
quero.
Já fizemos sexo na cozinha, de madrugada. Na biblioteca. No meu
banheiro e no dela. Também fugimos para a praia. Consegui escapar de
Tenório e Jorge e a possuí no banco de trás do meu carro, de frente para o
mar. Sempre que acabamos, começo a puxar o assunto. Falo sobre contarmos,
sobre ela ser a senhora Prado Ribeiro. Sobre o modo como meu amigo
Eduardo a convidou para sair aquela noite no cassino só para que eu me desse
conta do quanto estava apaixonado e ciumento, sobre pararmos de fugir e nos
esconder de nem sei o quê. Luise desconversa, faz piada.
Aí, no dia seguinte, penso mais ainda sobre o assunto. Olho para o chão
marcado do nosso sexo em meu escritório. Lembro de nós e do modo como
estamos vivendo nosso amor. Minha cabeça fica um turbilhão. Sinto raiva do
cara que quebrou seu coração. O odeio e ponho toda a culpa nele. Imagino
que seja a origem dos medos de Luise, das desconfianças.
Quando vou para o trabalho, penso sobre nosso futuro. Sentado na minha
mesa, reflito sobre o assunto. Na mesa do jantar, olho para ela furtivamente e
penso nisso.
Agora, deitado na minha cama, duas da manhã, nós dois nus e Luise
aninhada em meu colo, não paro de pensar em uma maneira de iniciar o
assunto com ela. Pesa muito para mim saber se sentimos a mesma coisa um
pelo outro. Talvez seja isso. Ela até gosta de estar comigo, mas não nos vê
como um casal. Não decido perguntar, mas as palavras escapam da minha
boca, como se estivessem apertadas e ansiosas por uma resposta:
— Você gosta de mim?
Luise levanta o queixo e seus olhos verdes me analisam. São segundos
de uma tensão que chega a doer em meu peito.
— Lógico. Que pergunta.
Ajeito o quadril, me sentando na cama e a puxando comigo. O lençol
vem junto, colado às suas curvas.
— Ok. Vou reformular. Você gosta de mim a ponto de assumir isso ou
gosta de mim apenas o suficiente para deslizar sorrateiramente até a minha
cama nas madrugadas?
Ela vira o rosto, iluminado pela luz da lua entrando pela janela. Sei que
está prestes a inventar alguma desculpa. Conheço essa expressão. É ela
tentando pensar em um jeito de não me dar falsas esperanças e nem acabar de
vez com tudo o que temos.
Por favor, Luise, não faça isso comigo. Responda que quer nos assumir.
Me sinto um idiota. Por que não posso ver nossa relação como só sexo,
reagir como ela reage a nós dois, sem ansiedade sobre o amanhã?
— Faz amor comigo, Nuno — Luise murmura, girando o corpo e
montando em mim.
Afasto os cabelos caídos em suas costas e me proíbo de beijar seu
ombro, descer por seus seios e entrar no corpo dela. Não. Serei forte dessa
vez. Não suporto mais. Vou enlouquecer se Luise não for objetiva.
— Faço. Agora. Amanhã. Depois de amanhã. Mês que vem e para
sempre. Mas só se você me disser que aceita ser minha namorada. A decisão
é sua.
Luise ri. Porra, como consegue levar na brincadeira o que está
despedaçando a minha mente?
— Ah, Senhor Psicopata, aceito ser sua namorada. Só que com uma
condição: não podemos contar para ninguém. — Seu indicador desliza por
meu peito, fazendo voltas pelos meus músculos.
Seguro o rosto dela e a encaro, sério. Luise força um sorriso.
— Não. Chega. Pra mim deu, Luise. — Tiro o corpo dela de cima do
meu e me levanto.
Pulo dentro das calças do pijama, nada surpreso com a minha irritação.
Até demorou demais para ela surgir. Talvez tenha escapado nas tantas
sessões de sexo que tenho tido nos últimos dias.
— Nuno, desculpe. Não fique irritado. Eu gosto de você, óbvio. Estou
tendo dias incríveis ao seu lado, mas ainda é cedo. Mal nos conhecemos.
— É? Para mim é como se eu te conhecesse desde sempre. Nunca senti
isso, mas, pelo jeito, estou sozinho nesse barco. Porra, Luise, eu não gosto de
você — falo alto demais e vejo o medo em seu olhar.
Ela observa a porta e meu coração se parte. Luise não está magoada por
eu falar que não gosto dela, está preocupada com a possibilidade de alguém
entrar e flagrá-la nua, sentada sobre os tornozelos, envolvida pelos lençóis da
minha cama.
— Você está me fazendo mais mal do que bem. Acabei de falar que não
gosto de você e sua reação é olhar para a porta?
Luise deixa cair os braços ao lado do corpo e suspira.
— Nuno, estou tão acostumada às pessoas deixarem de gostar de mim
que talvez isso não tenha sido um choque. Desculpe se meu coração está
tentando se proteger. Meus pais deixaram de gostar de mim quando mostrei
que não era como eles imaginavam. O cara por quem eu era apaixonada
deixou de gostar de mim quando eu apareci atrás dele. Não é nada estranho
para mim que você diga que acabou. Eu já esperava por isso. Só te imploro,
me deixe continuar trabalhando.
Esfrego o rosto, me odiando pelo que acabei de ver: Luise se
martirizando pela falta de amor em todos os lados da sua vida. Não era isso
que pretendia.
Subo na cama e a abraço quando uma lágrima percorre lentamente sua
bochecha. Enrolo Luise nos lençóis, fazendo um casulo para nós dois.
— Eu não gosto de você — murmuro.
— Ok. Já entendi. — Ela funga e esfrega o nariz.
— Eu não gosto de você, porque eu te amo — explico e ela fica pasma.
Seus olhos se apertam e Luise chora mais ainda. Droga. Estou fazendo
tudo errado, pelo jeito.
— Nuno, eu também te amo. Você não sabe o quanto. Sinto muito te
fazer passar por isso. Sei que já está de saco cheio das minhas desculpas, do
modo como evito o assunto, mas não estou pronta. Não é você. Sou eu.
Fecho os olhos por uns instantes e, quando a encaro, coloco para trás das
suas orelhas os seus cabelos loiros, embaraçados após o nosso sexo.
— Você ainda gosta daquele cara?
— Não. Claro que não. Eu só... eu só preciso organizar umas coisas na
minha vida. Tem uma situação, uma coisa complicada. Ainda não posso falar
sobre isso.
— Por que, Luise? Você pode falar tudo. Confie em mim. Eu vou te
ajudar.
Seus dentes se cravam nos lábios e vejo a desconfiança estampada em
seu rosto.
— Você não entende, Nuno. Você não me conhece o suficiente para me
assumir. Não sou essa pessoa perfeita que está imaginando.
— Meu amor, eu imagino que o amor tenha mostrado seu pior lado para
você, mas não pode fugir dele pelo resto da vida.
Luise se desvencilha de mim, lutando com o lençol e pulando da cama.
Ela joga a camisola por cima da cabeça e a ajeita no corpo.
— Melhor eu ir, Nuno.
— Por favor, Luise. Me deixa saber mais de você então, se é isso que
está faltando para nós — peço, unindo as palmas das mãos.
— Vamos conversar melhor sobre isso depois.
— Não quero depois. Quero agora. Será que não está entendendo? Você
está me deixando louco.
— Não vou insistir. Se não quiser ficar comigo assim como estamos, só
te peço para me deixar continuando trabalhar aqui — ela diz sem olhar para
mim.
— Luise... — Estendo os braços e tento impedi-la, mas ela escorre por
entre meus dedos e desaparece pelo corredor, levando consigo o meu
coração.
31
Nuno
Procuro Luise pela casa e não a encontro. Volto ao seu quarto pensando
em me deitar em sua cama e ser sua surpresa quando voltar. Uma visão do
seu lindo rosto sorridente surge para mim. Deve estar na praia com Sofia ou
caminhando pela propriedade. Vou esperá-la. Quero consertar o que houve
ontem. Tentar me abrir para sabermos mais um sobre o outro. Tive até uma
ideia: uma lista com detalhes nossos. Afinal, não precisamos esperar uma
vida inteira para nos conhecermos melhor, como ela tanto insiste em dizer.
Não consigo parar de reviver nossa discussão durante a madrugada. Eu
só queria que ela se abrisse para o nosso amor, mas Luise acabou se fechando
completamente. Ah, como estou arrependido.
Não foi a mesma coisa acordar sem ela ao meu lado essa manhã. Senti
falta das suas mãos ensaboando minhas costas durante o banho, de vê-la
desfilar pelo meu quarto com uma das minhas camisas, da sua fuga nas
pontas dos pés de volta para o seu quarto.
Sento no colchão e penso que precisamos comprar melhores. Se ela não
quer dividir a minha cama comigo, vou fazer de Luise uma princesa mesmo
assim. Me jogo para trás com as mãos na nuca e algo farfalha debaixo do
travesseiro, que levanto quando me sento outra vez, atento ao que acabo de
encontrar.
Desenhos? Lindos desenhos.
Sofia. Flores. Eu. A casa. Eu. Roupas. Eu de novo.
Difícil conter um sorriso. Analiso um por um e volto ao começo. Não
sou um entendido de arte, mas essa garota tem talento. Como nunca a vi
desenhando ou a ouvi falar no assunto?
Olho para sua escrivaninha e abro a gaveta em busca de mais. Nada de
folhas, apenas o iPad. Será que ela desenha nele também? Pego o aparelho e
aperto o botão redondo. As notificações aparecem e meu peito se agita. Há
um novo e-mail pessoal de Camila, a prima na qual Luise fala às vezes.
Digito a senha e algo me diz que o que estou fazendo é errado. Reviro os
aplicativos de desenho e não encontro nada.
Bloqueio a tela e fico olhando para o iPad. O e-mail pessoal de Luise não
me sai da cabeça, principalmente aquele que encontrei semanas atrás e que ia
começar a ler quando fui interrompido. Queria saber mais de Luise, como ela
mesma diz que precisamos saber um do outro, mas ela é tão fechada sobre
seu passado. É de um sorriso aberto e energia que me atingem em cheio, mas
de sua antiga vida não fala muita coisa.
Droga. Só vou olhar um pouquinho. Um pouquinho.
Abro o aplicativo de e-mails e percebo não haver quase nada. O antigo
que quase li e um novo. Vou direto ao primeiro. Meus olhos percorrem as
linhas e param na frase avassaladora: Imagino que ninguém fique bem
quando faz um aborto.
Aborto.
Merda.
Ouço um ruído e ergo o rosto bem na hora em que Luise abre a porta do
seu quarto e me pega sentado em sua cama, revirada com seus desenhos, não
exatamente sexy e esperando por ela como eu tinha imaginado, mas
esmiuçando sua vida como um psicopata.
— Nuno?
— Luise! — Me levanto num salto e deixo o iPad na cama.
— O que você está fazendo? — Ela se atira sobre os papéis com seus
desenhos e os junta sem se importar se os está amassando.
Luise coloca tudo de volta debaixo do travesseiro e apoia as mãos na
cintura. Então ela percebe o iPad, que permanece aberto em seu e-mail.
— Nuno, o que você fez?
— Nada. Me desculpa. Eu só queria te fazer uma surpresa. Entrei aqui e
me deitei na sua cama quando encontrei esses papéis — falo, exasperado e
passando as mãos nos cabelos.
— E então achou que encontraria mais nos meus e-mails?
Merda. Ela está furiosa e vai me matar.
Ignoro. Está me sufocando pensar em tudo o que Luise passou. Preciso
saber o que a trouxe até aqui. Não é possível que alguém tão talentosa esteja
desperdiçando sua vida assim. A possibilidade de ela ainda estar atrás do cara
por quem era apaixonada e não se abrir mais comigo por causa disso me
deixa desesperado, mas o fato de que Luise pode estar jogando toda sua vida
fora por causa do erro de um babaca é o que me mata.
— Luise, você fez um aborto? — Minha voz sai rouca e minha mão
instintivamente tenta tocar o rosto dela.
Luise recua como se tivesse medo de mim.
— Quem te deu o direito de mexer nas minhas coisas?
Passo a mão nos cabelos e então a encaro. Quero colocá-la no meu peito,
lhe dar o amor que alguém tirou.
— Eu sei que não sou o seu dono e não estou aqui para te julgar. Se você
fez isso por vontade própria, ótimo, mas se você me disser que veio para esse
país atrás de um filho da puta que te obrigou a fazer isso, Luise, eu vou matar
esse desgraçado — digo, fechando as mãos em punho ao me imaginar com o
colarinho de um cretino preso entre os dedos.
— Você não precisa fazer isso. Eu sei me cuidar.
— E eu sei disso, mas me diga, pelo amor de Deus.
— Para quê? Você vai me demitir? — Seu olhar fica preocupado,
beirando o desespero que imagino que ela não queria me deixar notar.
— Por que eu faria isso, santo Deus?
— Quem em sã consciência deixaria uma pessoa que fez um aborto
cuidar do seu bebê?
Solto o ar pelo nariz. Estou com calor. Muito calor. Essa conversa está
me deixando cada vez mais puto. Não consigo parar de pensar que Luise
esteve nos braços de um desgraçado um dia. Desabotoo o casaco do terno e
chego perto dela. Luise tenta recuar, mas fica encurralada contra a parede.
Olho em seus olhos e falo com firmeza:
— Você acha que eu sou assim tão preconceituoso? Você é uma mulher
livre. O corpo é seu. Não entendo como uma garota tão jovem e cheia de vida
tem uns pensamentos retrógrados desses.
— Talvez seja por ter sido criada em uma família moralista e contra tudo
o que eu já decidi nessa vida. — Ela desvia o olhar para o chão, mas seguro
seu rosto para que me encare.
— Então esqueça isso. Deixe a porra do seu passado para trás e fique
comigo.
Por um segundo, penso que minhas palavras são a coisa mais bonita que
eu já disse e que as lágrimas que brotam de Luise são de alegria, mas logo
seus ombros balançam freneticamente e começo a acreditar que disse algo
errado.
— Eu não posso. Você não entende. Eu não podia te contar ou você não
me contrataria e eu preciso muito desse emprego.
— Você não precisa contar sobre o aborto para ninguém. Me desculpe.
Eu fui um metido, curioso. Estava desesperado para saber mais de você e
fiquei frustrado quando encontrei esses desenhos que nunca te vi fazer. Me
senti totalmente à parte da sua vida.
Luise seca os olhos e balança a cabeça.
— Não. Não é disso que estou falando. Eu não podia contar nada por que
eu vou embora.
Arquejo como se tivesse levado um soco no estômago. Dou um passo
para trás, zonzo por causa das suas palavras.
— O quê?
Ela funga e me olha com seus cílios molhados.
— Eu tenho que voltar. Preciso terminar a faculdade e ter uma profissão.
Esses desenhos são uma bobagem e não vão me trazer nada de concreto na
vida. Faz tempo que parei de gastar energia com isso.
Pego as folhas de volta e as sacudo no ar.
— Mas os desenhos são recentes. Aqui estão eu e Sofia. A casa, o
jardim. — Mostro um por um a ela, que continua balançando a cabeça.
— Sim. É uma luta tirar isso de mim, mas eu não posso. Tenho que
focar. Juntar dinheiro e ser uma pessoa organizada, compromissada. Preciso
deixar de lado essas bobagens.
— Luise, pelo amor de Deus. Você mesma me disse que sua família não
te deseja de volta depois de ter largado tudo para vir a Portugal atrás desse...
desse escroto que te usou e te largou com um filho na barriga.
Minhas palavras fazem Luise desabar no choro. Ela leva os punhos à
cabeça como se não quisesse me ouvir.
Puta merda, o que estou fazendo?
Abraço Luise e deito seu rosto em meu peito, que dói como quando eu
era criança e via minha família cortar cada vez mais as coisas aqui em casa
por causa da soberba e da vida boa que não conseguiam largar, tal qual um
vício desgraçado.
— Vou te perder, não é? — murmuro no topo da sua cabeça.
Luise assente, chorando em meu peito.
— Desculpa não ter te contado que acabaria indo embora. Achei que não
me contrataria. Seria péssimo Sofia finalmente se apegar a alguém e essa
pessoa ir embora. Fui egoísta. Sinto muito.
— Shiu. Deixe de ser boba. Eu fui um egoísta quando você chegou, com
meus medos e bobagens controladoras.
Ficamos abraçados por um tempo. Eu pensando em mil possibilidades de
ajudá-la e tê-la para sempre ao meu lado, ela, pensando em coisas que eu
sequer posso imaginar.
— Ane...
— Adoro quando você me chama assim — ela sussurra.
Sorrio e ela devolve. Tímido, fraco, mas um sorriso.
— Então ir embora não saiu mesmo dos seus planos? — pergunto com
muito, muito medo da resposta.
— Sim. — Luise morde a boca.
Quero explodir. Porra. Por que tenho que perder todo mundo que eu
amo, caralho? Tento conter a minha gana a abraçando forte, mesmo querendo
socar a parede até arrancar o concreto. Lembro por qual motivo gosto tanto
do triátlon e de como liberar minha fúria no esporte me faz não matar
alguém. Nesse caso, a família para quem Luise tenta provar que cresceu e o
cara que a fez passar por tudo isso.
— E se eu te ajudar? Se eu te der um dinheiro, te levar para o Brasil para
mostrar a eles como você cresceu?
— Seria uma mentira. Mais uma e mais outra. E dessa vez eu preciso
crescer de verdade. Não posso aceitar o seu dinheiro. Tem coisas que você
não entende.
Concordo com a cabeça. É, Luise, tem coisas que eu realmente não
entendo, tipo perder você.
32
Ane Luise
Meu Deus, como tem sido difícil para mim. Meu coração está partido de
ver Nuno se despedaçar após tantas negativas minhas. Agora tudo pode ruir
com o que ele acabou de ler em meus e-mails. Não vou mais conseguir
sustentar essa mentira. Apenas não suporto mais.
Fungo e afasto Nuno, dando um passo atrás. Prendo os cabelos no alto da
cabeça e esfrego o rosto.
Acabou. Hora de ser prática. Objetiva.
— Ok. Você quer saber, então vou falar. Posso colocar tudo a perder
agora, mas eu sou forte. Vou conseguir me reestabelecer e recuperar o que é
meu.
— Luise, eu vou te ajudar. Caramba, você não está levando a sério, não
é? Eu posso te ajudar a mostrar para quem quer que seja que você é uma
mulher independente agora.
— Ah, é? Mas eu não sou, Nuno. Se eu sair dessa casa agora, não tenho
emprego nem dinheiro. Para onde iria? Como voltaria para o Brasil? Como
me sustentaria?
— Você não precisa fazer isso. Você vai ficar aqui comigo. Eu posso te
sustentar. — Nuno segura em meus braços e balanço a cabeça em negação.
— Não, Nuno. Você não pode. Você não me conhece.
— Então me mostre quem é a Ane Luise Macedônia de verdade,
caramba.
O encaro e é doloroso o modo como está desesperado. Levo os dedos até
o cós da minha calça e a abaixo alguns centímetros. Nuno fecha os olhos.
— Não, Ane. Você não vai mudar de assunto fazendo sexo comigo.
Chega. Eu já te falei ontem. A cada vez que tento saber mais de você, você
desvia e me leva para a cama.
Ignoro o que ele diz e pego sua mão. Levo as pontas dos dedos de Nuno
até a barra da minha calcinha e procuro o local certo.
Nossos olhos não se desgrudam nem por um segundo, mesmo quando ele
tenta puxar a mão para longe e eu não deixo.
Então eu a encontro, firme, tensa, dolorida. Não na minha pele, mas na
minha alma: a cicatriz da minha cesariana, encoberta em meu púbis.
— Eu sou mãe, Nuno.
Vejo seu pomo de Adão subir e descer, os olhos ficarem sombrios. Sinto
o polegar dele passear pela linha por onde meu bebê saiu e depois foi tirado
de mim. Nuno afasta a mão e acho que vai se afastar de mim, mas ele apenas
acaricia meu maxilar com o dedo.
— Luise...
— Eu não fiz um aborto. Tive pré-eclâmpsia. Achei que fosse morrer e
fiz a maior bobagem da minha vida: entreguei meu bebê legalmente ao pai
dele. — Minhas palavras saem embargadas, pois estou debulhada em
lágrimas quando termino de falar.
— Ah, merda, Alu. — Nuno me abraça forte e me conforta em seu peito
enquanto suspira no alto da minha cabeça. — Por um tempo pensei que sua
alegria de viver, seu jeito feliz e leve, significavam que você nunca tinha
levado rasteiras da vida, que seus problemas eram bobagens de uma garota
sonhadora atrás de um amor na Europa. Fui tão cego e insensível. Nós vamos
corrigir isso, baby. Porra, como você achou que não te amaria mais por isso?
— Eu tive tanto medo. Precisava desse emprego para mostrar que posso
ter meu bebê de volta. Só queria terminar a faculdade e ter uma profissão
para sustentá-lo, dizer aos meus pais o motivo de eu ter largado tudo e vindo
para cá. Até hoje eles não sabem que são avós. Calculei todas as
possibilidades. Trabalhar e me mostrar responsável, ter meu filho de volta.
Retornar e terminar a faculdade. Tudo estava se encaixando, aí eu me
apaixonei por você e agora estou perdida.
— Você deveria ter me contado tudo isso.
— Nada é mais eficiente para silenciar uma pessoa do que a vergonha.
Nuno me segura pelos ombros e beija meus lábios, meu rosto, tudo.
— Não. Nunca diga isso. Não tenha vergonha da sua história. Nós temos
um ao outro. Vamos conversar com o meu advogado. Vou resolver isso,
Luise.
— Claro. Era isso que eu temia. Você não entende. Não posso ficar nas
mãos de um homem outra vez, Nuno. E quando sua paixão acabar? O que
faço com o meu filho? O que ele vai comer? Preciso andar pelas minhas
próprias pernas. Esse emprego significa minha vida de volta.
— A vida que não merece você. Preste atenção: vou dar um jeito de te
fazer uma mulher livre, sabe por quê?
Nego com a cabeça.
— Porque se é isso o que você precisa para ficar comigo, é o que vai ter.
Não vou te deixar, entendeu? Vamos recuperar o seu bebê e trazê-lo para cá.
Você vai estudar, ter uma profissão e ser a mulher mais incrível que a sua
família já viu, o orgulho do seu filho.
Balanço o queixo em um sim, secando as lágrimas. Um sorriso até me
escapa. Os olhos de Nuno brilham, como se ele constatasse algo.
— Qual o nome dele?
— Gabriel — digo, esperançosa.
Imagino meu menino, assim como em todas as horas da minha vida
desde que acordei daquela anestesia e ele não estava mais no hospital. Como
será seu sorriso, seu cheirinho?
— Vamos criar Gabriel e Sofia juntos, entendeu? — Ele me olha sério.
— Sim.
— Agora vem, vamos contar para uma pessoa sobre esses seus dons com
desenho. Acabei de ter uma ideia aqui.
Saímos do meu quarto e descemos as escadas. Me ocorre que para
chegarmos na parte em que as pessoas saberão sobre Nuno querer me ajudar
a ter uma profissão, teremos que contar sobre nosso relacionamento.
— Nuno, a gente vai falar sobre nós dois? — O puxo pela mão e ele para
no meio da escada.
Ele acaricia minha nuca e me beija.
— Só se você quiser.
— Sim. Eu quero. Meu único medo você agora já conhece.
— Fico aliviado em saber que seu problema não era eu, mas ansioso para
resolver a questão do bebê. Isso é muito mais importante que qualquer outra
coisa.
Antes que possamos continuar a descer a escada, a porta de entrada da
mansão se abre e vejo Marta. Sorridente, ela olha para Nuno e estende um
braço.
— Chefe, olha quem está aqui. Diniz Gabriel chegou.
O irmão mais novo de Nuno surge e retira os óculos de sol, me
encarando e me deixando sem fôlego. Biel??
Santa mãe de Deus: Biel e Diniz são a mesma pessoa.
Então isso significa que o meu bebê...
Ah, meu Deus! Ah, meu Deus!
É Sofia? Não pode ser. O advogado de Gabriel me disse que era um
menino... Passei os últimos meses acreditando numa mentira cruel que
contaram para mim.
Todo o ar do mundo se vai e as luzes se apagam ao meu redor, me
levando para outra dimensão.
Quando recobro a consciência, meus olhos vagueiam pela sala atrás dela:
Sofia. A bebê está segura no colo de Marta.
— Ela... é minha filha? — pergunto, sem conseguir acreditar.
Diniz meneia a cabeça, o olhar diabólico, o sorriso, cruel.
— Sim, meu bem. Nossa filha.
33
Nuno
Eu sabia que me arrependeria de ter meu irmão de volta a essa casa.
Quando Diniz apareceu aqui meses atrás com uma bebezinha minúscula e
frágil, Raquel e eu não pensamos duas vezes. Assumimos a criança que ele
definitivamente não queria. No início, nem me passou pela cabeça explicar
para Ane tudo o que havia acontecido, mas era algo que eu andava pensando
depois que nos envolvemos, uma das coisas que eu ia colocar na minha lista
de itens sobre mim que ela precisava saber.
Sofia... quem imaginaria que aquele crápula traria a mãe dela para essa
casa apenas para me atingir. Ele com certeza suspeitou da minha demora em
finalizar a negociação do cassino de Ibiza e quis se vingar de mim. Está
jogando. Babaca.
O azar dele foi entregar nos meus braços o amor da minha vida e a filha
dela. Minha filha... Que meu irmão jamais vai me tirar.
— Há quanto tempo ela está lá? — Mônica para ao meu lado no alto da
falésia e apoia a mão sobre meu ombro.
Olho para seus dedos e os cubro com os meus.
— Desde que acordou, há umas duas horas.
Luise já abraçou Sofia e chorou até praticamente uivar. Beijou seu
pequeno corpinho todo de ponta a ponta. Cheirou a cabecinha e os pezinhos
da filha. Andou de um lado para o outro com ela no colo, embaraçando os
cabelos ao vento. Agora está deixando as ondas virem e molharem os
pezinhos de Sofia. Ela sabe que não gosto muito disso. A bebê pode ficar
resfriada. Mas agora ela não é mais minha menina, é a de Luise.
— Nunca me senti assim, feliz, doendo de tão feliz, e triste, doendo de
tão triste — digo para minha irmã.
— Posso imaginar. Partiu meu coração ver Lili ir embora.
Mônica me faz lembrar do nosso irmão e do modo como quero matá-lo.
Minha cabeça ainda dói depois do tempo que passei olhando para Luise
desacordada pelo choque e tentando conectar as coisas que eu soube da vida
dela e do cara que a arruinou: o imprestável do meu irmão. Minhas mãos se
fecham em punho.
— Eu vou matar o Diniz. Juro que vou matá-lo. — Me viro para ir em
direção à mansão, mas Mônica se coloca na minha frente.
— Nuno, eu sei o quanto você está sofrendo, mas nós dois sabíamos do
risco de assumir as crianças do Diniz. — Minha irmã me olha com sua
expressão carinhosa.
— Mon, isso não é justo. Diniz era um inconsequente quando apareceu
com a mãe de Lili e um bebê nos braços. Mais de uma década e meia se
passou e ele continuou irresponsável ao entrar nessa casa com outra criança.
Como poderíamos deixar Liliana ou Sofia aos cuidados de alguém como o
nosso irmão? — pergunto, eufórico e desesperado para colocar a minha dor
no corpo de Diniz.
— Nós não poderíamos e não deixamos. Levei Lili para viver comigo
nos Estados Unidos, mas ela sempre soube que seu pai estava na Espanha,
vivendo a vida dos sonhos de qualquer adolescente, tocando em baladas,
administrando um cassino e curtindo tudo o que o universo pode dar.
— Inclusive, crianças inocentes.
— Nuno...
— Onde ele está?
— Na piscina, com Margô.
Reviro os olhos.
— Óbvio que ele está com Margô. O adorado netinho fazedor de merdas
voltou.
— Ele não é só um fazedor de merdas.
— Não acredito que você também vai defendê-lo — grito e então olho
para baixo.
Não quero que Luise me escute discutindo por causa de Diniz, que ela
saiba o quanto ele me perturba com suas inconsequências. Se eu pudesse, o
chutava para longe dessa casa. Me revira o estômago pensar em Luise nos
braços daquele traste. Não a vejo. Talvez tenha voltado a andar pela praia.
Jorge deve estar de olho nas duas.
— Não estou defendendo o Diniz, mas precisamos admitir que ele fez
coisas boas, como a minha Lili e a sua Sofia — Mônica fala, tocando meu
rosto com o polegar.
Fecho os olhos com o contato. Qualquer demonstração de afeto nesse
momento é como uma punhalada.
— Mon, tenho tanta raiva que preciso colocar para fora antes de
conseguir perdoar o Diniz outra vez. Você não entende. Terá Lili para
sempre. Ela viveu sob os seus cuidados até praticamente ser adulta, mas e eu?
O que terei de Sofia? Ela jamais vai se recordar de mim e do que vivemos.
Não posso suportar perder quem eu amo mais uma vez. Não posso.
Quero abrir meu coração para a minha irmã, mostrar que tão difícil
quanto perder a minha bebê, será perder Luise. Me sinto um idiota, tendo
acreditado no amor mais uma vez. Tendo deixado a porta aberta para que ele
entrasse e me tomasse por inteiro.
— Nuno, querido, talvez as coisas não sejam assim essa tragédia toda.
Luise é a mãe da menina e Sofia tem direitos como todos nós. É uma Prado
Ribeiro.
— Não. Luise já me disse que pretende voltar ao Brasil. Passei muito
tempo tentando entender o que ela buscava e ainda é difícil de acreditar que
tudo o que ela queria era arrumar um bom trabalho para ter a guarda de Sofia
de volta e poder voltar ao Brasil com ela.
— Você se arrepende? Digo, se pudesse voltar no tempo, se soubesse
que elas eram mãe e filha, você teria se recusado a contratá-la?
— De jeito nenhum. Não sou um monstro, Mônica. Eu vou morrer por
dentro mais uma vez quando as perder, mas sei que Sofia ganhou o presente
da vida. Talvez eu nunca entenda por que ela renunciou à custódia da própria
filha, aos seus direitos como mãe, mas...
— Você jamais entenderia por que é um privilegiado, Nuno, assim como
o seu irmão. — A voz de Luise surge atrás de mim e me viro para encará-la.
Sofia está deitada em seu ombro, protegida pelas mãos delicadas da mãe,
e minha cabeça continua funcionando ao conectar todas as coisas. O choro
incessante da bebê que parou quando Luise chegou. O carinho entre as duas.
A paz.
— Luise, não foi isso que eu quis dizer. Eu apenas pensava na mãe de
Sofia como alguém diferente.
— Diferente como? — Ela me olha com a angústia estampada no rosto.
— Sei lá, uma garota do círculo de Diniz, desinteressada em uma
família.
— Me poupe de ouvir isso, Nuno. Em breve irei embora dessa casa com
a minha filha e isso é o que me conforta, porque escutar esse tipo de coisa
vindo de quem não sabe o que passei é decepcionante.
— Luise, por favor, me deixe explicar. — Seguro em seu braço, mas ela
se desvencilha.
— Você tenta se passar por superior, fingir que é melhor do que o seu
irmão, mas é tão cretino quanto. Comprou a minha filha para a sua esposa —
ela fala e vejo uma lágrima escorrendo pela sua bochecha.
— Não. Eu não fiz isso. Juro. — A revolta me consome e só penso em
pegar meu irmão pelo pescoço e fazê-lo desembuchar as merdas que fez essa
garota passar.
— Nuno, por favor, deixe Luise entrar com Sofia. Já está ficando
fresquinho aqui fora.
Passo as mãos nos cabelos, tentando me recompor antes de fazer algo
como me colocar de joelhos diante de Luise.
— Sim, claro. Tem razão, Mon. Melhor você entrar com Sofia, Luise.
Ela me olha com desânimo, ainda sim a mulher mais linda que já vi, em
seus jeans e camiseta. Com o cabelo preso de um jeito frouxo. Com seu
casaquinho cinza até os joelhos. Porra, eu não acredito que tive tudo nas
mãos mais uma vez e agora as perdi.
Luise ergue o indicador no ar, tentando juntar forças, coragem.
— Vocês dois, ou melhor, todos vocês, Prado Ribeiro. Não me digam o
que fazer com a minha filha.
Pigarreio. Sei a dor que Luise está sentindo, mas não vou desistir de
Sofia. Preciso saber que a minha menina está segura. Que a mãe dela não vai
fazer uma loucura do tipo voltar a ter um relacionamento com o traste do meu
irmão.
— Tecnicamente, ainda tenho a guarda de Sofia — falo, colocando as
mãos nos bolsos do terno.
— Nuno Prado Ribeiro, não me ameace usando a minha filha — Luise
fala, amedrontada, a mão sobre as costinhas da bebê.
— Não estou te ameaçando. Apenas estou dizendo que você não pode
sair porta afora dessa casa com ela nos braços. Tenho a guarda dela por um
ano. Foi o que tratei com Diniz.
Luise deixa os ombros caírem se afasta de mim.
— Você sabia que ela tinha uma mãe para onde voltar e mesmo assim
pegou a minha filha para si!
— Claro que não, Luise, pelo amor de Deus. Eu juro que pensei que a
mãe dela fosse uma drogada das que Diniz costuma namorar. Eu jamais teria
ficado com Sofia pensando em ter de entregá-la de volta depois de um ano.
Foi inocência minha. Supus que meu irmão abandonaria a própria filha como
fez com Lili.
Olho para Mônica, pedindo socorro e ela abre e fecha a boca, sem saber
direito como me defender.
— Sim, Ane. É verdade. Eu estava aqui quando Diniz chegou com Sofia,
dizendo que a mãe tinha outras coisas a tratar e que sabia o quanto Nuno e
Raquel queriam um bebê.
Luise bufa e alguns fios soltos do seu rabo de cavalo voam diante do seu
rosto.
— Não tenho cabeça para isso agora. Só quero ficar com a minha bebê.
Tem muita coisa que não consegui entender. Tipo o fato do advogado do
Nuno ter me dito que tive um menino e depois ele ter me colocado para
trabalhar aqui.
Troco olhares com a minha irmã. Nós dois sabemos que esse tipo de
coisa é típico de Diniz, mas provavelmente Luise ainda tem uma visão
romantizada do DJ Biel por quem se apaixonou.
— Ane, você tem razão. Não é o momento de desvendarmos tudo isso.
Vá descansar com Sofia e, por favor, confie em nós. Jamais desejaríamos o
mal da nossa menininha. Isso você pode ter certeza.
Luise estreita os olhos e nos dá as costas. Ela anda uns bons metros antes
de olhar para trás e nossos olhares se cruzarem. É estranho como a mulher
doce e sorridente que me conquistou se transformou em uma loba
desconfiada. É estranho e lindo. Merda. Sempre quis uma mãe assim para os
meus filhos.
34
Ane Luise
Todo o meu corpo se recusa a entender o que está acontecendo. A razão
me impele a odiar Biel, Diniz ou seja lá como ele se chama. Meu coração se
agarra em suas cicatrizes e relembra como era estar apaixonada por ele.
Costumava flutuar em uma névoa de alegria e trazer à tona essas
sensações me deixa perdida. Principalmente por ser exatamente o que tenho
sentido por seu irmão nas últimas semanas.
O pior de tudo é me ver outra vez nas mãos de alguém. Aperto Sofia
forte em meus braços e sussurro em sua cabecinha:
— Nós vamos sair dessa, bebê. Minha bebê.
Sorrio. Estou falando com minha filha. Me sinto uma tola. A tola mais
feliz do mundo. Isso sim é paixão. Vou enfrentar o mundo por ela. Vou fugir.
Isso! Vamos fugir, apenas nós duas. Não vou continuar sob o domínio de
um homem. Droga! Agora são dois. Dois lindos e apaixonantes Prado
Ribeiros.
Salto da cama onde deixo Sofia e pego minha mala guardada debaixo do
móvel. Jogo tudo o que tenho — quase nada — para dentro enquanto penso
em como pegar fraldas e coisas básicas da bebê sem que ninguém nos note.
Eles nos darão tempo. Pensam que estou ainda atônita com o que
descobri — e, bem, estou. Puxo o rabo-de-cavalo até ficar bem justo e
organizo o que posso enquanto Sofia se diverte com uma garrafa de água.
Bebês são o melhor que há. Nuno pode ter lhe comprado os brinquedos
mais caros, dado as melhores coisas, mas Sofia gosta do que é simples. É
como eu, que só queria o amor do seu pai. Ou melhor dizendo, dos seus pais.
Reviro os olhos para mim mesma. Onde é que você se meteu, Ane Luise?
Estou no meio do processo quando minha porta se abre. Lili me olha,
espantada.
— O que você está fazendo?
— O que eu devia ter feito desde que cheguei em Portugal: dar o fora
desse país.
— Não, Ane, por favor. Nós vamos te dar uma família. Eu não sabia que
você era a mãe de Sofia. Só te queria aqui, com os Prado Ribeiro, namorando
o meu tio. Mas agora prefiro que volte para o meu pai. Era isso que você
queria, não era? Meu pai e eu vamos te amar. Nós já te amamos. E agora
temos Sofia. Vamos, por favor, fique — ela suplica, tentando me impedir.
— O que está havendo? — Nuno entra no quarto e olha para as coisas
em cima da cama.
— Ela está indo embora com Sofia — Lili diz.
Nuno reage e pega Sofia no colo.
— Luise, você não vai sair dessa casa. Não vai levar a minha filha.
— Ela é minha filha. Eu só quero que nunca mais ninguém me diga se
posso ou não ficar com ela.
Nervosa, desabo no choro. Seu olhar se entristece e ele parece entender.
Estica os braços e tomo minha menina de volta. Seu cheiro doce me conforta,
mas as lágrimas já estão saindo. Nuno esfrega o rosto.
— Desculpa. Desculpa. Não quis agir como o babaca do meu irmão.
— Meu pai não é um babaca — Lili se intromete.
— Lili, dá o fora. Preciso falar com a Ane. — Nuno aponta em direção
ao corredor, mas Lili cruza os braços.
— Eu não vou. Ela é a garota do meu pai e você não vai roubar isso
também. Ela vai embora dessa casa com a gente. Vamos morar em Ibiza.
Luise ainda ama o meu pai.
Deixo o quadril cair na cama. Estou esgotada. Odeio vê-los discutindo a
minha vida. Quando é que isso vai acabar? Me sinto sob o domínio de todos.
— Liliana, obrigada por sua preocupação, mas a vida é minha e eu vou
decidir.
Ela sai pisando forte com os calcanhares e Nuno fecha a porta. Ele anda
de um lado para o outro e para na minha frente. Seu olhar intenso me deixa
hipnotizada.
— Preferia ter essa conversa a sós com você, mas imagino que não esteja
pronta para se afastar de Sofia ainda.
— Imaginou certo.
— Então saiba que é isso o que estou sentindo. Não estou pronto para me
afastar dela. Como você pode cogitar ir embora e levá-la?
— Ah, Nuno estou com tanto medo.
— Medo de quê, Ane não de mim, não é?
Deito a cabeça sobre o ombro e coloco atrás da orelha a mecha que cai
em meu rosto.
— Tenho medo de que tentem tirar Sofia de mim de novo, me dominar.
Nuno aperta os punhos. Sinto toda sua tensão.
— Eu não quero te dominar. Quem fez isso foi o Diniz. Eu quero te
ajudar, Ane. O que você precisa, me diga? Te dou o mundo.
— Não quero ganhar o mundo. Quero conquistar apenas o básico para
viver em paz com a minha filha. — Saio da cama e fico da altura dos seus
olhos.
O maxilar de Nuno vira pedra. Sinto o calor dos seus lábios perto dos
meus e me recrimino por ser tão fraca a ponto de querer sempre seu beijo.
— Por favor, não me veja como o cara mau, o filho da puta que sempre
age pensando em seu próprio benefício. Tudo o que menos quero é que Lili
tenha razão. Quero ser o Prado Ribeiro ideal para você. Tenha certeza de uma
coisa: eu vou sempre te amar.
Nuno me surpreende, segurando minha nuca e me levando até sua boca.
A língua macia me invade enquanto uma mão puxa meus cabelos e a outra
passeia pela minha cintura. Ele se afasta, meus fios ainda presos bem
apertados em seus dedos, nossos narizes colados. Ficamos nos olhando por
um longo tempo e sinto a realidade: sempre serei uma prisioneira. Antes era
dos meus pais, fui da paixão por Biel, do dinheiro que precisava para ter
Sofia. Agora é diferente. Tudo que me aprisionava antes eu podia resolver, já
o amor por Nuno eu sei que nunca vai acabar.
— Nunca amei tanto essa casa, essa vida, desde que você chegou, Alu. E
sim, é Alu. Não me importa se era Diniz quem te chamava assim ou se ele te
teve nos braços. Meu irmão pode ser a porra do pai biológico de Sofia, mas
essa história é minha, Ane. É nossa. Eu jamais te obrigaria a ficar comigo,
mas, se você ficar, garota, eu vou ser o cara que vai acordar de manhã e te
foder como a uma amante, te beijar como a uma namorada e te amar como a
minha esposa, porque é isso que você será: minha. Não me importa se você
concorda ou diz que não precisa. Vou te dar toda a porra do meu dinheiro.
Vou te fazer esfregar na cara dos seus pais que você é a filha da mãe da
mulher mais inteligente e criativa que eles jamais viram. Vou te colocar no
carro mais caro e te exibir em Lisboa. Vou, porque, porra, eu vou ser o cara
mais feliz desse mundo. Eu vou te engravidar até você me mandar parar e aí
eu vou fazer de novo. E vou te dar o mundo para que você o domine.
Entendeu?
Percebo minha boca entreaberta, meu coração pulsando alto. Faço que
sim com a cabeça e quando Nuno me solta e vai embora eu nem sei quem sou
ou se tenho pernas, porque elas fraquejam até eu desabar sobre minha cama
ao lado de Sofia, que se aproxima a boquinha da minha bochecha, me
fazendo dar uma gargalhada alta e nervosa.
Droga! O que foi isso que acabou de acontecer?
35
Nuno
É impactante no que me transformo com a chegada de Diniz. Sabia que a
presença dele me colocaria numa posição de protetor feroz de Sofia. É o que
tenho tentado provar nos últimos meses, que posso ser isso. Que estou apto a
ser o pai dela. Provar para a minha família, para mim e, principalmente, para
ela, mesmo que Sofia não entenda agora.
Por dentro, ardo em fúria por Diniz ter me feito de bobo, assim como fez
com Luise.
Estou na biblioteca. Não costumo mais trabalhar daqui. Foi um hábito
que cortei quando Raquel adoeceu. Estar em casa era apenas para ser presente
para ela. Agora, é ser presente para Sofia.
Passo os dedos pelas lombadas dos livros. Viktor Frankl. Barry Glassner.
Paul Arden. Alice Miller. Queria ter mais tempo, me cobrar menos. Sentar no
jardim com Sofia e Luise e ler sobre a vida, ensinar à minha bebê o que está a
espera dela no mundo.
Nada disso vai acontecer porque meu irmão enganou a mim e à mãe da
menina. Filho da mãe. Cerro os dentes bem na hora em que ele entra na
biblioteca, animado, despojado e com o bronze de quem passou os últimos
meses tocando na beira de piscinas em Ibiza.
— Marta disse que você queria falar comigo.
— E te matar também.
Dou um passo em direção a ele, imaginando minhas mãos se apertando
em sua garganta. Sua morte resolvendo todos os meus problemas. Sofia
ficando comigo para sempre. Luise esquecendo que o amou um dia. Será que
ela ainda o ama?
Quando estou prestes a agarrar o colarinho dele, Lili aparece e controlo
meu ódio.
— Oi.
— Oi, querida.
Diniz se atira em uma das poltronas de couro marrom e apoia os
cotovelos no encosto. Não parece nem um pouco preocupado com a minha
ira. Não sei o que o torna tão seguro, como as mulheres querem estar perto de
alguém tão escroto?
— Lili, preciso conversar com seu pai — digo e ela se senta na perna
dele.
Isso me dá ainda mais raiva. Imagino Sofia chamando de pai esse
desgraçado que a tirou de Luise e a entregou para mim como se fosse um
pacote.
— Lili é minha filha. E é quase adulta. Pode falar na frente dela — Diniz
me desafia.
— Exato. Quase adulta. Não precisa saber dos detalhes nojentos da sua
história com a mãe de Sofia.
Diniz acaricia a cabeça da filha e quero morder a mão dele. Ele não tem
esse direito.
— É verdade. Luise e eu tivemos sua linda irmãzinha — Diniz fala
sorrindo, como se não entendesse a gravidade do que fez.
— Pare com isso, Diniz. Sofia é minha filha. Luise é minha...
— Babá — meu irmão me interrompe com a sobrancelha arqueada.
— Luise é muito mais do que uma babá nessa casa — explodo, socando
a mesa de madeira.
— Ah, é? O que ela é então, Nuno? Me diga — Diniz fala devagar,
palavra por palavra.
— Ela é, ela é...
— A namorado do tio Nuno — Lili diz, fazendo Diniz finalmente se
ajeitar na poltrona e deixar a despreocupação de lado.
— Isso é verdade então?
Queria passar por cima de tudo e dizer que sim, mas penso nas merdas
que meu irmão já fez com Luise. Não posso simplesmente dizer que somos
namorados sem ter de fato assumido algo com ela, porque ela não quis.
Imagino que sua cabecinha esteja tão agitada nesse momento ao saber que
estava com a filha esse tempo todo que namorar comigo nem lhe passe pela
cabeça.
— Não. Não é verdade — falo a contragosto, me virando para a janela e
olhando para o mar.
— Mas eu vi os dois juntos. Vi ela saindo do seu quarto vestindo apenas
a sua camisa — Lili continua.
Eu me viro e o encaro. Diniz segura a filha pela cintura e a coloca em pé.
Ele se levanta também e franze o cenho.
— Bom, parece que não sou o único a não resistir às pernas longas de
Luise.
Aí é demais para mim. Desfiro um soco no queixo dele e Liliana grita.
— Pai.
Diniz cambaleia mas logo está rindo, a mão segurando o rosto.
— Você já foi melhor do que isso, Nuno.
— Vou quebrar a sua cara.
— Já brigamos por tudo nessa vida, mas por mulher é a primeira vez.
— Não estamos brigando por mulher. Luise jamais voltaria para você —
digo mesmo sem ter certeza.
— Isso é o que vamos ver.
— Pai, você está bem?
— Sim, meu amor. Melhor do que nunca. Um novo homem disposto a
tomar o que é meu.
Me aproximo dele, pronto para socá-lo até que engula a própria língua,
mas Lili me impede, ficando entre nós dois.
— Você é um fodido de um cretino. Usou a mãe de Lili e a descartou.
Largou a própria filha aos cuidados da nossa irmã por anos e agora quer
pagar de bom pai.
— Isso é mentira. A mãe de Lili não quis ficar com ela. Eu era um
adolescente. O melhor que podia fazer pela minha filha era deixá-la aos
cuidados de um adulto.
— Ah, é? E qual sua desculpa para ter me entregado Sofia? Nós dois
sabemos o quanto a mãe dela sofreu todos esses meses tentando recuperar a
guarda da menina.
— Ela me deu a guarda. Ela não tinha onde morar. Ela não tinha
emprego. E você queria um filho para Raquel antes que ela morresse. Ao que
me consta, fui o único altruísta que ajudou todo mundo.
Liliana me olha assustada, sabendo que um furacão se arma ao meu
redor. Ela apoia a mão no peito de Diniz e tenta mantê-lo afastado de mim.
— Não pense que você vai chegar nessa casa e tirar tudo o que construí,
Diniz. Eu não vou permitir. Eu sou o senhor desse lugar. Sou o pai de Sofia e
amo Luise. Você não vai tirar as duas de mim. Não vai — digo, sorrindo
sinistramente para ele.
— Isso é o que nós vamos ver, Nuno. Isso é o que nós vamos ver.
36
Nuno
Entro como um louco no quarto de Luise, mas ela não está lá. A encontro
na suíte de Sofia, observando a filha dormir. Seguro em seu braço e ela
demora a me encarar.
— Ela é linda. Não quero sair daqui.
— Preciso falar com você. Sofia vai continuar aqui. Será para sempre
sua.
— Como posso ter certeza, Nuno? Quem me garante que Diniz vai me
devolver a guarda dela?
— É sobre isso que precisamos falar.
Luise cede e me acompanha para fora do quarto. Não consigo aguentar e
a abraço quando chegamos no corredor. Ela resiste no início, mas depois se
entrega, repousando a cabeça no meu peito.
— Ah, Nuno, está tudo tão confuso na minha cabeça. Por que ele fez
isso? Por que me colocou aqui e não me disse nada?
— Diniz é um jogador, Luise. Ele observa as pessoas e tenta extrair o
pior delas para usar isso a seu favor depois.
— Mas eu não entendo, o que ele quer de mim agora? — Ela me olha
com a inocência de quem não entende por que existe a maldade humana.
— Agora o que ele quer está mais relacionado a mim do que a você, mas
precisa te usar para me atingir. E é isso que não quero que aconteça. Só que
para te proteger, preciso saber uma coisa. Me diga com sinceridade, Luise.
Você ainda sente alguma coisa por ele?
Luise dá um passo para trás e olha para as próprias mãos. Seus cabelos
loiros caem nas laterais do rosto e ela parece perdida. Sinto sua inquietação.
— Nuno, isso é tão difícil. Ainda estou tentando processar o que houve.
Por muito tempo tê-lo de volta, vê-lo com nosso filho nos braços, era tudo o
que eu queria e parece que agora está acontecendo, mas no tempo errado.
— Não se deixe enganar. Diniz nunca vai viver numa casinha com você,
fingindo ter uma família feliz.
— Espero que esteja tudo bem aqui, Luise, que meu irmão não esteja
tentando colocar coisas na sua cabecinha já cheia de preocupações. Cuidado
com Nuno, ele é meio explosivo às vezes. — Diniz aparece no corredor e
aponta para o queixo ferido.
Luise olha assustada para mim e se afasta para o lado.
— Luise, preste atenção. — Seguro em seus braços para que me encare e
não fuja. — É hora de descobrir o que nos une e não o que nos separa.
Diniz caminha em nossa direção com confiança.
— É exatamente isso. E eu e você temos algo que nos une, que é Sofia.
A única coisa que pode nos separar aqui é Nuno.
Solto o ar aos poucos, tentando me manter no controle e não arrebentar a
cara dele.
— Diniz, estou confusa com tudo isso. Nós temos tanto a conversar, mas
não sei nem por onde começar. Preciso saber quando você vai me devolver a
guarda de Sofia.
Meu irmão me encara com seu sorriso convencido. Ele sabe que tem
Luise em suas mãos e o odeio por isso.
— E eu preciso saber se você compreende que fiz tudo isso pela nossa
filha, por nós, querida.
Luise cobre o rosto com as mãos e sinto sua luta interna, sua dificuldade
em compreender como Diniz a colocou de escanteio e agora a quer de volta.
Ela baixa os braços e me encara com pesar.
— Nuno, você pode, por favor, nos deixar a sós? Preciso conversar com
o Biel. Quer dizer, esse é o seu nome, não é? Ah, meu Deus, estou tão
confusa. — Ela passa a mão pelos cabelos loiros bagunçados depois do seu
dia exaustivo.
— De forma alguma vou te deixar sozinha com ele. E, sim, meu irmão se
chama Diniz Gabriel Prado Ribeiro. DJ Biel, para as meninas inocentes como
você.
O maxilar de Diniz cerra e então ele dá um sorriso amarelo, passando o
braço por cima do ombro de Luise.
— Querida, Nuno está surpreso com tudo isso. Vamos dar um tempo a
ele. Logo vai entender que somos uma família.
Luise abre a boca e a fecha. Olha para a mão de Diniz e percebo que está
se perguntando se é uma boa ideia discordar dele. Nossos olhares se
encontram, me confirmando isso em uma súplica.
— Por favor, Nuno. Ainda preciso entender como vim parar aqui. Por
qual motivo mentiram para mim sobre o bebê ser um menino. Muitas coisas
que não estou conseguindo assimilar sozinha.
Diniz beija o topo da cabeça de Luise com uma intimidade que me faz
apertar as mãos em punho. Pelo amor de Deus, esse cretino vai usar a
fragilidade dela bem debaixo dos meus olhos?
Ergo o indicador e o aponto para o nariz do meu irmão. Ele, babaca
como sempre, acha graça.
— Se você tentar alguma coisa com ela, eu te mato.
Diniz não responde, apenas conduz Luise para a biblioteca, me deixando
sozinho no corredor. Dou dois passos em direção à escada, mas volto atrás.
Nem em sonho vou deixar esse cretino sozinho com a minha Luise. Colo a
orelha na porta e pressiono a maçaneta, mas sem a mover. Ouço as vozes e
imagino a distância entre os dois, a intimidade, tudo aquilo que não consigo
ver estando do outro lado da parede.
— Ah, Alu, como senti falta do seu cheiro.
Merda! Não vou aguentar essa tortura. Alu? Ele não tem o direito de
chamá-la assim.
— Gabriel, sai. A gente precisa conversar. Você não pode surgir um ano
depois achando que ainda tem lugar na minha vida, que pode me tocar assim.
Aí já é demais. Tocar assim?
— Desculpe. Você tem toda a razão. É que me perco quando te vejo.
Esqueço o mundo.
— Não. Você esqueceu o mundo depois que parou de me ver, quando eu
já estava grávida e desesperada.
— Gata, foi um erro. Me desculpe. Eu achei que o melhor para você
seria fazer um aborto. Por isso enviei meu advogado quando soube que estava
aqui em Portugal. Eu tinha certeza que me perderia em seus braços e o que
nós dois iríamos fazer com um bebê no meio de uma turnê? Criá-lo em meio
a raves e drogas?
— Gabriel, Diniz, ah, dane-se você e o seu maldito nome. Eu cheguei
aqui sozinha atrás do pai do meu filho. Não tinha documentos até arranjar um
emprego. Vivi com uma miséria que trouxe do Brasil e mal consegui fazer
um exame, porque não conseguia falar com você de jeito nenhum. Aí seu
querido advogado aparece quando estou no hospital e, quando acordo da
anestesia, ele já desapareceu com o meu bebê.
— Você assinou, Alu. Ele disse que você implorou que eu me
responsabilizasse pelo bebê.
— Eu estava com medo de morrer, Gabriel, pelo amor de Deus. Não era
para você ter levado o Gabriel embora. Sofia. Ai! Estou confusa.
— Você ficou tempo demais na UTI. Não tive o que fazer. E não tenho
culpa se te disseram que era um menino. Sinto muito. Imagino que tenha sido
coisa do meu advogado, tentando me proteger.
— Ah! Te proteger? De mim? Claro. Eu sou a perigosa nessa história.
Você não sabe o que eu passei nesses últimos meses, trocando de emprego
em emprego, tentando me estabilizar para poder ficar com meu bebê quando
você aparecesse. E então seu advogado me indica uma agência de emprego e
venho parar aqui. Qual o seu objetivo com tudo isso? Por que você entregou
nossa filha para o seu irmão?
Sinto uma pressão no peito. Diniz não pode se aproveitar da situação
para me atacar e se sair de bonzão. Mas é óbvio que ele vai fazer isso.
— Nuno tinha as melhores condições para cuidar da Sofia. A esposa dele
estava morrendo. Eles queriam muito um bebê nos últimos dias dela. Tiveram
anos difíceis e eu não podia carregar a bebê comigo na turnê. Só quis ajudar
todo mundo. Desculpa se errei. Achei que o melhor lugar para ela seria aqui,
ao lado da família. E, olhe para isso, não é uma casa maravilhosa para se
crescer?
— Ela não vai crescer aqui, Gabriel. Ela vai embora comigo assim que
você devolver a guarda da nossa filha. E, por falar nisso, como está o registro
dela? Você não deixou Nuno e Raquel registrarem minha filha, não é?
Silêncio. Eu sei a resposta. Quero irromper sala adentro e falar mal do
meu irmão, mas aguardo pela oportunidade dele mesmo ter que se mostrar
desprezível.
— Claro que não. Caramba, Alu. Ela é minha filha. Eu voltei justamente
para ver como Sofia estava.
— Então eu sou a mãe dela no papel também?
Mais silêncio.
— Não.
— Diniz Gabriel, seu filho da mãe.
Sinto um alívio pelo ódio dela, contudo, dura pouco, porque sei o quanto
está sofrendo.
— Desculpa, Alu. Você estava na UTI. Ela recebeu alta, mas meu
advogado ainda estava em dúvida se você realmente queria ficar com a
menina. Ele não conseguiu me contatar e acabou colocando na documentação
da guarda que você assinou que abria mão de algumas coisas.
— Algumas coisas?
— É.
— Tipo o quê?
— Tipo o registro dela.
Os dois ficam em silêncio e pressiono a porta com mais força, colando o
ouvido à madeira. Uma coisa dura bate em minha cabeça e não consigo
impedir a exclamação, mais de susto por ser pego em flagrante do que por
dor.
— Ai. — Esfrego os cabelos no lugar onde a bengala de Margô me
atingiu.
— O que você está fazendo aí? — ela resmunga e a porta se abre.
— Nuno. — Luise me encara, surpresa.
Ajeito a postura e o terno, puxando as bordas do colete para baixo e
alisando o tecido. Pigarreio.
— Oi.
— Você estava nos escutando?
— Óbvio. Nuno está com medo e, quando se sente assim, fica de tocaia,
preparando alguma armação — Diniz fala, chegando por trás dela e pousando
a mão em seu ombro.
Contraio o abdômen, lutando com a vontade de arrebentar a cara do meu
irmão. Luise estreita os olhos para mim.
— Não é isso, eu não estava espionando vocês, estava... — tento me
defender mas ela ergue a mão.
— Como assim não é isso? Nuno, você está parecendo o Senhor
Psicopata outra vez, revirando meu quarto, lendo meus e-mails, ouvindo atrás
da porta. Está me deixando assustada.
— Luise, pelo amor de Deus. Sou eu, seu Nuno. Diga, seu Senhor
Psicopata o quê? — peço, unindo as mãos e me aproximando dela.
Luise morde o lábio inferior e olha para Diniz. Ele a instiga a continuar,
fazendo um movimento com a cabeça, mas ela não fala nada.
— Sou o seu Senhor Psicopata Sexy — digo, tentando não morrer de
vergonha quando Margô cai na gargalhada.
— Então é verdade, vocês dois estavam trepando. E agora Diniz chegou
para assumir a filha que tem com a babá, tirando a criança do irmão. Minha
virgem Maria, isso parece novela mexicana. — Margô sai andando pelo
corredor, rindo da coisa mais séria da minha vida.
Será que ninguém entende a gravidade da situação?
— Nuno, por favor. Eu preciso de um tempo, agora, ok? Gabriel e eu
temos algumas coisas para acertar. — Ela continua olhando para mim e para
ele, seu olhar suplicante para que eu não crie confusão e acabe aumentando a
animosidade entre ela e meu irmão.
— Mas...
— Você ouviu, maninho. Alu e eu temos que acertar algumas coisas,
falar da nossa filha, do futuro. — Diniz passa o braço na cintura de Luise,
que me sinaliza com o olhar para não brigar com ele.
Estou agitado, o peito pressionado pelo excesso de batimentos cardíacos.
Minha vontade é socar a cara dele, mas acho que isso não vai ajudar.
— Claro. Claro. Acho ótimo que vocês conversem sobre como vão tirar
Sofia de mim. Melhor ainda, sobre como vocês pretendem ficar juntos.
Enquanto isso, vou tratar da compra do seu cassino em Ibiza, meu irmão,
pode deixar.
— Nuno, não seja mesquinho. Sofia é muito maior do que o seu
egoísmo.
Diniz consegue o que eu não queria. Ele finalmente me tira do sério, me
deixando desesperado para mostrar a Luise com quem está lidando.
— Acorda, Luise, você não precisa do príncipe encantado que Diniz está
tentando ser. Você precisa é de um bom advogado.
— Querida, Nuno só está te falando isso porque não aceita perder nada
para mim. Isso é de infância. Ele me implorou para ficar com Sofia porque
queria se mostrar melhor do que eu para Margô.
Luise me olha e sei no que está pensando. No nosso acordo para que ela
me ajudasse a mostrar a minha família o quanto sou apto para controlar a
casa, os negócios e a vida de Sofia.
— Isso não é verdade. Eu pedi para que Sofia ficasse comigo e com
Raquel porque minha esposa estava morrendo. Achei que isso daria uma
motivação para que ela continuasse vivendo.
— Minha filha não é um brinquedo — Luise fala, frustrada.
— Foi o que eu disse a ele na época. E só permiti porque não tinha saída.
Acabei minha turnê agora. O que eu faria com Sofia, andando de um lado
para o outro da Europa? Aqui eu sabia que ela estaria em segurança até que
você retomasse sua vida e pudesse voltar para nós — meu irmão fala como se
fosse a maior verdade do mundo.
— Diniz, seu filho da puta. Você me disse que a mãe da menina
provavelmente nunca mais apareceria, que eu não precisava pensar nisso,
mas mesmo assim eu fiquei doente de preocupação quando você resolveu
bancar o bom pai e tirar Lili de Mônica.
Luise ergue as mãos e fecha os olhos por alguns segundos.
— Chega. Eu não quero saber do passado. Tudo pelo que mais rezei está
dormindo do outro lado dessa porta. Amanhã é um novo dia, um dia que
quero viver com a minha filha. Eu sei que errei ao assinar aqueles papéis que
seu advogado me deu, mas eu estava desesperada, sem documentos, em outro
país, em uma situação de risco. Não sabia se voltaria daquela anestesia e,
quando acordei, me disseram que meu bebê já não estava mais lá, que o pai o
havia levado, com todos os seus direitos e documentos. Diniz, até ontem eu
achava que era mãe de um menino. Descobrir que você me colocou nessa
casa sem me falar que Sofia é minha filha foi uma tremenda de uma
canalhice.
Diniz suspira, rendido.
— Alu.
Estremeço quando ele fala o apelido dela. Odeio saber que um dia Luise
amou esse lixo de homem. Que eles são os pais da minha Sofia.
— Querida, você precisa entender que eu não tive nada a ver com isso.
Meu advogado apenas tentou me proteger. Ele não sabia o quanto eu te
amava.
— Ah, me poupe — digo, colocando as mãos na nuca e inclinando o
corpo para trás.
— É sério. Ele não quis que você colocasse em risco a menina ou a
minha carreira. Mas isso é porque não te conhecia de verdade. O jeito que
encontrou para te colocar perto da nossa filha outra vez foi te trazendo para
trabalhar aqui.
— Ok. Agora deu. Luise não é obrigada a ouvir suas histórias furadas. —
Me coloco entre os dois.
— Dá licença, Nuno. Só eu e ela sabemos o que vivemos. — Diniz
estende a mão, tentando me afastar.
— É? E só ela sabe o que é levar um chute na bunda e praticamente
passar fome — brado, revoltado com tudo o que vi a garota passar.
— O que está acontecendo aqui? — Mônica aparece na biblioteca com
Lili, que corre até Luise quando a vê.
— Eles estão brigando por ela. Os dois. Mas isso é bobagem, porque
Luise já tem com quem ficar. Ela e meu pai não formam um lindo casal? Eu
vou adorar finalmente ter uma família e uma irmã de verdade.
Luise acaricia os cabelos de Lili e me encara. Dou a ela o meu melhor
olhar, aquele que diz: nem fodendo eu vou abrir mão de você.
37
Ane Luise
— Você apostou alto demais, Ane. Não pode simplesmente voltar para
casa com uma bebezinha agora que tudo desmoronou — Camila fala com a
calma de quem pode fazer escolhas na vida.
Afasto o telefone do ouvido enquanto passo os dedos pelos utensílios de
cozinha de Mafalda, no único lugar onde consegui me esconder nessa casa
cheia de Prados Ribeiro. Camila sabe ser incisiva quando quer. Mas é a única
pessoa que tenho. Meu peito se comprime quando penso nisso. Estava
pegando confiança com a família de Nuno, me sentindo protegida em seus
braços e agora, com a chegada de Diniz, as palavras da minha prima são
certeiras: tudo desmoronou.
Não é ruim descobrir que estou ao lado daquilo que tanto queria, a minha
essência em forma de outra pessoa. O ser humaninho perfeito por quem tenho
lutado nos últimos meses. Eu só não sei o que fazer agora que não tenho ideia
se manterei meu emprego. Também não quero ficar nas mãos de Gabriel.
— Não sei o que fazer, Cami. Só quero ir para casa com a minha bebê.
— Ainda estou chocada. E puta da cara com você. Custava ter me
contado que pariu uma criança na Europa?
— Eu tinha fé, mas não havia nenhuma garantia de que eu a veria um dia
de novo.
— Bom, você tem mais sorte que juízo e agora está com a criança. Não
seja louca de fazer as malas outra vez e fugir. Se o seu chefe está assim tão
gamado quanto você diz, aproveite a oportunidade.
— E o quê? Brigar com Gabriel, que odeia o irmão.
— Essa não é uma boa ideia, mas é o que temos. — A voz grave de
Nuno surge atrás de mim e me assusto.
— Cami, tenho que desligar.
Coloco o telefone na mesa da cozinha e apoio o quadril contra ela, as
mãos segurando forte na madeira.
— Nuno...
— Você está pensando em voltar para ele?
O modo como o ar sai lento e ruidoso por entre meus lábios faz a tensão
aumentar nos ombros de Nuno.
— Eu não quero, Nuno, mas não posso fazer besteira daqui pra frente.
Tudo pode colocar em jogo a guarda de Sofia.
— Nós vamos dar um jeito nisso. Já estou falando com meu advogado.
— Aquele seu amigo que também é amigo dele e me indicou à agência
de empregos.
Nuno passa a mão nos cabelos e remexe a perna, inquieto.
— Ele não sabia. Ninguém sabia, Luise. Porra. Diniz está jogando com a
gente. Não quero te perder, caramba. Não posso perder você e a Sofia.
Fecho os olhos quando o indicador toca a maçã do meu rosto.
— Jura para mim que não vou. Jura.
Abro os olhos e seguro a mão de Nuno com força.
— A vida não é fácil para mim.
— Nós vamos torná-la fácil. Confie...
— Confiar mais uma vez em um Prado Ribeiro?
— Não sou ele, Luise. Sou o seu Nuno, lembra?
— Ah, droga, Nuno, me desculpe. Estou tão angustiada e nervosa.
O olhar dele é intenso e me faz recordar dos nossos momentos juntos, do
abraço que me faz sorrir, da esperança que me dava em acordar a cada dia e
estar mais perto do que eu desejava: ter meu bebê de volta.
— Mesmo assim, você não pode me salvar.
— Posso, sim. Conheço Diniz melhor do que ninguém.
— Mas não é desse modo que as coisas funcionam, Nuno. Não é isso que
eu quero para mim nem para a minha filha.
Nuno dá um passo atrás e eu baixo o rosto. Os meus cabelos caem pra
frente e arrasto o pé de um lado para o outro.
— Você não quer ficar comigo, então? É isso o que decidiu, formar a
família perfeita que Lili sugeriu? Você, ela, Sofia e Diniz Gabriel. Lindo.
Parabéns. — Ele aplaude, seco.
Arregalo os olhos e me aproximo dele. Nuno ergue as mãos como se
quisesse me evitar.
— Não, Nuno. Não é isso. O que eu não quero é ficar nas mãos de outro
homem. Depender de você. Muito menos ensinar isso para a minha filha. Ela
precisa ver como é caminhar com os próprios pés.
A boca de Nuno se abre levemente e ele fica surpreso.
— Mas vocês não precisam disso. Sofia é rica. Muito rica. É uma Prado
Ribeiro. Vai herdar cassinos, casas, empresas. E você é a mãe dela. Por isso
não pode cair no jogo de Diniz. Facilmente terá a guarda dela de volta.
Coloco os cabelos atrás das orelhas e balanço a cabeça em negação.
— Faltam muitos meses para isso. E não quero a herança de vocês. Só
quero viver honestamente. Levar minha filha para os meus pais conhecerem e
verem que sou capaz.
— Ane Luise...
Ouvimos um barulho seco, como se algo do outro lado da parede tivesse
caído. Trocamos olhares, com receio de estarmos sendo ouvidos por alguém.
Pé ante pé, Nuno vai até a despensa e toca a maçaneta. Apoio o corpo
contra a parede para não ser vista. Ele abre a porta com rapidez e fico pasma.
Abismada.
Marta está encaixada entre as pernas de Isabel e as duas se beijam com
uma voracidade tão grande quanto a que eu e Nuno sentimos um pelo outro.
Me atrapalho tentando identificar o que é o que entre cabelos, mãos e línguas.
— Isabel — Nuno brada e as duas olham para nós, ofegantes.
— Nuno.
— Puta que pariu. De novo?
— De novo? — pergunto, tentando entender a situação. — Vocês são
lésbicas?
Nuno olha para o alto como se tentasse encontrar uma luz divina ou
paciência.
— Marta era Mário. Ela é trans. — Nuno suspira.
— Porra, Nuno, isso te incomoda? — Marta fala, fechando os botões da
camisa feminina.
Ele cruza os braços e apoia o corpo na bancada da cozinha.
— Você sabe que não. Me incomoda ver as duas se agarrando pelos
cantos, doidinhas uma pela outra e sem querer que ninguém saiba.
— Ela não quer ir morar comigo em Punta. — Isabel pula de uma
prateleira, se apoiando nos punhos.
Dou espaço para ela passar.
— Vocês ouviram a gente conversando? — Pigarreio depois de
perguntar.
— Quê? A gente estava fazendo coisa mais interessante.
Marta alinha os cabelos e passo os olhos por seu corpo torneado.
— Vocês não são primos? Primas? Ai, sei lá. — Jogo as mãos ao alto.
— De segundo grau — as duas falam ao mesmo tempo como se já
tivessem repetido isso muitas vezes.
— Achei que você estava saindo com o amigo do Nuno — comento e
Isabel me encara com desdém.
— E eu achei que você era a garota do Diniz. — Ela olha para Nuno, que
se empertiga.
— Ela não é nada do Diniz.
— Claro. Ele só fez um filho nela. E depois te deu.
— Isabel... — Nuno fala como se fosse um alerta para a irmã não
continuar.
— Ué, você está cuidando da minha vida. Posso me dar ao direito de
cuidar da sua. Não sou a única fodendo escondida na cozinha.
— A gente não estava... — Me perco, abanando as mãos, tentando
indicar algo que nem sei o que é.
Isabel anda entre nós requebrando o quadril. Ela tem o olhar petulante de
quem está cansada de discutir e não chegar a lugar nenhum.
— Ah, que seja. Façam o que quiserem. Eu nem devia estar aqui.
Cuidado, Ane, os homens só nos enrolam. — Ela olha para Marta, cuja
expressão passa à frustrada.
— Não me considere um homem.
Isabel se aproxima dela e ergue o indicador. Nuno revira os olhos e então
pega meu pulso do mesmo jeito que Marta agarra o da irmã dele.
— Vem. Tenho uma ideia.
Saio da cozinha sendo arrastada por Nuno e olhando para trás, curiosa
para saber como vai se desenrolar a briga das duas, mas elas já estão se
pegando em um beijo apaixonado outra vez.
— Por um momento, cheguei a pensar que existisse algo entre você e
Marta— digo.
— Eu, hein? Nada contra, mas não faz o meu tipo. E nem eu faço o dela.
Acontece que Marta, Mário, era meu melhor amigo na infância e
adolescência. Ela sabe o quanto a minha parte da família é maluca e então
sempre me apoiou. Hoje é difícil pra ela sair daqui.
— Pra viver com a Isabel no Uruguai — completo, começando a
entender.
— Sim. Ela acha que vai ser dona de casa, depender de Isabel, enfrentar
preconceito. Quer ser independente e trabalhar pra mim a faz muito feliz,
segundo ela. Acho que tudo é autossabotagem. Elas seriam muito felizes
juntas, mas Marta tem medo.
Nuno diz tudo isso percorrendo sorrateiramente os corredores da
mansão. Quando chegamos ao jardim de inverno, ele para de frente para
mim.
— Então... qual a sua ideia — murmuro, presa em seus olhos.
— Primeiro, é mandar essa merda toda se foder e te beijar.
Nuno me puxa, colocando uma mão em minha nuca e a outra na cintura.
Sua língua me devora e quero despejar todo o meu discurso de que não
podemos e blá-blá-blá, mas simplesmente não tenho forças.
Ele gira o meu corpo e me coloca de costas, as mãos apoiadas na
poltrona de vime do jardim coberto por vidro. Me sinto exposta, mas os
dedos dele na minha garganta e sua voz poderosa em meu ouvido me dão
segurança para continuar:
— Você é minha e nem Diniz nem ninguém vai tirar isso de mim. Não
sou dono do seu corpo, das duas emoções ou do seu coração. Sabe como você
é minha, Ane Luise?
— Ahn? — Faço, inebriada com sua mão habilidosa desabotoando meu
jeans e invadindo minha calcinha.
— Sendo minha própria alma. A metade que me completa. Você sente?
Feche os olhos e me diga. O que você sente quando estamos conectados?
Ouço o ruído molhado. Ele cospe na mão e a passa entre minhas pernas.
Nuno desce ligeiramente meu jeans e escorrega para o meu interior,
desesperado para recebê-lo. Olho para baixo e fico aliviada quando vejo que
respeitou meus desejos e colocou a camisinha. Incrivelmente, sou tão burra
ou tão louca para senti-lo que deixaria isso de lado nesse momento. Não
consigo mensurar as consequências e ter alguém fazendo isso por mim é um
grande alívio.
— Diga, Ane — ele ordena, arremetendo contra meu corpo.
— Me sinto louca. Loucamente feliz e completa. Corajosa. Ambiciosa.
Vibrante e ah...
Me perco nas palavras quando ele aumenta a intensidade.
— Ótimo. Parece que sentimos as mesmas coisas. Agora preste atenção
no que vou te dizer.
Contraio o rosto. Ai, céus, por quê?
— Não consigo. Por favor, não consigo.
— Ah, você vai conseguir, sim. Sei ser bem insistente e inesquecível,
você não acha?
— Completamente — urro o final da palavra quando sinto meu ventre
arder de um prazer insano.
— Então, ouça, baby. Tenho um plano. Enquanto enrolamos Diniz, você
continua rebolando essa sua bunda gostosa no meu pau.
Sinto a pressão dos dedos de Nuno em meu ombro enquanto ele continua
a falar. Mal posso manter os olhos no lugar, as órbitas rolam, perdidas.
— Além disso, Marta vai te apresentar umas pessoas da alta sociedade de
Portugal que, tenho certeza, têm muito interesse na sua arte.
Um prazer inenarrável irradia do meu umbigo quando ele diz isso: arte.
O que eu faço é arte?
— Você vai ser a única responsável por tornar Ane Luise Macedônia
uma artista independente, bem-sucedida, mãe de Sofia e de todos os filhos
que você quiser, se quiser, e eu imploro aos céus que queira, ter comigo.
Porque, porra, eu sou capaz de virar dono de casa para cuidar deles todos
enquanto a mamãe fica rica e esfrega na cara do Diniz que não, ele não é o
pai de Sofia, e sim, eu o sou por direito.
Cada palavra rasgada dele é uma combinação de sensações e imagens de
um poder que não sei explicar, apenas sentir. Explodo em um orgasmo
descontrolado e perco as forças, desabando abaixo do corpo de Nuno.
Ele sai de mim enquanto tento puxar o ar, completamente sem fôlego.
Seus braços fortes me ajeitam sobre a poltrona e observo seu membro rígido
apontado para o teto.
— Tire a camisinha, querida, e fique de joelhos se quiser provar o gosto
do que causa em mim. Você vai me dizer se é como eu sinto: doce, potente,
forte.
Faço o que ele ordena sem tirar os olhos dos dele. Passo entre os meus
lábios a cabeça e depois o resto até onde consigo. Nuno segura meu cabelo e
força minha boca contra seu quadril. Ele tem o rosto mais lindo, desesperado
de um prazer insano pelo que estou fazendo.
É isso. Esse homem me faz sentir corajosa, poderosa. Pressiono a língua
contra a glande e Nuno não aguenta. Ele se entrega de um jeito lindo,
convulsionando sobre a minha cabeça, que abraça e beija quando acalma a
respiração.
— Esperei a vida toda para colocar Diniz no lugar dele. E sabe qual é,
Luise? — Seu polegar acaricia meu rosto.
— Não. — Nego também com a cabeça, limpando os lábios do líquido
dele: doce e intenso.
— Bem longe de você.
38
Ane Luise
Diniz se instalou no quarto contíguo ao meu com a desculpa de ficar
perto de Sofia, mas acabamos nos trombando a cada vez que saio para o
corredor. Experimento sair na ponta dos pés para o encontro que Nuno
marcou com Mônica e a mãe dele para falar da minha arte.
Olho para o maço de folhas amassadas entre os meus dedos trêmulos.
Será mesmo que isso é arte? Minha mãe teimou tanto que meus rabiscos
seriam ótimos para ensinar crianças em alfabetização que eu não consigo
acreditar que sirvam para outra coisa. Mostrá-los para outras pessoas me
deixa nervosa e quando peguei Nuno no meu quarto, ele os ter visto foi o que
mais me angustiou.
É uma sensação terrível criar algo com muito amor e ter vergonha disso.
E foi exatamente o que senti quando me descobri grávida de Sofia.
Impossível conter o sorriso que se forma em meus lábios quando penso
que sei onde ela está nesse exato minuto. Algo tão bobo, mas pela qual
sonhei tanto.
Rezei para ter um bebezinho saudável, porque sem documentação,
direito ao sistema de saúde ou um acompanhamento médico decente, sequer
fiz os exames necessários. Consegui pagar o de doze semanas, que me
disseram ser o mais importante, mas não conseguiram me dizer o sexo do
bebê. Depois, tudo o que ganhava eu usava para tomar as vitaminas que
seriam necessárias para ele.
Nunca imaginei que a pressão alta poderia afastar a minha filha de mim
como aconteceu. Mas isso não importa agora. Foco, Luise, foco no que
interessa. Sofia está pertinho e agora é batalhar para que Diniz devolva a
guarda dela.
Puxo o ar bem fundo e saio do quarto na ponta dos pés. Paraliso quando
o vejo apoiado no batente da minha porta.
— Meu bem, ia te chamar para darmos o jantar da nossa filhinha juntos.
Titubeio, tentando pensar no que fazer. Primeiro, esconder meus
desenhos.
— O que é isso? — Ele aponta para as folhas que dobro e tento esconder
no bolso da calça jeans, que agora posso usar, já que desde que descobriram
que Sofia é minha filha, me dispensaram do uniforme, apesar de eu não
concordar, pois não me falaram nada ainda sobre o meu trabalho e o meu
salário.
Já deixei claro para Nuno que não quero viver da renda dos Prado
Ribeiro por ser a mãe de Sofia. Espero que na nossa conversa hoje eu consiga
uma brecha para falar sobre o assunto.
— Isso? Ah, não é nada.
— Deixe-me ver. — Ele faz sinal com a mão para que eu entregue as
folhas, mas reluto.
— Não precisa. É bobagem, Diniz, sério.
Ele sorri e meus joelhos já não amolecem. Não é como se eu o amasse,
pois amo Nuno e disso tenho certeza. Em meu corpo, não há mais memória
dos sentimentos que ele me causou um dia.
— Diniz. Engraçado você me chamar assim. Me lembro bem de como
gritava na cama, ai, Biel, para — ele faz uma imitação grotesca de mim.
Baixo o rosto e olho para as mãos. Sinto as bochechas quentes e penso
em como sou idiota por corar por constrangimento assim. Não é um corar
como o calor apaixonado que sinto por Nuno, é de humilhação mesmo, e isso
é o pior.
— Anda, deixa eu ver o que você tem aqui. — Diniz contorna meu corpo
com agilidade e retira as folhas do meu bolso.
Tento pegá-las no ar, mas, mesmo sendo alta, ainda não o alcanço em
tamanho. Desisto e deixo cair os braços ao lado do corpo enquanto ele passa
as páginas. Agradeço mentalmente por ter separado os desenhos de Nuno e os
deixado no quarto. Olho de relance os rascunhos. A mansão, Sofia, a marina
de Vilamoura. O meu universo nos últimos tempos.
No meio de tudo isso, apenas tento reencontrar quem sou. Aquela
menina apaixonada pela vida. Não a que foi desaparecendo aos poucos
conforme os pais tentavam encaixar no formato que eles desejavam. Uma
garota que acreditou ter encontrado um amor e acabou perdendo tudo,
inclusive a dignidade. Pensando nisso, respiro fundo e tomo coragem de pedir
de volta as minhas artes, mas com delicadeza, porque tudo o que não quero é
me estressar com Diniz.
— Diniz, Gabriel, afe, seja lá como você prefere ser chamado, pode me
devolver as minhas coisas agora que já viu do que se trata?
Ele me olha de um jeito penetrante, como se fosse um rei e soubesse
algum segredo que não sei. Seus dedos dobram os papéis e ele faz questão de
ignorar minha mão estendida, os colocando de volta no meu bolso apenas
para sua pele tocar a minha. Já não me arrepio como antes, mesmo assim,
meu coração bate forte de um jeito que me deixa surda. É o medo que tenho
de cada atitude ardilosa dele.
— Muito fofos seus deseinhos, meu bem. Sofia pode pintá-los quando
crescer. Fazemos uns quadrinhos e os colocamos no quarto dela, na nossa
casa, o que acha? — Ele se aproxima, tocando meu rosto.
Desvio para o lado e os cabelos cobrem minha face. Diniz se abaixa um
pouco e aproxima a boca da minha orelha.
— Claro, querido — falo e mordo a bochecha, morrendo de medo que
ele tente me beijar.
E é o que faz. Sua mão escorrega para baixo dos meus cabelos e ele gira
o rosto.
— Ah, aí está você, Graciane, pelo amor de Deus, estamos todos te
esperando. — Margô brada do fundo do corredor e dou um passo atrás, pois
nem sabia que ela estaria envolvida.
Diniz suspira e sua expressão muda completamente quando se vira em
direção à avó, com um largo e falso sorriso, que ela devolve.
— O que as mulheres mais deslumbrantes dessa casa pretendem fazer,
posso saber?
Meus ombros caem e quase choramingo. Acho que Margô percebe que
não quero que Diniz saiba sobre o nosso possível projeto.
— Planejar a festa de um aninho da Sofia — ela diz, abanando o ar como
se fosse a coisa mais desinteressante da vida.
Um alívio percorre meu peito ao ver que Diniz acredita. Ele pega minha
mão e a beija.
— Vá lá escolher tudo do bom e do melhor. Quero as duas bem lindas.
Não poupe em nada. Vilamoura vai saber que Diniz Gabriel tem as mulheres
mais incríveis do mundo.
Margô anda até nós dois e encaixa o braço no meu.
— Vamos. Sem namoricos agora.
Saímos as duas em direção à biblioteca e quando ficamos sozinhas, ela
para e me analisa, apertando os olhinhos miúdos.
— De quem você gosta, afinal? Não vai fazer meus netos sofrerem,
menina. Diniz é um bon-vivant mas é um garoto muito bom. E Nuno já
sofreu demais nessa vida.
Balanço a cabeça, confusa. Nem eu sei o que responder. Óbvio que gosto
de Nuno, mas se ela resolver ficar ao lado de Diniz?
— Minha prioridade agora é Sofia.
— Então por que está tentando arrumar um trabalho?
— Como você sabe?
— Mônica me contou. Se querem chegar aos peixes grandes, sabem que
precisam de mim.
— Mas eu não quero peixe grande nenhum. Só quero um trabalho novo.
Não posso ficar dependendo do dinheiro dos Prado Ribeiro.
A senhora dá batidinhas nas costas da minha mão.
— Você já é uma Prado Ribeiro. Não depende do nosso dinheiro. Ele é
seu. É de Sofia.
— Não. Eu não quero. Ótimo se eu me acertar com o seu neto. Ótimo
fazer parte da família. Mas não quero voltar pra casa e dizer para a minha
mãe que tive um filho com um milionário e agora não preciso me preocupar
com nada. É exatamente isso que os meus pais esperam de mim.
Margô fica séria. Seus lábios diminuem até quase desaparecer.
— Não pense que sou boba ou cega, como Nuno acha, Luise. Na
verdade, tenho tentado fazer com que ele aproveite melhor a vida dele e
acredito que você seja a resposta. Você e Sofia. Mas agora que Diniz voltou,
entramos numa encruzilhada. E eu não gosto nada disso de briga de irmãos.
Muito menos de ver uma mulher dependendo do resultado desse embate.
Venha comigo. — Ela volta a me arrastar pelo corredor.
— Obrigada, Margô.
— Ah, deixe disso. Você é minha neta agora. Ah, e eu estava falando
sério sobre o aniversário de Sofia. Vai ser uma festa de deixar Vilamoura
impressionada.
Sinto um quentinho no coração. Minha menina foi tão amada nesse
tempo que esteve longe de mim.
Abro a porta da biblioteca e há um board [xxv]reunido à minha espera.
Fico com vergonha, receio de não estar à altura das expectativas. Nuno está
sentado em uma poltrona, as mãos entrelaçadas no meio dos joelhos. Mônica
tem a mão em seu ombro, o quadril apoiado no braço da poltrona do irmão.
Sônia aguarda ao lado dos filhos. A personagem mais importante da reunião
morde o pé de uma boneca e sorri ao me ver.
— Amor da mamãe. — Me abaixo e beijo sua cabecinha.
Nuno se levanta e para diante de mim enquanto me ergo também. Nossos
olhos se encontram e nos revejo no jardim de inverno, as promessas que
temos um para o outro, os medos e tudo o que preciso consertar antes de
pensar em ficar com ele, principalmente a minha liberdade e a guarda de
Sofia.
— Trouxe os desenhos?
Estendo as folhas para ele, agora com medo de que ele as diminua, como
Diniz acabou de fazer, sugerindo que virem desenhos para Sofia brincar.
— Você não me disse que seria uma reunião com boa parte da sua
família.
— Pensei em chamar Isabel, mas ela está com sua habitual dor de cabeça
após discussões com Marta.
— Marta e Isabel estão trepando de novo? — Margô se atira na poltrona
que Nuno liberou antes.
Eu e ele rimos. Entrego os papéis e ele os distribui entre as mulheres.
Elas analisam e trocam as imagens enquanto debatem a vida sexual de Isabel.
— Você sabe que eu tenho uma boca premonitória, não é? — Sônia diz,
virando uma página de lado e depois de cabeça para baixo.
Retorço as mãos como imagino que esteja retorcido meu estômago, de
tão nervosa que estou.
— Hum, diga, o que tem em mente sobre a Bel?
— Vai se sabotar.
Olhamos todos para ela, que ergue a folha contra a luz e aperta os olhos.
— Como? — Mônica se intromete.
— Eu vejo essas duas criando um bebê. Isso não me sai da cabeça.
Todo mundo ri, mais de nervoso do que de engraçado.
— Isabel ama a vida louca que leva em Punta Del Leste.
— E Diniz também. Agora vejam, está aqui, reivindicando a paternidade
de Sofia e o amor de Ane Luise. — Sônia mal termina de falar e percebe que
fez besteira.
Ela encara o filho, que franze a testa e pega minha mão.
— Vamos focar no que interessa? Conseguir uma oportunidade para
Luise? — ele pede, trincando os dentes, penso que de raiva por me imaginar
com Diniz e esse suposto romance tendo aprovação de toda a família Prado
Ribeiro.
Mônica se levanta e entrega seu desenho para Nuno, parando ao nosso
lado.
— Eu tenho uma sugestão.
— Diga, querida — Margô se abaixa com dificuldade e pega Sofia no
colo, a ajeitando em seu joelho.
Minha filha pisca seus olhinhos verdes para mim e isso é tudo o que me
motiva para ficar e ouvir o que pretendem, o que acham dos meus desenhos.
— O trabalho é bom. Mas é uma cópia.
Murcho por dentro com o que ela diz. Nuno aperta meus dedos com os
seus ao perceber minha frustração.
— Mon...
A irmã dele ergue a mão, o impedindo de continuar a falar.
— Não terminei. Quero ver algo criativo. Coisas da sua cabeça, Luise.
Por mais loucas que sejam. Acho que tem um talento para moda. Suas riscas
das peças de Sofia são perfeitas. Os detalhes da casa também, mas não posso
te fazer uma arquiteta em poucos meses. O que posso é te colocar no design
de roupas.
— Nicola? — Margô pergunta e percebo que já está mascando um de
seus cravos, compenetrada em se conectar às ideias da neta.
— Exatamente.
— Ah, ótimo, querida. Nicola é um bom começo.
Pigarreio e ergo o dedo.
— Posso saber quem é Nicola?
— A maior estilista infantil de luxo da Europa — Nuno me explica e
meu queixo cai.
— É, parece que meus desenhos não são ruins — balbucio, soltando o ar
devagar.
Os Prado Ribeiro se olham e caem no riso.
— Ruins? Se você faz cópias nesse nível, imagina o que cria nessa
cabecinha. Agora ande. Vamos cuidar de Sofia para você fazer alguns
esboços e nos mostrar. Duas ou três peças devem servir para enviarmos à
Nicola. Já tem algo em mente?
Troco olhares marotos com Margô e ela assente com a cabeça.
— Sim. As roupas que Sofia vai usar na festa de um aninho dela.
Nuno me avalia e sei no que está pensando: essa é a data em que
supostamente ele perderá a guarda de Sofia de volta para Diniz.
— Esse é o dia que mais temi nos últimos meses — ele fala, triste.
— Não seja tolo, Nuno. Não conheço um homem mais determinado que
você. Quando foi que quis alguma coisa e não a teve? — Margô ergue uma
sobrancelha para o neto e ele concorda com a cabeça.
— Não quero pressionar, vó, mas Luise ainda não entendeu isso muito
bem. Por enquanto, só espero que ela faça sucesso logo.
Levanto o indicador entre nós dois.
— Nem sonhem em facilitar o meu caminho. Aceito que enviem o meu
material para essa tal de Nicola, mas nada mais.
— Um financiamento inicial não seria má ideia, querida. — Sônia
acaricia minhas costas.
— Não. Eu faço questão — digo.
— Mesmo assim vão falar. Você sabe, não é? Vão dizer que deu o golpe
da barriga, que os Prado Ribeiro te deram dinheiro e todos os
empurrõezinhos. Isso é ser mulher, Ane — Mônica lamenta e sei que está
certa.
— Tudo bem. Eu sempre saberei a verdade e é isso o que importa. Agora
vamos, preciso trabalhar. — Bato palmas e me sento na escrivaninha
enquanto eles preparam Sofia como minha modelo.
A melhor modelo de todos os tempos.
39
Ane Luise
Falta noventa dias para o aniversário de Sofia. Parece pouco, mas para
quem está à espera de ser mãe da própria filha, é a eternidade. Tantas coisas
podem acontecer em três meses.
Aperto o cobertor nos ombros de Sofia e beijo sua bochecha. Ela suspira,
presa em seu sonho de bebê. Mal posso imaginar o quanto chorou até que eu
chegasse a essa casa, as noites sem dormir.
Ela está crescendo e agora é tão parecida com Diniz. E, lógico,
consequentemente, com Nuno. Passaria como filha dele sem problema
nenhum, assim como passou. Tirando a cor dos olhos, que é quase a mesma
da minha, só que um verde um pouco acastanhado.
— Boa noite, minha princesa. Mamãe te ama.
Saio do quarto e fecho a porta com delicadeza. A babá eletrônica está
com Sônia agora, depois de Diniz e Nuno terem discutido sobre quem deveria
tomar conta dela. Legalmente, ainda Nuno. Daqui a poucos dias, Diniz. E eu,
se não andar conforme os passos dele, nunca.
— Oi, Ane — Lili fala, me fazendo levar a mão ao peito.
— Ai, que susto, menina.
— Estava fazendo algo errado? — Ela me olha com um ar divertido.
— Claro que não. Fui colocar Sofia para dormir.
— Hum. Meu pai me falou que você não trabalha mais para os Prado
Ribeiro.
Ergo um ombro e saio andando. Liliana vem atrás de mim.
— Não posso ser a babá de Sofia se sou a mãe dela.
— E você sabe por qual motivo ainda não é oficialmente a mãe dela, não
sabe?
Estaco no caminho. Para onde mesmo eu estava indo?
Ah, sala de jantar. Essa menina está me deixando confusa. Giro o corpo
em direção ao caminho certo e Lili fica exatamente na minha frente.
— Então não sabe, não é mesmo?
Adoro a família de Nuno. Passei momentos divertidos com todos eles no
verão. Até com Lili, mas desde que Diniz chegou a essa casa, ela está
estranha, me cercando com o que acredito beirar a uma carência extrema.
Mônica me falou para ter paciência. Lili foi abandonada pela mãe e Diniz era
novo demais para criá-la. Agora está idealizando a chance de ter uma família
de verdade e eu sou o alvo.
— Do que você está falando, querida? — Toco seu queixo delicado.
Ela é toda pequenina e parece meiga na primeira impressão. Depois,
percebemos o quanto tem um olhar obstinado.
— Tio Nuno chamou os advogados lá no cassino. O dele e o de Diniz.
Eu estava lá.
Meu estômago revira quando me lembro do advogado de Diniz me
recebendo no aeroporto, das minhas tentativas de falar com o pai do meu
filho e aquele homem nojento sempre atender ao telefone e tentar me
dispensar, oferecendo dinheiro. Acho que minha expressão apreensiva fica
evidente, pois Lili continua falando:
— Sei que você tem medo, Ane. Imagino o que passou.
— Não, você não imagina — brado e me recordo que discutir com ela
pode equivaler a discutir com Diniz, então baixo o tom de voz. — Desculpa,
Lili. Tive momentos ruins no passado com seu pai e aquele advogado.
— Não. Papai não sabia de nada. Foi aquele cara que tentou proteger a
carreira do cliente. Meu pai já te explicou isso.
— Uhum. Claro. — Mordo a bochecha, tentando conter a ansiedade.
Tento passar pela menina e continuar o meu caminho, mas ela bloqueia
meu corpo, mesmo sendo pequenina.
— Você ainda não confia nele. Mas, sabe, talvez esteja direcionando sua
raiva para a pessoa errada. Eu estava na sala ao lado. Pude ouvir a conversa
deles com os advogados. E sabe quem é que não quer ceder? Tio Nuno. Ele
podia devolver a guarda de Sofia para o meu pai hoje, se quisesse. E aí eles
retificavam a certidão dela, te incluindo como mãe. Acontece que ele não
quer. Está brigando com meu pai pela assinatura do contrato do cassino de
Ibiza e também tem medo de que você fuja com a minha irmã depois disso.
Mas você não vai, né? Não vai tirar de mim a minha irmãzinha, Ane, por
favor, me prometa isso. — Lili agarra as minhas mãos e me olha, suplicante.
Sinto uma dor no corpo muito forte. Todas as articulações doem e só
quero me deitar um pouco, mas combinei de conversar com Mônica sobre o
projeto com Nicola. A estilista já analisou meus desenhos e tem uma
resposta. Só que agora é um péssimo momento para enfiar em minha cabeça
qualquer coisa que me digam.
As palavras de Liliana estão martelando insistentemente na minha
têmpora: Ele podia devolver a guarda de Sofia para o meu pai hoje, se
quisesse.
Faço uma força absurda para reter o ar que preciso para falar. Melhor
não contar nada para ela sobre o projeto com Nicola.
— Lili, eu preciso ir. Mônica quer falar comigo
— Ok. Espero que tenha entendido agora em quem confiar.
Aceno com a cabeça e pego a esquerda no corredor, zonza, cuidando os
pés para não tropeçar. Assim que saio da vista de Liliana, começo a correr,
me apoiando nas paredes quando penso que vou desabar. Chego na porta da
sala de estar sem fôlego nenhum e demoro uns segundos ali até me recompor
para poder entrar.
A empolgação da conversa cessa quando eles me veem. Imagino estar
com uma aparência péssima então aliso a saia na altura da coxa e enrolo os
cabelos, colocando tudo para trás. Os fios ficam molhados do suor da minha
mão.
— Luise, você está bem? — Nuno anda até mim e olho para baixo.
— Sim.
Não consigo encará-lo. Seus dedos erguem meu queixo mas desvio, indo
até onde as mulheres estão reunidas.
— Boa noite. Ah, meu Deus, senhora Nicola. Não sabia que viria —
falo, realmente surpresa com a presença inesperada dela.
A mulher deve ter a idade de Margô e se levanta ignorando as ofertas de
ajuda, como a avó de Nuno. Ela pressiona os lábios enquanto passa os olhos
por mim como se eu fosse um cavalo de corrida.
— Fazia anos que eu não via alguém com tanto talento.
O meu estômago flutua e então pesa e cai, em alívio.
— Obrigada — murmuro, tímida.
— Podemos trabalhar um pouco seu lado criativo, mas, para quem nunca
atuou no ramo, fiquei impressionada. Mas também não sou de ficar
bajulando. Quero ver é trabalho. Tenho uma coleção para montar em três
meses e estou atrasadíssima. Passei os últimos meses no hospital e não
produzi nada, mas espero que você me salve. Foi um milagre os Prado
Ribeiro terem me arranjado você.
— Posso dizer o mesmo — falo, deixando escapar um sorriso tímido.
Conversamos sobre os detalhes do trabalho e a senhora se vai. Depois de
um longo e pensativo banho, desço para o jantar com o cabelo molhado.
Ouço os risos na sala de refeições, mas antes de chegar até ela, sou
interceptada por um Diniz sorridente, com aquele curvar de lábios malicioso
da qual me lembro com certo formigar no estômago, mas agora de repulsa.
— Oi. Gosto de você com o cabelo assim. Me faz lembrar daquela vez
quando te levei para o meu hotel e tomamos banho de banheira.
Ergo uma sobrancelha.
Ai, Ane Luise, não caia nessa.
— Não esqueço o quanto o seu corpo perfeito ficou entregue sob o meu.
O aroma delicioso das velas espalhadas pelo banheiro, seus cabelos
ricocheteando nas costas enquanto fazíamos amor.
Amor? Rá! Não era amor. Lembre-se do que realmente importa, Luise:
você foi enganada.
Sinto uma comoção interna. Ser enganada resultou na maior dádiva da
minha vida: Sofia.
Diniz olha para meu corpo como se eu fosse um cordeiro assado e ele um
carnívoro morrendo de fome.
— Lembra, Alu, daquela vez?
— Como eu poderia esquecer?
Ele sorri, mas desmancho sua expressão quando continuo:
— Foi quando você me falou que não tinha problema fazer sexo na água
sem proteção, porque assim não engravidava. Parece que Sofia está aí para
discordar de você. — Levanto um ombro em desdém.
Tento desviar dele e entrar na sala de jantar, mas Diniz me bloqueia,
segurando meu braço.
— Ei, meu bem, e isso não é a melhor coisa da sua vida? Sei que não foi
fácil, mas agora ela está aqui, é nosso bebê. Eu nunca vou esquecer dos
momentos maravilhosos que tive com a mãe dela em meus braços. E não sei
se você entendeu, mas eu adoraria repetir. Infelizmente, eu sei que você não é
mais só minha, mas não tem problema. Podemos esquecer isso e reviver
nosso amor. Eu lembro o quanto você estava apaixonada, Alu. Ora, vamos.
Sofia será muito feliz se tiver os pais juntos.
Abro e fecho a boca. Não sinto meu coração e imagino que deva estar o
mais longe de Diniz que consegue. Mas se fosse há um tempo atrás, eu
saberia que estava voando embora apenas para ouvir o que Diniz está falando
agora.
A porta atrás dele abre e percebo que o silêncio que nos cerca já dura um
certo tempo. Nuno aparece enfurecido.
— No momento, eu sou o pai de Sofia. E ela está muito feliz assim —
ele brada e é impossível não trocar olhares com Diniz.
Sem falar nada, entendo o que quer dizer. É um óbvio: viu?, eu te falei.
Impossível não remoer isso, mas não consigo acreditar que Nuno esteja
me impedindo de ter a guarda da minha filha por causa da sua rixa com o
irmão, como Lili insinuou.
Sentamos ao redor da mesa e tento fugir dos dois, mas eles me cercam,
sentando um de cada lado. Observo como lutam pela atenção de Sofia e não
consigo evitar um sorriso quando Diniz a faz gargalhar.
É quase impossível conter as piscinas que se tornam meus olhos. Por
tanto tempo imaginei essa cena, nós dois ao redor de uma mesa,
compartilhando a alegria da paternidade.
É difícil manter a objetividade assim. Os dois homens passam boa parte
do jantar tocando de leve em meus braços, me chamando para contar algo ao
pé do ouvido, me passando uma taça de vinho.
Quando a sobremesa chega, Matilde serve aletria, uma sobremesa típica
portuguesa e feita com massa doce e gosto de arroz de leite, para todos
enquanto Diniz fala em tom mais forte, fazendo os outros silenciarem:
— Então, Marta, tudo pronto para a assinatura do contrato?
A prima dele limpa a boca no guardanapo de tecido azul e o coloca no
colo outra vez, procurando o olhar de Nuno, que toma para si a resposta.
— Ainda não. Os espanhóis pediram um tempo.
Saber que é mentira me deixa tensa.
— Sério, achei que eles que estivessem ansiosos por isso.
— Tiveram um problema não relacionado à negociação. Mais alguns
dias e tudo estará resolvido — Nuno fala, seco.
— Ótimo. Estou adorando ter a família aqui mais tempo do que o
previsto — Margô fala da ponta da mesa.
— É, mas eu tenho que voltar. Não posso deixar os meus cassinos
abandonados — o pai de Nuno diz antes de virar um copo de uísque.
Levo um susto quando Diniz bate na mesa e se levanta. Seu jeito
animado e aventureiro volta em minhas lembranças.
— Tive uma ideia. Vamos passar o fim de semana em Ibiza. Faz tempo
que vocês não vão para a minha casa e acho que seria um ótimo lugar para
nos reunirmos. O verão já acabou por aqui, mas lá ainda teremos dias
incríveis.
Percebo a tensão de Nuno, o maxilar rígido e a mão apertando a minha
coxa. Sua boca se aproxima do meu ouvido.
— É uma péssima ideia — sussurra para mim.
Estremeço quando Diniz se senta e pousa os dedos em minha outra perna
enquanto a família Prado Ribeiro se agita, fervilhando de planos para alguns
dias em uma ilha na Espanha.
— Você vai adorar conhecer a minha casa — Diniz murmura em meu
ouvido.
Fecho os olhos, me imaginando ouvindo isso antes. Por quanto tempo
alimentei a curiosidade de saber onde ele vivia? De tentar me ver nesse lugar
ao lado dele e do nosso filho?
Viro o rosto na direção de Diniz e dou um sorriso cínico.
— Com certeza eu vou adorar.
Assim, partimos no dia seguinte para a ilha da diversão. Aparentemente,
o único que não acha a ideia divertida é Nuno, que passa o voo todo
emburrado e me vigiando de longe.
Assim que chegamos no jardim da casa praiana de Diniz, com dezenas
de malas, um monte de empregados e em alguns carros, ele para ao meu lado
quando estou apertando forte Sofia contra meu peito.
— Imagino que tenha sonhado em ser recebida aqui quando veio do
Brasil atrás do meu irmão — Nuno diz, seco.
— Não vou mentir, Nuno. Sonhei sim ser a dona dessa casa.
Sinto as mãos de Diniz sobre meu ombro e ele me rouba um beijo na
bochecha. Nuno se contrai. Seu irmão joga pesado.
— Essa é sua casa agora, meu bem. Mesmo que você relute em aceitar
que eu fechei a loja para outras mulheres e meu coração está com falência
decretada por causa de você, esse lugar sempre será da mãe da minha filha.
Nuno dá uma gargalhada.
— Então essa casa também é da mãe de Lili.
— Não seja idiota. Mal tive algo com ela. É diferente do que aconteceu
entre Alu e eu. Ela me entregou toda sua pureza e inocência. Eu que fui um
tolo e foquei na carreira, quase perdi a chance da minha vida. — Os dedos de
Diniz massageiam meus trapézios, me deixando rígida.
Nuno vira um leão e passa o braço na minha cintura, me afastando do
outro.
— Luise está comigo.
— Será mesmo? Talvez você deva considerar que essa relação envolve
um certo medo de um chefe autoritário e guardião possessivo da filha dela.
— Ah, Diniz, faça-me o favor...
Margô se atravessa entre nós, bradando sua bengala.
— Façam-me o favor, vocês, porque eu não quero ninguém estragando
meu fim de semana no lugar onde tenho memórias incríveis do meu velho.
— Você tem razão, Margô. Não vamos nos exaltar. Ane é uma menina,
mas vai entender o que está acontecendo mais cedo ou mais tarde. Não é tão
burra assim — Diniz fala, colocando as mãos nos bolsos da calça.
Oi? Não sou tão burra assim? Sinto as bochechas esquentarem.
Ele passa o braço pelo da avó e desaparece com a senhora em direção à
praia. Nuno me conduz pela piscina até entrarmos na casa.
— Quero você no meu quarto, comigo.
— Mas, Nuno, eu acho melhor...
— Sem discussão. Chega. Diniz está usando nós dois. Quero comunicar
oficialmente aos Prado Ribeiro que estamos juntos. Porra, Ane, depois de
tudo isso eu não vou aceitar te perder. E estou doendo de saudade do seu
cheiro na minha cama. — Ele se aproxima e me aninha em seu peito.
Sofia resmunga em meu colo e ouço alguém pigarrear.
— Posso levar Sofia para dar uma volta na praia, se vocês quiserem.
Isabel está me esnobando mesmo. — Marta parece desanimada e tenho pena
dela, sei o que é ter o amor ignorado.
Deixamos que ela leve a bebê e ficamos olhando para as duas
caminhando em direção ao mar. Penso nas coisas que Nuno acabou de me
falar e percebo que não é hora para colocar tudo a perder.
— Nuno, a gente pode ficar juntos agora e depois, mas não me peça para
dormir com você publicamente. Eu te amo, mas não quero brigar com Diniz.
Por favor.
Nuno me puxa para um abraço e beija minha testa. Depois minha orelha
e então se abaixa até o meu ombro.
— Tudo bem. Você tem razão. Eu estou sendo um idiota possessivo.
— Falando nisso, ele disse que você está sendo um idiota porque poderia
devolver a ele a guarda de Sofia e, consequentemente, está atrasando a
alteração da certidão dela com meu nome como mãe.
Mordo a boca, morrendo de medo de ter despejado algo que não deveria,
mas não aguentei até aqui para deixar passar uma coisa óbvia dessas. O rosto
de Nuno vira uma sombra.
— Ele te disse isso, é? Mas não disse que se eu passar a guarda de volta
ele vai jogar com você, te obrigar a ficar com ele só pra me atingir.
— Nuno, ninguém vai me obrigar a ficar com ninguém.
— Se você está com medo de brigar com ele agora, imagina se Diniz
estiver com a guarda de Sofia.
40
Ane Luise
Sentada diante do mar, desenho alguns modelitos conforme solicitado
por Nicola. O dia está lindo e claro. Quase sem vento. Não ergo a cabeça do
trabalho quando alguém senta ao meu lado no jardim da casa de Diniz.
— Trouxe seu café. Longo e fraco. Sem açúcar, como você gosta — ele
diz, me estendendo uma caneca fumegante.
Largo a prancheta com os croquis[xxvi] em cima da mesa e o encaro.
— Toma. Pegue — ele insiste com seu sotaque agora ainda mais
espanholado desde que chegamos em Ibiza.
O fato de Diniz se lembrar de como eu gosto do café somado a ele afagar
minha mão e murmurar um "cariño", me fazem esfregar um joelho contra o
outro em agonia.
Impossível evitar a imagem dele sobre o meu corpo em uma tenda num
festival qualquer. Impossível não sentir ânsia, vergonha. Nuno... só quero
Nuno e esquecer esse passado embaraçoso.
— Era como eu te chamava na hora do êxtase, "ai, cariño[xxvii]". Lembra?
— ele fala sem tirar os olhos dos meus.
Me sinto meio boba. Será que no fundo tudo o que Diniz está falando
sobre o modo como desapareceu da minha vida é verdade? Não pode ser.
Nuno tem razão, preciso ficar atenta sobre tudo o que envolve Diniz.
— Como consegue se lembrar de como eu gosto do café?
— Pelo mesmo motivo pela qual ele te chama de cariño. — Nuno
aparece diante de mim e levanto o rosto para ele. — Talvez ele devesse ter te
chamado pelo nome, mas, tamanha era sua insignificância dentre todas as que
ele levava para cama, era mais seguro falar "cariño" pra não confundir de
garota.
Diniz joga as mãos para o alto e observo de canto como revira os olhos.
— Pronto, senhor sabichão chegou. Você não sabe de nada sobre o que
eu e Alu vivemos.
— Graças a Deus. Me revira o estômago pensar no modo como você
praticamente esqueceu que ela existia depois que saiu do Brasil.
Pego minha prancheta e a abraço contra o peito.
— Ok. Não vou ficar no meio de uma rixa entre irmãos.
— Luise, você não está no meio. Está ao meu lado. Não pense que Diniz
se lembra de como gosta do café. Ele simplesmente perguntou a alguém que
saiba.
Nuno consegue irritar o irmão, que se levanta e se põe quase com o nariz
colado ao do outro.
— Você continua sendo um babaca que tenta pegar o que é meu.
— Luise não é sua nem nunca foi.
— Mas Sofia é e não pense que vai roubá-la de mim.
Isabel se enfia entre os irmãos e os separa, empurrando cada um para um
lado.
— Pelo amor de Deus, vocês dois, isso é pra ser um final de semana
divertido.
Enquanto Nuno esfrega o rosto e tenta se acalmar, Diniz já está sorrindo.
Ele volta a se sentar ao meu lado e espia por cima do meu ombro os papéis
em que estou trabalhando.
— Do que está brincando, meu bem?
Franzo a testa e Nuno me encara como quem diz, viu?
— Brincando? Eu estou trabalhando.
A risada dele gela meu sangue. Nuno abre a boca, mas estendo a mão na
direção dele antes que fale. Eu mesma posso me defender.
— Do que está rindo.
Diniz tenta se recompor. Até Isabel está emburrada agora.
— Não estou rindo.
— Não é o que parece.
— Desculpe. É que achei uma perda de tempo, meu bem. Você agora é
irremediavelmente uma mulher rica. Não precisa fazer deseinhos ou ter um
subemprego. Por falar nisso, a rescisão dela já foi feita, Nuno?
— Não é da sua conta. E Ane está trabalhando com uma estilista. Não é
um subemprego.
— Alu, você não tem que fazer isso. Aposto que foi ideia do meu irmão.
Aproveite e use seu tempo para Sofia. O resto é bobagem.
— Isso é uma questão de opinião, Diniz. Se ela já tivesse se formado
antes de ter que correr o mundo atrás de você, provavelmente não precisaria
ter se separado da filha.
— Ai, minha doce Ane, espero que não se torne uma chata como seu ex-
patrão. Na nossa época, eu adorava sua doçura e simplicidade.
— Essa época acabou — Nuno rosna e Isabel o impede de avançar
contra um descontraído Diniz.
Ela me encara e revira os olhos.
— Homens. Parecem cervos, lutando pela posse de uma fêmea. Estou de
saco cheio disso.
— O que houve? Thiago e Eduardo estão no seu encalço? — Diniz
pergunta e aproveito que não sou mais o assunto principal para me levantar e
iniciar uma fuga.
— Sim. Uns chatos.
— Você os considera chatos porque não são quem você deseja...
— Bel. — A voz de Marta faz todos nós olharmos para trás, na direção
da casa branca, com contornos mouriscos.
A irmã mais nova de Nuno olha para o céu e desconfio que é para conter
lágrimas teimosas. Sei bem como é isso.
— O que é, Marta.
— Bel, fala comigo, por favor. A gente precisa conversar. Eu não vim
aqui para trabalhar para o Nuno e muito menos para te ver entre o Thiago e o
Eduardo, porra.
Contenho um sorriso quando a voz de Marta fica mais grossa, bem
masculina. Como não percebi antes?
— Não consigo. Não posso. — Ao terminar as palavras, Isabel já está
chorosa.
Ela bate o pé no chão e descruza os braços, que estende em direção à
Marta. As duas dão um longo e apaixonado beijo que me tira o fôlego.
— Love is in the air [xxviii]— Diniz fala e se levanta, passando o braço por
cima do meu ombro.
Escorrego para longe como manteiga quente.
— Tenho que ir. Preciso terminar esses esboços. Nicola prometeu me
pagar assim que eles forem entregues. — Sorrio de orelha a orelha,
orgulhosa.
— Eu posso te dar dinheiro, se está precisando. — Quando Diniz fala
isso, Nuno toca de leve minhas costas e me conduz por alguns passos.
— E eu posso quebrar a sua cara — ele murmura, me fazendo rir.
Quando entramos na sala, Margarida, a filhinha de Mônica, está
brincando com Sofia no chão repleto de brinquedos.
— Vocês sempre se estranharam assim? — pergunto, curiosa.
— Diniz nunca foi meu melhor amigo, mas uma mancada mais grave foi
o que nos afastou.
— Depois disso, nem uma fotografia de Diniz na nossa casa o Nuno
aceita — Margô fala, sentada no sofá, com as crianças aos seus pés.
Nuno ajeita a calça na altura das coxas e se senta ao lado de Sofia.
Percebo que ele é o pai dela agora. Não importa o que o DNA diga, é o que
ele é. Impossível não sorrir com a imagem dele sentado no chão, brincando
com a bebê. Ela estende os bracinhos e ele a coloca sentada em sua perna.
Então olha para mim e me perco em seu olhar.
— Vem, mamãe, Sofi te quer aqui — ele diz e sinto o mundo vibrar.
Mamãe.
Faço o que ele diz e ficamos brincando como se nós dois fôssemos os
pais dela.
— Queria que minha mãe conhecesse a neta — murmuro e Nuno levanta
meu rosto.
— Ela vai. Vamos resolver tudo aqui e vou com você ao Brasil. Quero
que termine a faculdade. Vou te ajudar a cuidar de Sofia.
— Mas, Nuno, são seis meses.
— Só seis meses. Passa voando. Você pode continuar trabalhando para a
Nicola enquanto isso. Primeiro vamos resolver a situação aqui, ok?
Assinto com a cabeça, tentando não transparecer minha preocupação.
Quando Nuno vai poder passar a guarda de volta para Diniz sem que ele
jogue comigo pela responsabilidade por nossa filha?
— Amanhã vou dar uma festa. Quero comemorar a presença da minha
família nessa casa. Reviver a juventude de Margô, que sei que deu grandes
festas aqui, não é, minha doce avó? — Diniz passa por nós falando.
Margô bate palmas e ele a beija no rosto.
— Ah, como eu adoro estar perto de você. Isso, encha essa casa. Traga
de volta a memória do meu velho.
Vejo o desagrado de Nuno, mas ele não diz nada.
— Vou te ajudar. Faz tempo que não organizo uma festa — Mônica fala
para o irmão e se aninha em um canto com ele, repassando contatos e
fornecedores.
— Como eles vão conseguir fazer isso tudo até amanhã? — pergunto a
Nuno.
— É o que ele faz de melhor: iludir as pessoas com seu circo. É muito
rápido e efetivo em fazer isso.
Desvio o olhar. Ele tem razão. Diniz foi muito hábil em me iludir. Mas
dessa vez eu não caio. Por Sofia, por ela eu faço tudo, principalmente me
esquecer de como é estar nos braços do verdadeiro pai dela, para nunca mais
ter vergonha de mim mesma.
41
Ane Luise
Sônia e Roberto acenam ao entrar no carro com Sofia e Margarida nos
braços. Tenório fecha a porta e eles partem para o hotel do cassino antigo de
Diniz. Nuno cobre meus ombros e alisa meu braço, beijando minha cabeça
em seguida.
— Você sabe, se fosse por mim, ela não iria.
— Se fosse, por você, ela seguiria um cronograma fabril.
Ele sorri. Sabe que é verdade.
— Não é por isso. Apenas acho que nós dois devíamos ir junto para o
hotel. Não quero ficar nessa festa idiota do Diniz.
Olho para ele.
— Ele está dando essa festa idiota para a família dele. Sua mãe
gentilmente se dispôs a ir para um hotel com as crianças. Margô está ansiosa
por se divertir. Suas irmãs também e acredito que você esteja precisando
espairecer um pouco.
— Não vai ser em um ambiente desses que isso vai acontecer.
— Ok, Nuno. Só não vamos brigar. Você sabe o quanto estou tentando
manter a minha paz com Diniz. E ela está por um fio.
— Não vejo a hora desse fio arrebentar. — Ele suspira.
Cruzo os braços diante do peito.
— Às vezes você parece estar contra mim.
Nuno segura meus cotovelos e me puxa para perto. Seus lábios tocam os
meus e não fecho os olhos, à procura de Diniz. Não quero que ele nos veja
tendo contatos íntimos. Pode irritá-lo. Mas quando Nuno desliza uma mão
para a minha cintura e outra para minha nuca, acabo me perdendo em seu
gosto.
— Estou mais do que ao seu lado. Se você quiser, buscamos Sofia de
volta agora e vamos para o Brasil, mostrá-la para sua família.
Jogo a cabeça para trás e dou uma gargalhada cínica.
— Meus pais te chutariam para fora. Está louco? Eu chegar em casa com
uma bebê que, na prática nem é minha, e o pai dela a tiracolo? Oi, mãe. Esse
é o irmão do pai de Sofia. Estou dormindo com ele agora. Ah, não te contei?
Eu tive uma bebê e a entreguei para um vida louca que a passou adiante. —
Minha risada fica triste e chorosa.
Nuno esfrega meu braço e me aperta contra o peito.
— Calma, amor. Não é assim que as coisas vão acontecer. Agora vá se
arrumar. Se não posso passar a noite desfilando ao seu lado, jogue um lençol
por cima e está pronta. Não quero Diniz se assanhando pra você. — Nuno
morde meu lábio e se despede.
No caminho para o meu quarto, fico impressionada ao ver a quantidade
de pessoas trabalhando. Uns montam uma estrutura para um bar, com uma
cobertura branca de tecido. Outros tratam da piscina, enchem balões, testam
luzes, som. Não vejo ninguém da família. Nuno me falou que eles gostam de
se reunir para jogar no cassino antes dessas festas do DJ Biel. O ar me escapa
quando reconheço uma imagem. Estou parada exatamente no enquadramento
de uma das raras fotos pessoais das redes sociais de Diniz. O set dele,
montado perto da piscina, com o mar como fundo e um pedacinho da casa
aparecendo. Gastei horas no Google Maps[xxix] tentando descobrir que lugar
era esse e agora, ironicamente, estou aqui, tentando fugir das investidas do
cara que tanto desejei encontrar.
No quarto, penso nas poucas festas que fui com Camila. As de Diniz.
Visto uma camiseta branca e um jeans claro. Faço uma trança lateral e prendo
a ela algumas flores também brancas que peguei no jardim. Espero que não
sejam raras ou plantadas por jardineiros luxuosos do Caribe. Essas coisas de
milionários me deixam exausta.
Quando passo o brilho nos lábios, sou capaz de sentir o gosto do beijo de
Nuno. O beijo que desejo no fim da festa, quando ele entrar sorrateiramente
no meu quarto, do nosso jeito de sempre, escondidos. Afe, quando isso vai
acabar?
— Você está pronta? — Isabel abre a porta e me analisa de cima a baixo.
Marta está atrás dela, vestindo uma roupa casual como nunca a vi.
Thiago e Eduardo também estão parados, esperando por Isabel. Essa garota
não existe.
— Vai fazer o quê, uma competição para escolher com qual dos três
ficar? — sussurro para ela, apontando os pretendes aguardando no corredor.
Isabel dá uma olhada por cima do ombro e sorri.
— Acho que você devia fazer o mesmo.
— Eu já escolhi, Bel. E acho que você devia fazer o mesmo.
— Com base no quê?
— Com base em quem protegeu a minha filha, com quem eu gostaria de
ter uma família.
— Hum, fiquei confusa. Nuno não é um cara muito família, mas foi
quem cuidou de Sofia. Diniz é muito mais ligado aos Prado Ribeiro.
— Talvez seja o modo como vocês veem isso. Quem preservou a
identidade da família, os negócios? Se não fosse Nuno, vocês não estariam
mantendo esse estilo de vida agora.
Isabel ergue um ombro e faz um muxoxo.
— É. Você tem razão. Mas tem algumas coisas que você não sabe sobre
o Nuno. Ele não é todo perfeito como quer fazer parecer. No fundo, é um
Prado Ribeiro, com um bom passado sujo. A diferença é que ele tenta
esconder. Mas isso não importa. — Isabel levanta meu braço e me faz girar
dentro dele.
Girar como a minha cabeça está fazendo agora. Nuno com um passado
sujo? Ela não me dá tempo para refletir. Me puxa para fora do quarto
enquanto despeja palavras sem fim:
— Vamos. Já está cheio de gente lá fora e não gosto de pegar fila para as
bebidas. Ah, você está linda. Diva. Amei seu cabelo. Não chegue perto de
Marta, ok. Sou um pouco ciumenta com ela.
Dou uma gargalhada. Definitivamente Marta não me atrai. Gosto de um
bom e másculo corpo como o de Nuno. A música no corredor já está alta e os
três atrás de nós não conseguem nos ouvir. Assim espero.
Saímos no jardim e fico boba com tanta gente. Mas meu sorriso se abre
mesmo é ao ver Margô bem sentada ao lado do set [xxx]de Diniz. Ele toca com
o fone meio enjambrado em um ouvido e no outro não. Volta e meia troca
olhares e sorrisos com a avó, que aponta para a mesa de som, indicando um
ou outro movimento que não entendo.
Procuro por Nuno, mas não o encontro. Isabel para na barraca de bebidas
e pede algumas, que distribui para Marta, Thiago, Eduardo e eu. Eles logo
começam o ataque, intercalando tentativas de conversas na orelha de Isabel.
Me sinto meio sozinha e logo meu drinque docinho desaparece.
Volto para a fila para pegar mais um e sinto alguém tocar meu corpo.
Liliana sorri, as covinhas marcadas por tinta neon, brilhantes assim como a
minha camiseta que já não é mais branca. Ela fala algo com o barman e
depois pega dois copos que ele lhe entrega.
— Meu pai é demais, não é? — Ela aponta para as caixas de som.
Olho para os lados. Dezenas de pessoas dançando e aproveitando a noite
linda da Espanha.
— Claro que é. Ele fez você e a minha filha linda — digo, aceitando a
bebida que Lili me oferece.
Então ela me abraça. Sinto seus dedos deslizarem por meu jeans.
— Gosto tanto de você, Ane. Já pensou como seria viver aqui? Eu, você,
Sofi e meu pai. Acho que ele adoraria ter mais filhos. Se você quiser, claro.
Dou um sorriso amarelo e me distancio do abraço. Liliana aponta para o
meu quadril e fala antes de se afastar:
— Deixei um presente no seu bolso.
Boto a mão na calça e procuro não sei pelo quê. Quando volto a olhar
para cima, a garota não está mais diante de mim. Pego uma folha de papel
que reconheço. É uma das que uso nos meus desenhos. Não consigo enxergar
por causa das luzes, então saio do jardim com o papel amassado nas mãos e a
ansiedade me corroendo.
Entro na sala e fecho a porta de vidro. O barulho fica abafado. Desdobro
a folha debaixo de um abajur. É um desenho da minha filha. Em cima dele,
Diniz escreveu um bilhete.
Alu,
Preciso te contar coisas que você não sabe sobre Nuno. Sei como está
sua cabecinha. Você é uma menina ainda. Não se sinta culpada por ter me
deixado Sofia. No fim está tudo bem e logo ela será sua filha também.
Acredite, é o que eu mais quero. Me encontre no quarto dos meus pais às
23h. Tudo vai mudar depois disso.
Seu Biel.
Ane Luise
Sentada na cama de Sônia e Roberto, brinco com as flores em meu
cabelo enquanto espero por Diniz. Estou um pouco zonza. Tanto a ponto de
não arriscar dar uma espiada no lugar. Acho que nunca vou me acostumar
com a riqueza dos Prado Ribeiro, com o luxo a que minha filha terá direito
pelo resto da vida e por muitas gerações.
Mesmo curiosa com o cômodo e seus quadros e obras de arte, não tenho
confiança na firmeza dos meus joelhos. Talvez tenha bebido demais. Dois
copos com álcool, para quem não está acostumada, podem fazer um estrago.
Pisco algumas vezes quando vejo seis dedos ao invés de cinco. Eles logo
voltam ao normal.
— Eu sabia que você estava só esperando uma oportunidade para ficar
comigo — Diniz fala, rouco, entrando no quarto dos pais dele como uma fera
prestes a atacar.
Apesar da luz amarela do único abajur acesso no ambiente, consigo ver o
brilho nos olhos dele, a ânsia por mim, que imagino que esteja vendo como
uma presa.
Pulo da cama, indo em direção à porta, mas ele está no caminho e me
impede com seu corpo.
— Você está enganado. Eu vim aqui porque você queria falar de Nuno.
— Luto com os braços dele.
— Meu bem, nós dois sabemos que você só quer uma oportunidade para
descartá-lo, e foi isso o que veio fazer aqui, descobrir algo terrível sobre o
seu namoradinho para poder acabar com ele sem se sentir culpada em ficar
comigo.
— Você definitivamente está louco, Diniz. Se estava pensando que ia me
encurralar aqui, considere-se enganado. Com licença. — O empurro e ele não
recua.
Dou meu olhar mais indignado e cruzo os braços.
— Ótimo. Acho que já estava na hora da gente se confrontar. Estamos
adiando isso há muito tempo. Vou ser objetiva: quando sair daqui, vou à
justiça. Cansei da briguinha de irmãos entre vocês.
Diniz ergue os braços e sua camisa sobe um pouco, revelando o
abdômen. Penso se Sônia fez algum dos seus filhos perfeitos nesse maldito
quarto.
— Meu bem, você sabe que é difícil ganhar essa briga. Meu advogado já
conversou com você sobre isso.
— Eu não quero saber, Diniz. Dane-se o que ele disse sobre eu não ter
emprego, casa, família, currículo, marido. Cansei — digo sem paciência
alguma.
— Olha ela, crescendo as unhas depois que fodeu com o chefe. Meu
irmão é mesmo um babaca. Nem precisou cair no golpe da barriga, como eu.
É inevitável. Todo o meu corpo está difícil de controlar, mas faço um
esforço e consigo desferir uma bofetada na bochecha dele. Depois disso, meu
estoque de energia parece cair lá no pé.
Cambaleio, tateando para trás à procura da cama de casal. Não chego a
tempo e caio sentada. Espalmo as mãos no chão, mas não consigo levantar. É
impossível.
Ergo o braço, pedindo ajuda, o balançando sem controle de um lado para
o outro. O que está acontecendo comigo?
Tudo fica lento ao meu redor. Não deixo de sentir ou ouvir, mas é tão
longe. Tão longe.
— Isso, meu bem, agora você está prontinha para mim. Eu estava louco
por você. Queria te foder mais um pouco consentidamente, mas você está
dificultando as coisas. Lili teve que ajudar. Carente, coitadinha. Faria
qualquer coisa pra ter você como mãe, até colocar um boa noite Cinderela
[xxxi]
na sua bebida para o Nuno flagrar nós dois juntos. A propósito, em breve
ela o trará até aqui, então vamos acelerar as coisas. — Suas mãos grandes
seguram minha cintura.
Ele não tem cuidado nenhum e me arrasta até a cama sem se preocupar
com a dor que estou sentindo. Não consigo gritar ou me mover. Da minha
boca, saem apenas gemidos.
Sinto meus braços jogados ao longo do corpo enquanto Diniz abre e
desce minhas calças. Cada ruído amassa meu peito e me dá uma sensação
aterradora. O zíper descendo. O jeans roçando e se embolando em meus
joelhos. A roupa jogada no chão.
Diniz monta em mim e toca meus lábios com os dedos antes de enfiar a
língua entre eles.
— Puta que pariu, você está ainda mais gostosa depois que foi mãe.
Seus dedos descem até a minha calcinha e ele alisa minha pele até
encontrar a cicatriz da cesárea encoberta por meus pelos.
— Ah, aqui está. Ficava me perguntando se isso teria estragado seu
corpo perfeito, mas nem dá pra notar sem uma boa busca.
Fecho os olhos e não consigo voltar a abri-los. As pálpebras pesam tanto.
— Isso. Dorme um pouco enquanto eu faço o trabalho. Talvez você não
esteja pronta para me sentir no lugar que tenho em mente. Ah, mas eu quero
tanto. Você era uma santinha e fiquei puto quando me negou o que vou ter
hoje. Prometo que amanhã não se lembrará das partes ruins.
Ouço ruídos. Me esforço e consigo abrir um pouco os olhos. Diniz está
só de cuecas, sentado sobre minhas coxas. Tem um pacote de camisinhas nas
mãos.
— Agora escute, antes de eu te fazer lembrar como é me sentir te
rasgando com meu pau outra vez, vou ser honesto e te contar o que prometi.
Vai ser muito mais gostoso fazer isso sabendo que você está com tanto nojo
do Nuno quanto eu.
Diniz abre uma das embalagens do preservativo com os dentes e faz uma
pausa.
— Eu era adolescente quando meu irmão mais velho matou o nosso avô.
Ele, logo ele, o certinho da casa, o que nunca frequentava os cassinos da
família, o que já trabalhava e estudava para herdar a Prado Ribeiro Resorts,
Cassinos & Entretenimentos. Quando nosso avô nos levou para que ele
aprendesse a dirigir, eu achei que havia finalmente encontrado o caminho
para sermos amigos, mas o filho da puta se retraiu mais ainda depois da
merda que fez, batendo o carro e deixando vovô debilitado para sempre.
Mesmo assim, era ele quem continuava sendo o braço direito do meu avô,
sendo preparado para administrar tudo. Nuno nunca me perdoou por estragar
sua imagem diante da família, quando eu deixei que todos soubessem que ele
era o culpado por tudo o que houve com nosso avô. Nunca. Ele jamais seria o
filho perfeito que havia batalhado tanto para ser. Mas você não sabia de nada,
não é mesmo?
Luto para me manter acordada e compreender cada palavra que ele diz.
Mal consigo sustentar os olhos abertos, mas consigo ver enquanto Diniz
desenrola o preservativo.
— Agora vamos a isso.
Então eu apago.
***
Quem será que está gritando na rua a essa hora? Esse negócio de viver
no meio de uma Lisboa turística sabe ser bem barulhento às vezes.
Levo a mão à têmpora e sinto algo entre os dedos. Uma flor.
Ah, Deus, eu já não vivo em Lisboa há meses então de quem são esses
gritos? Tento abrir os olhos, mas dói demais.
Foco, Ane Luise. Conto até cinco e emprego toda a minha energia para
me sentar.
Cada centímetro do meu corpo arde. Abro os olhos e eles parecem
colados, de tão difícil que é.
Vejo Nuno e seu irmão gêmeo em pé, curvados sobre alguém. Irmão
gêmeo? Desde quando?
Pisco e esfrego os olhos. Eles não param de gritar. Vozes misturadas à
música.
Nuno volta a ser um só. E o cara embaixo dele se revela ser Diniz. Olho
para o meu corpo, começando a lembrar algumas coisas, flashes do que
aconteceu antes de eu adormecer.
Estou nua da cintura pra baixo. Agarro o lençol e cubro meu corpo.
— Seu filho da mãe, eu vou te matar — Nuno rosna.
— Por quê? Por Ane ainda me querer?
— Ela não te quer, seu escroto.
— Você nos pegou juntos na cama e acha que ela não me ama mais?
Nuno dá uma gargalhada. Eu me encolho com o lençol até o queixo.
— Ane Luise está desacordada, seu bandido. Graças a Deus eu cheguei a
tempo de te impedir de virar um estuprador.
Aperto as coxas e sinto um alívio imenso por Nuno ter me protegido,
chegado antes de Diniz cometer o pior.
— Você é cego e burro. Vá se foder, Nuno, você nunca vai ter o que é
meu. Alu já sabe quem você é. Contei a ela sobre o merda por quem ela acha
que está apaixonada. O cara que matou nosso avô.
Nuno solta o colarinho do irmão e se empertiga, alinhando a camisa
branca e ajeitando as mangas no cotovelo.
— Dá o fora daqui antes que eu te mate.
Diniz rasteja de costas até a parede, que usa como apoio para se levantar.
— Essa é a minha casa. Você não tem o direito de me mandar embora.
— Essa casa era do meu avô e agora é de Margô. Saia daqui antes que eu
a chame para ver o que seu netinho favorito estava tentando fazer com a mãe
de Sofia.
Diniz mostra o dedo do meio pra ele e desaparece. Quando Nuno se vira
para mim, desabo em lágrimas.
Ele me aninha em seu colo e beija meus cabelos. Seca minhas lágrimas e
me apalpa com carinho a procura de lugares onde eu possa estar machucada.
— Dói em algum lugar?
Fungo e esfrego a bochecha.
— No coração.
Forço um sorriso. Isso alivia a tensão nos ombros de Nuno.
— Mas vou ficar bem. Você sabe como sou forte.
— Demais. Não sei como consegue suportar tanto, mas, a partir de
agora, quero ser a estrutura que vai impedir o mundo de não desabar sobre
você.
Acaricio sua barba por fazer e me aproximo para beijá-lo. Paro antes de
o fazer, pois lembro que Diniz enfiou a língua na minha boca e isso me faz
sentir nojo. Cubro seus lábios com a palma da mão.
— O que houve, meu amor.
— Estou suja. Diniz me beijou.
Nuno então vai ao banheiro da suíte e ouço a água correr. Ele volta e me
despe da blusa com carinho. Seus braços fortes me erguem e me carregam no
colo até a banheira. Do lado de fora dela, ele esfrega minha pele e me banha
como se eu fosse uma pérola rara.
— Quer ir embora? — pergunta com um olhar preocupado.
— Não. Acho melhor esperar Sofia voltar com seus pais.
Quando nos deitamos de volta na cama, ele seca meus cabelos e então
tira a camisa antes de me dar um beijo leve nos lábios. Apoio a cabeça em
seu peito nu e adormeço sabendo que estou segura e sou muito amada.
43
Nuno
Desperto do delírio que foi a noite anterior. Luise ainda está deitada em
meu braço, o ouvido colado ao meu coração, mas seus olhos não estão
fechados.
— Não conseguiu dormir? — pergunto, preocupado.
— Bom dia, Senhor Psicopata. — As palavras saem entre seus lindos
lábios corados.
— Bom dia, coração.
— Dormi, sim. Só estava aqui admirando o seu lado sexy, pois o
psicopata vi bem de perto ontem quando ameaçou...
Cubro a boca dela com o indicador.
— Não fale o nome dele.
— Você tem razão. Apenas estava me lembrando de como você estava
másculo, forte e assustador ao me defender. Achei isso bem sexy. — Ela
sorri.
Faria qualquer coisa para proteger Luise. Olho para ela, baixando
levemente o queixo. Coloco um braço atrás da cabeça para poder analisar
melhor a mulher que amo. Nunca imaginei sentir por alguém o que sinto por
ela.
— Sabe, estou pensando aqui. Você também precisa de um apelido.
— Ah, é? Ela ergue a sobrancelha para mim
— Acho que Senhora Bagunceira Sexy combina bem, porque, ô mulher
para causar tumulto na minha vida.
Ela puxa o lençol para esconder o rosto e eu a destapo, fazendo cócegas e
dando mordidinhas em sua pele. Dou um tempo para que Luise recobre o
fôlego.
— Você estava precisando de uma vida mais animada — ela diz, fazendo
uma dancinha fofa com os braços e o tronco, de um lado para o outro.
— Tem razão. Mas as coisas não estavam fáceis nos últimos anos. Meus
problemas no casamento, a dificuldade em conceber com Raquel, minha rixa
com Diniz e o caos da minha família.
— Lindo, abrace o caos — ela fala com simplicidade, esboçando um
sorriso enquanto prende os cabelos em um coque.
— Estou fazendo isso. Abracei você.
Luise pega um travesseiro e bate em mim com ele. Tento me defender e
então a derrubo na cama, subindo sobre ela.
— A vida é um caos. Eu poderia ter desistido de tudo, me fechado para o
mundo, mas tinha um objetivo: proteger meu bebê. Mesmo quando passei a
guarda de Sofia, foi para protegê-la. Sei que você também quer fazer isso o
tempo todo, proteger sua família, mas experimente tentar isso com um sorriso
no rosto. Tudo fica diferente.
— Sabe, quando eu te conheci pensei que fosse uma menina ingênua.
Uma garota atrás de um namorado e sem preocupações na vida. Ninguém
com problemas seria leve como você. Mas eu estava totalmente errado. Você
tem razão, Ane, quero ser um cara feliz pra Sofia ter orgulho de mim.
Ane Luise coloca o dedo no meu peito e me cutuca.
— Você precisa ter orgulho de si mesmo. A gente tem medo às vezes,
mas abre um sorriso e segue adiante.
Beijo a testa dela e a toco com a minha. Ela é a mulher que quero ao meu
lado para sempre. A pessoa com quem quero compartilhar segredos. E
chegou a hora de abrir meu coração para deixar entrar a luz.
— Diniz disse que te falou sobre o meu passado ontem. Você se lembra
disso? — pergunto, com medo de que ela não acredite no que vou contar.
— Sim. Mas não precisa falar no assunto, se não quiser. Quero dizer, me
preocupo com você e tal, mas a gente pode falar sobre isso em um momento
menos conturbado.
— Não. Eu quero contar, Luise. Preciso colocar pra fora, na verdade.
Mas antes, você precisa me jurar que nunca vai falar para a minha família.
Isso pode partir o coração deles. O de Margô, principalmente.
Ela morde a boca e fica tensa abaixo do meu corpo.
— Hum, tá.
— Quando eu era adolescente, meu avô saiu um dia comigo e com Diniz
para me ensinar a dirigir. Eu e meu irmão ainda nos dávamos bem. Não se
falava em herança ou problemas financeiros entre os Prado Ribeiro. Insisti
para pegar a direção. Nosso avô, senhor Antônio, não era de dizer não para
um neto e acabou deixando. Comecei bem, mas me atrapalhei em uma curva
e o carro caiu em uma pequena ribanceira. Saímos ilesos, eu e meu irmão,
mas vovô se queimou tentando apagar um incêndio antes que tudo
explodisse. Não parecia nada grave, um pequeno ferimento no couro
cabeludo, onde ele encostou no teto. Voltamos para casa com o segredo de
que eu era o motorista. Margô e minha mãe me matariam se soubessem. Mas
aquele machucado foi piorando e se tornando doloroso nas semanas
seguintes. Diniz, que já gostava de festas e música desde muito cedo, trouxe
para o nosso avô algumas pílulas mágicas que tiravam todas as dores dele. Eu
demorei muito para me dar conta do que estava acontecendo. Na primeira vez
que vovô tomou, ele se tornou outra pessoa. Isso durou um bom tempo até
que sua mente começou a ficar confusa e ele não conseguiu mais seguir
administrando a empresa. Virei seu braço direito. Meu irmão enlouqueceu.
Como eu era merecedor de tanto se era ele quem havia livrado nosso avô das
dores? Diniz então parou de repassar aos traficantes os pagamentos das
drogas. Perdemos o cassino favorito do meu avô quando quase falimos e,
para ajudar, uns caras da pesada vieram atrás dele — começo a contar a
verdade para Luise e as imagens daquele dia inundam minha mente.
Posso me ver lá, naquele exato momento, na tarde em que meu avô
morreu:
Está um lindo dia lá fora. Mais um daqueles que não posso sair. Preciso
trabalhar, cuidar do meu vô. A empresa está cheia de problemas e a vida
dele também. Adentro a ala dos meus avós na mansão. Abro a porta do
quarto devagar, pra não acordar vovô se estiver dormindo. E ele está. Sento
ao lado dele e espero. Não acho certo o que está fazendo. Por que não
assume para Margô e a família as suas fraquezas?
Já estou praticamente administrando tudo sozinho, mas ele não quer que
ninguém saiba, prefere que pensem que ainda é capaz, são. Estou dando o
tempo que me pediu, mas está cada vez mais difícil vir até aqui e pegar suas
assinaturas trêmulas.
Apenas aceito tudo isso porque a culpa não me permite fazer diferente.
Sou o responsável por sua debilidade acelerada. Teríamos ainda muitos anos
se não fosse o acidente que causei.
Vovô diz que não, que a responsabilidade era dele por me deixar dirigir.
Mas eu sei que fui eu. O carro estava nas minhas mãos. Mesmo que ele diga
que eu era novo demais, que ele era o responsável por nossa segurança, me
sinto terrivelmente culpado.
Depois disso, nada foi a mesma coisa na vida dele. Dor. Lapsos.
Confusão mental. Anos de sofrimento.
Ouço um barulho forte lá embaixo. Vovô resmunga e se remexe.
Olho para o relógio, ansioso para que acorde. Preciso ir ao cassino
levar esses papéis, mentir que ele está trabalhando de casa e que me mandou
entrar em sua sala para levar algumas coisas.
A única pessoa que sabe disso é Mário, meu primo e melhor amigo. Ou
Marta, como ele prefere ser chamado ultimamente. Sou um dos poucos que
já sabem e estou do lado dele em sua transição para se tornar mulher.
Ele trabalha com vovô e só não se assumiu ainda por medo de ser
demitido, perder a ajuda que tem recebido, assim como Tenório, seu irmão.
Eles perderam a mãe, que os criava sozinhos. Desde então, moram nos
fundos da mansão e ele sofre à espera do dia de poder se tornar quem nasceu
para ser.
Outro baque me distrai dos meus pensamentos. Agora acompanhado de
um grito. Matilde?
— Pelo amor de Deus, não!
Margô! Reconheço a voz e o desespero dela.
— Onde está aquele filho da mãe? Vou pegar esse Prado Ribeiro.
— Não tem ninguém em casa. Eu juro.
— Ah, cala a boca, sua velha idiota. Quero meu dinheiro.
Os papéis da empresa caem das minhas mãos e me levanto, olhando
para a porta. Vovô tosse e seu lençol farfalha.
— Nuno — ele fala com a voz rouca, enfraquecida.
— Está acontecendo alguma coisa lá embaixo. Alguém atrás de dinheiro
— digo baixinho, me aproximando da porta.
— Nuno, não vá.
— Eles estão com Margô. Não posso deixá-la sozinha.
O barulho dos passos fica mais alto. Estão perto, talvez já no corredor
— Onde está o homem? O estúpido que pensa que pode ficar devendo
para um traficante!
Arregalo os olhos. Traficante?
— Você ouviu o que ele disse? — sussurro para meu avô.
Olho para trás e ele já está sentado na beira da cama, lutando para
colocar os pés para fora enquanto as mãos tremem sem parar.
— Deve ser algum engano — digo, tocando a maçaneta.
— Não. Eu sei quem é. Pelo amor de Deus, Nuno, temos que proteger a
sua avó.
— Como assim? Há alguma coisa acontecendo que eu precise saber?
Ele me encara com sua testa franzida, as rugas que se multiplicaram nos
últimos meses.
— Eu não aguentava mais, Nuno, por favor, me perdoe.
— Do que você está falando? — Meu peito dói, a garganta arranha, de
tão seca.
— As dores. Os ferimentos do acidente. Eu não podia mais suportar sem
ajuda.
— Mas e os remédios que os médicos te deram? Você está muito menos
debilitado. Antes se contorcia de dor.
Ele sacode sua cabeça cheia de cicatrizes, triste. Não, envergonhado.
— Aqueles remédios idiotas não serviam para nada. Poucos minutos
depois eu já explodia em agonia.
— Então...
— Então Diniz me conseguiu umas pílulas e elas são mágicas. Tenho
conseguido dormir. É verdade que há uma certa confusão na minha cabeça,
mas tenho você, que está me ajudando com a empresa. Mas as coisas saíram
dos trilhos. Eu sei que Diniz pegou um pouco do dinheiro, mas estamos mal
das pernas. Os negócios, tudo está indo mal e não está dando para pagar o
cara que consegue as drogas.
— Vô...
— Mas não posso ficar sem elas, Nuno, pelo amor de Deus. E sua
vó jamais pode saber. Isso a mataria.
— Vô, você tem certeza de que não é Diniz que está desviando todo o
dinheiro?
Seu olhar decepcionado é a minha resposta. Ele sabe bem que o neto
favorito de Margô está torrando tudo o que os Prado Ribeiro têm, até mesmo
o dinheiro para pagar essas malditas drogas que dão um descanso para o
nosso avô.
Nesse momento, alguém abre a porta com violência e sou lançado para
longe.
— Aqui está o filho da puta. — Um homem grande e vestido com roupas
extravagantes entra no quarto do meu vô, arrastando Margô pelos cabelos e
brandindo uma arma.
— Margô. — Corro até ela e o bandido aponta a arma para sua cabeça,
me deixando desesperado.
— Quem vai ser o meu pagamento? Ahn? A velha? Você? Ah, você!
Quem é o Prado Ribeiro que está me devendo?
Troco olhares com meu avô e ele está desesperado. Margô chora
copiosamente, agarrada à minha camisa.
— Do que eles estão falando, Nuno? O que está havendo.
Engulo em seco. Merda! Meus avós não merecem passar por isso.
Margô não merece saber que o homem da sua vida não é mais do que um
viciado. E tudo isso é culpa minha. Se eu não tivesse causado aquele
acidente..
— Eu sou o cara que você está procurando. — digo, me levantando e
lutando para me libertar das mãos de Margô.
— Antônio, não! O nosso neto, não.
Ela soluça alto e grita quando o homem faz um sinal para o corredor.
Mais dois caras entram no quarto. Percebo então vários outros, armados até
os dentes e com os nossos empregados sob suas miras. Inferno.
— Eu tenho encomendado drogas de você e não estou conseguindo
pagar. — As palavras mentirosas saem da minha boca, me causando dor,
vergonha.
Solto o ar quando o primeiro soco me atinge. O segundo me derruba. O
terceiro, na nuca, me apaga.
Acordo no hospital com uma mão grande afagando a minha. Reconheço
os olhos tristonhos, mas a figura completa me é estranha.
— Nuno, você está de volta.
— Você..
— Sou eu, Mário. Marta...
Meu primo está transformado. Transformada. Bonita. Estaria perfeita se
pudesse sorrir com sinceridade, mas carrega um peso, posso ver.
— Meus avós.
— Shiu. Não faça esforços. Margô está bem.
Dói para engolir. Tusso. Tento me sentar e tudo queima.
— Margô? E vovô Antônio? Como ele está.
Marta arfa e cobre a boca. Ela me abraça e deixo, mesmo agoniado de
dor.
— Ele não resistiu. A invasão foi impactante demais para ele. Seu avô
partiu e deixou tudo para você. Todos os problemas, dívidas.
responsabilidades. Suas últimas palavra foram: Nuno, confio tudo a ele.
Jogo as costas contra a cama. Uma, duas, três vezes, revoltado.
— Nuno, pare.
— É culpa minha, é culpa minha.
— Não. Pare.
— Eu causei o acidente que o fez sofrer por tantos anos. Ele estava
comprando drogas para aliviar a dor do acidente que eu causei e Diniz não
repassou o dinheiro. Aqueles caras foram atrás da grana.
— Meu Deus... Sua família está chocada, pensando que você era o
viciado. Não aceitam que você tenha ficado com a administração da empresa
tendo cometido esse, esse erro. Ninguém sabe sobre você ter dirigido no dia
do acidente, sobre seu avô e as drogas. — Ela gesticula com as mãos.
— Eu imagino.
— Nuno, você vai contar a verdade? Vai dizer à Margô que seu avô
estava naquele estado?
Sinto a agonia, a vergonha, mas nada disso pode me dominar. Cometi
um erro. Fui o primeiro ponto da cadeia de problemas em que meti meu avô.
Não posso sujar seu nome agora que não está mais aqui. Isso mataria Margô
também.
— Não. Ninguém pode saber a verdade, Marta. Ninguém nunca vai
saber.
Olho para Luise, à espera que eu termine de contar a história. Continuo
então:
— Para que Margô não soubesse que o amor da sua vida havia virado um
viciado, assumi a culpa, que, para mim, no fim das contas, era minha, pois fui
eu que comecei tudo ao causar o acidente. Foi quase a ruína dos Prado
Ribeiro. Decepcionados comigo, meus pais partiram para os Estados Unidos
com as minhas irmãs e eu fiquei com Margô, a única que conseguia me olhar
nos olhos e dizer que ia ficar tudo bem, apesar da frustração com o meu
suposto envolvimento com drogas. Então eu consegui, com o pouco que nos
restou, reerguer a empresa e passei a viver tentando controlar minimamente
todos os detalhes da minha vida, para nunca mais errar. Então você apareceu
bem na hora crucial, quando eu tentava mostrar que era um cara responsável,
que podia tomar conta da filha de Diniz como se fosse a minha e provar pra
minha família que eu não era um drogado que deu sorte nos negócios.
Enquanto falo, Luise vai mudando de expressão. Começa receosa, então
posso ver curiosidade, espanto e choque absoluto. Está com a boca
escancarada quando termino.
— Não, não, não, Nuno. Isso não é justo. Você assumiu os erros dos
outros. Tomou tudo para si e não pode pagar por isso. Sei exatamente como
é. Eu assumi sozinha o erro de Diniz. Mesmo não tendo ficado com Sofia, foi
em mim que doeu estar longe dela. Tenho certeza absoluta de que ele nunca
sofreu por ter entregado a filha ao irmão. Não posso permitir que você
carregue isso sozinho.
Seguro o rosto dela entre as minhas mãos e faço com que me encare.
— Ei, nada disso importa mais. Vovô já morreu, ele não precisa mais de
mim. Eu tenho você agora e em breve nós dois seremos pais de Sofia. Isso é
tudo o que importa. Eu só queria dividir com você o meu maior segredo. E
não queria que acreditasse no que o meu irmão falou ontem.
Luise continua tentando sacudir a cabeça em negativa, inconformada
com o meu pedido.
— Isso é tão injusto.
— A vida é injusta. Mas uma garota me ensinou que precisamos sorrir e
ir atrás do que queremos.
— Para. Você está tentando me seduzir com esses seus olhos traiçoeiros
— ela fala sem conseguir desviar do meu olhar.
— E estou conseguindo?
— Completamente. Nunca amei tanto alguém, Nuno Prado Ribeiro. Na
verdade, posso dizer que, tirando meu amor materno por Sofia, eu nunca
havia amado. Agora sei como é. Isso ou estou louquinha de paixão.
— Ótimo, porque você vai ter que me aguentar por uma vida inteira,
Senhora Bagunceira Sexy.
— Faz amor comigo? — ela pede baixinho.
Não respondo. Apenas lhe dou um beijo confiante e a seguro pela nuca.
Luise corresponde, se agarrando aos meus cabelos e brincando habilmente
com minha língua. Seguro sua bunda e a ergo na cama, a colocando em meu
colo enquanto me recosto na cabeceira. Sem parar de beijá-la, tateio no criado
mudo. Juro que vi camisinhas aqui. Encontro o pacotinho e tento não pensar
que ele pertence aos meus pais e que eles fazem sexo...
Afasto minha boca da sua por poucos segundos apenas para colocar a
proteção. Quando a penetro, minha respiração está acelerada e minha
pulsação pode ser sentida por todo lugar, até em meu sexo.
Luise está com os joelhos no colchão, os braços apoiados na cabeceira, o
que me dá a perspectiva dos seus lindos seios, que coloco na boca. Me perco
em seus gemidos, o vai e vem do quadril, que aperto contra mim mesmo para
me enterrar mais ainda dentro dela.
Aliso sua cintura, as curvas. Aspiro o perfume dela. Droga! Estou
perdido por essa mulher.
— Ane, me deixa gozar em você. Quero te dar um filho. Não. Muitos —
digo, desesperado e suado abaixo dela.
— Você é muito apressadinho. Temos muito a fazer ainda antes disso.
Nem sonhe em tirar essa camisinha. Meu próximo filho eu quero escolher
quando vai nascer. Nada de choro triste na hora de um positivo.
— Ah, Ane, por favor. Eu juro que não vai ter choro triste — protesto,
aumentando a velocidade.
Ela me ignora e se movimenta de um jeito sensual, me deixando louco.
Sua boca alcança a minha e me perco no turbilhão de toques e sensações
trocadas entre nossas peles.
Tento recuar para pedir mais uma vez que me deixe sentir prazer dentro
dela sem o preservativo, mas não tenho forças para lutar. Penetro mais fundo
e espalmo a mão em seu ventre, usando o polegar para massagear seu clitóris.
Ane curva as costas para trás e suas coxas sobem e descem, roçando nas
minhas. Ah, céus, como essa mulher é linda e perfeita. Um dia ainda a
convenço a ter um filho comigo. Um não, uns quatro ou cinco. Quero seu
corpo grávido de mim, deitado ao meu lado todas as noites.
Luise então geme alto e contrai as coxas enquanto goza. Impossível não
fazer o mesmo quando a onda de contrações me aperta dentro dela. Deixo vir
tudo, tentando controlar um urro alto.
Sustento seu corpo com o meu, nós dois em ritmos descompassados de
respiração, peles úmidas e cabelos molhados.
— Seria estranho te pedir em casamento agora? — sussurro em seu
ouvido, rouco.
— Seria inapropriado pedir qualquer coisa para quem acabou de sentir o
prazer da vida, mas estou tão inebriada que aceito. — Sua voz sai abafada em
meu pescoço.
Seguro a cintura dela e a afasto um pouco, o suficiente para poder me
olhar nos olhos. Com a garganta seca e ainda dentro dela, digo sem dúvida
nenhuma:
— Ane Luise Macedônia, aceita se casar comigo e se tornar Ane Luise
Senhora Bagunceira Sexy Prado Ribeiro?
O jeito como ela ri, cansada e feliz, é a coisa mais linda da vida.
— Aceito, meu querido ex-chefe SPS.
Puxo do chão a minha calça. Eu não sabia quando nem onde, mas tenho
andado preparado. Enfio a mão no bolso e quando toco o veludo, puxo a
caixinha para fora e a abro. Observo o lindo anel com uma esmeralda verde
da cor dos olhos de Ane Luise.
— Nuno, seu louco, o que você está fazendo?
— Te pedi em casamento, agora tenho que te dar o anel.
Ela gargalha, nervosa. Tiro o anel da caixa e o deslizo pelo dedo de
Luise.
— Um passo a menos para me deixar gozar dentro de você.
Ainda montada em mim, ela me dá um tapa no peito, entre algumas das
minhas tatuagens, enquanto ri.
— Seu pervertido, está fazendo tudo isso para me levar para cama. Eu
sabia que esses Prado Ribeiro não têm jeito.
Seguro seu rosto e a beijo.
— Você é o problema. É difícil resistir a tudo isso.
Ela me abraça e cheiro seu cabelo.
— Brincadeiras à parte, eu quero muito me casar com você o mais rápido
possível, mas vou respeitar o seu tempo. Primeiro reestruturar sua vida,
depois eu te engravido.
— Ei! Não sou uma coelha.
— Mas eu gostaria de fazer sexo com você como se fosse uma. Ai. —
Ganho um soco no braço dessa vez.
44
Nuno
Deixamos o quarto ao ouvirmos o burburinho dos meus pais voltando do
hotel com as crianças. A casa está uma zona de pessoas arrumando a bagunça
que ficou da festa. Saio de mãos dadas com Luise e quando chegamos na
sala, estão todos nos olhando com expressões estranhas.
— Ah, meu amor. — Ane corre para Sofia e a beija toda enquanto minha
mãe cruza os braços após entregar a bebê.
— Está tudo bem? — pergunto, me sentando ao lado de Margô.
Ela aperta a ponta da bengala sobre o meu dedinho, me fazendo gritar.
— É, pelo jeito não está nada bem. — Esfrego a ponta do pé.
Minha irmã Isabel se senta no braço da poltrona e apoia a mão em meu
ombro.
— Diniz disse que você estragou a festa dele. — Ela suspira, revirando
os olhos.
Troco olhares com Luise, que carrega Sofia no colo, a embalando de um
jeito suave. Não pretendo me exaltar. Diniz já estourou a minha cota de
paciência ontem. Estou feliz demais com meu noivado com Luise para deixá-
lo estragar o meu humor.
— Eu estrago tudo para o Diniz, então só mais uma vez não vai fazer
diferença. Agora tem uma coisa que vai fazer grande diferença nessa casa:
Ane Luise e eu estamos noivos.
Dessa vez, Margô ergue a bengala e dá na minha testa.
— Ei. Já chega — protesto.
— É. Já chega de você aproveitar a vida enquanto maltrata o pobrezinho
do seu irmão. Vocês dois têm direito à felicidade. Eu não acredito que você
veio até Ibiza para estragar a alegria do seu irmão.
— Lógico que eu não fiz isso. Vim ficar com a minha família.
— E com a namorada dele — papai finalmente se intromete, saindo do
seu silêncio no canto da sala enquanto fuma um cigarro aromático.
— Namorada dele? — digo, me levantando.
Pronto. Conseguiram me irritar.
— Eu não sou namorada de Diniz — Luise diz com a voz estrangulada.
— Mas era. E agora é a mãe da filha dele. Tio Nuno não tem nada que se
meter. — Liliana para na frente de Ane Luise com um olhar desaforado.
As duas se encaram com raiva e me intrometo para afastá-las.
— Enquanto vocês estavam traindo o meu pai, ele foi embora, sofrendo
— Liliana continua.
— Foi embora? Mas ele vive aqui — digo, já sabendo que Diniz está
dando mais um dos seus showzinhos.
— Exatamente, meu filho, foi uma tremenda de uma falta de educação
roubar do seu irmão a garota por quem ele está apaixonado.
— Ele não está apaixonado por ela, mãe.
— Ah, é? Então por que os dois estavam juntos na suíte da vovó e do
vovô até você chegar? — Liliana me desafia, fechando a cara após
praticamente cuspir em mim as palavras.
Aperto os punhos.
— Vocês quem sabem. Eu preferia focar na parte boa do meu noivado,
mas acho que vou ter que mudar um pouco os planos. Não era minha
intenção expor Luise, mas não tenho como fugir disso para contar o que
Liliana e o pai dela armaram ontem. Aí vocês todos chegam hoje querendo
me dar lição de moral, que eu tenho que me comportar na casa do meu irmão
e deixar para ele a garota que ele tentou estuprar ontem à noite com a ajuda
da filha dele — despejo, irritado.
As expressões de choque não me comovem, a exceção de uma: Ane
Luise. Ela com certeza não queria que todos ficassem sabendo dessa maneira,
mas me tiraram do sério, tentando defender Diniz das merdas dele outra vez.
Margô se apoia na bengala e tenta se levantar. Estou com tanta raiva que
não me aproximo para ajudá-la. Isabel faz isso e leva um tapa na mão. Margô
para na frente de Mônica e faz sinal com a cabeça para que ela saia do sofá
também. Minha irmã mais velha obedece, puxando a barra da saia e alisando
a roupa em constrangimento.
— Isso é DNA ou é culpa da sua criação? — Vovó aponta para Liliana
enquanto fala com Mônica.
— Eu, eu... não sei explicar, Margô. Não entendo por qual motivo
Liliana tem agido assim. Nunca tive problemas com ela nos Estados Unidos.
Lili prontamente começa a chorar, cobrindo o rosto com as mãos.
— Isso é injusto. Tio Nuno é que faz tudo errado e agora a culpa é minha
e do meu pai. Nós só tentamos colocar as coisas nos seus devidos lugares.
Era para tio Nuno encontrar a Luise com o meu pai na cama e desistir dela,
deixar que ficasse com a gente, fosse nossa família. Mas não, ele está
descaradamente roubando a garota do papai. Ele não quer nos dar o cassino
do vovô. Ele é o drogado dentre os Prado Ribeiro. — As palavras dela pairam
no ar, silenciando o mundo.
Ninguém consegue mais ouvir os funcionários limpando o jardim, a
bagunça ao redor da casa. Ele é o drogado dentre os Prado Ribeiro fica no ar,
pesado, quente e doloroso, assim como o olhar que Luise me dirige.
Imploro silenciosamente que não diga nada sobre o que lhe contei. Todos
olham para ela, esperando alguma expressão de espanto com a suposta
revelação, mas Luise sabe a verdade então seu rosto apenas fica vermelho,
não por timidez, posso ler seus olhos. É raiva.
Ela ajeita Sofia na lateral do corpo, suas perninhas apoiadas nas ancas da
mãe, que anda até mim e segura minha mão com muita firmeza. Droga! Por
que é que fui contar pra ela? Essa garota não sabe aguentar calada e sem agir.
— Sinto decepcioná-la, Margô, mas o viciado dentre os Prado Ribeiro
não é Nuno.
Minha avó espana o ar com a mão e sopra o lábio. Lili revira os olhos e
sussurro no ouvido de Luise que ela não precisa fazer isso. Ninguém cuida de
mim. Sou eu quem cuido de todos.
— Era só o que faltava agora. Não é porque meu pai é DJ que ele é
drogado.
— Cala a boca, Lili — Luise brada, para espanto de todos.
A menina ergue os braços e se joga no sofá.
— Você, espertinha, colocou algo na minha bebida e me entregou um
bilhete para que eu me encontrasse com seu pai, pois ele tinha uma revelação
sobre Nuno a me fazer. Eu fui, fui pensando no Nuno e não em me encontrar
com o seu pai. Só que quando ele chegou, com esse plano absurdo de vocês
de fazer com que Nuno nos flagrasse juntos e brigasse comigo, tudo virou um
crime, pois seu pai tentou me estuprar e só não conseguiu porque Nuno
chegou a tempo. Então cale essa boca para defender um homem que te
abandonou, assim como abandonou a mim e à minha filha. Nuno protege
vocês todos há anos e eu sou super a favor da família, mas, francamente,
deixem de ser cegos.
— Nós nunca negamos que Nuno é maravilhoso no que faz. Ele é quem
adora apontar nossos defeitos, se esquecendo de que ele tem um, e dos bem
grandes. — Isabel olha para as unhas.
— Ótimo. Agora prestem atenção. Nuno ficou com Sofia para Diniz,
assim como Mônica cuidou de Lili...
— Mas ele queria um filho e Diniz o ajudou nisso.
Luise estreita os olhos, as mãos agora abraçando as costinhas de Sofia
enquanto ela anda de um lado para o outro na sala, como uma leoa. Me
aproximo dela e toco seu ombro.
— Não conte a eles, por favor. Deixe que pensem o que quiserem de
mim.
— Não. Isso não é justo. Não me peça para ver uma injustiça e não dizer
nada, Nuno.
Solto o ar devagar e me rendo. Ok. Se ela quer falar, que fale. Eu só
quero sair logo dessa casa com Luise e Sofia e preparar as coisas para o nosso
casamento, o projeto de trabalho dela. Focar no que interessa. Tentar
convencer os Prado Ribeiro de que eu não sou o escroto que pensam não
merece meu tempo.
— Margô, Diniz comprava drogas para o seu marido. Ele era o viciado, o
senhor Antônio Prado Ribeiro. Ele queria ajuda para esconder isso e quem
ficou ao lado dele foi Nuno. Essa é a verdade — Luise despeja e Margô
cambaleia.
Corro para acudi-la, sustentando seu corpo em meus braços.
— Isso não pode ser verdade.
— Ah, Deus.
— Ele jamais faria isso.
Os protestos só cessam quando Margô e Lili desatam a chorar.
— Ai, Nuno, me diga que isso não é verdade — Margô implora,
estendendo a mão para mim.
Fico em silêncio. Meu estômago revira e tenho vontade de despejar um
monte de coisas na mesa, mas meu respeito por ela me mantém quieto.
Minha avó então chora mais ainda. Quando se acalma, ela me puxa para
sentar ao seu lado no sofá. Lili se encolhe e se vira para não me encarar.
— Sinto muito por você ter engolido esse segredo por tanto tempo, mas
eu não entendo os motivos. Por que seu avô faria isso?
Luise faz sinal com a mão para que eu explique e obedeço, mesmo a
contragosto.
— Lembra aquela vez que vovô me levou para aprender a dirigir?
— Sim.
— Vocês sofreram um acidente antes de você pegar a direção.
A essa altura, minha mãe tem as duas mãos espalmadas no rosto, atenta a
cada detalhe da nossa conversa. Meu pai se aproxima e passa o braço por
cima do ombro dela.
— Então, essa não é verdade. Vovô falou isso para me proteger. Eu
fiquei com vontade de aprender a dirigir, mesmo novo demais, mas sabe
como era o seu Antônio. Acabou cedendo. Caímos numa ribanceira e o resto
vocês todos sabem. — Olho para a minha família amontoada ao nosso redor.
Até Margarida parece entender sobre o que estou falando. Lili agora está
com o corpo voltado para mim. Só falta Diniz, que nas horas difíceis sempre
escapa.
— Vovô era meu amigo. Depois do acidente, com as dores e tudo mais,
eu acabei nunca saindo de perto dele, tentando aprender tudo o que sabia.
Queria cuidar da nossa família, da empresa, já que ele não conseguia mais. E
foi essa proximidade que me permitiu ver o quanto sofreu com os ferimentos
do acidente. Eu ficava desesperado com a dor dele, mas tudo foi passando. O
que aumentava eram as confusões mentais. Nem ir para o cassino se divertir
ele queria mais. Então aconteceu aquela situação lá em casa, que foi quando
vocês descobriram meu falso envolvimento com as drogas, quando vovô
morreu. Diniz parou de repassar o dinheiro aos traficantes por vingança. Ele
estava louco por vovó estar entregando a empresa nas minhas mãos.
— E desde então todos nós achamos que você tenta nos impressionar
sendo o senhor certinho depois da sua falsa pisada na bola com as drogas —
minha mãe diz, chorando.
Ela estende a mão para mim e eu a seguro. Margô me abraça e em
seguida todos fazem o mesmo, até Lili. Por cima do ombro dela vejo Luise, e
ela tem o sorriso mais orgulhoso do mundo.
Um sorriso para mim. Meu.
45
Ane Luise
Voltamos para casa sem Diniz ou Lili, que, apesar de tudo o que soube,
ainda assim escolheu ficar ao lado do pai. A novidade de que Isabel e Thiago
também estão noivos abalou duplamente a pobre Marta, que faz toda a
viagem com o nariz enfiado em seu notebook para não ter que encarar a
realidade de Isabel trocando beijinhos com Thiago.
Já eu, tenho os olhos grudados no meu anel. Ainda não consigo acreditar.
Sou uma noiva. Vou me casar. Tenho um trabalho, minha bebê está comigo e
a casa onde vivo não cheira a mofo. Na verdade, é a casa mais linda que já vi.
— Graças a Deus esse inferno acabou — Nuno joga sua pasta sobre o
sofá quanto entramos na sala da mansão.
— O seu sim, o meu, recém começou — Margô diz com pesar e é
acompanhada por Matilde até o andar de cima.
Nuno se senta e me puxa para o seu colo quando vê meu olhar marejado.
— Margô é forte. Ela vai ficar bem. Só está em choque por descobrir que
seus homens favoritos eram quebrados. — Minha sogra, Sônia, acaricia o
ombro do filho por trás do sofá. — Agora eu quero saber da festa. Eu e
Roberto temos que voltar para os Estados Unidos, mas em breve estaremos
de volta. Marta, pode começar a preparar um casamento duplo nessa casa.
Nem termina de falar, Sônia sabe que não deveria ter pedido justo à
Marta que providenciasse os preparativos do casamento de Isabel.
A assistente pessoal de Nuno solta um grunhido descontrolado, másculo,
e sai porta afora para esconder o choro.
Isabel revira os olhos. Thiago não está. Mal chegou e foi embora. Nuno o
está pressionando para que descubra um jeito de resolver a questão da guarda
de Sofia.
— Marta vai ter que aceitar. Nós duas juntas não deu certo. Ponto. Estou
louca pra voltar para o Uruguai.
— Isabel, Thiago é meu advogado e não sai desse país até Luise ser
legalmente mãe de Sofia — Nuno fala com determinação.
— Ele é ótimo. Vai resolver isso num minuto. Vocês vão ver. E ele pode
continuar cuidando das suas coisas de lá. Estaremos a um pulo do Rio Grande
do Sul, onde ele pode atuar como advogado assim como atua em Portugal.
Passamos o resto do dia fazendo planos para o casamento, que será logo
depois da festa de um ano de Sofia, para aproveitar a vinda da família dos
Estados Unidos. Até lá, Isabel será a única a ficar em Portugal para me ajudar
a organizar tudo, já que chegamos ao consenso de que seria cruel pedir isso à
Marta.
Então, aos poucos, a casa dos Prado Ribeiro vai ficando silenciosa. Sônia
e Roberto partem, assim como Mônica, o marido e Margarida. Lili continua
em Ibiza com o pai. Nuno se divide entre o escritório, nossa cama — agora
minhas roupas estão oficialmente no closet dele — e Sofia.
Enquanto isso, Margô é vista diariamente com o olhar perdido, sentada
na beira da falésia e na companhia de Jorge. Tenho pena dela. Sei como é ter
o coração partido por Diniz Gabriel. Mas se eu me recuperei, ela também é
capaz. Talvez ela precise de uma Sofia, como eu.
As semanas passam e agradeço pelo inverno ameno do Algarve. O sol é
sempre capaz de nos aquecer e os dias são lindos. Mesmo que não estejam
favoráveis para banho de mar, apreciar as ondas não é congelante.
Em um desses dias deliciosos, marco um brunch[xxxii] com Isabel para
escolhermos os pratos do casamento. Enquanto espero por ela, apoio o queixo
na mão e olho para a mesa posta diante de mim por diversos funcionários do
buffet instalado na luxuosa marina de Vilamoura. Penso na minha mãe, nas
palavras dela durante a minha adolescência.
— Ane Luise, meu docinho, um dia um homem bom, honesto e decente
vai se apaixonar por você e Deus abençoará essa união. Ele vai ter um bom
trabalho, cuidar de você e da sua família. Pode ser bonito — e eu acredito que
o será —, mas se não for, mesmo assim você vai amá-lo. Ele vai ter orgulho
do seu trabalho e pode até ficar chateado às vezes por te querer mais perto
dele e das crianças, urgir pelo tempo ao seu lado. Agradeça a isso, minha
filha. Até lá, sua velha mãe vai sonhando em como será sua boda. As flores,
as comidas, a benção do padre.
Instintivamente, pego o telefone na bolsa. É uma clutch [xxxiii]chique que
Mônica me ensinou a usar. Combina com minhas novas roupas, quase todas
presente de Nicola, que insiste que sem estilo eu não posso vender estilo.
— Olá, paixão. Já escolheu o que servir no dia mais feliz da minha vida?
— Nuno pergunta ao atender o telefone.
— Isabel ainda não chegou.
Mordo a unha, olhando para os lados pra ver se minha cunhada não está
tagarelando com alguém sem que eu tenha notado. Nada.
— Normal vindo de Isabel. Quer que eu vá até aí para te fazer
companhia?
— Na verdade, preciso da sua ajuda para outra coisa.
Nuno não responde. Sabe que eu tenho dificuldade em recuar e admitir
que preciso dele. Gosto de dar o meu jeito sem que ninguém diga que um
homem me salvou. Mas só dessa vez eu acho que vou dar o braço a torcer.
— É minha mãe — falo baixinho.
— Sua mãe? O que tem ela? Teve notícias?
Meus pulmões parecem constritos, difícil de puxar o ar.
— Não. Mas eu não posso deixar passar, Nuno. Ela sonhou tanto com
esse casamento. Muito mais do que eu. Ela precisa estar aqui e não sei como
fazer isso. Estou tão chateada.
— E você acha que se eu for atrás dela, sua mãe aceitaria nosso convite
para o casamento?
— Sinceramente? Não. Mas sei que ela ficaria magoada pelo resto da
vida. — Minha voz já está chorosa e baixo os óculos de sol para que os
funcionários do buffet não percebam meus olhos marejados.
— Hum. Ok. Vamos fazer assim, concentre-se no cardápio. Escolha
coisas que ela goste e não fique pensando nessa situação. Vou ver o que
posso fazer.
Agradeço ao meu lindo noivo e desligo. Me abaixo para guardar o
telefone na bolsa e quando levanto o rosto, Isabel já está puxando uma
cadeira ao meu lado.
— Você não está com calor? Meu Deus, eu estou colando. — Ela se
abana e deixa o quadril cair na cadeira diante de mim.
— É final de inverno. O tempo está muito gostoso.
— Será que estou gripada. Não sei. Estou tão estranha hoje.
Noto que, realmente, as bochechas dela estão bem coradas. Será que é
febre?
— Bom, vamos começar logo com isso. Quanto antes iniciamos, antes
acabamos.
— Nossa, nem parece que você está empolgada — digo, enfiando um
canapé de camarão na boca.
Um garçom se aproxima da nossa mesa e fala adjetivos sobre a bebida
que carrega, nos mostrando o rótulo. Não faço ideia do que signifique e
Isabel, que é capaz de entender, tem os olhos unidos e o nariz franzido para a
taça com a bebida.
— Mas do que isso é feito, mijo de gambá?
Levo o guardanapo de tecido aos lábios, encobrindo uma gargalhada. Ao
fazer isso, uma náusea sobe por meu esôfago, mas consigo contê-la, diferente
de Isabel, que quando coloca a taça na boca, faz ânsia de vômito, parecendo
um cachorro engasgado.
Ela arrasta a cadeira para trás e vomita nos pés. Me levanto e seguro seus
cabelos. Mas isso só até o cheiro subir pelo meu nariz. Então somos duas
colocando para fora aquilo que ainda nem comemos.
Demora até que o caos causado por nós seja contido. Vamos embora do
bistrô com os rostos corados de vergonha. Definitivamente não serão eles a
servirem no nosso casamento. Não pela comida ser ruim, mas pela situação
embaraçosa que causamos.
Paradas no banco de trás do carro dirigido por Tenório, olhamos as duas
para os barcos atracados na marina.
— Estou indo ao banheiro com mais frequência — Isabel fala e não dou
muita bola.
Eu só quero ir pra casa.
— Hummm. — Faço, sem saber o que dizer.
— Engordei dois quilos.
— Pode ser a ansiedade do casamento — constato.
— Tenho sentido enjoos e tonturas.
Encaro Isabel com os olhos arregalados de quem acabou de juntar um
mais um.
— Estamos com uma virose, Bel. Eu estou sentindo tudo isso também.
Não foi à toa nosso show de vômito no buffet hoje.
Ela sacode a cabeça devagar, o queixo abaixado e os cabelos caindo ao
redor do rosto.
— Não, Ane, nós estamos grávidas.
46
Ane Luise
É a segunda vez na vida que estou fazendo isso. E a segunda onde as
coisas não são exatamente como eu imaginava.
Isabel desceu na farmácia e pediu dez testes de gravidez enquanto eu
esperava no carro, roendo todas as unhas, o que não é nada fácil, porque na
Europa elas são de gel. E sim, agora eu sou uma garota que faz as unhas, algo
que eu acho muito chique, porque ter vinte euros para gastar nisso há seis
meses atrás me faria rir de me dobrar por cima da barriga. Não que eu agora
tenha muitos euros sobrando, mas Nicola já está me pagando pelos desenhos
e disse que depois do desfile não vou ter nem o que fazer com o dinheiro, o
que eu duvido.
Esperei por Isabel, tentando desviar das perguntas de Tenório se estava
tudo bem e morrendo de medo dele identificar algum risco infundado e
contatar Nuno. Senti uma cólica leve e já estava até mais tranquila, pensando
que minha menstruação chegaria a qualquer momento, já que, óbvio, somente
depois do que Isabel falou sobre a possibilidade de estarmos grávidas foi que
percebi o atraso.
Então agora estamos as duas numa cabine de banheiro de shopping, cada
uma segurando seu teste e com as outras oito caixas esparramadas sobre a
tampa da sanita.
Isabel fez xixi no palitinho primeiro, então ela o sacode de um lado para
o outro, como se isso fosse acelerar as coisas.
— Ai, que demora.
— Deve ser porque não estamos grávidas. O meu ainda não apareceu
nada.
Ela então segura a outra ponta do palito e arregala os olhos, o prendendo
entre as duas mãos.
— Ai, meu Deus. Ai, meu Deus.
— O quê? Fala, Isabel. — Fico na ponta dos pés e tento olhar o teste.
— Eu estou grávida. — Ela vira o pauzinho e vejo os dois riscos cor-de-
rosa.
Meu coração faz um tum tum tum tão forte que tenho certeza de que
Isabel está ouvindo. Baixo os olhos para o meu próprio palitinho e ele está
igual ao da minha cunhada: duplamente riscado de rosa.
— E eu também — murmuro, encostando as costas na parede de
compensado da cabine.
Isabel passa a mão sobre a tampa do vaso sanitário, jogando os outros
testes todos no chão e cambaleando até se sentar.
— Vamos fazer outros pra ter certeza. — Começo a juntar as caixinhas
do chão, mas ela me impede.
— É perda de tempo. Com todos os nossos sintomas e esses positivos,
impossível estarem errados.
Cubro os olhos com as palmas das mãos. Mas que burra. Que burra. De
novo, Ane Luise? De novo quando você está prestes a ser alguém...
— Mas eu não entendo. Eu e Nuno nunca fizemos sem camisinha. Será
que não é cem por cento confiável?
Isabel me olha e percebo sua impaciência. Me sinto um pouco tonta. Não
entendo muito da fisiologia do corpo humano. Talvez esteja falando bobagem
e ela me vendo como uma boba.
— Eu e Thiago também não — ela fala, jogando o corpo para trás.
— Então é isso. Deve ter um bom percentual de falha. Estou ferrada.
Minha vida vai virar um caos de novo. Ai, que droga — choramingo.
Isabel deixa cair os braços e depois pula para a frente, me assustando ao
segurar em meus ombros.
— Não, Ane. Você não está ferrada. Eu estou. Você ouviu o que eu disse
sobre mim e o Thiago?
— Sim, claro. Vocês também não fizeram sem proteção.
Ela revira os olhos e me dá um chacoalhão.
— Querida, você não está entendendo. Nós sequer fizemos. Thiago e eu
nunca transamos.
Meu queixo se arrasta no chão. O quê?
Eu até entendo o fato de alguém se casar sem nunca ter dormido com a
outra pessoa. Na verdade, era o que meus pais esperaram de mim a vida toda,
mas tem algo errado nessa história.
— Mas... Mas como você está grávida dele então, criatura?
— Eu não estou grávida dele. Esse bebê é da Marta.
Esse negócio de estar grávida realmente deixa a gente meio zonza. É isso
ou eu levei um choque muito grande, porque o chão está rodando com essa
informação.
— O que eu vou fazer, Ane? E meu casamento? E Punta? Ai, não. Como
sou burra.
Apoio os joelhos no chão e envolvo Isabel em um abraço. Também estou
me sentindo assim, cheia de perguntas.
— Bel, agora só temos uma coisa a fazer: contar aos pais desses bebês.
Vamos pra casa sob o olhar inquisidor de Tenório no retrovisor. Ele já
me perguntou duas vezes se não estou com saudades do Brasil, seu código de
segurança com Nuno, e agora comigo também. Volta e meia desvio de suas
pupilas encobertas por desconfiança. Mal ele abre a porta do carro no jardim
e saio correndo.
Não vejo nada no caminho. Apenas quero encontrar Nuno. Para minha
sorte, ele já está logo no primeiro cômodo. Quando o vejo na sala, me atiro
em seus braços e caio em soluços.
— Eu não queria que fosse assim. Eu juro.
— Ane, meu amor, o que houve? — Sua mão grande se esparrama pela
base da minha coluna, a boca toca o lóbulo da minha orelha.
Afasto o rosto do seu peito, deixando uma mancha molhada de lágrimas.
Esfrego as bochechas e fungo.
— Estou esperando um bebê.
Tento olhar para baixo, desviar de ver sua expressão se alterar por medo
de enxergar ali alguma dúvida ou decepção. Mas Nuno dá o maior sorriso
que já o vi dar até então, lindo, grande e carregado de amor. Isso até uma
sobrancelha dele subir.
— Isso é ótimo. Uma linda notícia, mas a gente não tinha usado
camisinha? — ele fala baixinho.
Pronto. Isso que eu temia. Será que Nuno está com a mesma
desconfiança que eu sobre o que houve de fato naquela noite na Espanha?
— Estou com medo, Nuno. Muito medo de que Diniz tenha ido até o fim
comigo naquela noite em Ibiza e nós dois não tenhamos percebido isso.
Então um movimento atrás de Nuno me acorda para a realidade de não
estamos sozinhos na sala. Lili aparece no meu campo de visão. Viro o
pescoço e vejo Diniz. Seu sorriso maquiavélico gela meu sangue. Marta,
Margô, Sofia. Isso até parece um espetáculo.
— Eu poderia deixar que tio Nuno duvidasse de você, mas vou te ajudar
nessa, porque, mais cedo ou mais tarde, um exame de DNA vai falar a
verdade. Naquela noite em Ibiza, vocês dormiram no quarto dos meus avós.
Por acaso usaram a camisinha que entreguei ao meu pai? — Lili se aproxima
de mim, os braços cruzados
Nuno pensa um pouco, olha para o alto e depois para mim, tentando se
lembrar.
— Eu peguei um pacote na cômoda. Estava ali. Sei lá, pensei ser dos
meus pais — ele responde e Lili revira os olhos.
— Eu furei — Liliana fala com indiferença sobre um assunto que pode
abalar a vida de muitas pessoas.
— O quê? Você não tinha o direito. Não podia ter feito isso comigo, Lili.
— Dou uma bofetada no rosto dela e logo me sinto culpada.
Sua mão vai até a marca vermelha e a esfrega sem parecer arrependida.
— Achei que você lembraria o quanto foi apaixonada pelo meu pai e iria
pra cama com ele. Eu só queria uma família, Ane. A minha própria família.
No fim, o tiro saiu pela culatra e você dormiu com tio Nuno. Agora está aí o
resultado das camisinhas furadas. — Ela joga os braços para o alto e depois
os deixa cair ao lado do corpo.
Estou tremendo de raiva e já não tão arrependida de a ter esbofeteado.
Inclusive, acho que faria de novo.
— Isso não é justo. Você não sabe o que é não decidir o momento de ter
o seu filho. Não sabe o que eu passei com uma gravidez não planejada pra me
fazer passar por isso de novo. — Seco com fúria as lágrimas que vão caindo.
Nuno me abraça e me faz encará-lo. Seu olhar penetrante me conforta,
me preenche do vazio que o medo tenta abrir dentro de mim.
— Luise, escute, está tudo bem. Vai ficar tudo bem. Eu estou com você
agora. Não há babaca nenhum para correr atrás. O pai do seu filho te ama e
quer vocês dois. Três, porque a bebê Sofia também é minha.
Ouço alguém fungar e olho para trás. A sempre altiva Isabel está em
frangalhos.
Marta está parada perto da janela, o peito estufado e o queixo erguido,
tentando parecer indiferente à presença da garota. Mas isso não dura muito.
— Eu também vou ter um bebê — Bel despeja e os olhos de Marta
tentam saltar para o chão.
Percebo sua respiração acelerada, a tristeza subindo pela ponta do pé e
levando a cor de sua pele.
— Como você pôde. — Marta olha para ela com nojo.
— A culpa é sua. — Isabel ergue o indicador na cara da outra.
— Minha? Ah, claro. É minha culpa você não querer ficar comigo e
engravidar do primeiro babaca que aparece na sua frente.
Thiago tosse e ergue o braço. Ele está aqui? Ah, céus, que belo
espetáculo estamos dando.
— Não se meta, você. — Marta se vira para ele e quase rosna para o
pobre homem.
Então ela encara com fúria os olhos marejados de Isabel, que solta um
grunhido e diz baixinho, olhando para os pés:
— Babaca.
— Como é que é? Você está me chamando de babaca?
Então a ficha de Marta começa a cair. Dá para ver por seu olhar se
tornando cristalino, compreendendo o que minha cunhada quer dizer: o
babaca que a engravidou foi Marta, ou seu amor de adolescência,
antigamente conhecido como o primo Mário.
E é aí que Thiago definitivamente sai de cena, porque as duas explodem
em um embate de línguas e mãos, mordidas e puxões de cabelo, beijos e
xingamentos carinhosos para todos nós cairmos na risada.
Menos Diniz. Ele parece não estar achando nada engraçado.
47
Nuno
Tiramos Isabel e Marta da sala antes que Thiago tenha um surto. Preciso
dele aqui para resolver minha questão. Não posso fazer nada se as coisas com
Isabel não deram certo. Ele continua sendo meu advogado.
Pedi para que ele tentasse uma negociação com o advogado de Diniz, já
que eles são amigos. Quero que a guarda de Sofia vá direto para Luise e até
me dispus a finalizar a negociação do cassino de Ibiza de uma vez em troca
disso, mesmo que doa bastante passar o lugar favorito do meu avô para esse
babaca do meu irmão.
O clima fica tenso quando somos só nós na sala, Ane, eu, Thiago e
Diniz. Ele é o primeiro a abrir a boca para falar merda.
— Você é um otário. Caiu na lábia dessa daí direitinho, como ela tentou
me fazer cair — diz, enchendo um copo de uísque sem gelo.
— Isso é mentira — Luise se revolta e eu a afasto dele, a colocando atrás
do meu corpo.
— Não fale assim dela.
Diniz ri com desdém.
— Ah, é? A santa virgem trepou com você como trepou comigo. Depois
veio com esse papo de inocência, virgindade e logo estava grávida e
querendo casamento. Essa louca veio atrás de mim até Portugal. Eu mandei
que fizesse um aborto. Dei todo o suporte e o meu advogado estava à
disposição. O que ela fez? Continuou a gravidez para tentar tirar tudo o que é
meu. Quando Luise passou mal e ligaram do hospital para o meu advogado,
só aceitei ficar com a guarda de Sofia porque assim ela não tiraria nada de
mim se sobrevivesse à pré-eclâmpsia. Foi ela quem quis assim. — Sua voz
está enrolada e percebo que provavelmente já esteja bêbado.
Luise começa a chorar e eu luto comigo mesmo para não socar a cara do
meu irmão.
— Não foi desse jeito. Eu precisava ter certeza de que meu bebê não
ficaria desamparado. E seu advogado me disse que era um menino. Os
funcionários do hospital me disseram que era um menino. Por que você fez
isso comigo, Diniz? Por que me colocou aqui nessa casa com a minha filha
sem me falar?
O desespero de Luise me quebra por dentro. Fico preocupado com o
nosso bebê em seu ventre e isso me dá ainda mais raiva de Diniz. Não quero
que ela passe por essas coisas de novo por causa dele. Ela não merece.
Seguro em seus ombros e olho em seus lindos olhos verdes, os cílios
molhados das lágrimas.
— Alu, acho melhor você ir. Preciso conversar a sós com meu irmão e
Thiago. Essa discussão pode te fazer mal.
— Eu não vou sair daqui. Não preciso que você me represente para dizer
ao Diniz Gabriel o quanto eu o odeio e o quanto ele é um escroto filho da
mãe.
Diniz se senta sobre a mesa de bebidas e cruza os punhos sobre a perna.
Como pode ser tão insensível. Tenho raiva de pensar que é o pai biológico da
minha Sofia, que já teve Luise nos braços. Ao menos foi burro o suficiente
para deixar tudo para mim.
— Ok, Alu. Ráh, é engraçado ouvir o meu irmãozinho te chamando do
apelido que eu inventei para você. A cada cara novo você foi repassando esse
Alu para ouvi-los gemer no seu ouvido e lembrar de mim?
Pronto. Minha mão não se controla e voa no queixo de Diniz. Ele
cambaleia para o lado, se agarrando à mesa. Ane Luise me segura.
— Não, Nuno, pelo amor de Deus. Não desça ao nível dele. É isso que
Diniz quer, mostrar para a sua família que você é um descontrolado e que
está implicando com ele por birra.
A súplica nos olhos dela me faz perceber que tem razão. Diniz vai sair
dessa sala e correr para Margô, dizer que perdi a cabeça e que não devia ser
eu a controlar os negócios da família. Que posso não ser um drogado como
pensavam, mas, ainda assim, sou um descontrolado.
— É isso, não é? Luise tem razão. Você sempre querendo me colocar no
seu nível — digo, ajeitando o terno e o colete por baixo dele.
— Não sou eu que fico com os seus restos. — Ele esfrega o lábio
cortado.
De novo Luise precisa me segurar para não avançar nele. Mas, dessa vez,
ela gira o corpo e coloca o indicador diante do nariz do meu irmão.
— Lave sua boca para falar da minha filha. Sofia não é um resto que
ficou com Nuno. E eu sou tão resto que até pouco tempo você estava me
drogando para tentar me levar pra cama.
A risada sarcástica dele me deixa enjoado. Meu coração está latejando
acelerado no peito, no pescoço, nas têmporas.
— Pois é, Alu, pensei que ainda daria para recuperar o tempo perdido.
Nós dois, nossa filhinha, Lili e mais um Prado Ribeiro, quem sabe. A família
feliz que você queria, hein? Não era assim? Mas outra vez você foi mais
esperta. Pegou o cara certo. E, de novo, eu fui burro, sabe por quê? Deixe-me
dizer o que eu tinha em mente para nós. Eu ia te assumir, sua tonta. Pegar
Sofia de volta. Mas você não quis fazer isso de bom grado. Lili até tentou me
ajudar a te tirar de Nuno, colocando aquele remédio na sua bebida, mas ele
não conseguiu resistir a essa sua boceta. E realmente, é uma boceta e tanto.
— Porra, eu vou te matar, Diniz Gabriel. Eu vou te matar. — Pulo em
cima dele e rolamos pelo chão entre socos e chutes enquanto Luise grita por
ajuda.
Tenório surge para nos separar e Diniz arrasta o quadril até a parede, se
levantando com dificuldade.
— Lili furou as camisinhas que estavam na cabeceira do quarto de Ibiza,
porque queria que eu te engravidasse de novo e te tirasse do Nuno. Eu nem
sabia desse plano dela, mas minha filha foi esperta, porque tudo o que eu
mais queria era tirar a Sofia, tirar tudo que eu pudesse tirar de Nuno. Mas
essa sua boceta brasileira quis um pau novo. Mas quem te garante que esse
filho que ela espera é seu, hein, irmãozinho? — Ele olha para mim.
Não consigo controlar. Vejo a arma no coldre na cintura de Tenório e me
agarro nela. Miro a testa de Diniz e Margô entra na sala aos gritos.
— Nuno, não, pelo amor de Deus! Ele é seu irmão.
Com o rosto ensanguentado, Diniz continua rindo.
— Senhor, não. Use a cabeça. Não faça bobagem — Tenório me alerta,
com as mãos espalmadas no ar.
— Meu amor, por favor. Não suje suas mãos com ele. Você sabe que
esse bebê é nosso e vamos provar isso, mais cedo ou mais tarde — Luise
implora.
Ignoro as vozes ao meu redor e foco no meu irmão.
— Por que você fez isso? Por que trouxe Luise até Sofia? — falo sem
desviar os olhos dos dele.
— Você podia ter ficado com tudo, Nuno, mas foi arrogante o suficiente
para tentar tirar de mim o negócio de Ibiza. Aquele cassino era meu. Quando
eu soube que você estava em Lisboa tentando atrasar a negociação para me
dar um cassino em Macau, eu decidi acabar com essa palhaçada, te mostrar
que você não estava no controle. Pedi para o meu advogado indicar ao seu a
agência de empregos e o nome de Luise para que ela viesse pessoalmente
tirar Sofia de você. Foi o que seu amiguinho fez, não foi, Thiago? — Diniz
faz sinal com a cabeça para o meu advogado e Thiago concorda, confuso,
provavelmente tentando conectar em sua mente em qual momento foi
enganado e usado pelo meu irmão, como todos nós Prados Ribeiro e Luise.
Tento voltar uns meses atrás e recordar os detalhes da minha conversa
com Thiago. Óbvio que Diniz sabia da minha dificuldade em encontrar uma
babá para Sofia. Margô fazia questão de dizer que eu não precisava ser o
mais perfeito do mundo, que todos têm suas falhas. Mas eu estava tentando,
dando o meu melhor para provar que o lugar de Sofia era ao meu lado.
Comentei com Thiago e ele surgiu uns dias depois com a indicação da babá.
Jamais imaginaria que era uma sugestão vinda do próprio Diniz para me
ferrar.
— Então, por algum motivo, você aceitou fechar o negócio de Ibiza.
— Sim. Luise me convenceu a encher essa casa com todos os Prado
Ribeiro e suas loucuras.
Penso naqueles dias, em como ela me fazia sentir que tudo daria certo,
que passar o cassino para Diniz nem seria tão ruim, no fim das contas. Eu só
queria seu sorriso e ficar ao lado dela e de Sofia.
— Bom, foi aí que eu cheguei e vi vocês dois juntos, brincando de
família feliz. Porra, eu não ia deixar, maninho. Não ia te ver sair de bonzão
mais uma vez fechando um excelente negócio, ficando com a minha filha e a
minha mulher.
— Eu não sou a sua mulher. — Luise quase explode ao meu lado.
— Mas bem que quis, né, docinho? Aí chegou aqui, na casa milionária
dos Prado Ribeiro e resolveu baixar as calcinhas para o cara certo, o chefe da
família.
Movimento o dedo e puxo o gatilho. Margô cobre os ouvidos. Luise grita
e Tenório tensiona o maxilar tão forte que ouço o rangido.
— Anda, atira. Aí você vai preso, nunca vai conhecer o seu filho e ainda
por cima Sofia fica órfã — Diniz zomba.
Minha cabeça dá mil voltas. Nunca me senti tão vivo ou corajoso. Só
quero acabar com isso, mas esse filho da mãe tem razão. Esse não é o jeito
certo.
— O que está acontecendo aqui? Nuno, meu filho — minha mãe grita e
corre até Diniz, o ajudando a se levantar.
Nosso pai entra na sala e vem até mim. Decido ceder e deixo que ele
baixe meu braço.
Luise se enrosca em meu peito e cheiro seus cabelos enquanto Tenório
pega a arma e desaparece com ela.
— Graças a Deus você não fez uma loucura. Não ia suportar meus filhos
sem o pai deles — Luise fala com a voz abafada no meu colo.
— Sofia é minha filha — Diniz brada.
— Então entre na justiça para tirá-la de mim. E trate de arranjar um bom
advogado, porque você estará bem longe daqui para resolver isso — falo sem
me abalar.
— Do que você está falando? — Diniz dá um passo à frente, mas nossos
pais o mantêm afastado de mim.
Sorrio e beijo a testa de Luise.
— Eu não assinei Ibiza. Consegui fechar Macau primeiro. Se você quer
um novo cassino para manter as merdas que faz da sua vida, então terá que
cuidar disso lá da China, maninho.
Diniz se debate para fugir dos braços que o seguram enquanto eu pego a
mão da minha garota e a beijo. Margô caminha até Diniz e pressiona a
bengala contra o pé dele, que grita enquanto ela a gira de um lado para o
outro.
— Eu vou assumir Ibiza. Agora, seu infeliz, suma daqui e leve sua filha
bandidinha junto com você. Se dê por contente de ter ficado com Macau,
porque eu vou dar um jeito de vocês nunca mais receberem nada dos Prado
Ribeiro. Anda, desapareça — Margô diz.
— Mas, Margô...
— O que você fez com Luise e Nuno foi desprezível. Abandonar uma
mulher grávida, tentar obrigá-la a fazer um aborto quando ela não queria, vê-
la passar necessidade e depois usá-la para atingir o seu irmão. Você teve
muita cara de pau de voltar a essa casa e tentar tirar dele o amor que
conquistou. Sofia é filha de Nuno e você tenha a decência de legalizar isso ou
nem com seu antigo cassino de Ibiza e Macau você vai ficar. Pode ter certeza
de que dou um jeito de te tirar tudo.
— Vocês são um lixo de família. Agora fica bem claro para mim como
Luise e Sofia se adequaram tão facilmente a essa casa. Fiquem com elas. Meu
advogado entrará em contato.
Diniz vai embora com Liliana como um raio, batendo a porta do carro e
cantando pneus. Fico com pena da minha mãe e seu choro convulsivo. Ela
voltou dos Estados Unidos toda empolgada para a festa de um aninho de
Sofia e encontrou essa situação.
— Mãe, sei que a gente não troca um filho pelo outro, mas, se isso te
consola, Luise está grávida. Você vai ganhar um netinho ou uma netinha. —
A abraço pelos ombros e não sei o que disse de errado, mas é aí que minha
mãe chora mais ainda.
— Ah, Nuno, meu filho, eu esperei tanto pra te ouvir falar isso. Achei
que sua vida seria muito mais feliz quando Diniz te entregou Sofia, mas logo
as coisas desandaram. Te ver assim feliz, reconstruído, você não sabe como
me faz bem.
— Sei sim, mãe. Meu coração de pai já sabe.
Pai. Sorrio. Ah, caramba. Eu sou pai.
48
Ane Luise
Acordo ao sentir a garganta arder com a bile subindo. Corro até o
banheiro que era de Nuno. Agora é nosso. Agarro as bordas da pia e espero o
enjoo passar. Lavo o rosto, prendo o cabelo num coque desajeitado e volto
puxando a camiseta larga por cima da calcinha.
Já dormi muito sem roupa mas agora tenho companhia. Paro na porta e
apoio o ombro no batente, o sorriso largo pela cena que presencio.
Nuno dorme sem camisa, o lençol embolado no quadril. Aninhada
abaixo dele, Sofia está esparramada, sonhando com os anjos em seu sorriso
de sono de bebê.
Penso em quando cheguei aqui, em como Nuno riria se eu dissesse que
ela dormiria no meio da cama dele, sem horários pra adormecer ou acordar,
sem regras para o amor.
— Apreciando sua obra? — Nuno pergunta, rouco e ainda de olhos
semicerrados.
Ele joga o braço por cima do rosto e tenta me espiar, mas a claridade o
faz apertar os olhos.
— Apreciando enquanto fico um pouco em pé para acalmar os efeitos do
meu segundo trabalho.
Seu braço se move para cima e vejo uma sobrancelha se erguer. Amo
esse sorriso deliciosamente sexy.
— Estou adorando te ver grávida. E, pode me xingar, satisfeito por ser o
único a ter presenciado isso. Diniz não resistiria a você buchudinha.
— Buchudinha?
Caminho até a cama e finjo lhe dar uns tapas. Nuno me agarra e me
derruba na cama, forte, másculo, suas mãos enormes me fazendo cócegas.
— Sim. Você está realizando meus sonhos, sabia? Sempre quis ter minha
própria buchudinha.
Tento libertar as mãos, mas ele não deixa. Rolamos no canto da cama e
acabamos acordando Sofia.
Ela pisca muitas vezes, ainda sonolenta. Seus grandes cílios pincelando
as bochechas rosadas, como seu pijaminha.
— Bom dia, meu amor.
— Mã — ela balbucia e eu me derreto.
Ser chamada de mãe é a coisa mais incrível da vida, nem posso acreditar
que em breve terei outro pequeno aos meus pés dizendo mamãe.
É um menino. Fiz o exame de sexagem fetal. Vai se chamar Antônio,
como o avô. Antônio Macedônia Prado Ribeiro. O sobrenome que estamos
lutando na justiça para colocar em Sofia, que ainda é apenas uma Prado
Ribeiro.
Nuno alivia a pressão em meus pulsos e me senta em seu colo. Puxo
Sofia até meu peito e a embalo para frente e para trás.
Já sinto a barriga, então tenho cuidado para que ela não a pressione.
Todo meu corpo está sensível e especialmente latejante quando Nuno toca
nele.
Alguém bate na porta e Nuno diz que pode abrir. A mãe dele coloca o
rosto na fresta e Sofia ri para ela. Ah, como eu queria que amasse a outra avó
como ama essa.
— Bom dia. Vovó ouviu você e não aguentou te esperar descer. Vamos
tomar café com a bisa? — Sônia estende os braços e Sofia olha para mim,
como se me perguntasse se pode.
Franzo a testa com um sorriso e ela abre um também, confiante. Seus
pequenos bracinhos aceitam os da avó e as duas se vão, a bebê treinando seu
aceno de tchauzinho.
— Tchau, tchau, meu amor. Mamãe e papai já vão descer para tomar
café com você.
— Vamos só tomar um banho, ok, mãe?
— Tudo bem, meu filho. Fiquem tranquilos. Aproveitem minha estadia
aqui porque logo estarão sozinhos com dois bebês.
— Nem me fale, sogra.
— Preciso de uma babá nova. Espero que seja tão gata quanto a antiga
— Nuno brinca e eu lhe dou um soco no braço.
— Você vai ver babá gata.
— Ai, e menos brava. Credo.
Sônia e Sofia descem e ficamos sozinhos. Nuno me pega pela cintura e
me gira em seu colo com agilidade, me deixando montada de frente para ele.
— Vou contratar uma babá vovozinha, não se preocupe, minha ciumenta.
— Ai, Nuno, estou grávida, gorda, cansada. Desculpe, mas isso me deixa
insegura.
Nuno olha para o meu colo, passa os dedos pelo meu maxilar,
desenhando um caminho. Então ele o ergue e me encara, sério.
— Você não tem que se desculpar, muito menos que se sentir insegura.
Estou amando conhecer seu novo corpo. Adorando como ele enlouquece ao
meu toque. Perdendo o controle com esse perfume de fêmea poderosa que
anda com você agora. E, por falar nisso, a gente podia aproveitar esse
momento a sós para relaxar um pouco.
Rio, jogando a cabeça para trás.
— Relaxar. Sei... Você quer é se movimentar, isso sim.
Nuno me aperta e enfia o rosto no meu pescoço.
— Ah, Ane, estou louco por você, amor. Temos dormido com Sofia.
Ficar sozinhos está quase impossível. Vou explodir assim, te vendo ficar com
esses seios e quadris cada vez maiores e não podendo me enterrar neles.
Estou louco de tesão — ele diz, subindo até minha orelha com um rastro de
beijos que faz com que eu me contorça de prazer.
— Eu sei. Também estou com saudades de ficar com você, mas temos a
presença da família em casa para a festa de Sofia. A função dos preparativos
para o desfile da coleção com Nicola. O nosso casamento, os bebês. Às vezes
acho que vou enlouquecer. — Tento me esquivar, mas ele rola nossos corpos
no colchão, ficando por cima.
Posso sentir sua ereção pulsante pressionando minhas coxas.
— Enlouqueça, amor. Enlouqueça por mim. — Ele solta o ar,
exasperado.
— Você sabe como me atiçar com essa sua voz poderosa, dominadora.
— Quer ver o que é dominador? — Nuno fica de joelhos e observo seu
abdômen perfeito, desenhado com pequenas sombras formando os tijolinhos
horizontais dos músculos. — Tire a minha cueca e me chupe.
Seu olhar safado me faz arder. Escorrego a mão pelo elástico da sua
cueca boxer preta, a puxando por suas coxas até a metade.
A ereção chega a parecer dolorosa, desesperada. Ajeito o corpo para
conseguir fazer o que ele ordenou e o deslizo pelos lábios, colocando até
onde consigo. Seu gosto forte e masculino sempre me inebriou, mas agora,
grávida, está incontrolavelmente delicioso.
— Esfregue na sua cara — ele pede e sem tirar os olhos dos dele, passo a
textura pulsante da pele dele na maciez do meu rosto.
Nuno deixa a cabeça pender, os olhos rolarem enquanto agarra meus
cabelos pela nuca. Brinco com a língua.
— Ah, porra, Ane, que incrível. — Ele me puxa pelos cabelos até sua
boca e me beija forte, intenso, gostoso.
Minha calcinha está molhada e quando ele enfia os dedos dentro dela,
percebe isso e sorri.
— Vem no meu colo — ele diz e se senta na cama, me carregando junto
e afastando minha calcinha para o lado.
É tanta urgência que o tempo de a tirar parece muito para ele.
— Rebola devagar ou me gozo todo.
— E não é esse o intuito? — Arqueio uma sobrancelha.
— Sim. Mas depois de você. — Nuno pressiona o polegar contra meu
clitóris, a mão aberta espalmada no meu púbis.
Afasto as coxas e me entrego. A língua dele rodeia meu mamilo e seus
dentes o mordem com suavidade, me fazendo gemer, gritar quando a cabeça
encaixa na minha entrada, sendo engolida pelo meu corpo ondulante com
cada estocada do quadril de Nuno abaixo de mim.
Meu coque já não existe, os fios balançam selvagens, como nós dois, nos
beijando com uma ânsia de como se fosse a primeira vez. Minha pele ferve,
se arrepia. As sensações estão descontroladas.
— Não dá mais, Ane. Vou gozar — Nuno avisa e eu não consigo falar,
apenas gemer, pois já estou entregue, gozando.
Minhas contrações o apertando é o que o fazem explodir em um gozo
quente, melado, pungente. Estremecemos um nos braços do outro, pernas
entrelaçadas, peitos colados, esperando o frenesi passar e já pensando na
próxima vez.
Tomamos banho juntos e descemos para o café. A mansão está frenética,
com dezenas de funcionários decorando tudo para o aniversário de Sofia e o
desfile da minha coleção com Nicola.
Passo por eles dando toques de onde eu gostaria que as coisas ficassem,
ajeitando um ou outro vaso de flor. Nuno me rodeia, me parando hora ou
outra para me beijar.
— Está ficando incrível.
— Ai, estou tão nervosa. Será que vai dar certo, Nuno? Será que as
pessoas vão gostar? Tenho medo de que achem tudo muito amador, que
percebam que eu sou uma impostora.
— Você não é uma impostora. — Ele me abraça diante da piscina, agora
coberta por uma passarela de madeira onde será o desfile das crianças.
— É como eu me sinto às vezes.
— Se fosse, eu não teria te deixado lançar na minha marca. — Nicola
surge ao nosso lado com sua voz grave, a presença fisicamente pequena,
intelectualmente grande.
— Nicola. Você já chegou. Queria que visse tudo já pronto — digo,
preocupada em impressioná-la.
A senhora abana o ar.
— Gosto de ver a crueza das coisas. O antes da perfeição. Assim já sei
dizer se teremos sucesso.
— E então? O que me diz? — Uno as mãos, ansiosa.
— Que amanhã você estará nas capas das notícias de moda.
É difícil conter uma lágrima de alegria.
Subo para me arrumar e ponho um vestido verde da cor dos meus olhos.
Prendo os cabelos e os jogo por cima do ombro. Quando desço, as pessoas
me tratam como rainha. A princesa é Sofia, a aniversariante mais linda do
mundo em seu vestido bufante da cor do meu.
A festa dela é deliciosa. Os Prado Ribeiro estão muito felizes e até Lili
ligou. Ela ainda anda às voltas do pai, mas não se esqueceu da irmã. Gostaria
de tê-la conosco, mas confesso que tenho medo das suas maldades à lá Diniz
Gabriel.
Cantamos o parabéns, Sofia não sabe ainda assoprar a vela e eu e Nuno o
fazemos para ela, mas, as palmas, já sabe bater, mesmo diante das centenas
de pessoas espalhadas pelo jardim lindamente decorado.
Estou comendo o bolo quando Thiago se aproxima com um papel nas
mãos. Ele o ergue no ar e dá um tapinha nas costas de Nuno.
— Trouxe o meu presente. Sou o padrinho, não sou? — Ele sorri e meu
noivo concorda com a cabeça.
— Só porque foi tonto o suficiente para cair na conversa do Diniz e do
advogado dele e acabar trazendo Ane para mim — Nuno fala, desdobrando o
papel que o amigo entrega a ele.
— Feliz aniversário, Sofia. Meu presente é colocar junto ao seu nome o
nome da sua mãe. — Ele finge apertar a bochecha da bebê em meu colo, que
acha engraçado.
— O quê? — Levo a mão ao peito, espiando por cima do braço de Nuno.
Ele me encara e abre um sorriso. Sei que é um sorriso quebrado, porque
seu nome não está lá, ao lado do meu. Mas parte dele com certeza está muito
feliz por ter conseguido pelo menos alguma coisa na justiça.
— Sinto muito, amigo. Ainda não consegui colocar o seu nome. Diniz
não está ajudando. Mas não vou desistir.
— Nem eu, Thiago. Nem eu.
Quando o sol baixa, iniciamos o desfile. As lindas crianças da festa
vestem as roupas que desenhei e isso me emociona muito. Choro e rio como
uma doida enquanto Nuno afaga meu ombro, achando graça.
— Sou eu. Eu que fiz. — Aponto para uma menina vestindo um
conjunto de verão.
— Eu sei. Não seria tão perfeito se fosse obra de outra pessoa. — Ele
puxa minha cabeça com carinho e beija minha testa.
Então sou chamada nos alto-falantes, algo pela qual não estava
esperando. Olho para ele, surpresa e Nuno faz sinal de que não tem nada a
ver com isso. Procuro por Nicola com a cabeça e ela está na extremidade
inicial da passarela, me chamando com um movimento da mão.
Levanto com Sofia no colo e vou até lá. Uma música animada toca e o
sunset[xxxiv] está perfeito, as pessoas rindo e aproveitando a linda vista para o
mar de Portugal.
— O que houve, Nicola? — pergunto ao me aproximar.
— Como assim, o que houve? A estilista fecha o desfile e recebe os
aplausos. Vá. — Ela me empurra pela base das costas.
Quando percebo, estou no meio do tapete colorido da passarela com
Sofia no colo. Dou um passo e outro. As pessoas se levantam aos poucos,
sorrindo, aplaudindo, assoviando.
Chego ao final e não sei o que fazer. Apenas olho para a bebê em meus
braços e agradeço pelo o que estou vivendo. Não é sonho. É muito melhor do
que isso.
— Mamãe tem um trabalho, Sofi. Tem o papai e o seu irmãozinho. E
melhor ainda: mamãe tem você.
Penso que não há jeito de me sentir mais orgulhosa de tudo o que
construí, o que a minha fé e determinação trouxeram para mim. Contudo,
descubro estar enganada.
Não conheço a maioria dos convidados da festa. Amigos dos Prado
Ribeiro, o pessoal de Nicola, bastante gente. Mas aqueles três, aqueles eu
conheço bem
Falta ar que consiga penetrar nos meus pulmões, a ânsia e a euforia me
dominam quando minha mãe sorri, nada contida, me aplaudindo de pé, ao
lado do meu pai e de Camila, minha prima.
Bom, agora parece que o pacote está completo.
49
Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor,
seria como o metal que soa ou como o sino que tine.
E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda
a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os
montes, e não tivesse amor, nada seria.
E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e
ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor,
nada disso me aproveitaria.
O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com
leviandade, não se ensoberbece.
Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não
suspeita mal;
Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade;
Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo
línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá;
Porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos;
Mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado.
Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria
como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de
menino.
Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face;
agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido.
Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior
destes é o amor.
Assino a certidão de casamento e olho para o meu novo nome. Agora sou
uma Prado Ribeiro, mas através da pessoa certa, Nuno, meu eterno Senhor
Psicopata Sexy.
Trocamos alianças e, a melhor parte, beijos. Em nenhum momento a
nossa filha sai dos braços de Nuno. Legalmente, ela ainda é uma Prado
Ribeiro por parte de Diniz, mas tenho esperanças, pois o coração é quem
manda e, nesse quesito, Nuno é mais do que pai de Sofia.
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Querido Tio
Intenso.
Proibido.
Avassalador.
Prólogo
Álvaro
As duas meninas choram abraçadas sobre o gramado. A chuva fina
encharcando nossos ossos como se fossem lágrimas. Ah, Deus! Por que
permiti que Suzana fosse com os pais daquela garotinha? Por que deixei que
entrasse naquele carro? Devia tê-la levado eu mesmo.
— Meus pêsames, Álvaro. Sinto muito pela perda da sua esposa.
Percebo o toque no meu ombro e me viro para receber mais uma das
centenas de palavras de pesar que já ouvi hoje, o dia mais infeliz da minha
vida. Guardo no bolso a aliança que não quero mais usar. Vê-la em meu dedo
seria tortura.
Olho para a mão molhada do diretor do internato onde minha filha
estuda. Ele aguarda pela minha.
— Obrigado — falo, dando um aperto já sem forças.
— Eu que agradeço por nos deixar velar os pais da outra menina junto da
sua esposa.
— Fiquei sem chão quando Gabriela me disse que a amiga não tinha
praticamente mais ninguém além deles.
— Seria triste demais se essa criança tivesse que velar os pais sozinha,
porque os avós já são muito velhinhos coitados. Estão bem perdidos.
— Se está sendo difícil para a Gabi, não posso imaginar o que é para ela.
No que eu puder ajudar, fico à disposição.
— E ela vai precisar, Álvaro. Vai mesmo. Até que saia do internato, está
por nossa conta. O que me preocupa é o depois. Quem vai orientar essa
menina nos primeiros passos da vida aqui fora? Ficaria aliviado se você
pudesse me ajudar nessa tarefa de olhar por ela.
Ergo as sobrancelhas e logo mudo de expressão para não dar muito na
vista que estou surpreso com o pedido. Já é tanta responsabilidade ter que
lidar sozinho com a minha própria filha daqui para a frente.
Olho para a menina que sai do abraço de Gabi. Não passa de uma
garotinha magricela de dezesseis anos. Ele tem toda a razão. Será comida
para os leões famintos quando sair da escola. Não posso deixar que isso
aconteça. Imagino a minha filha assim tão vulnerável e logo me dá calafrios.
— Vou tomar conta dela. Fique tranquilo. Não vou deixar que nada de
mal lhe aconteça. Será protegida por mim tal qual Gabriela — digo em um
impulso.
O diretor dá um sorriso aliviado. Ele olha para algumas professoras
sentadas mais adiante. Deve ter sido pressionado pelo grupo de mulheres para
que falasse comigo sobre a menina, porque elas trocam sussurros assim que
veem a expressão dele.
— Já está quase na hora do enterro. Você deseja falar alguma coisa? —
pergunta, passando a mão pela cabeça molhada.
Faço que não. Nunca fui muito de palavras. Sou assertivo e bruto.
Trocaria os pés pelas mãos com tantas emoções pairando sobre mim hoje.
Agradeço mentalmente pelo internato ter organizado tudo. Estaria sentado,
em choque, até agora ao lado do telefone se não fosse por eles.
Os três caixões aguardam um ao lado do outro. Minha mulher e os pais
da colega de Gabi. Dezenas de pessoas da minha família, amigos e
funcionários da escola. Da parte da menina, apenas os avós já muito idosos.
Eles esperam sentados e parecem nem entender o que está acontecendo de
fato.
Suzana fez amizade com a mãe da amiguinha de Gabriela um tempo
atrás. Elas davam carona uma à outra nas sextas-feiras, quando buscavam as
meninas para passarem o final de semana em casa. Algumas vezes nossa filha
voltava para lá com a família da colega no domingo à noite.
Era corrido. A vida sempre um frenesi de horários e compromissos. Nada
faz sentido mais. Tudo o que construí, comprando e investindo em startups de
tecnologia até que ficassem milionárias, parece bobagem agora.
Preciso de um tempo. É isso. Gabriela terá seu último ano na escola e
não vou conseguir ficar sozinho naquela casa sem a minha mulher. Vou tirar
um ano sabático, viajar, conhecer novos mercados e sair da cidade até que ela
volte a morar comigo.
— Pai — Gabi me chama, estendendo o braço para mim.
Enlaço sua mão com a minha e ela me aperta. Deita o rosto no meu
ombro e morde a boca ao encarar o caixão já fechado da mãe. Do meu outro
lado, a garota de cabelos castanhos com reflexos avermelhados olha desolada
para o monte de terra que vai cobrir as pessoas que amamos.
Já a vi na nossa casa de relance algumas vezes. Acho que até já a levei
para o internato. Só não sei se ouvi sua voz, porque esses adolescentes são
assim, não tiram os fones do ouvido e só interagem com o celular.
Seu vestido preto até os joelhos já está encharcado, como os cabelos,
mas ela não liga. Ninguém liga para mais nada, na verdade.
Não lembro seu nome. Parece frágil e pálida. Olho para Gabriela,
tentando encontrar a mesma impressão, mas a minha menina é muito
diferente dela, até no jeito como está lidando com a situação. Talvez seja o
alívio de ter restado a ela ao menos um dos pais. O mundo é cruel. Deixar
essa criança sem ninguém, assim, de uma vez só.
— O diretor vai falar, pai — Gabi sussurra, agarrada ao meu braço.
O homem de terno marrom começa a falar, gesticulando diante dos
caixões. A maioria soluça, mas não a menina ao meu lado, que agora olha
para os próprios pés.
— Foi uma tragédia para a nossa escola. Duas famílias devastadas nesse
acidente de carro. Indo em direção ao Internato na noite de ontem, duas mães
e um pai tiveram suas vidas ceifadas pelo destino. É inacreditável o que
aconteceu. Em nome da escola e de todos os presentes, gostaria de falar um
pouco sobre esses três pais que partiram, nos deixando desolados, mas
orgulhosos do caminho que trilharam e das lindas filhas com que nos
contemplaram. Duas mães de trinta e seis anos. Meninas, como as crianças
que nos deixam, desamparadas sem as suas presenças, mas que para sempre
carregarão o seu amor. Suzana Lorente: uma arquiteta brilhante que foi
responsável por muitas das obras incríveis na nossa instituição. Organizadora
de ações filantrópicas, com nosso apoio, trouxe conforto a muitas famílias
carentes que atendemos na comunidade. Marta Murillo: uma querida médica
que também fazia parte do nosso Conselho de Pais e do grupo filantrópico.
Dezenas de crianças ficarão sem a sua proteção após essa perda tão
lastimável. Tadeu Murillo: contador e tesoureiro representante dos pais na
nossa fundação, foi imprescindível para a manutenção das nossas atividades
e, posteriormente, a possibilidade que tivemos de ajudar a tantas pessoas de
fora do internato.
Por alguns segundos fico com vergonha do meu pobre currículo de pai
perto dos três. Parece que a velha máxima que vaso ruim não quebra é
verdadeira. Nunca fiz nada pela escola ou pela comunidade. Tampouco sabia
o sobrenome da outra família. Suzana explanava sobre seus projetos, os
amigos e a sociedade. Mas eu, sempre tão envolvido com o trabalho, percebo
agora que mal a ouvia, preocupado em lhe dar uma vida cada vez mais
confortável.
Três pessoas excepcionais. E eu? Por que não fui o escolhido? Não
haveria todo esse discurso e a vida seguiria normalmente. As ações das
minhas empresas seriam dissolvidas e toda uma rede de pessoas necessitadas
continuaria feliz com a presença dos Murillo e da minha esposa.
Não tem mais volta. Eles se foram e continuo aqui. Esfrego o rosto para
tirar um pouco da chuva. Tento me concentrar outra vez no discurso fúnebre.
— Então, como uma benção do Céu, tive há pouco a confirmação de que
o senhor Álvaro Lorente vai guiar os passos da pequena Alexia tão breve ela
termine seu último ano na escola. Assim, seus pais podem ir descansados,
sabendo que a sua querida princesa não ficará sozinha.
Todos permanecem em silêncio. Talvez possam ouvir os meus
pensamentos.
Eu ficarei sozinho.
Nunca mais vou ver o amor no rosto de alguém.
Nunca mais vou sentir a paixão na minha cama.
Nunca mais vou compartilhar os segredos que envolvem duas almas.
Nunca mais.
Sinto em meus dedos um toque molhado. Baixo o rosto e vejo a mão da
menina. Ela se agarra na minha, gelada como deve estar seu corpo inteiro.
Volto a olhar para frente e a aperto.
— Vai ficar tudo bem. Vou cuidar de você — sussurro.
— Obrigada, tio.
No Inferno Com Dante
Olívia está dando o seu melhor para se manter viva em uma situação
bastante negativa. Depois de um acidente que tirou a vida da sua mãe, ela não
quer mais dançar. Sua meta é dizer sim a tudo que vier pela frente e viver
loucamente como sua mãe desejava para ela. Quem diria que dizer sim a
qualquer coisa que viesse pela frente incluiria um grande problema ... o
enorme lutador que vira sócio e aluno na
academia do seu pai para salvá-los da falência.
Dante abandonou a luta depois de uma fratura no braço, mas agora quer
retomar sua trajetória. Ele não tem muito além de noitadas e farras em sua
vida e sabe que algo está faltando. Quando ele se depara com a doce bailarina
filha do seu novo treinador, seu mundo louco e nefasto de repente vira de
cabeça para baixo.
Mas a paixão não deixa tempo para tudo o que precisam dizer. Incluindo
o fato dele estar lá na hora do acidente que mudou a vida de Olívia.
Só falta ele contar a ela que estava envolvido no acidente com sua mãe.
Prólogo
Quando morremos pela primeira vez, descobrimos que não é assim
tão assustador.
Olívia Hack
Minha mãe sai de casa e vou atrás dela até a garagem. Ela para ao lado
da porta do passageiro do nosso Jeep Renegade e joga as chaves na minha
direção.
— Nem sonhe — digo, as apanhando diante do peito.
— Não é mais sonho. Você está fazendo dezoito e já tem carteira
provisória. Pode dirigir.
Franzo a testa. Não é possível que alguém seja o total oposto de mim
como ela.
— Disse bem. Estou fazendo. É amanhã. Ainda tenho dezessete anos e
não tenho carteira definitiva. Não vou arriscar ficar sem. Vou precisar muito
quando for para a academia de dança.
Mamãe revira os olhos. Bom, somos opostos no jeito de ser, porque
fisicamente ela sou eu daqui uns anos.
— Não seja tão careta, Olívia, pelo amor de Deus. Seu pai já te ensinou.
Você foi maravilhosa nas aulas da autoescola e depois nunca mais pegou o
carro. Só vamos até a confeitaria buscar seu bolo. Fica na quadra de trás. —
Os ombros dela caem, como sempre quando fica frustrada com a minha falta
de engajamento nas aventuras.
Dou a volta no carro e entrego o chaveiro para ela. Seus cabelos pretos
cortados na altura do ombro estão diante do rosto então os coloco atrás da
orelha para deixar um beijo em sua bochecha.
— Melhor não, mãe. Juro que quando minha carteira definitiva sair eu te
levo sempre de carona. Podemos esperar mais uns dias — choramingo.
— Você pode dirigir acompanhada de um adulto — mamãe protesta.
— Mas não vou. É o último dia. Podemos esperar.
Ela bufa, assoprando o lábio inferior para fora e me fazendo rir. Entro no
carro e ela também, se sentando ao meu lado diante da direção.
Ela segura a minha mão e dá um sorriso triste.
— Só queria que você se arriscasse mais. Sabe o quanto eu...
— Sim, eu sei o quanto você se arrepende de não ter aproveitado mais a
vida quando tinha a minha idade.
Sua expressão fica amorosa e ela acaricia meu rosto.
— Não me arrependo de ter tido você. Mas se soubesse que seria mãe tão
cedo, não teria usado praticamente cada segundo da minha adolescência para
dançar.
Dou um sorriso pretensioso. Por toda a minha vida ela não se cansa de
repetir que não fui um erro de percurso e sei disso. Sinto, na verdade. Do que
ela se arrepende mesmo é de ter colocado tanto empenho em sua carreira de
bailarina que acabou quando ficou grávida de mim.
— Mãe, bem ou mal isso te levou a descobrir outra paixão. Você mesma
diz que é muito mais feliz dando aulas do que seria se fosse uma estrela nos
palcos. Já eu, quero realizar aqueles seus antigos sonhos, dançar
profissionalmente, te ver me aplaudir em Nova Iorque, Las Vegas. Pelo
mundo. Tenho muito orgulho de ter uma mãe formando dançarinas
maravilhosas, mas você sabe que não quero fazer o mesmo, dona Clarice.
Mamãe balança a cabeça em negativa e liga o carro, saindo de ré.
— E você sabe que eu não concordo. É evidente que as suas habilidades
são naturais, mil vezes à frente do que eu era capaz de fazer. Mas é um
desperdício que queira colocar sua vida nisso. Podia apenas ser professora de
dança, aproveitar que já tem a academia da família para fazer carreira. Só
insisto porque gostaria de te ver aproveitando a juventude como eu não fiz.
Mas isso é contraditório dentro do meu coração, porque quando te imagino
em um grande palco, como a atração principal, meus olhos se enchem de
água.
Coloco o cinto de segurança e olho para o relógio no painel. Não quero
ter essa discussão hoje.
— Ok. Mas eu quero dançar e ter a vida chata, regrada e sem graça que
você diz que tenho, porque isso é exatamente o que eu sou. Agora vamos de
uma vez. Falta pouco para a confeitaria fechar e não quero ficar sem bolo.
— Isso. Vamos aproveitar o único dia do ano que você se permite comer
um doce.
— Mãe, não posso ter uma grama a mais. Daqui uns dias é meu teste
para o Bolshoi e...
— E isso exige sacrifícios. Eu sei. Só não me conformo com todas essas
regras para uma menina tão nova quanto você. São nãos demais.
Reviro os olhos e não respondo. Não quero alongar essa conversa sobre
as coisas que tirei da minha vida para alcançar os meus sonhos.
Dobramos na esquina e a rua está toda trancada. Se fosse eu dirigindo,
teria esperado, mesmo com a possibilidade de me atrasar. Mas minha mãe é
sempre agitada, viva. Precisa agir ou surta.
Uma gota cai no para-brisas e depois outra. Mamãe tamborila na direção,
ansiosa.
— Droga! Só temos cinco minutos. Esse sinal fica fechado por três. Vou
entrar à direita.
Arqueio uma sobrancelha. Até a rua ainda temos uns quatro carros na
nossa frente.
— Vai demorar igual até esses carros saírem do caminho — digo,
mordendo o canto da unha.
— Por isso que eu vou pela calçada. Pego a avenida. É um pouco mais
longe, mas não tem sinal e faço a volta por trás. Temos que sair daqui antes
de todo mundo ficar atordoado por causa da chuva.
— Mãe, melhor ficarmos aqui. É só um bolo. Qualquer coisa o papai
pega amanhã de manhã.
Ela me olha daquele jeito frustrado, como se eu fosse sempre contra as
suas tentativas afoitas de resolver os problemas. Só não quero que ela leve
uma multa e tenhamos de ficar ouvindo as chatices de um guarda de trânsito.
Odeio reprimendas, mas elas não parecem afetar a minha mãe, contanto que
ela consiga o que quer.
— Ai, Olívia. Vamos resolver isso agora, porque amanhã de manhã
quero todo mundo me ajudando a encher os balões — ela diz, jogando o carro
por cima da calçada.
Tenho vontade de me abraçar aos joelhos e me esconder quando os
motoristas ao lado começam a buzinar para nós.
— Não, mãe. Vai dar tempo de fazer tudo. Estamos literalmente
atropelando as coisas — a repreendo, mas ela avança.
— Sim, Livi. Você precisa dizer mais sims. Arrisque-se. Tanta gente
vem para sua festa. Estou ansiosa. Até o pessoal da minha antiga academia de
dança. Vai ser um encontro inesquecível. Tudo isso para a minha garotinha
que agora é uma mulher e...
E ela tem razão em partes no que diz. Quando vira o carro à direita pela
segunda vez, tudo o que vejo é uma luz branca. Tudo o que ouço é o grito da
minha mãe.
Ela está certa sobre como o dia seguinte se torna um encontro
inesquecível. Mas errada ao dizer que tudo é para mim. Porque todos os
nossos amigos vêm para o seu funeral e não para a minha festa de
aniversário.
Comprada Para Ele
Matteo Pinarollo e Anna Lúcia Gaetti têm uma linda história de amor na
adolescência. Mas ele vai embora em busca de uma nova vida na Itália.
Depois de ser deixada por sua grande paixão, Anna não pensa em outra
coisa que não seja se vingar.
Após vários anos, Matteo precisa voltar e assumir o lugar do falecido
pai no império Pinarollo.
Paixão.
Desejo.
Emoção.