Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A Mulher Sem Cabeça - RITA
A Mulher Sem Cabeça - RITA
A Mulher Sem Cabeça - RITA
Era uma mulher só coração, ou ao menos uma imagem dele, bem nítida, com
cores fortes e sensações precisas. Um coração apaixonado pelo amor, cortês,
heróico e meio bobo. Isso no corpo de uma mulher forte, pernas grandes,
ombros de atleta e uma barriga saliente que tentava domar com fortes
braçadas na piscina. Ia e vinha de lá pra cá mais ou menos uns 1500 m todas
as manhãs bem cedo e, era verdade que nessas horas o coração fortalecia,
ficava mais distante do sonho de achar aquela alma desgarrada que iria afinar
com a sua, daquela maneira especial que fazia sua cabeça rolar de vez de
cima dos ombros. A cabeça no chão e o coração nas nuvens, como em um
vácuo, um corredor nebuloso por onde mil sensações se tocam e reconhecem.
Às vezes era possível até ler pensamentos, uma espécie de terreno comum e
inexplorado, uma afinidade essencial, onde se pode entrar e sentar, se sentir
bem e à vontade. Um conforto surpresa entre duas almas desconhecidas que
parecem afins. Esse era o drama da mulher sem cabeça. Ela não sabia
distinguir entre o que parecia ser e o que era de verdade. Uma lástima para
uma mente em geral perspicaz, atenta e às vezes cortante como uma navalha
para escolher qual caminho seguir, qual comida optar, onde parar, a quem
acolher, mas a quem querer era difícil. Aí o coração mandava e ele era
trôpego, vacilante e intrépido como uma nau que escorrega a onda volumosa e
desliza em êxtase até que a solidez da onda bata afinal num monte de areia e
despenque em espumas, sustos e solavancos. Depois, sem entender, continua se
esparramando por todos os buracos da terra firme, disperso. No percurso o
movimento é tudo. E a mente acompanha o coração que segue o movimento.
Uma música estonteante difícil de recusar, uma crença obstinada, uma aposta
no que não é possível ver mas intui que agora é a hora de virar ferro e fogo,
transformada a onda do mar pelo infinito de todo desejo submerso. E isso era
2
mais fácil de virar poesia do que encontrar um corpo ou dois que desse a
carne, o zelo, a leveza de fazer a mágica acontecer. Porque mágica se faz
com corpos, isso ela sabia. E esses corpos tão difíceis de encontrar, quase
sempre via nas pessoas e lugares mais improváveis: uma mulher casada, com
um casamento estável e milhares de horas de felicidade compartilhadas; uma
mãe com dois filhos pequenos e sorrisos e perguntas apontando sempre para a
frente, uma frente desconhecida e que ela podia com seu amor apalpar, e
fazer aparecer mais adiante como um terreno bom de pisar, de seguir; uma
menina com olhos de jabuticaba e coração de leão, iluminada. Todas miragens
que faziam seu coração inflar e murchar como um tributo as marés. Talvez
esse fosse seu pedágio, sua reverência interna e externa as forças do
feminino, que afinal lhe puxavam pra lá e cá com um amor cada vez mais
pronunciado. Era um amor, ela sabia, apesar de em outros tempos pensar que
tudo era uma espécie de trapaça, uma forma sórdida de recusa, uma
sabotagem em fincar os pés no chão, naquele chão tão desejado. Que
dificuldade imensa esse acordo amoroso, essa negociação entre partes que
nunca cediam e aquela sensação de tristeza invadia, invadia, como se fosse pra
sempre. Uma dor sempre sobra dessa matemática, uma matemática fria. A
sensação do amor impossível é como uma dor que nunca passa, um hematoma
perene. Quanto mais parece curado mais uma nova onda passa e faz de novo a
maré subir até encontrar o banco de areia. Não sabia como seria uma nova
imagem desse encontro. Dissolver o banco de areia, passar, passar, emendar
em outra onda infinitamente, deslizar, apostar no devagar e sempre, talvez.
Era preciso pensar essa espécie de amor inflado, impossível. Não queria achar
um beco sem saída. Afinal sua mente cortante e às vezes lúcida era uma
mestra em achar saídas. Os labirintos nunca lhe meteram medo. Apesar de
saber que as armas dessa mente cortante não iam achar saídas nesse mar,
3
intuía que alguma ponte estava se formando entre esses dois mundos distintos.
A fome do coração era enorme. Era preciso alimentar, matar a fome, seguir.
Resolveu procurar Raquel, uma amiga do tipo prático, direta, numa tarde
singela de outono, de uma luz discreta e limpa. Sua figura magra, franzina,
com olhos tristes muito fundos de um verde chumbo discreto, se transmutava
numa leoa para fazer a vida correr nos trilhos. Tudo que tocava virava ouro,
uma espécie de mágica também. Quem sabe pudesse ajudar a entender essa
lógica de transmutar uma coisa em outra. Deixou o carro em uma rua bucólica
e subiu os degraus do prédio sem elevador e uma portaria imponente. A rua
era como um sonho de valsa, um bom bom de promessas de que tudo sempre
iria achar um lugar como aquele pra chegar. Árvores, prédios redondos que
seguem a curva da ladeira que sobe, e no alto um clube privado com uma
piscina que dá no mar, com uma borda de água azul cristalina sobre o
marasmo dos carros parados, das luzes que piscam, do burburinho lá embaixo.
Uma vez lá dentro o mundo todo era só uma imagem, bela e distante. No meio
da conversa chegou Helena com seus cabelos longos, negros e volumosos. Sua
pele muito branca e lábios vermelhos soft puxaram sua atenção de imediato.
Se virou para ela sem esforço. Trazia um filho de 5 anos a tiracolo e quando
começou a puxar conversa seu interesse se voltou para a imagem lá fora. Ela
quis ir embora. Ia se despedindo e ela falando não vá, fique mais um pouco, e
4
Seu nome era Ana e o nome do avô o mesmo da mulher sem cabeça, Ernesto.
Uma coincidência sem pé nem cabeça, como foi toda a história delas. Ernesto
de Ana era um imigrante que se encontrou nos trópicos e o outro um homem
que escondia a mulher em baús quando saía de casa com medo que ela fugisse,
um meio índio, vacilante entre a cidade e a floresta. Um deles fez fortuna
como todo árabe que se preza, e o outro vacilou sempre entre mundos. Em
alguns momentos achava portas e passagens que só ele via, em outros se
excedia em sorrisos, maus humores, maus tratos e medos que não sabia de
onde vinham. A carga de violência e fantasia que ambos carregavam esteve
sempre por detrás daquele encontro, mesmo que nenhuma delas se desse
conta.
Através desse pano de fundo que não se mostrava se amaram como loucas. O
poder alucinógeno de uma sobre a outra furou todas as barreiras visíveis e
invisíveis, apesar de nunca ter permanecido de pé por muito tempo. Uma sina
difícil de engolir para quem amava o amor e sabia tão pouco. O não saber
sempre foi a parte boa dessa história, a que prometia mais montanhas russas
e sossegos e descobertas para a vida toda. Um pote de ouro escuro dentro da
terra, cavado nos corpos, por dentro. Foram e voltaram um milhão de vezes. E
sempre aquela neblina intensa transformava tudo outra vez em sensação pura.
As imagens simples da mão de uma no tornozelo da outra, dos pelos louros do
braço da vendedora na porta do carro, da sua voz ao telefone estudada e
ofegante, todas nunca mais se perderão. Permanecem sólidas como uma casa
de pedras em uma esquina de ventos que se equilibram. E além do que dá pra
saber as imagens são as que mais duram, apesar da distância, do desenlace, da
certeza da neblina, elas duram e isso a mulher sem cabeça só veio a entender
muito tempo mais tarde.
7
Um dia, a mulher sem cabeça em casa, na cidade nova que elegera como sua,
se preparou para um cinema qualquer, numa tarde em que elas, já separadas
há tempos, não haviam marcado nada, nem mesmo se lembravam uma da outra,
apagadas as lembranças em um canto qualquer da neblina. Saiu com uma
pulga atrás da orelha e um pressentimento, um peso cinza na altura da
têmpora esquerda. Era ela chegando, se aproximando, um anúncio de
tempestade rápida, mudando a luz do dia. Se encontraram em uma fila imensa,
dando voltas, uma de cada lado da fila que se estendia pela calçada. E não se
olharam de medo. Como num círculo sagrado se atraíam e confrontavam
naquela multidão que agora era só massa de manobra para que seus olhos não
se tocassem. O medo era enorme. Vibrava tão forte como o desejo do som da
voz, da mão na mão, do cheiro, da linha do pescoço. Era tão forte que dava
medo. Isso também a mulher sem cabeça entendeu bem mais tarde, essa
convivência de desejo e medo que mais uma vez não casava com o amor que
ansiava viver.
A história delas foi de um amor feroz, com raiva nos dentes e longos períodos
de espera. Mas também doce e macio, cheio das paisagens idílicas que aquela
camisa branca de linho prometeu e cumpriu. Paisagens submersas em um mar
infestado de tubarões. Era preciso saber andar, carregar o andor da
carruagem fantástica com maestria e desapego. Viver o momento e não querer
tudo. O momento era pleno demais, desconcertante demais pra se acomodar
numa linha reta do tempo. Talvez se a mulher sem cabeça não tivesse querido
tanto, se tornasse possíveis aqueles intervalos sem muxoxos e conclusões
dolorosas, talvez o rumo daquela história seguisse outro caminho. Mas olhando
de longe, já desgarrada de toda sorte de expectativa, achava mesmo que
aquele caminho não foi tão mal assim. E cada vez mais pensava na história, se
convencia dela como uma benção disfarçada. Um amor assim deixa um outro
tipo de rastro, e isso ela também só soube muito tempo depois.