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Trans/ F o r m / Ação, São P a ulo

7 : 9- 1 9 , 1 98 4 .

DO MITO ORIGINAL AO MITO IDEOLÓGICO:


ALGUNS PERCURSOS
R a u l F IK E R*

R ES UMO: Este artigo é parte d e u m a Dissertação d e Mestrado - "Mito e Paródia: s u a estru t u ra e


função no texto literário" - defendida em n o vembro de 1983 no Instituto de Estudos da L ingua­
gem / Unicamp . A passagem aqui reproduzida pertence ao capitulo que trata da conceituação do mito.
Ela procura apreender alguns de seus aspectos básicos dinam icamen te, n a transição de sua forma origi­
nai, tal como ocorre n as sociedades prim iti vas e arcaicas, para seu sucedâneo ideológico, n o con texto
das sociedades h istóricas.

UNI TER MOS: Mito; m i tologia; consciência m ítica; ideologia; sagrado e profa n o ; narrativa.

o c o nc e i t o de m i t o , de m a n e i r a g e r a l , se r e fe r e a um p r oced i m e n t o m e n t a l n o s
q uadros d a c u l t u ra arcaica o u selvagem . N e s t e s e n t i d o , u m m i to a p e n a s o é a t é q u e sej a
perceb i d o c o m o t a l n u m a ava l i ação e x t e r n a , e n t r a n d o a s s i m em c r i s e . O p r i s m a q u e v a ­
mos a b o r d a r agora r e f l e t e o s e n t i d o o p o s t o : p a r a o p e n s a m e n t o n ã o arcaico o u s e lva­
gem , u m mito p a s s a a s ê - l o depois d e i d e n t i f ic a d o como t a l , e s u a c o n o t ação mais d i re ­
ta é a de u m a c r e n ç a r u d i m e n t a r e e n g a n o s a , u m a ficção , u m a m e n t i r a , e n f i m . É n e s t e
c o n t e x t o q u e s e cha m a " m i t ô m a n o " a o m e n t i r o s o c o m p u l s ivo .
No p r i m e i r o caso , d ev i d o a d e s l oca m e n t o s p r o f u n d o s n a s u p e r es t r u t u r a de d e t e r ­
m i n ad a c u l t u r a , q u e p o d e m provir d e m u da n ç a s operadas n a i n fra-es t r u t u r a e n a i nt e ­
ração e n t r e a m b a s d e n t r o d e u m p r ocesso h i s t ór ico - c o m o é o c a s o d a s t r a n s f o r m a­
ções no m u n d o grego e n t r e 8 e 4 a . C . (2 1 ) - ou p o r i n te r fe r ê nc i a a b r u p t a e r a d ic a l d e
e l e m e n t o e x t e r n o - d a c iv i l ização e u r o p é i a n a s c u l t u ra s d i t a s p r i m i t iv a s , p o r e x e m p l o
- a c o n sc i ê nc i a m í t ic a e o u n iverso s o b r e e l a e s t r u t u r a d o e n t r a m e m c rise e s ã o s u b s t i ­
t u í d o s p o r o u t r a e p i s t em e : o s m i t o s d o u n iv e r s o ago ni z a n t e d e i x a m d e s e r m i t o s n o p r i ­
m e i r o s e n t i d o p a s s a n d o a sê- l o n o s eg u n d o . N o o u t r o c a s o , n o c o n t e x t o d e s t a n ov a
e p i s t e m e , a l g u m e l e m e n t o , até e ntão n ã o p r o b l e m at i z a d o é a u m a c e r t a a l t u r a p o s t o e m
q uestão - p a s s a a s e r p e rce b i d o c o m o f a l s o , o u se p e rc e b e q u e a l g o e r a t o m a d o c o m o
o q u e n ã o e r a , o u se l h e d e n u nc i a o c a rá t e r f e tich i s t a e p a s s a a s e r u m " m i to " . A p a l a­
vra é u s a d a n e s t e e sp ec t r o - c om a l g u m a'va ri a ç ão - q u a n d o se d i z q u e ' ' a d e m oc r ac i a
soc i a l esc a n d i n av a é u m m i to " , i s t o é , u m a ficção , o u " M ar i l y n M o n ro e f o i u m m i t o
s e x u a l d o s a n o s 5 0 " e o u t r o s c l ichês j o r n a l í s t ic o s d o gênero " P e l é , o s B e a t l e s o u S t a l i n
são m i t os " , i s t o é , d e s um an iz a d o s e rever t i d o s à co n d ição d e í d o l o o u f e tiche c o m o a l ­
v o d e adoração ( o u d e o j e r i za ) . E s t e . p r i s m a d i z r e s p e i t o a e s t a passagem : q ua n d o o m i­
to d e i x a de ( o u c o m e ç a a) sê- l o , i s t o é , p a s s a a ser r ec o nh ec i d o cc,mo t a l ? Q u a i s as c a -

* Departamento d e Antropologia, Filosofia e Politica � Instituto d e Letras. Ciências Sociais c Educaçào - UNESP _

14.800 - Araraquara - SP.

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FI K E R , R . - Do m i t o o r i g i n a l ao m i t o i d eológ i c o : a l g u n s perc u r s o s . T r a n s / F o r m / A ç ã o , São P a u l o ,
7 : 9- 1 9 , 1 984.

racte r í s t i c a s d e s s e m i t o d e s s a c r a l i z a d o , o s t e n s i v a m e n t e f i c t í c i o - o u , se formos adap­


tar o m o d e l o d e Lé v i - S t ra u s s a este n í vel - desse m o d e l o lógico q u e j á não resol v e
nem a t e n u a a s c o n t r a d i ç õ e s b á s i c a s e m r e l a ç ã o às q u a i s f ô r a e l a b o r a d o e q u e t a l v e z
mesmo as a g r a v e ? C o m o é o m i t o n e s s e s e u m o m e n t o , q u a n d o a m i t o l o g i a c l á s s i c a , j á
posta em q uestão e s a t i r izada d e s d e E v e m e r o ( v e r m a i s a d i a n te , p . 1 4) , a l e g o r i z a d a e
prec o n izada c o m o a r t i f í c i o de reforço à a u t o r i d ad e c o n s t i t u í d a ( pe l o s n e o p l a t ô n i c o.s e
e s t ó i c os ) , é e x p l í c i t a e u s u a l m e n t e d e s p r e s t i g i a d a n a era h e l e n í s t i c a ? Ou q u a n d o o ro­
m a n c e d e c a v a l a r i a , v e í c u l o d o m i t o básico d e uma época, sofre s u a m o rte p ó s t u m a
com o Dom Quixote? Q u a i s são a s caracter í s t i c a s d o m i t o d e n o s s a é p o c a ?
O m i t o m o d e r n o é e m geral a b o r d a d o e m t e r m o s de a n a l o g i a s s u p e r f i c i a i s c o m
c o m p o r t a m e n t o s a r c a i c o s a i d e n t i f i c a r , e n t r e c o s t u m es v e s t i g i a i s j á d e s p r ov i d o s d e
s u b st r a t o m í t i c o , " bo l s õ e s m í t i c o s " n a " era c i e n t í fica " ( c o m o o p r ó p r i o m i t o d a c iê n ­
c i a , os s í m b o l o s n a c i o n a i s e t c . ) e d e t e n t a t i v a s d e s u b s t i t u i ção d o s m i t o s rel i g i o s o s
( 3 , 6 ) . O q u e e s c a p a a e s t a v i s ã o é q u e o m i t o m o d e r n o , n u m perc u r s o p a r a l e l o e a l t e r na­
t i v o ao que e f e t u a d e s d e o m i t o o r i g i n a l para se t r a n s f o r m a r , através d e s u c e s s i v a s cri­
s es , em t e o r i a filosófica o u c i e n t í f i c a , s e t o r n a i d e o l og i a . N es t e c a s o , mais d o q u e trans­
formação , o c o r r e p e r m a n ê n c i a , havendo m ud a n ç a a p e n a s n o sentido d e a d a p t ação ao
novo c o n tex t o . Esta a d a p t ação , n o e n t a n t o , se d á a partir de u m de s c o l a me n t o b á s i c o e
não c o n s e g u e s u p e rá- l o - a n ã o ser a t r a vés de descaracteri zação r a d ic al do m i t o , e e n ­
t ã o j á se t r a t a c o m o q u e d e o u t r a c o i s a e n ã o c a b e r i a falar d e m i t o . S e n o a n t i g o c o n t e x ­
t o , o m i t o f o r ne c i a refere n c i al p a r a u m u n i verso e m relação ao q u a l ele p r ó p r i o era e l e ­
m e n t o c o n s t i t u i n t e , n o n o v o , q u e é c o n s t i t u í d o a p a r t i r d e o u t r o q uad r o m e n t a l , ele
fornece a p e n a s falsa c o n s c i ê n c i a , se prestando n e s t e sentido - ainda que c o m p o u c a
eficácia - a i n s t r u m e n t o d e d o m i n ação .
A ss i m , a t e n t a t i v a de recuperação da c o n s c i ê n c i a m í ti c a pode s i g n i fi c a r v á r i a s c o i ­
sas : para o " ex-pr i m i t i v o " c o l o n izad o , o resgate d e s u a c o n s c i ê n c i a o r i g i n a l a n u l ada
pelo i n va s o r e u r o p e u , e p a r a e s t e , a r e t o m a d a de u m a u n i d a d e perd i d a c o n s i g o m e s m o
e com o m u n d o . N o m o m en t o m e s m o d a m u d a n ç a , n a G réc i a , p o r exem p l o , v e m o s u m
P í n daro o u u m A r i s t ó fa n e s e m p e n h a d o s n u m a r e s i s t ê n c i a a m b í g u a: e ngaj ados n a ago­
n i a contra o que vêem como decadê n c i a . P o r outro lad o , a defesa d o mito p o d e ser a
defesa - e ngaj a d a ou i n oc e n t e - da falsa c o n s c i ê n c i a e do papel q u e e s ta geral m e n t e
represen t a n o s q ua d r o s d a d o m i n ação p o l í t i c a . O m i t o " tec n i fícad o " , p o r e x e m p l o -
segu n d o a d e f i n i ç ã o de K eré n y i ( 1 3 , p . 1 5 3 - 6 8 ) - é u t i l i zado i n te n c i o n a l m e n t e c o m f i n s
b e m deter m i n a d os , geral m e n t e p o l í t i c o s . E h á t a m bé m o u s o , i n t e n c i o n a l o u n ã o , a t r a ­
v é s das formas n a s q ua i s o m i t o s e d e g r ad a . A q u i , p o rém , j á não e s t a m o s n o d o m í n' i o
d o m i t o m a s d o m e r a m e n t e m í t ic o (2 ) , q u e se e x p r i m e a t ravés d o c l i c h ê e , n o n í vel d o
texto l i terári o , p r o d u z s u b l it e r a t ura . P o i s q ua n d o o m i t o se t o r n a c l i c h ê , o l u g a r d e t o ­
d o s os l u gares s e t r a n s f o r m a e m l u g a r-c o m u m .
E x am i n ar e m o s em segu i d a a l g u n s n í v e i s da passagem d o m i t o o r i g i n a l para o m i t o
ideológ i c o .

I. Do cosmos à fan tasmagoria

K ó s m o s , a p a l a v r a grega p a r a " m u n d o " , s i g n i f i c a t a m bém " ordem " . E para além


do m u n d o c l á s si c o , nas g r a n d e s c o s m o g o n i a s o r i e n t ai s , nos m i t o s t o t ê m i c o s d e o r i g e m ,
ou nas n a r r a t i v a s p r i m i t i v a s e a r c a i c a s s o b re o a n c e s t r a l sagrado q u e o r g a n i z a o c ao s
primord i a l , os d o i s s i g n i f i c a d o s coalescem . O m i t o , e n q u a n t o c o s m o go n i a , é b a s i c a­
mente i n s t a u r a d o r , c o n s t i t u t i v o de u m a o r d e m u n i v e r s a l , de um c o s m o s . E s t a p r o p r i e ­
d a d e cosm i fi c a n t e t e m a l c a n c e m a i s geral q u e a s d e m a i s caracter í s t i c a s d o m i t o e a b r a n-

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FI K E R , R . - Do m i t o o r i g i n a l ao m i t o i d e o l ó g i c o : a l g u n s perc u r s o s . Trans/Forml Ação, São P a u l o ,
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ge, em m a i o r o u menor grau , algumas d e l a s . A s característ icas d e u n i c i d a d e e d e c o n c i ­


liar c o n t r a d i ç õ e s , p o r exe m p l o , c o m o será v i s t o , c a b e m q u a s e i n te i r a m e n t e no d o mí n i o
do cos m i fi c a n t e , categorias c o n s t i t u t i v a s , o r d e n a d o r a s , q u e são .
Q u e o m i t o i ns t a u r a u m u n i v e r s o p o d e ser v i s t o n a s v á r i a s c o s m o g o n i a s , d e s c r i ç õ e s
da criação p o r u m d e m i u rg o , d e u s o u a n c e s t r a l mí t i c o , d o m u n d o fí s i c o e d e s e u s h a b i ­
tantes, às vezes e m s eg u i d a e no p r o c e s s o m e s m o de u m c o m bate c o m forças q u e repre­
sentam o caos d i s fo r m e e i nd e t e r m i nado . E s tas d e s c r i ções se fazem geralmente segu i r
de l i s tas genealógicas c o m o as q u e se e n c o n t r a m na Teogonia de H e síod o , referente a o s
d e u s e s o lí m p i c o s , ou no Gênesis, no r e l a t o d o Javista referente aos de s c e n d e n t e s d e
Adão . O En uma Elish ( P o e m a d a C r iação) b a b i l ô n i c o exe m p l i fi c a notave lin e n t e o m o ­
d e l o c o s m o g ô n i c o c a o s x c o s m o s . É u m a n a r r a t i v a que se refere ao c o m bate e n t r e o
deus M a r d uk e T i a m a t , o m o n s t r o q u e representa o caos . Venced o r , M a r d uk c r i a o
cosmos c o m o c o r p o d i l acerado de T i a m a t e o h o m e m c o m o s a n g u e do d e m ô n i o K i n ­
g u , al iado de Tiamat ( 7 , p . 67 -9; 4 , p . 74- 85; 1 0 , p . 676-7 ). T a i s enfrentamentos e n t r e p o­
tências c ó s m icas e c a ó t i c a s , e s t a s gera l m en t e representadas p o r m o n st r o s , d ragões e
serpe n t e s , ocorrem t a m b é m na Bí b l i a , n o s c o m bates q u e Jeová m o v e c o n t r a R a a b (Jó-
26 1 2- 1 3 ) e L e v i a t ã (Jó-4 1 ; S a l m o 7 4: 1 4) . N a m i to l o g i a grega são i n ú m e r o s os e n fr e n t a­
mentos e n t r e as p o t ê n c i a s o lí m p icas e o s t i t ã s e e n t i dades c t ô n i c as . N o Ragnarok ou
Gótterddmmerung h á u m r e t o r n o ao c ao s através d a derrota d o panteão t e u tônico p e ­
las f o r ç a s d o m a l .
E s t e aspecto c o n s t i t u t i v o i n tegra t a n t o as abordagens trad i c i o n a i s , a n t e r i o re s ao
natural i s m o d a segu n d a metade d o séc u l o passado , como as t e n d ê n c i a s m od e r n a s n o
e s t u d o d o m i t o , e sp ec i a l m e n t e as s i m b o l i s tas . Para J . Cam p b el l , nesta v e r t e n t e , o s m i ­
t o s e r i t o s c o n s t i t u e m e l e s m e s m o s u m m e s o c o s m o s - u m c o s m o s m éd i o , m e d i a d o r ,
através d o q u a l o m ic r o c o s m o s d o i n d i ví d u o é p o s t o e m r e l ação c o m o m ac r o c o s m o s
do todo . T o d o s o s m i t o s e r i t u a i s são gerad o s d a c o n c e p ç ã o d e u m a o r d e m u n i v e r s a l d a
q u a l eles são agentes e s tr u t u ra n t e s , f u n c i o n a n d o p a r a t o r n a r a o r d e m h u m ana d e a c o r ­
do com a c e l e s t i a l (5 , p . 1 49 -50) . N a m e s m a v e r t e n t e s i m b o l i st a , M . E l ia d e d e s t a c a a
importância v i ta l q u e se a t r i b u i , no u n i v e r s o m e n t a l do m i t o , ao c o n h e c i m e n t o d a s o r i ­
gens; e s t a s são d o tadas d e prestíg i o m ág i c o , especi a l m e n t e n o q u e d i z r e s p e i t o às c u ras
médicas . E o m i to d e o r i g e m depende d o m i to c o s m o g ô n i c o , modelo e x e m p l a r d e toda
criação . N e s t e c o n te x t o , ocupam posição central o s m i to s e ritos d e renovação : a
ren o vatio efetuada p e l o r i tu a l do a n o n o v o é u m a r e i t e ração da c o s m o g o n i a ( 8 , p . 4 1 -
52) . A cada r i t u a l d o a n o n o v o h á u m r e c o m e ç o d o m u n d o; a n o e m u n d o são m u i ta s
vezes e x p r e s s o s p e l a m e s m a p a l a v r a , e c o m o i ní c i o d e u m n o v o a n o/ m u n d o a d v é m u m
t e m p o " não usado " . P a r a E l i a d e , a p r o g r e s s i v a h i s to r ização d o s e n r e d o s arcaicos ( e n ­
t r e h e b r e u s e c r i s t ã o s , p . ex . ) t e m p o r e f e i t o t o r n a r o t e m p o cícl i c o l i ne a r , c o m o s e v e n ­
t o s p a s s a n d o a ser i r reversí v ei s . A " o n t o l o gi a " d á l u g a r à " h i s t ó r i a " , c o m a ên fase r e ­
caindo sobre a q u i l o q u e acon teceu aos d e u s e s , e n ã o m a i s s o b r e aqu i l o q u e e l e s criaram
( 8 , p . 9 8 - 100) . A i d é i a da " pe r feição do p r i n cí p i o " foi projetada t a m b é m n u m f u t u r o
temporal , e o s m i tos d o F i m d o M u n d o c o l o c a m em e v i d ê n c i a a m o b i l i d a d e d a o r i ge m ,
que passa a estar t a m b é m n u m· f u t u r o mít i c o , para o n d e i g u a l m e n t e s e t r a n s fere a n o ­
ção de u m a Idade d e O u r o ( 8 , p . 52 ) . O s m it o s d o F i m d o M u n d o , i m pl i c a n d o m a i s o u
menos claramente a rec riação d e u m n o v o u n i verso , e x p r i m e m a m e s m a i d é i a arcaica e
extremamente d i fu n d i d a da " d egradação " p r o g r e s s i v a do c o s m o s , req u e r e n d o s u a d e s ­
truição e rec r i ação p e r i ó d i c a s ( 8 , p . 3 8 ) .
O elemento c o n s t i t u t i v o é e v i d e n t e t a m b é m n o p r o c ed i m e n t o geral d o q u e L é v i ­
Strauss chama d e "p e n s a m e n t o s e l v agem" , i s t o é , o s processos m e n t a i s d o s p o v o s to tê­
micos . E s t e s d i spõem de u m a l ó g i c a tão exigente q u a n t o a do p e n s a m e n t o p o s i t i v o e
não m u i t o d i ferente desta . Tal d i feren ç a " se d e v e m e n o s à q u a l i d a d e d a s operações q u e

II
FI K E R , R . - Do m i to o r i g i n a l ao m i t o i d e o l ó g i c o : a l g u n s perc u r s o s . Trans/Form/ Ação, São Pau l o ,
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à natureza d a s coisas sobre as qua i s s e d i rigem essas o p e rações " ( 1 5 , p. 265 ) . L é v i ­


S trau s s c o m p a ra o p r o c ed i m e n t o d e s t e p e n s a m e n t o c o m a a t i v i d a d e d o bricoleur, i s t o
é , aqu e l e que t r a b a l h a c o m m e i o s que n ã o p e r t e n c e m à t e c n o l o g i a n o r m a l e , ao i n v é s de
matérias-p r i m a s , utiliza p e d a ç o s e s o b ras d e m at é ri a já elaborad a . " O s r i t o s e m i t o s , à
maneira d o bricolage (qu e as s o c i e d a d e s i n du s t r i a i s não m a i s toleram senão c o m o pas­
satem p o ) d e c o m p õ e m e r e c o m p õ e m c o n j u n t o s a c o n t e c i m e n t a i s (no p l a n o p síqu i c o ,
s o c i o - h i s tó r i c o o u t éc n i c o ) e d e l e s s e s e r v e m c o m o d e o u tras t a n t a s p e ç a s i n d e s t ru tí v e i s
em v i s t a d o s arranj o s e s t ruturais que exercem , a l t e r n a t i v a m e n t e , o papel d e f i n s o u d e
meios " ( 1 6 , p . 55 ) . O d i s p o s i t i v o mít i c o , p r o c e d e n d o neste â m b i t o , c o n s t i tu i uma or­
dem coerente a partir d o c a o s d e elementos d i sp o nív e i s , procedam estes ou n ã o d e ou­
tras orden s , a i n d a c o n s t i tuíd a s ou j á caotizad a s .
E s te s p r o c e s s o s c o n c o r r e m p ar a a formação de um h o r i z o n t e coerente e s i g n i f i c a t i ­
vo o n d e s e d e s e n v o l v e m , e m s e u s r e s p ec t i v o s nív e i s , n o i n terior d e u m feixe c o m p l e x o
de i nterações, a s a t i v idades h u m a n a s e d i v i n as . A r e a l i d a d e , para o h o m e m p r i m i t i v o
o u a r c a i c o , q u e v i v e num a o r d e m d e c o i s a s sacralizada, c o n s i s t e n o c o n j u n t o d e s i g n i f i ­
c a d o s d e r i v a d o s , d i re t a o u i n d i re t a m e n t e , d o m i t o b á s i c o d e sua cul tu r a , v e i cu l a d o
a t r a v é s d e u m a c o s m o g o n i a e s p ec i fi c a . É o gesto d i v i n o d e i n s tauração d o c o s m o s que
estabelece a o r d e m em t o r n o e em fun ç ã o da qual se desenrolam as relações c o n c r e t a s
d o s h o m e n s e n t r e s i ou c o m a r e a l i d a d e b ru t a c i r cu n d a n t e . C o m o bem o m o s t r a L é v i ­
S t r au s s , e s t a Weltanschauung c o m p o r t a u m a lógica p r ó p r i a em nada i n fe r i o r à s u a c o r ­
resp o n d e n t e eur o p é i a . P o r m a i s que s eu s e l e m e n t o s surj am c o m o algo e x ó t i c o , c a p r i ­
c h o s o e i r r a c i o n a l , aos o l h o s d o h o m e m d e u m a s o c i e d a d e m o d e r n a t e c n o l ó g i c a , e l e s
c o n s t i tuem u m s i s t e m a í ntegro fun c i o n a n d o n o r m a l m e n t e em t e r m o s d e adaptação ao
meio am b i e n t e , v i a b i l iz a n d o so c i ed a d e s que c h egam a ser c o m plexas .
Já n a s s oc i e d ad es m o d e r n a s , o n d e são out r o s os parâmetros que i n formam o h o r i ­
z o n t e d e quest i o n a m e n t o ( 2 2 , p . 1 1 1 ) , o s m i t o s n ã o i n t egram o s i s t e m a d e m a n e i r a h ar­
m ô n i c a , c r i a n d o uma região d e d i s c r e p â nc i a . M a n i fe stações v e s t i g i a i s d e um proced i ­
m e n t o anacrô n i c o , o s m i t o s b á s i c o s que caracterizam u m a é p o c a f o r m a m um m u n d o
des v i n cu l a d o d a real i d a d e , c r i a n d o e p r e s e r v a n d o v a l o r e s - fan tasmas c u j a rel ação para­
d i g m á t i c a c o m as p r á t i c a s c o n c re t a s d a sociedade em questão é apenas caricatura! . S e
no c o n t e x t o p r i m i t i v o o u a r c ai c o o m i t o l i m pa , d e l i n e i a c o m p r e c i s ã o o s s i g n i ficados e
revela u m a s a b e d o r i a em c o n fo r m i d a d e fun c i o n a l c o m aquele s i s t e m a , no c o n t e x t o m o ­
derno e l e e m baça o s s i g n i f i c ad o s e c o n t r i bu i para a e l a b oração d e u m a f a l s a c o n s c i ê n ­
c i a . A l i e l e m i t i f i c a o r ea l , aqui e l e o m i s t i fi c a .
O m i t o c o m o o c o r r e n e s t e c o n t e x t o , o m i t o i d e o l ó g i c o , i n s taura uma falsa o r d e m ,
um pseu d o c o s m o s p o v o a d o de fantasmagorias que , ao invés de i n formar s o b r e o c o n ­
c r e t o , t o r n a - o m a l - a s so m b r a d o . S eu a s p e c t o parad i g m á t i c o deixa u m a b o r d a à a m b i ­
gü i d a d e : n ã o e s t a r á o v a l o r p o r e l e v e i cu l a d o s e n d o a b s o r v i d o c o m o um a l t o i d e a l a ser
alcançado? Como f i m e m o d e l o , como s e dava c o m o s deuses em H o m e r o ? (20, p. 1 8 -
9) . Ou tal v a l o r j á é escancarada m e n t e c o n v e n c i o n a l , mascarando um c o nju n t o de p r á ­
ticas que para se p e r pe tuarem p rocu r a m a j u s t i ficativa d e se colocarem c o m o e l e m e n t o s
preservadores d o v a l o r e m ques t ã o , e m b o r a e st e não e x i s t a e as t a i s p r á t i cas sej am n a
verdade suas a n tí p o d a s ?
Os g r a n d e s m i t o s b á s i c o s que c a r a c t e r i z a m u m a época, se c h egam a revelar algo
dela é a p a r t i r d o m o d o c o m o a d i s farçam , p o i s a p referência p o r u m a máscara es­
pecífica ao invés d e out r a qualq u e r pode ser m a i s reveladora que o próprio rosto desco­
berto . E neste p rocesso d e d i s farçar a real i d a d e acaba entrando algo dela, c o m o mate­
rial para a fantas i a . A s s i m , p o r e x e m p l o , o s v a l o res cavaleirescos, além d e trazerem em
sua formação elementos d o cul to d e M ar i a , d a tradição d a poesia lírica latina e d o
a m o r p l a t ô n i c o , t r a n s pu n h a m m u it o d a é t i c a feudal , n o q u e t o c a às relações d e. susera-

12
FI KER, R. - Do mito original ao mito ideológico: alguns percursos. Trans/"orm/ Ação, São Paulo,
7:9-19,1984.

nia, para o discurso amoroso (11, p. 253-99). Estes valores, na relação entre os sexos,
tinham tanto a ver com a realidade quanto nas sociedades modernas o têm os valores c

parâmetros cristãos, democráticos e socialistas nos países que se intitulam como tais.
Estes véus mitológicos criam para uma época um universo inexistente, cujas imagens
transparentes podem ser atravessadas pelos corpos como eles passam através de um
fantasma. Sua superposição embaça o mundo real das relações concretas entre os ho­
mens, cujo panorama, visto do outro lado das projeções fantasmagóricas, se torna
opaco e carente de significa<,:ào densa e instantânca (como a que fornecc o mito). Os va­
lores neles produzidos constituem pontos de referência ritualísticos vazios c a intersec­
ção entre o discurso manifeslO e seu conteúdo latente ocorre no avcsso de cada parte. E
não faltam os grandes motivos do mito original, vestígio a identificar o (deslocado)
procedimento geral: se o cavaleiro andante tem entre seu repertório arquetípico a tare­
fa de matar um dragão (representação do caos nas cosmogonias arcaicas) e salvar a
princesa (imagem que nos chega exausta como elichê e motivo de paródia), já para o
homem moderno nas sociedades tecnológicas, entre as imagens mais freqüentcs do dis­
curso ideológico que envolve seu conjunto de valores-fantasma, está o de que estes va­
lores devem ser preservados (no mais das vezes contra eles mesmos, em sua versão real)
para evitar que o "caos" e a "treva" que amea,çam "nosso mundo" terminem por
descosmificá-Io de vez.

2. Do sagrado ao dogmático

A cosmificação é inseparável da consagração. A instauração de um cosmos, cons­


tituindo uma ordem universal, abre um espaço sagrado no qual impera o necessário.
Ordem e necessidade são os elementos de caráter sagrado constituintes do cosmos, em
oposição ao caos, qu� é profano e dominado pela contingência. Quando o deus, de­
miurgo ou ancestral primordial estabelece o espaço organizado, tal território sagrado
garante sentido às coisas. Nenhuma atividade levada a cabo nesta região ficará ao desa­
brigo do sentido (7, p. 35-6).
Embora a utilidade de uma noção pouco precisa como a de sagrado para o conhe­
cimento do mito possa ser posta em dúvida (17, p.66), a frequência com que esta carac­
terística do mito é empregada para diferenciá-lo - com êxito - de outras narrativas
que se lhe assemelham é indicadora de que tal procedimento pode ser proveitoso. M.
Eliade, por exemplo, define o mito como o relato de um acontecimento ocorrido no
tempo primordial, descrevendo as diversas irrupções do sagrado (ou do sobrenatural)
no mundo. "É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o mundo e o con­
verte no que é hoje" (8, p.11). Sendo uma história sagrada, o mito é, portanto, consi·
derado uma "história verdadeira", porque sempre se refere a realidades(R,p.121.
À medida em que a narrativa mítica se desprega de seu caráter sagrado, dá-se si­
multaneamente que a realidade dos eventos a que se refere é contestada e seu poder so­
bre os homens - já esvaído - passa a ser objeto de manipula,·ão. Numa fase já mais
adiantada deste processo e paralelamente a ele, já não é sequer a narrativa original ou
seus elementos que pretendem o status de sagrado e reivindicam autoridade, mas seu
sucedâneo meramente mítico e não necessariamente narrativo.
Este processo de dessacralização seguido de manipulação pode ser nitidamente
acompanhado em seu percurso diacrônico, a partir, por exemplo, de cerca do século 6
a.C na Grécia. É por esta época, segundo convenção geralmente aceita (19, p. 12), que
o mito já é objeto de avaliação externa, com Teagenes de Regium, que inrlllgur a na tra­
diçào pagà a a/egorização de Homero, afirmando serem realidades personificadas cada

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FIKER, R. - Do m i to o r i g i n a l ao m i t o i d e o l ó g i c o : a l g u n s p e rc u rsos . Trans/Form/ Ação, São P a u l o ,
7 : 9- 1 9 , 1 9 8 4 .

u m d o s personagens h o m éricos. A i n terpretação sofista ( sécu l o 5 a. c. ) d o s mitos tradi­


c i o n a i s como alegorias a revelarem verdades n a t u r a l istas e m o r ai s , continua e m u s o en­
tre os f i l ó s o fos n e o p l a t ô n ic o s e e s t ó ic o s do p e r í o d o helen í s t ic o , que v i a m nela u m a m a ­
neira d e p reservar a a u t o r i d ad e d a tradição e as p r e r r o g a t i v a s r e l i g i o sas do E stado. O s
f i l ó s o fo s epicu r i stas , desde o s t e m p o d o s p ré- s ocrátic o s a t o m i s tas L e uc i p o e D e m óc r i ­
t o , c o n s ideram o s m it o s c o m o d i storções de eventos h i s t ó r icos e naturais i n t roduzidas
para reforçar a a u t o r idade d e r e i s e s acerdotes. Cerca d e 3 1 6 a. C. , a expressão c l á s s ica
a esta corrente d e p e n s a m e n t o é dada pelo m aced ô n i o E v e m e r o , autor de uma História
Sagrada na q u a l é narrada u m a v i s i t a do a u t o r a u m a i lha i m a g i n á r i a , P ankaea , n o
Oceano Í n d ic o. L á e l e f i c a sabend o , a p a r t i r de u m a i n sc r i ç ão no t e m p l o de Zeu s , q u e
e s t e d e u s e r a u m c retense d e n a sc i m e n t o q u e v i aj o u p a r a o l e s t e e l á foi ac lamado d e u s
a n t e s d e retornar para C r e t a , o n d e m o r re u. Evemerismo tornou-se o n o m e para t o d a s
as e x p l icações p u ra m e n t e h i s t ó r icas d o m ito.
N o i n íc i o da era c r i s t ã os a r g u m e n t o s e p ic u r i s tas e o eveme r i s m o são u sados pelos
teólogos c o n t r a o s m i to s pagão s , e nq u a n t o o s f i l ósofos e s t ó icos e n e o p l a t ô n ic o s - que
sempre c o nc o r d a r a m e m q u e o s m i to s não d e v i a m ser tomados l iteral m e n t e - c o m ba­
tem a pretensão c r i s t ã à revelação d i v i n a exc l u si v a. Teólogos cristãos e hebreus c o m o
F i l o e S. Ago s t i nh o , i n te r p retaram a s narrativas do Velho ,T estamento alegórica e l i te­
r a l m e n t e , d i s p e n s a n d o t r a t a m e n t o d i v e r s o aos m i t o s pagão s , que a p a r t i r daí começa­
ram a ser vistos n o Oc i d e n t e como " m i t o s " n o s e n t i d o de narrativas fab u l osas e i n d ig­
nas d e créd i t o.
Com o advento da R e na scença na E u r o p a , n o s séc u l o s 1 5 e 1 6 , renovou-se o i n te­
resse pelos m i to s gregos e r o m a n o s , cuja i n terpretação como alegorias morais o u repre­
sentações poéticas e a r t í s t icas d a s e m oções e a s p irações h u m anas era tolerada pe l a Igre­
j a Católica.
N o s séc u l o s 1 6 e 1 7 , a m i t o l og i a a s s u m e u m caráter m o r a l i z a n t e , exem plar : se J ú ­
p i ter a s s u m e a f o r m a de u m t o u r o o u A p u l e i o é transformado em a s n o , i s t o pode ape­
nas s i g n i ficar "que um h o m e m que se e n t rega à l u x ú r i a não passa de u m a n i m a l " ( R o­
bert B u r t o n , T H E A N AT H O M Y OF M E LA N C H O L Y , Londres, 1 65 2 , i i i. 2. 3. ).
O m o v i m e n t o d o s teólogos c o n t r a os m i t o s pagãos no i n ício da era c r i s t ã é de certo
modo i n v e r t i d o p e l o s i l u m i n i stas n o séc u l o 1 8. E les p r oc u r a m equ i parar as esc r i t u r a s
hebraico-c r i s t ã s a o s m i to s pagãos c o m o s u pertições i r r ac i o n a i s e m s u a t e n t a t i v a de
s u b s t i t u i r a religião d a fé p e l a r e l i g i ão da razão. N esta etapa, se i n ic i a c o m G io v a n n i
Batista V ico a tendênc i a d e rec u peração d o m i to que p revalecerá n o r o m a n t i s m o. O
método de i n te r p retação de V ico p o d e ser caracterizado c o m o " ev e m e r i s m o alegóric o "
na m e d i d a e m q u e p r oc u r a red u z i r o s h e r ó i s c u l t u r a i s do m i t o a s í m bo l o s de classe da
sociedade.
N o d ecorrer deste p roce ss o c o n stante de dessacral i zação do m i t o , expresso através
de s u a avaliação externa o u o b j e t i v a ç ã o , de s u a alegorização , m a n i p u l ação e mesmo de
sua tentativa d e resgate (qu e existe s o b r e o reconhec i m e n t o desta dessac r a l i zação) ,
desenvolve-se, paralela m e n t e , a s u b s t i t u ição d o p r ó p r i o sagrado p e lo s i m p l e s m e n t e
dogmátic o. E st e p r ocesso p a r a l e l o j á n ã o está a p e n a s e m função do m i to propriamente
d i t o , m a s t a m b é m d e e l e m e n t o s n ã o o r i g i n a r i a m ente m í t icos. Ass i m , se n o u n iverso ar­
caico ou p r i m i t i v o , oco r r e u m d i sc u r s o sacerdotal , às vezes apoiado na téc n ica restrita
ao esc r i b a , q u e se mantém numa au ra secreta e hermétic a , n o contexto m o d er n o , o pró­
p r io " m i t o " d a c i ê nc i a f o r n ece elementos para a m o d a l idade ideológica d o d i sc u r s o
"cient í fico " c o m o i n s t r u m e n t o d e poder análogo àquele. A term i no l o g i a "cien t í f ic a " ,
seu j argão e t i q u e s d i sc u r s i v o s , p o d e m s e r e m p regad o s , e o são a m i ú d e , para fornecer
i n v ó l uc r o respeitável ao que carece d e f u n d a m e nt o. E este proc ed i m en t o de conferir
autoridade através d a c o nsagração p o r m e i o d e " palavras m ágic a s " n ã o se restringe ao

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FIKER, R. - Do m i t o o r i g i n a l ao m i t o i d e o l ó g i c o : a l g u n s perc u r s o s . Trans/Form/ A<;ão, São P a u l o ,
7 : 9- 1 9 , 1 9 8 4 .

discurso " c ie n t í f i c o " apenas, m a s abrange t a m b é m o d i sc u r s o b a c h a r e l e s c o e m gera l ,


cuj a função b á s i c a é reiterar a a u t o r i d a d e d o g r u p o q u e o c u p a o p o d e r . T a l d i s c u r s o v a ­
z i o e gran d i l oq ü e n t e , r e c h e a d o d e l ugares- c o m u n s p o m p o s o s - e n t r e o s q u a i s não fal ­
tam , i n c l u s i v e , a l u s õ e s m i to l ógicas c l á s s i cas o r n a m e n t a i s - eq u i v a l e , em proced i m en t o
e em f u nç ã o , à m áscara a t e m o r i z a n t e d o fei t i c e i r o p ri m i t i v o .

3 . Do extra temporal para fora do tempo certo

o evento m í t i c o , c o m o foi v i s t o a p r o p ó s i t o d a s c o s m ogonias , tem p o r caracterí s t i ­


ca ocorrer f o r a d o t e m p o . E l e é extrate m poral , efetuando-se ab origine, i n illo
tempore. As ocorrências p r i m o r d i a i s se d ã o a n t e s q u e h aj a tem p o , a b r i n d o o p e r c u r s o
cícli co deste e m d i reção a s e u p r ó p r i o i níc i o . " O t e m p o sagrad o " , d i z E l iade ( 7 , p . 6 3 -
4 ) , " periodicamente reatu a l i zado n a s r e l i g i õ e s p r é - c r i s t ã s ( so b r e t u d o n a s rel igiões ar­
caicas) é u m Tempo m ítico, q u e r dizer, u m t e m p o p r i m o rd i a l , não i d e n t i ficável n o pas­
sado h is t ó r i c o , um Tempo original, neste sentido em q u e brotou "de g o l pe " , q u e não
foi preced i d o p o r outro t e m p o , p o rq u e n e n h u m t e m p o p o d i a existir an tes da aparição
da realidade narrada pelo m ito ". A l g u n s a u t o r e s , c o m o G . S . K i r k ( \ 4 , p . 3 1 -4 1 ) , u t i l i ­
zam e s t a carac t e r í s t i c a t e m p o r a l para especi ficar o m i t o e m r e l ação ao c o n t o f o l c l ó r i c o:
enquanto o m i t o se passa no t e m p o p r i m o r d ia l , d u ra n t e a c r i a ç ã o , o " e ra u m a v e z " d o
conto fol c l ó r i c o j á s i t u a a ação d e n t r o d o t e m p o h i s t ó r i c o .
E s t a extra-temporal i d a d e , i n tegrada a u m s i s t e m a o n d e e l a se reveza c o m o t e m p o
c í c l ic o p r o p r i a m e n t e d i t o , n u m c o n t e x t o dessacralizado e m arcado p e l o t e m p o l i near e
h i s t ó r i c o , passa a ser p r o b l e m atizad a . N es t e c o n t e x t o , a fixação no e x t ra -tem p o r a l j á é
pas s í v e l de c o n o tação i d e o l ó g i c a , i m p l ic a n d o , de certa form a , u m a fuga da H i s t ó r ia .
Mas aqu i o que i m p o r t a é m e n o s e st a t r a n s i ção e o d e s l o c a m e n t o p o r e l a p r o d u z i d o d o
q u e o c o n traste e n t r e a p o s i ção tem poral d o m i t o o r i g i n a l e a d o m i to i d e o l ó g i c o . E s t a
pode s e r e x e m p l i ficada p e l a m a n i festação d o m í t i c o q u e B a r t h e s m o s t r a a p r o p ó s i t o d a
caracterização d o r o m a n o a n t igo n o c i n e m a a m e r i c a n o ( I , p . 2 7 - 3 0 ): a presença d a p e ­
quena franj a r o m a n a - s i g n o da r o m a n idade - e m rostos c uj a m o r fo l o g i a - e m a s ­
sociação fixada p e l o p r ó p r i o c i n e m a - é a d o gangster ou x e r i fe , c o n s t i t u i u m q u a d r o
geral de anacro n i s m o s h i s t ó r i c o s o n d e t u d o se e n c o n t r a f o r a d e época .
De m a n e i ra gera l , o m i t o i d e o l ó g i c o - sej a no n í v e l destas i n o c e n t e s m a n i fe s t a ­
ç õ e s d o m e r a m e n t e m í ti c o , sej a através d o s grandes r i t u a i s d e massas n o s q u a i s n a z i s t a s
e fascistas p r o c u r a v a m r e v i v e r m i to s arcaicos a m p l a m e n t e d i st o r c i d o s - e s t á i n e v i t a ­
vel m e n t e a t o l a d o n o anacron i s m o . A s i m p l e s m a n i festação d a s f o r m a s p r ó p r i a s ao m i ­
t o ( e m b or a p o s s a m estar v e i c u l a n d o e l e m e n t o s n ã o o r i g i n a r i a m e n t e m í t i c o s m a s q u e
procuram i m p o r - s e à m a n e i r a d aq u e l e s ) n u m c o n t e x t o q u e não m a i s as c o m p o r t a , j á
configura u m d e s e n c a i x e , u m eq u í v o c o , u m a trapal h a d a . E s t e seu aspecto Kitsch, seu
desacordo c o m o c o n texto e s e u e s t a t u t o a b e r r a n t e , c o m p o r t a m p o s s i b i l i d a d e s c ô m i co ­
burlescas r e l a c i o n a d a s ao anacro n i s m o h i s tó r i c o c o m.o d i s p o s i t i v o paród i c o .

4. Da conciliação ao disfarce das contradições

O m i t o , c o m o p ro c ur a m o s trar L é v i - S t r a u s s , ao m e n o s para s u a s m a n i festações


entre povos totem istas , tem p o r o b j e t i v o a resolução d e c o n t radições no s e i o d e u m a
cultura . L é v i - S t r au s s , a p a r t i r d e u m proced i m e n t o q u e c o n s i s t e e m red u z i r o s e l e m e n ­
tos narrat ivos d o m i to a m i temas( \ 5 , P . 242- 3 ) e e x p e r i m e n tar s u c e s s i v a m e n t e d i ve r s a s.
disposições d e s t e s , g u i a n d o - s e p e l o s p r i n c í p i o s q u e servem de base à a n á l i s e e s t r u t u ral

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FI KER, R. - Do m i to o r i g i n a l ao m i t o i d e o l ó g i c o : a l g u n s p e rc u rsos . T r a n s / F n r m / A �' ã n , S ã o P a u l o ,
7 : 9- 1 9. 1 9R4.

( ec o n o m i a de e x p l icação , u n i d a d e dc s o l u ç ã o , poss i b i l ida de de reco n s t i t u i r o c o n j u n t o


a part i r d e u m frag m e n t o e de prever o s d e s en v o l v i m e n t o s u l teriores a part i r d o s d a d o s
a t u a i s ) , c h ega , para o m i t o d e E d i p o às segu i n t e s c o n c l usões : O m i t o de É d i p o " e x p r i ­
m i r i a a i m poss i b i l i d ade em q u e se e n c o n t ra u m a sociedade q u e p r o fessa a crença na a u ­
t o c l o n i a d o h o m e m ( . . . ) d e pas s ar , d e s t a teor i a , ao reco n h ec i m e n t o d o fato d e q u e c a d a
u m d e n ó s n a sceu rea l m e n t e d a u n i ã o d e u m h o m e m e d e u m a m u l h e r . A d i ficu l d ade é

i n " l l pe rá v c l . M a s o m i t o de É d i p o o ferece u m a espéc ie de i n s t r u m e n t o lóg ico q u e per­


m i t e l a n ç a r uma p o n t e e n t re o p r o b l e m a i n ic i a l - n a sc e m o s de u m ú n i co o u de dois? -
e o p r o b l e m a d e r i v a d o , q u e se p o d e fo r m u l a r , aprox i m <! d a m e n t e : o m e s m o nasce d o

m e sm o o u d e o u t r o ? P o r e s t e m e i o , u m a c or rel ação se e v i d e n c i a : a s u peres t i m a d o pa­


rentesco c o n s a n g ü í n eo está para a s u b e s t i m a deste, c o m o o esforço para escapar à a u ­
tocto n i a e s t á p a r a a i m pos s i b i l i d a d e d e c o n seg u i - l o . A experiência pode des m e n t i r a
teo r i a , m a s a v i d a s o c i a l c o n fi r m a a c o s m o l o g i a na m e d i d a em q u e a m b a s t raem a m e s ­
ma e s t r u t u r a c o n t rad i t ó r i a . E n t ã o , a c o s m o l o g i a é verdad e i r a " ( 1 5 , p . 249- 5 0 ) .
N o n í v e l do m i t o i d e o l ógic o n ã o há u m a t en t a t i v a de c o n c i l i a r as c o n t radições c u l ­
t u rais e s o c i a i s , m a s d e d i s farçá- I a s , varrendo-as p a r a b a i x o do t a p e t e d a f a l s a c o n s ­
c i ê n c i a . O d i s farce pode c o n s i s t i r d e u m a t o t a l c a m u fl agem p e l o m i t o i d e o l ó g i c o - co ­
m o v i mos n o p r i m e i r o el em en t o d e s t e e i x o q u a n t o à pseudo-cos m i ficação , c o n s t i t u i n d o
u m c o s m o s i l u s ó r i o a e m baçar a v i são d o u n i verso r e a l i n t e r p o n d o-se e n t re e l e e o o b ­
servador - , o u p o d e se d a r c o m o p s e u d o - co n c i l i ação . N o p r i m e i r o c a s o sequer se reco­
n h ecem c o n t ra d i ções a serem c o n c i l i a d a s , e n q u a n t o que n o segu n d o , onde elas c h egam
a c o n s t a r , a c o n c i l i ação ocorre como uma form a l i d a d e , n o n í vel das aparê n c i a s . E x e m ­
p l o d e s t a m o d a l i dade é a c e n a f i n a l d e " M e t r o po l i s " ( \ 9 2 6 ) , f i l m e expres s i o n i s t a d e
F r i t z L a n g n o q u a l , após u m a p r o l o n g a d a e e s q u e m á t i c a exacerbação das c o n t ra d i ções
entre o cap i t a l e o t r a b a l h o , estes são s i m b o l i c a m e n t e (e d e forma v o l u n t a r i a m e n t e c a r i ­
c a t u r a l , ao q u e t u d o i n d i c a ) c o n c i l i ad o s n o c a l o roso aperto de mãos e n t re os represe n ­
t a n t e s das p a r t e s e m c o n fl i t o .

5 . D a un icidade à desagre;;ação

Em q u alq uer c o ncepção da d i v i n d a d e , e l a abrange s i m u l ta n eamen t e todos os a t r i ­


b u t o s , o q ue f a z d a z o n a de t ran scen d ê n c i a u m a reg ião de u n idade . A c o n s c i ê n c i a m í s t i ­
ca i n s t a u r a u m s e n t i d o de u n i ã o d o h o m e m c o n s i g o m e s m o e com o m u n d o . E l e é part e
de um t o d o o rgân i c o e s i g n i fi c a t i v o . Téc n icas m í s t icas h i nd u s - a V oga e o T a n t r i s m o
- b u s c a m a i n tegração de p r i n c í p i o s o p o s t o s , do t i p o dos represen tados p e l o sol e pela
lua, c o m o c o n d i ç ão prévia para a i n tegração d o h o m e m , para além d a opo sição e n t re
as coisas, no c o s m o s , u n i dade p r i m o r d i a l . M i t o s de r e i n t egração são e n c o n t rados p o r
t o d a parte n a h i st ó r i a d a s r el igiõ es , n u m a i n fi n i d ade de variações ( 9 , p . 1 46 - 7 , 1 7 9 ,
1 8 5 ) . E s t a neces s i d ade de a b o l i r d u a l i s m o s e e x i s tências fragmen t á r i a s s e e n c o n t r a t a m e
b é m n o c u l t o d o m i t o pelo R o m a n t i s m o e se expressa através de u m p a n t e í s m o de u m
m o n i s m o q u e i d en t i fica D e u s e o m u n d o , c o r p o e esp í r i t o , s u j e i t o e o b j e t o ( 2 4 , p . 1 2 8 -
1 98 ) .
Q u a n t o a o m i t o i d e o l ó g i c o , q ue e l e a t u a n u m c o n tex to d e d esagregação , decorre
do que foi v i s t o a t é aq u i . A n corado em s i n g u l a r i d a d e s , c o n s t i t u í d o a part i r de um pon­
to de vista parc i a l e fac c i o s o , n a d i s persi v i d ad e d o meramente m í t ic o , o m i t o i d e o l ógico
é essen c i a l m e n te fragm e n t á r i o , t r u n c a n d o a s t o t a l i d ades e o ferecen d o uma c a r i c a t u r a
da orga ni c i d ade d a c o n s c i ê n c i a m í t i c a c o m o t raçado de seu u n i verso i l u s ó r i o . C o n s t i ­
t u i n d o u m pseu d o c o s m o s f a n t a s m agórico , ele separa o h o m e m de s e u m u n d o real ;
pet r i ficando-o no dogm a t i s m o , ele separa o h o m e m de si m es m o , c i n d i n d o - o ; separa-o
de sua época e a l i e n a - o de suas relações c o n c retas ; além de cortar seu acesso às p r ó p r i a s
c o n t radições, d i l aceran d o - l h e a c o n sci ênc i a .

16
FIKER, R. - Do m i t o o r i g i n a l ao m i t o i d e o l ó g i c o : a l g u n s pe r c u r s o s . Trans/Form/ A ç ã u . São P a u l o .
7 : 9- 1 9 , 1 9 8 4 .

6 . Da narrativa e da sabedoria ao m ítico desarticulado e ao lugar-com um

o m i t o ocorre b a s i c a m e n t e c o m o nar r a t i v a , e é es ta s u a forma- l i t erá r i a . É prec i s o ,


n o e n t a n t o , g u a r d a r a l g u m a reserva q u a n t o a e s t a n o m e n c l a t u r a , p o i s o m i to se d á o r i ­
ginalmente a p a r t i r d a n a r r a t i v a oral , n ã o d i s p o n d o em si m e s m o de " fo r m a l i t e r á r i a " .
Esta l h e é dada a posteriori, ao ser e s c r i t o ou a n o t ad o , com f i n a l i d ades sacerd o t a i s , por
exem p l o - n o i n t e r i o r ai nda d o u n i verso m í t i c o m a s j á s u b o r d i n a d o a u m a s i n t a x e d i ­
versa d a d o e n u n c i a d o ora l , o u j á fora d e s e u a m b i e n t e o r i g i n a l , c o m o tema l i t c r á r i o o u
espéc i m e n coletado p e l o e t n ó l o g o , arq ueólogo o u a l g u m o u t ro h a b i t a n t e d o logos.
Os m i tos do d i l ú v i o u n i versa l , por e x em p l o , a i n d a q u e nas m a i s arcaicas ve rsõe s ,
assim c o m o a épic a d e G i lgamés o u o L ivro dos Mortos egípcio e o Popol Vu h l m a i a
( estes ú l t i m o s j á c o m i m p l i cações sacerd o t a i s ) pelo s i m ples f a t o de s e r e m esc r i t o s j á t r a ­
zem e l e m e n t o s d e e l a boração l i terár i a . A l é m d o q u e , n u nca é d e m a i s i n s i s t i r n o p o n t o
d e q u e n ã o e x i s t e algo c o m o " o m i t o e m s i " : t r a t a - s e , o b v i a m e n t e , de u m a a b s t ração à
q ual se c h ega e não de u m a rea l i d ad e da q u al se p a r t e . E , f i n a l m e n t e , em relação à p r ó ­
pria etapa oral , dev e m ser lem brados os f a t o r e s de e l a ooração presentes na técnica d o
contador d e h i s t ó r i a s p r i m i t i v o , n ã o - l e t r ad o .
É o caráter n a r r a t i v o , oral o u e sc r i t o , q u e perm i t e a especi ficação d o m i t o em s u a
forma l ite r ár ia , seu " e s t i l o " caracte r í s t i c o . E n e s t e s e n t i d o não h á m e l h o r p i s t a para e s ­
ta espec i ficidade d o q u e a o r i g e m m e s m a d o t e r m o : a p a l a v r a grega i-lV e O ç , a l é m de d e ­
s i g n a r u m a n a r r a t i v a c o n c e r n e n t e à g e n e a l o g i a d o s d e u s e s , se refere t a m b é m a u m a n a r ­
rat i v a q u a l q u e r . E m seu e m prego m o d e r n o - a d e s p e i t o d a p e r m a n ê n c i a do s i g n i fica­
do m a i s geral n a v i g ê n c i a d a p o é t i c a a r i s t o t é l i c a - r e s t o u ao t e r m o apenas o p r i m c i r o
sign i ficad o , m a s é ao seg u n d o q ue t e m o s d e recorrer p a r a c a p t u r a r o e l e m e n t o n a rr a t i ­
v o a q u e se res u m e o m i t o e n q u a n t o m o d a l i d a d e d e d i s c u r s o . E s te " es t i l o e v ê n t i c o " ,
caracterí t isco d a m a n i festação m í t i c a , é t r ad i c i o n a l m e n t e s a l i e n t a d o por exege t a s c o m o
N ietzc h e , J o l l es e L é v i - S t r a u s s ( 2 3 , p . 2 8 ) .
Tal caracter í s t ic a s e d e l i n ei a o r i g i n a r i a m e n t e n a G ré c i a de e n t re os sec u l o s fi e 4
a . c . É nesse p e r í od o , de m ud a n ç a s f u n d a m e n t a i s em todas as es feras do u n iverso m e n ­
t a l grego , q u e o t e r m o lagos d e i x a d e s i g n i f i c a r a p e n a s " p alavra " ass u m i n d o v a l o r d c
rac i o n a l i d a d e d e m o n s t r a t i v a e p a s s a a s s i m a o p o r - s e a myth os no q u e e s t e t e r m o i m p l i ­
c a certa magia d a pal av r a q ue c o n fere a o s d i fer e ntes gêneros de d ec l a m ação - p o es i a ,
tragéd i a , r et ór i ca , s o f í s t i c a - u m m e s m o t i po d e e f i c ác i a . E n q u a n t o o myth os opera
no n í vel d a m i m ese e d a p a r t i c i pação e m o c i o n a l , o lagos i n s t a u r a u m proced i m e n t o d e
pesq uisa e exposi ção q u e apela s o m e n t e para a i n t e l i g ê n c i a c r í t i c a . A s s i m , seg u n d o J . P .
Ve r nan t ( 2 2 , p . 200 ) , e m seu m i n u cioso exame desta i n s t a u ração, " t u d o o q u e d á à p a l a ­
vra s e u p o d e r de im pac t o , s u a e f i c á c i a sobre o próx i m o , se e n c o n t r a e n t ã o rebai .x a d o a o
n í vel do myth os, do fab u l o s o , do m a rav i l h o s o , c o m o se o d i scurso não p u d e s s e g a n h a r
na ordem d o verdadeiro e do i n t e l i g í v e l senão perd e n d o no m e sm o g o l p e n a o r d e m d o
agradável , d o emocio n a n t e e do d r a m á t i c o " .
O m i t o serve d e i n í c i o para a t r a n s m i ssão d e u m a sabed or ia e s u a l i n g u agem narra­
t i v a é s u b s t i t u í d a p a u l a t i n a m e n t e pela l i n g u agem arg u m e n t a t i v a p r ó p r i a d o d i s c u r so
c i e n t í fico, q u e j á não v i sa à sabedoria mas ao c o n h e c i m e n t o ( 2 3 , p . 3 0-4 ; 1 2 , p . 90- 1 , 1 00 ) .
A ascensão h i stórica d o d i scu rso argu m e n t a t i v o tem p o r t a n t o c o m o c o n t r a p a r t i d a o
despres t í g i o da seq ü ê n c i a n a r r a t i v a nas d i versas es feras ( fi l os o f i a , t e o l o g i a et c . ) . À
ciência - assim c o m o era função do m i t o , e a i n d a o é em a l g u m a s c u l t u r a s - c a b e e n ­
t ã o explicar os fe n ô m e n o s q u e u l t rapassam a d i men são do c o t i d i a n o , tarefa q u e e l a de­
sem pen h a com os rec ur s os a rg u m e n t a t i v o s d o c om entár io, d a expl icação ou d a a n á l i se .
Com a dissociação progres s i v a dos a s s u n t o s i m p o r t a n t e s e do e s t i l o narr a t i v o , C 0 l11 0

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F I K E R , R . - Do m i t o o r i g i n a l ao m i to i d e o l ó g i c o : a l g u n s perc u r s o s . Trans/Form/ Ação, São P a u l o ,
7 : 9 - 1 9, 1 984.

nota W e i n r i c h n o e s t u d o acima m e n c i o n a d o , o p r i ncí p i o mesmo da ciência nos o b riga a


falar do m i to n u m a l i g u agem a rg u m e n tativa .
A d e s a r ti c u l ação do e l e m e n t o n a r r a t i v o , bem c o m o a d i s s o l ução das coordenadas
do u n i verso m e n t a l q u e origina e n u tre o discurso da " sa b e d o r i a " (que é e lí p t i c o , meta­
fórico e narrat i v o , e m o p o s i ç ã o ao aspecto direto, l ó g i c o e argu m e n t a t i v o d a postura
do " c o n h ec i m e n t o " ) se evidenciam h i s t o r i c a m e n t e através d e d i versas m a n i festações .
U m exem p l o é a r e s s u r r e i ç ã o c a r i c a t a do d i s c u r s o da sabedoria no u n i verso do c o n h e c i ­
m e n t o . E s t e fen ô m e n o é r e s p o n s á v e l p e l a p r o d ução d e t e x t o s q u e podem ser l i d o s c o m o
'paród i a s i n v o l u nt á r i as d o e s t i l o i n i c i á t i c o c o m s u a s m arcas caracterí s t i c a s : receitas d e
a s c e s e fornec i d a s e m l i n g u ag e m a l e g ó r i c a , ausência program ada d e d e f i n ições d i retas e
i n e x i s t ê n c i a de t e x t o s de a u t o r i a do m e s t r e ( C r i s t o e B u d a , p o r exem p l o , e Sócrates
n u m c e r t o s e n t i d o ) , s e n d o porta-voz u m d i s cí p u l o etc .

F I K E R , R . - F r o m t h e O r i g i n a l to t h e I d e o l o g i c a l M y t h : s o m e r o u t e s . Trans/Form/ A ção, São P a u l o ,


7 : 9- 1 9 , 1 984.

A BS TRA CT: This arlicle belon{ts, a s a pari of i l , ori{tinal/y lO t h e dissertation for t h e attainment
of the Master (M. A . ) , t itled "Mylh and Parody : their structure and role in the litterary text ", presen­
ted in n o vember 1983, at the Inst ituto de Esludos da L ing ual!.em / UNICA MP. The present text belonl!.s
to a chapter Ihat develops the myth eonceptualizatio n . It tries to dinam ical/y apprehend some of its ba­
sic aspects, in lhe transit ion from ils original form, such as it oeeurs in the prim itive and archaic socie­
ties, to its ideolo{tieal succedaneous in the context of h istorie soeieties.

K E Y- WOR DS: Myt h ; myth o lol!.Y; myt h ic conseiousness; ideolol!.Y; saered and profane; narrative.

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