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1 Sobre a questão iconoclasta, pode ver-‐se, entre outros, o número monográfico da
revista
«Kunst
und
Kirche»
1/1993;
Cf.,
ainda:
J.
DUQUE,
Die
Kunst
als
Ort
immanenter
Transzendenz,
Frankfurt
a.
M.
1997,
esp.
231-‐243.
Sobre
a
passagem
da
era
da
“imagem
cultual”
à
era
da
arte,
ver
o
brilhante
estudo
histórico
de
H.
BELTING,
Bild
und
Kult.
Eine
Geschichte
des
Bildes
vor
dem
Zeitalter
der
Kunst,
München
1990;
Cf.,
ainda:
H.
SCHWEBEL,
Hat
die
Gegenwartskunst
im
Kirchenraum
eine
Chance?
Christliche
Bildefunktionen
und
autonome
Kunst,
in:
«Kunst
und
Kirche»
4
(1994)
212-‐217;
para
uma
crítica
da
«distinção
estética»,
cf.:
H.-‐G.
GADAMER,
Wahrheit
und
Methode,
Gesammelte
Werke
1,
Tübingen
1986,
esp.
94ss
(ver,
acima,
o
respectivo
estudo).
abordado”2, então poder-se-á, pelo menos, olhar com cepticismo o facto de alguém se
atrever a abordar semelhante tema em tal teólogo – conhecido pelo poder
argumentador e especulativo da sua mente e não propriamente pela «beleza» literária
das suas obras...
Seja como for, Rahner dedicou, de facto, algumas páginas dos seus inúmeros
escritos à relação entre arte e teologia – páginas, cujo significado não é pequeno3.
Trata-se, no fundo, de quatro textos publicados nos Escritos de Teologia4.
Dado que é relativamente grande a distância cronológica – cerca de 20 anos –
entre os dois primeiros e os dois últimos, podemos constatar um certo processo
transformativo do pensamento rahneriano, relativamente a este tema, embora
permaneçam idênticas as fundamentais referências filosófico-teológicas. Tais
referências não poderão, como é óbvio, ser satisfatoriamente abordadas e expostas nos
limites destas breves considerações. Nem sequer é isso que se pretende. Quando
muito, serão algumas breves observações laterais a fazer algumas referências ao
complexo horizonte dos principais traços filosófico-teológicos de um dos maiores
teólogos do século XX.
As linhas que se seguem concentram-se, portanto, pura e simplesmente numa
descrição da relação entre arte e teologia, tal como Rahner, de modo teológico-
fundamental, a pensa. Como conclusão, serão adiantadas algumas observações críticas
que pressupõem, de modo mais implícito que explícito, um confronto com algumas
2 K. RAHNER, Zur Theologie der religiösen Bedeutung des Bildes, in: «Schriften zur
contudo,
pela
constituição
de
uma
«estética
teológica»
(no
sentido
estrito
de
uma
teologia
em
categorias
estéticas,
como
no
caso
famoso
de
Hans
Urs
von
Balthasar),
mas
sim
pelo
lugar
fulcral
destas
reflexões
–
portanto,
do
próprio
fenómeno
artístico
(enquanto
pressuposto
antropológico-‐
ontológico-‐hermenêutico
do
cristianismo)
–
na
elaboração
da
sua
teologia.
Trata-‐se,
pois,
mais
do
relacionamento
entre
arte
e
teologia
do
que
de
uma
concepção
estética
da
teologia
ou
teológica
da
estética.
Não
é
por
acaso
que,
no
projecto
de
estética
teológica
de
von
Balthasar,
o
fenómeno
concreto
da
arte
desempenha,
paradoxalmente,
um
papel
bastante
mais
secundário
que
na
própria
teologia
de
Rahner,
que
nunca
pretendeu
elaborar
uma
estética
teológica.
4
K.
RAHNER,
Priester
und
Dichter,
in:
«Schriften
zur
Theologie»
(=ST)
III,
Einsiedeln
1956,
349-‐375
(orig.
de
1955,
em
homenagem
ao
poeta
espanhol
Jorge
Blajot
S.J.);
ID.,
Das
Wort
der
Dichtung
und
der
Christ,
in:
ST
IV,
Einsiedeln
1960,
441-‐454;
ID.,
Die
Kunst
im
Horizont
von
Theologie
und
Frömigkeit,
in:
ST
XVI,
Einsiedeln
1984,
364-‐372
(publicado
primeiro
em
«Entschluss»
37[1982]
4-‐7,
sob
o
sugestivo
título
Nicht
jeder
Künstler
ist
ein
Heiliger.
Zur
Theologie
der
Kunst);
ID.,
Zur
Theologie
der
religiösen
Bedeutung
des
Bildes,
in:
ST
XVI,
348-‐363
(conferência
proferida
em
Munique,
a
19.11.1983).
Tanto
quanto
é
do
meu
conhecimento,
estes
textos
ainda
não
foram
estudados,
no
seu
conjunto,
no
sentido
de
um
relacionamento
entre
arte
e
teologia,
como
aqui
se
pretende.
A
única
excepção
parece
ser
a
do
teólogo
franciscano
francês:
Y.
TOURENNE,
Amorce
d’une
esthétique
théologique
chez
Karl
Rahner?,
in:
«Recherches
de
Sciences
Religieuses»
85
(1997)
383-‐418.
teorias da arte actuais. Todas estas considerações mais não pretendem do que ser um
pequeno contributo para um estudo mais alargado – ainda por fazer – do assunto em
causa5
5 Nos últimos tempos, o mundo teológico tem visto surgir uma série de importantes
publicações,
que
pretendem
colmatar
esta
lacuna
histórica.
De
entre
muitas
outras,
sejam
apenas
referidas:
CH.
DOHMEN
/
TH.
STERNBERGER
(Dir.),
...kein
Bildnis
machen.
Kunst
und
Theologie
im
Gespräch,
Würzburg
1987;
M.
ZEINDLER,
Gott
und
das
Schöne.
Studien
zur
Theologie
der
Schönheit,
Göttingen
1993;
W.
LESCH
(Dir.),
Theologie
und
ästhetische
Erfahrung.
Beiträge
zur
Begegnung
von
Religion
und
Kunst,
Darmstadt
1994;
A.
STOCK,
Keine
Kunst.
Aspekte
der
Bildtheologie,
Paderborn
1996;
J.-‐P.
JOSSUA,
La
beauté
et
la
bonté,
Paris
1987;
D.
PAYOT
(Dir.),
Mort
de
Dieu
–
fin
de
l’art,
Paris
1991;
J.-‐J.
NILLÈS
(Dir.),
L’árt
moderne
et
la
question
du
sacré,
Paris
1993;
J.
SOLDINI,
Saggio
sulla
discesa
della
bellezza.
Linee
per
un’estetica,
Milano
1987;
P.
SEQUERI,
Estetica
e
Teologia,
Milano
1993;
ID.,
L’estro
di
Dio.
Saggi
di
estetica.
Milano:
Glossa,
2000;
P.
BERNARDI,
L’icona.
Estetica
e
teologia,
Roma:
Cita
Nuova,
1998;
J.
DUQUE,
Die
Kunst
als
Ort
immanenter
Transzendenz,
Frankfurt
a.
M.
1997.
6
ST
III,
349.
Poucas
décadas
depois,
já
não
poderia
dizer
o
mesmo,
sobretudo
após
os
alargados
estudos
de
G.
Ebeling,
E.
Fuchs,
E.
Jüngel,
P.
Knauer,
etc.
sobre
a
Palavra
de
Deus.
7
É
nesse
sentido
que,
muito
acertadamente,
Y.
TOURENNE,
op.
cit.,
385
diz
que
“as
reflexões
de
Rahner
sobre
a
poesia
são
uma
forma
de
teologia
fundamental...”.
8
Como
horizonte
mais
ou
menos
silenciado
de
quase
tudo
o
que
Rahner
afirma
sobre
a
arte,
ter-‐se-‐á
que
pressupor
as
sua
teoria
do
símbolo.
Nestes
primeiros
textos,
Rahner
não
expõe
ainda
essa
teoria,
em
toda
a
sua
plenitude
conceptual,
nem
sequer
utiliza
o
termo
«símbolo
real».
Contudo,
esboça-‐se
desde
já
aquilo
que
mais
tarde
se
tornará
explícito.
Algumas
pistas
para
tal
desenvolvimento
encontram-‐se,
já,
no
conceito
de
«beleza»
(ST
III,
357).
Mas
só
em
ST
IV,
275-‐
311
(Zur
Theologie
des
Symbols)
é
que
Rahner
irá
desenvolver
em
todas
as
suas
dimensões
essa
teoria.
Por
outro
lado,
nesse
processo
de
desenvolvimento,
procedeu
a
uma
certa
«ontologização»
do
símbolo,
acabando
por
o
desligar
da
dimensão
da
palavra,
em
que
se
situava
ainda
nos
primeiros
textos,
que
ora
nos
ocupam,
e
empobrecendo,
desse
modo,
a
sua
própria
concepção
(sobre
este
empobrecimento,
cf.:
R.
BROSSE,
Jésus,
l’histoire
de
Dieu.
Historicité
et
devenir:
deux
notions
clés
de
la
théologie
de
Karl
Rahner,
Fribourg
1996,
esp.85-‐90.
Brosse
retoma
o
jovem
Rahner
e
a
sua
referência
à
palavra
para,
inspirado
em
Ricoeur,
propor
uma
interessante
–
e
importante
–
continuação
da
sua
teologia,
pelos
caminhos
da
hermenêutica,
da
temporalidade
e
da
linguagem.
Desse
modo
será
possível
ultrapassar
a
dicotomia
entre
modelo
transcendental
e
modelo
hermenêutico
de
teologia,
rumo
a
um
modelo
tensional,
precisamente
entre
referência
corporeidade, na qual tudo o que agora experimentamos e pensamos primordialmente
existe, na medida em que incarna nessa sua palavra-corpo” 9 . A dinâmica
incarnacional que caracteriza a palavra poética marca a diferença em relação ao puro
sinal ou signo, à pura “expressão semiótica e exterior de um pensamento”10.
É a mesma teoria do símbolo que determina, então, a relação entre a palavra e
a própria coisa (Sache) ou a realidade. Não se trata, aqui, de uma nomeação arbitrária
da realidade, separada da mesma ou substituível. A palavra “transporta a própria
realidade, torna-a «presente», actualiza e apresenta”11. A realidade, por seu turno, só
atinge a sua própria perfeição quando é colocada ou trazida à luz. E isso acontece na
palavra, ou seja, na medida em que essa mesma realidade é conhecida e pronunciada.
Assim, “as coisas são transportadas, da sua escuridão, para a luz do ser humano”12.
Resumindo com a bela e evocativa expressão do próprio Rahner: a palavra é “o
sacramento primordial da realidade”13.
Mas nem toda e qualquer palavra poderá ser considerada, automaticamente,
sacramento primordial. É preciso distinguir entre palavras e palavras. Uma distinção
importante e fundamental evita a confusão entre “palavras artificiais, técnicas ou
utilitárias”14 e palavras primordiais, originárias ou germinais (Urworte). Só as últimas
transcendental
e
referência
hermenêutica
de
toda
a
teologia;
Cf.,
ainda:
D.
SIMON,
Rahner
and
Ricoeur
on
Religious
Experience
and
Language,
in:
«Église
et
Théologie»
28
[1997]
77-‐99).
9
ST
III,
350.
10
Ibidem.
11
Ibidem,
354.
12
Ibidem,
356.
Poder-‐se-‐iam
comparar
estas
expressões
de
Rahner
com
o
conceito
de
verdade
em
M.
Heidegger
(ver,
acima,
o
respectivo
capítulo)
–
até
porque
é
evidente
a
proximidade
da
terminologia
(Licht
[luz]
–
Lichtung
[clareira]).
Contudo,
não
será
de
ignorar
que
Rahner
baseia
a
sua
posição
numa
explícita
antropologia,
enquanto
que
a
filosofia
heideggeriana
pretende
ser
uma
ontologia
fundamental:
de
um
lado,
está
a
luz
do
ser
humano;
do
outro,
a
clareira
do
Ser.
Apesar
desta
nítida
diferença,
não
será
de
todo
descabido
pensar
que
Rahner,
neste
preciso
aspecto,
tenha
sido
influenciado
pelo
“primeiro”
Heidegger
(sobretudo
de
Sein
und
Zeit).
13
ST
III,
358.
Neste
contexto,
não
se
pode
deixar
de
fazer
uma
primeira
observação
crítica.
Segundo
Rahner,
a
força
real-‐simbólica
da
palavra
constitui-‐se
como
função
do
sujeito
cognoscente.
O
desvelamento
que
a
realidade
experimenta
através
da
palavra
é,
no
fundo,
um
acto
do
dizer
cognitivo.
Embora
a
inter-‐personalidade,
a
liberdade
e
o
«amor»
desempenhem
também
um
importante
papel,
mantém-‐se
a
justificada
impressão
de
que,
no
fim
de
contas,
para
Rahner
apenas
o
sujeito
do
conhecimento
–
o
espírito
que,
na
palavra
cognoscente,
regressa
a
si
próprio
–
é
que
se
encontra
em
jogo.
É
impossível
iludir
a
forte
carga
hegeliana
do
pensamento
de
K.
Rahner,
relativamente
a
este
assunto
(noutros
aspectos,
é
anti-‐hegeliano).
Para
um
aprofundamento
da
crítica,
neste
mesmo
sentido,
ver:
J.
SPLETT,
Die
Bedingungen
der
Möglichkeit.
Zum
transzendentalphilosophischen
Ansatz
Karl
Rahners,
in:
B.
J.
HILBERATH
(Ed.),
Erfahrung
des
Absoluten
–
absolute
Erfahrung?,
Düsseldorf
1990,
68-‐87;
P.
EICHER,
Die
anthropologische
Wende.
Karl
Rahners
philosophischer
Weg
vom
Wesen
des
Menschen
zur
personalen
Existenz,
Fribourg
1970,
eps.
196;
W.
KASPER,
Glaube
und
Geschichte,
Mainz
1970,
esp.
60ss.
14
ST
III,
351.
possuem a capacidade de apresentar verdadeiramente a realidade, de ser seu
sacramento primordial.
Tais palavras primordiais são oferecidas ao ser humano, não é ele que as
produz, segundo a sua própria vontade. Por isso, não são definíveis. O que não
significa que sejam de origem mítica, qual presente extra-terrestre dos deuses. Pelo
contrário: todas elas possuem o seu próprio destino e a sua própria história. Mas
distinguem-se das palavras racionais de um pensamento claro e distinto, na medida
em que “evocam o mistério”15. O mistério não apenas como enigma do desconhecido,
mas sobretudo como fundamento que nos abarca e abarca a nossa própria realidade.
“Nesta palavra deverá irromper o que é incompreensível, o que não tem nome, o que
possui de forma silenciosamente impossível, o incaptável, o abismo, no qual temos
fundamento, a escuridão da hiper-luminosidade, que envolve toda a claridade do dia a
dia, numa palavra: o permanente mistério, a que chamamos Deus, o início que
perdura, mesmo quando chegamos ao fim”16.
As reflexões filosóficas atingem, assim, um contexto propriamente teológico
ou, pelo menos, filosófico-religioso. De facto, as palavras primordiais “são sempre
como que carregadas de um soar leve do infinito” 17 . A palavra que reúne e
concentra/congrega, através da qual o mistério silencioso irrompe no mundo, que
atinge o coração no seu mais íntimo recanto, que, no seio da sua clara finitude, é a
corporeidade do mistério infinito, é a palavra poética18.
Portanto, o poeta é alguém “que consegue dizer palavras primordiais de forma
poética”19. E, na medida em que o faz, atinge o “regressar-a-si-próprio”, o “estar-
consigo-mesmo” – “ele diz-se, em verdade, a si mesmo”20. É isso que o distingue do
sacerdote (e do teólogo?), o qual não se diz a si próprio, mas sim a palavra de Deus,
que lhe é dada.
Mas a Graça de Deus encontra-se no mundo, de modo que a palavra de Deus
também é palavra humana. Sendo assim, também o sacerdote e o teólogo podem dizer
15
Ibidem,
353.
16
ST
IV,
442.
17
ST
III,
353.
18
Cf.:
ST
IV,
448.
19
ST
III,
356.
Quando
Rahner
diz:
“Todo
o
ser
humano
pronuncia
palavras
primordiais...”,
baseia
a
diferença
do
poeta
apenas
na
«forma»
(poética)
das
suas
palavras.
Mas
quando
afirma:
“Onde...
a
palavra
primordial
é
verdadeiramente
dita,
onde
a
coisa
(Sache)
surge
na
palavra,
como
no
primeiro
dia:
aí
está
o
poeta”,
então
desvanecem-‐se
as
fronteiras
entre
o
poeta,
o
filósofo
e
o
teólogo.
Não
pronunciam,
todos
eles,
palavras
primordiais?
20
ST
III,
364.
a palavra de Deus, enquanto se dizem a si mesmos – aliás, terão sempre que o fazer.
Por outro lado, a própria auto-dicção do poeta é, sempre, uma palavra primordial da
saudade (Sehnsucht) de infinito, ou seja, de uma questão que é movida pela
transcendência. Como tal, o poeta nunca se diz, apenas, a si próprio. E a essa questão
responde a palavra de Deus, com palavras primordiais do ser humano que,
transformadas pelo Espírito, se tornaram palavras de Deus – sem deixarem de ser
profundamente humanas. Tanto a questão como a resposta podem ser, portanto,
palavras poéticas – em sentido vasto, terão sempre que o ser. Daí a intrínseca – não
meramente formal – ligação entre poesia e teologia, quer a primeira constitua uma
espécie de propedêutica para a segunda (como articulação de uma especial capacidade
de escuta, mesmo de escutar o silêncio, para além da palavra), quer a segunda se
articule, ela mesma, em palavras poéticas21.
21 Y. TOURENNE, op. cit., 387s, aplica a mesma circularidade à relação entre poesia e a
graça
da
incarnação:
“É
certo
que
foi
o
Evangelho
do
Verbo
incarnado
que
revelou
o
valor
infinito
da
palavra
humana,
mas,
por
outro
lado,
a
Incarnação
revela
a
aptidão
da
palavra
humana
para
acolher
a
palavra
do
Deus
infinito”
(388).
22
ST
IV,
441-‐442.
23
Um
dos
casos
mais
conhecidos
(para
não
falar
em
Hegel)
e
originais
é,
sem
dúvida
e
como
acima
foi
visto,
a
obra
do
«segundo»
Heidegger,
para
quem
as
poesias
de
Hölderlin,
Stefan
Georg
e
Rilke
constituem
uma
importante
fonte
de
inspiração
ou
um
constante
parceiro
de
diálogo.
Actualmente,
para
além
da
posição
moderada
de
H.-‐G.
GADAMER
(sobretudo
GW,
vol.s
8
e
9,
Tübingen
1993-‐1994),
poder-‐se-‐ia
pensar
em
muitos
filósofos
da
dita
pós-‐modernidade
(com
J.
Derrida
à
frente),
que
pretendem,
mesmo,
anular
as
diferenças
entre
os
vários
tipos
de
discurso
ou
de
texto.
24
ST
XVI,
364.
essa frase está, no seu conjunto, dedicado à tentativa de superar, precisamente, tal
afirmação, afim de evidenciar a relação da teologia com as outras artes. Literalmente:
“...surge por isso a questão se, através de uma redução da teologia a uma teologia da
palavra, não se reduz também, de forma injusta, a dignidade, especificidade e o ser-
tomadas-ao-serviço-por-Deus das outras artes”25. No fim de contas, todas as artes são
auto-dicção da pessoa humana, “nas quais o ser humano, de algum modo, se torna a si
mesmo presente”26. E uma verdadeira teologia é, segundo Rahner, também verdadeira
antropologia. Esta constitui, mesmo, o ponto de partida obrigatório para qualquer
trabalho teológico.
A partir desse horizonte antropológico, desenvolve Rahner toda a sua
exposição sobre a imagem, que constitui objecto da presente análise. Nela, começa
por defender uma pluralidade de experiências sensíveis, “as quais não podem ser
reduzidas umas às outras”27. O cristianismo só atingirá toda a sua dimensão, quando
for recebido “através de todas as portas dos seus [do ser humano] sentidos, e não só
do ouvido, pela palavra”28.
A imagem, por exemplo, possui um significado religioso autónomo, que
nenhuma palavra poderá substituir. “O facto de a teologia não falar – ou raramente e
quase só em observações laterais – desse específico e insubstituível significado não
constitui qualquer argumento contra tal afirmação” 29 . Pelo contrário, será antes
necessário pensar numa conversão da mentalidade teológica corrente, para melhor
fazer justiça à realidade humana – que também é a artística, na sua globalidade e
diferenciação.
Indo mais longe, Rahner defende uma estreita complementaridade entre
palavra e imagem (outras artes poderiam ser acrescentadas, sem alterar o pensamento
básico), o que falta – ou é apenas esboçado – nos seus primeiros escritos. Mas, ao
tentar descrever a forma concreta de tal complementaridade, Rahner recorre
25
Ibidem,
365.
Note-‐se
que,
entretanto,
tinha-‐se
desenvolvido
–
de
forma
radical,
absoluta,
exclusivista
e,
por
isso,
redutora
–
a
famosa
«Teologia
da
Palavra»,
em
contexto
protestante,
o
que
terá
levado
Rahner
a
repensar
o
papel
absoluto
da
mesma,
relativizando-‐o.
26
Ibidem,
364.
27
Ibidem,
352.
28
Ibidem,
354.
Quando,
com
Paulo,
se
diz
que
“a
fé
vem
pelo
ouvir”
(Rm
10,
17),
ou
se
confere
ao
«ouvir»
um
sentido
demasiado
lato,
abrangendo
toda
a
receptividade
humana,
ou
se
reduz
o
fenómeno
da
fé
a
apenas
uma
das
suas
múltiplas
dimensões.
O
próprio
Rahner
não
se
poupará
a
esta
crítica,
embora
algumas
das
suas
afirmações
possam
conduzir
a
pensar
o
contrário.
No
fundo,
a
maioria
dos
seus
escritos
não
anda
muito
longe
de
tal
redução
–
como,
por
exemplo,
uma
das
suas
primeiras
e
principais
obras,
mesmo
já
no
título:
«Ouvinte
da
Palavra»
(Hörer
des
Wortes).
29
ST
XVI,
357.
novamente a uma marcada preponderância ou domínio da palavra: “E portanto, uma
imagem necessita naturalmente de uma interpretação na palavra, a fim de adquirir
valor cristão para uma comunidade”30.
Em resumo, poder-se-ia dizer que Rahner reconhece, nos seus últimos escritos,
o significado da arte em geral, isto é, de todas as artes, para além do âmbito restrito da
poesia. Contudo, a sua preferência pela arte da palavra faz com que à poesia seja
concedido um lugar privilegiado, em inevitável detrimento das outras artes, tal como
vinha sendo hábito de uma teologia marcada, como quase todo o pensamento
ocidental, pela ditadura do «logocentrismo». Apesar de chamar a atenção para um
problema a superar, Rahner não chega, na prática, a superá-lo verdadeiramente. No
entanto, não é de minimizar, com isso, a importância de uma clara enunciação do
problema, para possíveis propostas de superação do mesmo.
Ainda no que se refere à teologia da imagem, seria de acrescentar que Rahner
permanece no horizonte teórico da sua filosofia e teologia do símbolo real, desta vez
abordada mais claramente pelo lado da corporeidade. De facto, a imagem adquire o
seu significado ontológico a partir a necessidade, que habita o espírito (e o conceito),
de em si mesmo ser constituído por um momento sensível (a isso se refere a temática
da conversio ad fantasma). Na medida em que a imagem – ou a obra de arte, em geral
– constitui esse momento, é parte integrante do próprio espírito. É o espírito que, para
poder tornar-se presente a si mesmo, se exterioriza no outro de si próprio (na
matéria)31.
30 Ibidem, 362. Penso que a realidade das artes, assim como a própria história das
total,
e
não
como
queda
do
espírito
(segundo
a
tradição
neo-‐platónica).
No
entanto,
a
teoria
rahneriana
do
símbolo
permanece,
ainda,
demasiado
sob
influência
da
fenomenologia
do
espírito
hegeliana,
para
poder
libertar-‐se
do
movimento
imanente
ao
próprio
espírito.
Como
tal,
o
sensível
é
considerado
a
fronteira
mais
afastada,
inferior
do
espírito
que
regressa
a
si
mesmo.
No
fundo,
a
teoria
do
símbolo
real
não
consegue
resolver
aquilo
que
pretendia,
ou
seja,
pensar
o
equilíbrio
entre
essência
e
aparição,
unidade
e
multiplicidade,
espírito
e
matéria,
transcendência
e
história,
etc.
(R.
BROSSE,
op.
cit.,
esp.
85ss,
é
da
mesma
opinião,
sobretudo
no
que
se
refere
à
integração
da
história,
no
seu
carácter
de
evento
temporal).
Rahner
permanece
na
tradição
ocidental
de
uma
«filosofia
do
mesmo»,
tão
fortemente
criticada,
nos
nossos
dias,
por
E.
Levinas.
Além
do
mais,
Rahner
parece
não
ter
abandonado
a
habitual
atitude
racional
(ou
racionalista?),
frente
às
imagens
e
a
todo
o
tipo
de
arte
(Cf.:
ST
XVI,
355-‐356).
humano... se diz em todas as artes e também na teologia, as diferentes artes e a
teologia encontram-se em parentesco e mútua relação”32. Como tal, ter-se-á que partir
da realidade humana da arte, para conseguir compreender o seu verdadeiro significado
para a teologia. É o que pretende Rahner, quando, na sua filosofia da religião e
teologia fundamental, relaciona intimamente a auto-dicção (aberta) do ser humano e a
auto-doação (comunicante) de Deus, na graça33.
A respeito do poeta, falava-se de uma aspiração, desejo ou saudade, que se
exprimiam numa questão. Dessa maneira se abre uma porta para o infinito, pela qual
ele poderá entrar. “O poeta é movido pela transcendência do espírito. Ele já está, em
segredo, sem disso ter consciência, submergido pela nostalgia que a graça do Espírito
Santo colocou no coração do ser humano”34. A palavra que se auto-anula, representa a
sua própria superação. Trata-se, pois, de um “gesto excedente, que aponta para o
infinito, para além de tudo o representável ou representado”35.
O que se diz da poesia é aplicável a todas as artes. Aquilo que nela acontece
realiza-se, de maneira única e insubstituível, nas outras artes. “A arte, a verdadeira, é
sempre mais do que aquilo que é. Se fosse praticada pelo simples amor ao valor
estético, cessaria de ser arte. Seria destituída ao estatuto de um narcótico, destinado a
acalmar a angústia da existência. Mas esse «mais», que faz parte dela e da qual ela
vive, não é a arte que o pode dar-se a si mesma”36. Pode falar-se, mesmo, de uma
orientação de todo o ser humano – e não apenas daquilo que é exprimível
linguisticamente – para a transcendência. Quando Rahner «define» o ser humano
como um “ser da transcendência”, quer com isso exprimir a experiência religiosa
fundamental de toda a pessoa humana, na medida em que, no conhecimento de si
próprio, dos outros e do mundo – assim como no seu agir livre – se torna a si mesma
presente e, nesse “estar-consigo” ( Bei-sich-Sein), aponta para o seu fundamento.
dimensão
–
o
que,
neste
contexto,
não
pode,
como
é
óbvio,
passar
de
uma
simples
evocação:
só
será
referido
aquilo
que
se
revela
de
maior
importância
para
a
temática
aqui
tratada.
O
horizonte
pressuposto
é
constituído
pela
ideia
fundamental
de
que
o
ser
humano
é,
ele
próprio,
acontecimento
da
auto-‐comunicação,
enquanto
auto-‐manifestação
e
auto-‐doação
do
próprio
Deus
(a
graça
como
“existencial
sobrenatural”).
Cf.:
K.
RAHNER,
Grandkurs
des
Glaubens,
Freiburg
i.
Br.
/
Basel
/
Wien,
1984
(orig.
1976),
sobretudo
42ss.
88.92.
132-‐138
(ver,
adiante,
o
respectivo
estudo).
34
ST
III,
374.
35
Ibidem,
358.
36
Ibidem,
374.
Ora, o ser humano também é um ser da experiência sensível. Mesmo até o
conhecimento religioso “é necessariamente sustentado pela percepção, a qual se
baseia na experiência sensível e, portanto, também histórica” 37 . Desse modo é
abordado o difícil problema da coexistência, no ser humano, de transcendência e
historicidade38.
A analogia constitui, para Rahner, o caminho de mediação entres esses dois
«princípios», aparentemente opostos. “A analogia possibilita a compreensão de uma
realidade como revelação misteriosa de outra realidade mais alta, mais abrangente”39.
Sendo assim, desenvolve-se uma relação de condicionamento e possibilitação mútuos,
entre transcendência e história.
Neste preciso ponto, o recurso à arte pode tornar-se sumamente rico. Ela é, de
facto, enquanto realidade histórica e intimamente aliada ao sensível e concreto, mas
também como expressão privilegiada da questão transcendente de todo o ser humano,
um meio indicado para representar e realizar a irrepresentável transcendentalidade do
ser humano, ligado à história. Nela se manifestam os momentos fundamentais que
determinam as condições de possibilidade de um acolhimento da auto-revelação de
Deus: transcendência e história, eternidade e tempo, unidade e diversidade. E isso sem
que uns sejam absorvidos e superados – portanto, anulados – pelos outros.
Sendo assim, a arte não poderá ser apenas considerada como um fenómeno
com certo parentesco com a teologia, mas sim como um momento verdadeiramente
interno à própria teologia – o que raramente acontece, sobretudo na prática do
trabalho teológico. As imagens não poderão ser tomadas apenas como littera laicorum
ou biblia pauperum, mas sim no seu significado teológico específico e
insubstituível 40 . Mesmo uma «teologia poética» seria possível ou até desejável:
“Também se poderia dizer que falta uma teologia poética”41. E também se poderia
perguntar, com o próprio Rahner: “Será que a teologia melhorou com o facto de os
teólogos se terem tornado prosaicos?”42.
Rahner.
39
ST
XVI,
368.
40
Cf.:
Ibidem,
355-‐356.
41
Ibidem,
366.
42
ST
III,
374.
4. Questões
Para além das observações críticas que, de modo mais ou menos lateral, foram
feitas ao longo destas linhas, resta esboçar algumas questões de fundo, a colocar à
compreensão rahneriana da arte e à respectiva relação com a teologia. Concentrar-me-
ei em dois aspectos que julgo fundamentais: 1. a interpretação do fenómeno artístico –
na sua essência – como (mero) pressuposto da teologia e 2. o carácter marcadamente
«subjectivista» do pensamento rahneriano sobre a arte.
Em relação à crítica que se segue, deverá adiantar-se que não se trata de uma
crítica totalmente «externa», ou seja, baseada em pressupostos totalmente alheios ao
pensamento do próprio Rahner; pelo contrário, pretende-se questionar alguns dos seus
aspectos, partindo de outros que lhe são manifestamente «internos». Como se verá, é
possível encontrar suficientes afirmações do próprio Rahner que vão contra a sua
posição tida como fundamental – o que sempre tornou difícil, senão praticamente
impossível, criticar a sua teologia «em bloco».
1. “O poético é, na sua essência última, pressuposto para o cristianismo”43.
Nesta frase se resume, como vimos já, aquilo que o texto a que ela pertence, na sua
totalidade, pretende dizer. Nela se resume, também, a posição fundamental – não
única – de Rahner, frente ao possível relacionamento entre arte e teologia. Para além
da intenção espiritual-pedagógica do referido texto, nele se afirma uma das
fundamentais ideias do autor, a qual também domina outros textos anteriores,
relativos ao mesmo tema. Desse modo, arte e teologia contactam-se de maneira
bastante extrínseca. Assim como o sacerdote recorre ao poeta, a fim de melhor poder
dizer a Palavra de Deus44, também o teólogo (e o cristão, em geral) terá que ser capaz
de captar a poesia, a fim de a utilizar teologicamente. Em tal utilização, por parte da
teologia, a autonomia da arte é colocada em perigo, se não mesmo anulada, sendo a
sua utilidade reduzida a uma preparação pedagógica para o acolhimento – ou a
formulação – da palavra teológica.
Tal subjugação não pode, no entanto, ser aceite pela arte, que se pretende
autónoma (pelo menos, desde a renascença, como vimos). Outro caminho de
relacionamento terá que ser percorrido, senão mesmo inaugurado. A partir de algumas
observações tardias do próprio Rahner, poder-se-ia tentar descrever um
45 Na história da teologia e da arte existem, de facto, muitos exemplos de obras de
teologia
que
são,
simultaneamente,
poesia
(como,
por
exemplo,
muitos
hinos),
assim
como
de
muitas
obras
de
arte
explicitamente
teológicas
(como
a
música
religiosa
de
Bach,
assim
como
muita
da
música
de
Olivier
Messiaen,
ou
mesmo
muitas
obras
da
pintura
moderna
e
contemporânea,
etc.).
De
forma
implícita
e
vaga,
qualquer
obra
de
arte
autêntica
possui,
no
fundo,
um
carácter
teológico
(Cf.:
G.
STEINER,
Von
realer
Gegenwart,
München
1990).
destinatários, de que Rahner é um dos primeiros defensores – mas também quanto à
forma – pluralidade de discursos e de formas de articulação das obras teológicas.
Salvo raras excepções – como certas tentativas da chamada «teologia narrativa»46 –
continua a dominar a teologia de tipo científico, isto é, sistemático-argumentativo.
É evidente que uma teologia plural nunca poderia pôr de parte a teologia
argumentativa tradicional – indispensável para “dar razões da esperança”, no contexto
complexo do pensamento contemporâneo, respeitando o valor do “melhor argumento”
(J. Habermas) – mas apenas relativizar o seu absolutismo, abrindo espaço teológico a
outras vias de auto-articulação.
2. O segundo aspecto da presente crítica não poderá ser aqui analisado em toda
a sua vastidão, uma vez que nele é abordado um dos aspectos mais polémicos de toda
a teologia rahneriana – e, no fundo, de toda a filosofia contemporânea, que se define
por uma tentativa geral de superação do subjectivismo (ou até mesmo do próprio
sujeito). Limitar-me-ei, portanto, a alguns tópicos essenciais.
“O poeta diz aquilo que traz consigo. Ele diz-se, em verdade, a si mesmo. Até
mesmo essa dicção é, também, um pedaço daquilo que ele próprio é”47. De forma
explícita, Rahner pensa a arte (neste caso, a arte da palavra) a partir do artista, à
maneira da «estética da produção», que estende as suas raízes ao início da
modernidade, sobretudo ao processo de subjectivação da estética – e também do
próprio fenómeno artístico, distinto da estética – sob o impulso da terceira crítica
kantiana. Segundo tal tendência, toda a arte se baseia, originariamente, na actividade
criadora de um génio, no qual encontra a sua verdadeira origem, e o qual se exprime a
si mesmo, na arte. Se, em Kant, esse génio ainda assumia a tarefa de manter a ligação
a uma natureza que o transcende, é sobretudo a partir de Hegel que a natureza é
superada pelo espírito, sendo a arte manifestação sensível da verdade, que é esse
espírito na sua forma absoluta, enquanto sujeito, auto-consciência, razão e conceito.
A subjectivação do fenómeno artístico atingiu o seu auge com o romantismo,
em que o culto do génio se transformou numa espécie de histeria colectiva – ou então,
numa forma de religião. A reacção a esse culto caiu, com certa facilidade, no oposto,
ou seja, na dita «estética da recepção». Mas, uma vez que a actividade receptiva é
vista, ou como uma espécie de congenialidade em relação ao artista produtor, ou
48-‐86.
teologia, bem como a relação entre ambas. “Apesar de ser sujeito livre, o ser humano
experimenta-se como possuído, e isso num acto de possuir sobre o qual ele não pode
pôr e dispor”50.
Para além do conceito, a arte deverá ser, em todas as suas manifestações,
compreendida como um fenómeno, através do qual o ser humano experimenta, do
modo mais denso, a sua situação de ser possuído pelo mistério, ou seja, encontra-se
não tanto como um ser da procura, mas sobretudo como um ser do acolhimento. Ele é
encontrado, mais do que alguém que deseja encontrar. Ele é reposta, mais do que
questão. Não uma resposta que re-solve, dis-solvendo, a questão; mas res-posta51 que
se experimenta perante algo ou alguém que, simultaneamente, a transcende e a
interpela.
Desse modo, a arte poderá determinar a teologia de forma intrínseca – mas
também ser determinada pela teologia: no fim de contas, o seu mistério não reside em
si mesma, mas ultrapassa-a constantemente. Tanto a arte como a teologia repousam
no mistério fundante do Deus transcendente, do qual brotam e ao qual regressam. A
miséria de uma e de outra reside no eventual esquecimento dessa sua origem e desse
seu fim. A grandeza de ambas reside na sua dimensão escatológica.