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A

 ARTE  COMO  TEOLOGIA  –  A  PARTIR  DE  K.  RAHNER)  


JOÃO MANUEL DUQUE – UCP – BRAGA - PORTUGAL

Apesar de a estreita ligação entre o cristianismo – com a sua teologia – e a arte


constituir uma irrefutável constante histórica, dificilmente se encontra, entre os
numerosos e volumosos tratados teológicos, uma abordagem sistemática de tão
singular relacionamento. Poder-se-ia mesmo afirmar que a teologia se tornou, ao
longo dos séculos, em cenário de uma crescente racionalização, tendo mesmo atingido
excessos racionalistas em determinadas épocas, de que a apologética extrinsecista é
um dos exemplos mais acabados. Nesse contexto, dominava o valor do argumento,
baseado na pressuposta universalidade da razão e que procurava ideias claras e
distintas. A arte, vista apenas como parceira inata de um irracionalismo inferior ou
mesmo perigoso, não tinha qualquer palavra a dizer e era relegada, quando muito,
para o âmbito litúrgico ou devocional.
Por outro lado, a história da teologia é atravessada pela constante problemática
iconoclasta. Mesmo que a prática eclesial tenha ultrapassado esse veredicto
pretensamente vetero-testamentário, as suas razões profundas nunca deixaram de
pairar sobre a reflexão teológica, que chegou a ver na arte – sobretudo nas imagens –
um dos seus mais poderosos concorrentes, que importava subjugar ou mesmo banir do
âmbito religioso. Tais antecedentes deixaram – para além de inúmeras calamidades
culturais, e não poucas vítimas mortais... – profundos sulcos na mentalidade teológica,
que ainda não foram totalmente ultrapassados.
Para além disso, sobretudo a partir da renascença, assistimos a um processo de
esteticização da arte. O problema deixa de ser o poder religioso ou idolátrico da arte,
mas sim a sua auto-emancipação. Um arte que se afirma autónoma e cujo valor só
poderá ser discutido a nível estético não pode aceitar o lugar de mera ancilla
theologiae, para ser posta ao serviço de um outro fim que não o da sua finalidade
interna (sem fim). Mesmo que continuando a abordar conteúdos da tradição cristã, a
arte passa a ser vista – ou escutada – apenas como arte, na sua total «distinção
estética». Uma possível «função» religiosa passa a segundo plano ou, pelo menos, é
separada do aspecto artístico, enquanto tal. Em semelhante contexto, uma
aproximação entre arte e teologia só parece possível através da anulação da respectiva
autonomia, o que implicaria ignorar todo um processo histórico e cair
irremediavelmente em fatais anacronismos1. Ou será possível, para além de domínio
ou capitulação, uma terceira via?
No presente, as vias de aproximação da teologia em relação à arte também não
se encontram propriamente desimpedidas. O divórcio entre Igreja e cultura moderna,
a que assistiu o final século XIX e o início do XX, também deixou fortes marcas,
apesar de todas as tentativas de o ultrapassar. Ora, na cultura moderna ocupa um lugar
de destaque a arte, nas suas mais variadas formas. E a Igreja seguiu, na maioria dos
casos, dois caminhos que conduzem, inevitavelmente, a um mesmo resultado: ao
encerramento sobre si mesma. Por um lado, em nome de princípios artísticos ou
teóricos do passado, fechou-se à revolução – ou melhor, revoluções – artística(s) do
nosso tempo; por outro, em nome de uma pastoral mais propagandística que
anunciante, por isso quase sempre fácil e ilusória, aliou-se, muitas vezes, às
manifestações mais pobres da pseudo-arte contemporânea, vindo a tornar-se, por
vezes, num oásis «cor-de-rosa», em que abundavam (e abundam...) manifestações
«artísticas» de pobreza singular, motivo de hilariedade – ou pesar – para o mundo
verdadeiramente artístico contemporâneo. Felizmente, aqui e acolá, vão aumentando
as vontades de ultrapassar esses estádios primitivos, que transformam a Igreja num
autêntico «ghetto» ou reduto, que nada tem a ver com o nosso mundo – ou, pelo
menos, com o que nele há de mais profundo. Também aqui, ter-se-á que ultrapassar a
alternativa entre refúgio comodista e dissolução da identidade, rumo a um equilíbrio
dinâmico.
Talvez por todas as razões apresentadas o título destas breves considerações
soará, a alguns ouvidos teológicos, altamente estranho ou mesmo suspeito. O que só
prova a urgência de uma abordagem teológico-fundamental de um tema que está
longe de ser pacífico ou de estar resolvido.
Ainda mais raro parece ser, contudo, o subtítulo. Se o próprio Rahner escreve
que não pretende possuir a competência de um filósofo do estético ou de um
historiador da arte, a ponto de afirmar: “Nada percebo de tudo aquilo que aí é

1  Sobre  a  questão  iconoclasta,  pode  ver-­‐se,  entre  outros,  o  número  monográfico  da  

revista  «Kunst  und  Kirche»  1/1993;  Cf.,  ainda:  J.  DUQUE,  Die  Kunst  als  Ort  immanenter  
Transzendenz,  Frankfurt  a.  M.  1997,  esp.  231-­‐243.  Sobre  a  passagem  da  era  da  “imagem  cultual”  à  
era  da  arte,  ver  o  brilhante  estudo  histórico  de  H.  BELTING,  Bild  und  Kult.  Eine  Geschichte  des  Bildes  
vor  dem  Zeitalter  der  Kunst,  München  1990;  Cf.,  ainda:  H.  SCHWEBEL,  Hat  die  Gegenwartskunst  im  
Kirchenraum  eine  Chance?  Christliche  Bildefunktionen  und  autonome  Kunst,  in:  «Kunst  und  
Kirche»  4  (1994)  212-­‐217;  para  uma  crítica  da  «distinção  estética»,  cf.:  H.-­‐G.  GADAMER,  Wahrheit  
und  Methode,  Gesammelte  Werke  1,  Tübingen  1986,  esp.  94ss  (ver,  acima,  o  respectivo  estudo).  
abordado”2, então poder-se-á, pelo menos, olhar com cepticismo o facto de alguém se
atrever a abordar semelhante tema em tal teólogo – conhecido pelo poder
argumentador e especulativo da sua mente e não propriamente pela «beleza» literária
das suas obras...
Seja como for, Rahner dedicou, de facto, algumas páginas dos seus inúmeros
escritos à relação entre arte e teologia – páginas, cujo significado não é pequeno3.
Trata-se, no fundo, de quatro textos publicados nos Escritos de Teologia4.
Dado que é relativamente grande a distância cronológica – cerca de 20 anos –
entre os dois primeiros e os dois últimos, podemos constatar um certo processo
transformativo do pensamento rahneriano, relativamente a este tema, embora
permaneçam idênticas as fundamentais referências filosófico-teológicas. Tais
referências não poderão, como é óbvio, ser satisfatoriamente abordadas e expostas nos
limites destas breves considerações. Nem sequer é isso que se pretende. Quando
muito, serão algumas breves observações laterais a fazer algumas referências ao
complexo horizonte dos principais traços filosófico-teológicos de um dos maiores
teólogos do século XX.
As linhas que se seguem concentram-se, portanto, pura e simplesmente numa
descrição da relação entre arte e teologia, tal como Rahner, de modo teológico-
fundamental, a pensa. Como conclusão, serão adiantadas algumas observações críticas
que pressupõem, de modo mais implícito que explícito, um confronto com algumas

2  K.  RAHNER,  Zur  Theologie  der  religiösen  Bedeutung  des  Bildes,  in:  «Schriften  zur  

Theologie»  (=ST)  XVI,  Einsiedeln  1984,  348.  


3  A  importância  destes  textos  de  Rahner  para  a  globalidade  da  sua  teologia  não  se  pauta,  

contudo,  pela  constituição  de  uma  «estética  teológica»  (no  sentido  estrito  de  uma  teologia  em  
categorias  estéticas,  como  no  caso  famoso  de  Hans  Urs  von  Balthasar),  mas  sim  pelo  lugar  fulcral  
destas  reflexões  –  portanto,  do  próprio  fenómeno  artístico  (enquanto  pressuposto  antropológico-­‐
ontológico-­‐hermenêutico  do  cristianismo)  –  na  elaboração  da  sua  teologia.  Trata-­‐se,  pois,  mais  do  
relacionamento  entre  arte  e  teologia  do  que  de  uma  concepção  estética  da  teologia  ou  teológica  
da  estética.  Não  é  por  acaso  que,  no  projecto  de  estética  teológica  de  von  Balthasar,  o  fenómeno  
concreto  da  arte  desempenha,  paradoxalmente,  um  papel  bastante  mais  secundário  que  na  
própria  teologia  de  Rahner,  que  nunca  pretendeu  elaborar  uma  estética  teológica.    
4  K.  RAHNER,  Priester  und  Dichter,  in:  «Schriften  zur  Theologie»  (=ST)  III,  Einsiedeln  1956,  

349-­‐375  (orig.  de  1955,  em  homenagem  ao  poeta  espanhol  Jorge  Blajot  S.J.);  ID.,  Das  Wort  der  
Dichtung  und  der  Christ,  in:  ST  IV,  Einsiedeln  1960,  441-­‐454;  ID.,  Die  Kunst  im  Horizont  von  
Theologie  und  Frömigkeit,  in:  ST  XVI,  Einsiedeln  1984,  364-­‐372  (publicado  primeiro  em  
«Entschluss»  37[1982]  4-­‐7,  sob  o  sugestivo  título  Nicht  jeder  Künstler  ist  ein  Heiliger.  Zur  
Theologie  der  Kunst);  ID.,  Zur  Theologie  der  religiösen  Bedeutung  des  Bildes,  in:  ST  XVI,  348-­‐363  
(conferência  proferida  em  Munique,  a  19.11.1983).  Tanto  quanto  é  do  meu  conhecimento,  estes  
textos  ainda  não  foram  estudados,  no  seu  conjunto,  no  sentido  de  um  relacionamento  entre  arte  e  
teologia,  como  aqui  se  pretende.  A  única  excepção  parece  ser  a  do  teólogo  franciscano  francês:  Y.  
TOURENNE,  Amorce  d’une  esthétique  théologique  chez  Karl  Rahner?,  in:  «Recherches  de  Sciences  
Religieuses»  85  (1997)  383-­‐418.  
teorias da arte actuais. Todas estas considerações mais não pretendem do que ser um
pequeno contributo para um estudo mais alargado – ainda por fazer – do assunto em
causa5

1. Força primordial da palavra poética


Mesmo que a principal intenção dos dois textos a ser analisados em primeiro
lugar seja de ordem claramente prático-espiritual, de modo algum será forçado deles
extrair importantes indicações para uma reflexão aprofundada sobre a palavra poética.
Tal possibilidade será de adivinhar, logo que Rahner começa o texto Sacerdote e
poeta. Nele, podemos ler um primeiro desabafo, quase programático: “Pena que não
haja uma teologia da palavra!” 6 E prossegue, com considerações filosóficas
extraordinariamente ricas sobre a palavra poética, enquanto tal, precisamente como
propedêutica a uma possível teologia da palavra7.
Nessas considerações, entra em jogo um dos pensamentos fundamentais de
toda a obra rahneriana: que a palavra é símbolo real do pensamento8. “A palavra é a

5  Nos  últimos  tempos,  o  mundo  teológico  tem  visto  surgir  uma  série  de  importantes  

publicações,  que  pretendem  colmatar  esta  lacuna  histórica.  De  entre  muitas  outras,  sejam  apenas  
referidas:  CH.  DOHMEN  /  TH.  STERNBERGER  (Dir.),  ...kein  Bildnis  machen.  Kunst  und  Theologie  im  
Gespräch,  Würzburg  1987;  M.  ZEINDLER,  Gott  und  das  Schöne.  Studien  zur  Theologie  der  Schönheit,  
Göttingen  1993;  W.  LESCH  (Dir.),  Theologie  und  ästhetische  Erfahrung.  Beiträge  zur  Begegnung  von  
Religion  und  Kunst,  Darmstadt  1994;  A.  STOCK,  Keine  Kunst.  Aspekte  der  Bildtheologie,  Paderborn  
1996;  J.-­‐P.  JOSSUA,  La  beauté  et  la  bonté,  Paris  1987;  D.  PAYOT  (Dir.),  Mort  de  Dieu  –  fin  de  l’art,  Paris  
1991;  J.-­‐J.  NILLÈS  (Dir.),  L’árt  moderne  et  la  question  du  sacré,  Paris  1993;  J.  SOLDINI,  Saggio  sulla  
discesa  della  bellezza.  Linee  per  un’estetica,  Milano  1987;  P.  SEQUERI,  Estetica  e  Teologia,  Milano  
1993;  ID.,  L’estro  di  Dio.  Saggi  di  estetica.  Milano:  Glossa,  2000;  P.  BERNARDI,  L’icona.  Estetica  e  
teologia,  Roma:  Cita  Nuova,  1998;  J.  DUQUE,  Die  Kunst  als  Ort  immanenter  Transzendenz,  Frankfurt  
a.  M.  1997.  
6  ST  III,  349.  Poucas  décadas  depois,  já  não  poderia  dizer  o  mesmo,  sobretudo  após  os  

alargados  estudos  de  G.  Ebeling,  E.  Fuchs,  E.  Jüngel,  P.  Knauer,  etc.  sobre  a  Palavra  de  Deus.  
7  É  nesse  sentido  que,  muito  acertadamente,  Y.  TOURENNE,  op.  cit.,  385  diz  que  “as  

reflexões  de  Rahner  sobre  a  poesia  são  uma  forma  de  teologia  fundamental...”.  
8  Como  horizonte  mais  ou  menos  silenciado  de  quase  tudo  o  que  Rahner  afirma  sobre  a  

arte,  ter-­‐se-­‐á  que  pressupor  as  sua  teoria  do  símbolo.  Nestes  primeiros  textos,  Rahner  não  expõe  
ainda  essa  teoria,  em  toda  a  sua  plenitude  conceptual,  nem  sequer  utiliza  o  termo  «símbolo  real».  
Contudo,  esboça-­‐se  desde  já  aquilo  que  mais  tarde  se  tornará  explícito.  Algumas  pistas  para  tal  
desenvolvimento  encontram-­‐se,  já,  no  conceito  de  «beleza»  (ST  III,  357).  Mas  só  em  ST  IV,  275-­‐
311  (Zur  Theologie  des  Symbols)  é  que  Rahner  irá  desenvolver  em  todas  as  suas  dimensões  essa  
teoria.  Por  outro  lado,  nesse  processo  de  desenvolvimento,  procedeu  a  uma  certa  
«ontologização»  do  símbolo,  acabando  por  o  desligar  da  dimensão  da  palavra,  em  que  se  situava  
ainda  nos  primeiros  textos,  que  ora  nos  ocupam,  e  empobrecendo,  desse  modo,  a  sua  própria  
concepção  (sobre  este  empobrecimento,  cf.:  R.  BROSSE,  Jésus,  l’histoire  de  Dieu.  Historicité  et  
devenir:  deux  notions  clés  de  la  théologie  de  Karl  Rahner,  Fribourg  1996,  esp.85-­‐90.  Brosse  retoma  
o  jovem  Rahner  e  a  sua  referência  à  palavra  para,  inspirado  em  Ricoeur,  propor  uma  interessante  
–  e  importante  –  continuação  da  sua  teologia,  pelos  caminhos  da  hermenêutica,  da  temporalidade  
e  da  linguagem.  Desse  modo  será  possível  ultrapassar  a  dicotomia  entre  modelo  transcendental  e  
modelo  hermenêutico  de  teologia,  rumo  a  um  modelo  tensional,  precisamente  entre  referência  
corporeidade, na qual tudo o que agora experimentamos e pensamos primordialmente
existe, na medida em que incarna nessa sua palavra-corpo” 9 . A dinâmica
incarnacional que caracteriza a palavra poética marca a diferença em relação ao puro
sinal ou signo, à pura “expressão semiótica e exterior de um pensamento”10.
É a mesma teoria do símbolo que determina, então, a relação entre a palavra e
a própria coisa (Sache) ou a realidade. Não se trata, aqui, de uma nomeação arbitrária
da realidade, separada da mesma ou substituível. A palavra “transporta a própria
realidade, torna-a «presente», actualiza e apresenta”11. A realidade, por seu turno, só
atinge a sua própria perfeição quando é colocada ou trazida à luz. E isso acontece na
palavra, ou seja, na medida em que essa mesma realidade é conhecida e pronunciada.
Assim, “as coisas são transportadas, da sua escuridão, para a luz do ser humano”12.
Resumindo com a bela e evocativa expressão do próprio Rahner: a palavra é “o
sacramento primordial da realidade”13.
Mas nem toda e qualquer palavra poderá ser considerada, automaticamente,
sacramento primordial. É preciso distinguir entre palavras e palavras. Uma distinção
importante e fundamental evita a confusão entre “palavras artificiais, técnicas ou
utilitárias”14 e palavras primordiais, originárias ou germinais (Urworte). Só as últimas

transcendental  e  referência  hermenêutica  de  toda  a  teologia;  Cf.,  ainda:  D.  SIMON,  Rahner  and  
Ricoeur  on  Religious  Experience  and  Language,  in:  «Église  et  Théologie»  28  [1997]  77-­‐99).    
9  ST  III,  350.  
10  Ibidem.    
11  Ibidem,  354.  
12  Ibidem,  356.  Poder-­‐se-­‐iam  comparar  estas  expressões  de  Rahner  com  o  conceito  de  

verdade  em  M.  Heidegger  (ver,  acima,  o  respectivo  capítulo)  –  até  porque  é  evidente  a  
proximidade  da  terminologia  (Licht  [luz]  –  Lichtung  [clareira]).  Contudo,  não  será  de  ignorar  que  
Rahner  baseia  a  sua  posição  numa  explícita  antropologia,  enquanto  que  a  filosofia  heideggeriana  
pretende  ser  uma  ontologia  fundamental:  de  um  lado,  está  a  luz  do  ser  humano;  do  outro,  a  
clareira  do  Ser.  Apesar  desta  nítida  diferença,  não  será  de  todo  descabido  pensar  que  Rahner,  
neste  preciso  aspecto,  tenha  sido  influenciado  pelo  “primeiro”  Heidegger  (sobretudo  de  Sein  und  
Zeit).  
13  ST  III,  358.  Neste  contexto,  não  se  pode  deixar  de  fazer  uma  primeira  observação  

crítica.  Segundo  Rahner,  a  força  real-­‐simbólica  da  palavra  constitui-­‐se  como  função  do  sujeito  
cognoscente.  O  desvelamento  que  a  realidade  experimenta  através  da  palavra  é,  no  fundo,  um  
acto  do  dizer  cognitivo.  Embora  a  inter-­‐personalidade,  a  liberdade  e  o  «amor»  desempenhem  
também  um  importante  papel,  mantém-­‐se  a  justificada  impressão  de  que,  no  fim  de  contas,  para  
Rahner  apenas  o  sujeito  do  conhecimento  –  o  espírito  que,  na  palavra  cognoscente,  regressa  a  si  
próprio  –  é  que  se  encontra  em  jogo.  É  impossível  iludir  a  forte  carga  hegeliana  do  pensamento  
de  K.  Rahner,  relativamente  a  este  assunto  (noutros  aspectos,  é  anti-­‐hegeliano).  Para  um  
aprofundamento  da  crítica,  neste  mesmo  sentido,  ver:  J.  SPLETT,  Die  Bedingungen  der  Möglichkeit.  
Zum  transzendentalphilosophischen  Ansatz  Karl  Rahners,  in:  B.  J.  HILBERATH  (Ed.),  Erfahrung  des  
Absoluten  –  absolute  Erfahrung?,  Düsseldorf  1990,  68-­‐87;  P.  EICHER,  Die  anthropologische  Wende.  
Karl  Rahners  philosophischer  Weg  vom  Wesen  des  Menschen  zur  personalen  Existenz,  Fribourg  
1970,  eps.  196;  W.  KASPER,  Glaube  und  Geschichte,  Mainz  1970,  esp.  60ss.      
14  ST  III,  351.  
possuem a capacidade de apresentar verdadeiramente a realidade, de ser seu
sacramento primordial.
Tais palavras primordiais são oferecidas ao ser humano, não é ele que as
produz, segundo a sua própria vontade. Por isso, não são definíveis. O que não
significa que sejam de origem mítica, qual presente extra-terrestre dos deuses. Pelo
contrário: todas elas possuem o seu próprio destino e a sua própria história. Mas
distinguem-se das palavras racionais de um pensamento claro e distinto, na medida
em que “evocam o mistério”15. O mistério não apenas como enigma do desconhecido,
mas sobretudo como fundamento que nos abarca e abarca a nossa própria realidade.
“Nesta palavra deverá irromper o que é incompreensível, o que não tem nome, o que
possui de forma silenciosamente impossível, o incaptável, o abismo, no qual temos
fundamento, a escuridão da hiper-luminosidade, que envolve toda a claridade do dia a
dia, numa palavra: o permanente mistério, a que chamamos Deus, o início que
perdura, mesmo quando chegamos ao fim”16.
As reflexões filosóficas atingem, assim, um contexto propriamente teológico
ou, pelo menos, filosófico-religioso. De facto, as palavras primordiais “são sempre
como que carregadas de um soar leve do infinito” 17 . A palavra que reúne e
concentra/congrega, através da qual o mistério silencioso irrompe no mundo, que
atinge o coração no seu mais íntimo recanto, que, no seio da sua clara finitude, é a
corporeidade do mistério infinito, é a palavra poética18.
Portanto, o poeta é alguém “que consegue dizer palavras primordiais de forma
poética”19. E, na medida em que o faz, atinge o “regressar-a-si-próprio”, o “estar-
consigo-mesmo” – “ele diz-se, em verdade, a si mesmo”20. É isso que o distingue do
sacerdote (e do teólogo?), o qual não se diz a si próprio, mas sim a palavra de Deus,
que lhe é dada.
Mas a Graça de Deus encontra-se no mundo, de modo que a palavra de Deus
também é palavra humana. Sendo assim, também o sacerdote e o teólogo podem dizer

15  Ibidem,  353.  
16  ST  IV,  442.  
17  ST  III,  353.  
18  Cf.:  ST  IV,  448.  
19  ST  III,  356.  Quando  Rahner  diz:  “Todo  o  ser  humano  pronuncia  palavras  primordiais...”,  

baseia  a  diferença  do  poeta  apenas  na  «forma»  (poética)  das  suas  palavras.  Mas  quando  afirma:  
“Onde...  a  palavra  primordial  é  verdadeiramente  dita,  onde  a  coisa  (Sache)  surge  na  palavra,  como  
no  primeiro  dia:  aí  está  o  poeta”,  então  desvanecem-­‐se  as  fronteiras  entre  o  poeta,  o  filósofo  e  o  
teólogo.  Não  pronunciam,  todos  eles,  palavras  primordiais?  
20  ST  III,  364.  
a palavra de Deus, enquanto se dizem a si mesmos – aliás, terão sempre que o fazer.
Por outro lado, a própria auto-dicção do poeta é, sempre, uma palavra primordial da
saudade (Sehnsucht) de infinito, ou seja, de uma questão que é movida pela
transcendência. Como tal, o poeta nunca se diz, apenas, a si próprio. E a essa questão
responde a palavra de Deus, com palavras primordiais do ser humano que,
transformadas pelo Espírito, se tornaram palavras de Deus – sem deixarem de ser
profundamente humanas. Tanto a questão como a resposta podem ser, portanto,
palavras poéticas – em sentido vasto, terão sempre que o ser. Daí a intrínseca – não
meramente formal – ligação entre poesia e teologia, quer a primeira constitua uma
espécie de propedêutica para a segunda (como articulação de uma especial capacidade
de escuta, mesmo de escutar o silêncio, para além da palavra), quer a segunda se
articule, ela mesma, em palavras poéticas21.

2. Para além da palavra


No escrito A palavra da poesia e o cristão, podemos ler: “Antes de
começarmos, deverá dizer-se que não falamos sobre a arte em geral, mas só sobre a
poesia da palavra, porque... o cristianismo, enquanto religião da palavra anunciada, da
fé que escuta e de uma Sagrada Escritura, sem sombra de dúvida possui uma especial
relação com a palavra poética”22. Neste aspecto particular, Rahner encontra-se em
acordo com não poucos filósofos, que pretendem salientar o parentesco entre a
filosofia e a poesia23. Aqui, é salientada tal proximidade, em contexto teológico. Mas
as suas condições de possibilidade terão que ser pensadas a nível primeiramente
filosófico, como o próprio Rahner exemplarmente faz.
De qualquer modo, mais de vinte anos depois, Rahner parece ainda defender a
posição de que a arte da palavra está, “por sua própria natureza, muito aparentada com
a teologia, que também se diz através da palavra”24. Mas o texto em que se encontra

21  Y.  TOURENNE,  op.  cit.,  387s,  aplica  a  mesma  circularidade  à  relação  entre  poesia  e  a  

graça  da  incarnação:  “É  certo  que  foi  o  Evangelho  do  Verbo  incarnado  que  revelou  o  valor  infinito  
da  palavra  humana,  mas,  por  outro  lado,  a  Incarnação  revela  a  aptidão  da  palavra  humana  para  
acolher  a  palavra  do  Deus  infinito”  (388).  
22  ST  IV,  441-­‐442.  
23  Um  dos  casos  mais  conhecidos  (para  não  falar  em  Hegel)  e  originais  é,  sem  dúvida  e  

como  acima  foi  visto,  a  obra  do  «segundo»  Heidegger,  para  quem  as  poesias  de  Hölderlin,  Stefan  
Georg  e  Rilke  constituem  uma  importante  fonte  de  inspiração  ou  um  constante  parceiro  de  
diálogo.  Actualmente,  para  além  da  posição  moderada  de  H.-­‐G.  GADAMER  (sobretudo  GW,  vol.s  8  e  
9,  Tübingen  1993-­‐1994),  poder-­‐se-­‐ia  pensar  em  muitos  filósofos  da  dita  pós-­‐modernidade  (com  J.  
Derrida  à  frente),  que  pretendem,  mesmo,  anular  as  diferenças  entre  os  vários  tipos  de  discurso  
ou  de  texto.  
24  ST  XVI,  364.  
essa frase está, no seu conjunto, dedicado à tentativa de superar, precisamente, tal
afirmação, afim de evidenciar a relação da teologia com as outras artes. Literalmente:
“...surge por isso a questão se, através de uma redução da teologia a uma teologia da
palavra, não se reduz também, de forma injusta, a dignidade, especificidade e o ser-
tomadas-ao-serviço-por-Deus das outras artes”25. No fim de contas, todas as artes são
auto-dicção da pessoa humana, “nas quais o ser humano, de algum modo, se torna a si
mesmo presente”26. E uma verdadeira teologia é, segundo Rahner, também verdadeira
antropologia. Esta constitui, mesmo, o ponto de partida obrigatório para qualquer
trabalho teológico.
A partir desse horizonte antropológico, desenvolve Rahner toda a sua
exposição sobre a imagem, que constitui objecto da presente análise. Nela, começa
por defender uma pluralidade de experiências sensíveis, “as quais não podem ser
reduzidas umas às outras”27. O cristianismo só atingirá toda a sua dimensão, quando
for recebido “através de todas as portas dos seus [do ser humano] sentidos, e não só
do ouvido, pela palavra”28.
A imagem, por exemplo, possui um significado religioso autónomo, que
nenhuma palavra poderá substituir. “O facto de a teologia não falar – ou raramente e
quase só em observações laterais – desse específico e insubstituível significado não
constitui qualquer argumento contra tal afirmação” 29 . Pelo contrário, será antes
necessário pensar numa conversão da mentalidade teológica corrente, para melhor
fazer justiça à realidade humana – que também é a artística, na sua globalidade e
diferenciação.
Indo mais longe, Rahner defende uma estreita complementaridade entre
palavra e imagem (outras artes poderiam ser acrescentadas, sem alterar o pensamento
básico), o que falta – ou é apenas esboçado – nos seus primeiros escritos. Mas, ao
tentar descrever a forma concreta de tal complementaridade, Rahner recorre
25  Ibidem,  365.  Note-­‐se  que,  entretanto,  tinha-­‐se  desenvolvido  –  de  forma  radical,  

absoluta,  exclusivista  e,  por  isso,  redutora  –  a  famosa  «Teologia  da  Palavra»,  em  contexto  
protestante,  o  que  terá  levado  Rahner  a  repensar  o  papel  absoluto  da  mesma,  relativizando-­‐o.  
26  Ibidem,  364.  
27  Ibidem,  352.  
28  Ibidem,  354.  Quando,  com  Paulo,  se  diz  que  “a  fé  vem  pelo  ouvir”  (Rm  10,  17),  ou  se  

confere  ao  «ouvir»  um  sentido  demasiado  lato,  abrangendo  toda  a  receptividade  humana,  ou  se  
reduz  o  fenómeno  da  fé  a  apenas  uma  das  suas  múltiplas  dimensões.  O  próprio  Rahner  não  se  
poupará  a  esta  crítica,  embora  algumas  das  suas  afirmações  possam  conduzir  a  pensar  o  
contrário.  No  fundo,  a  maioria  dos  seus  escritos  não  anda  muito  longe  de  tal  redução  –  como,  por  
exemplo,  uma  das  suas  primeiras  e  principais  obras,  mesmo  já  no  título:  «Ouvinte  da  Palavra»  
(Hörer  des  Wortes).    
29  ST  XVI,  357.  
novamente a uma marcada preponderância ou domínio da palavra: “E portanto, uma
imagem necessita naturalmente de uma interpretação na palavra, a fim de adquirir
valor cristão para uma comunidade”30.
Em resumo, poder-se-ia dizer que Rahner reconhece, nos seus últimos escritos,
o significado da arte em geral, isto é, de todas as artes, para além do âmbito restrito da
poesia. Contudo, a sua preferência pela arte da palavra faz com que à poesia seja
concedido um lugar privilegiado, em inevitável detrimento das outras artes, tal como
vinha sendo hábito de uma teologia marcada, como quase todo o pensamento
ocidental, pela ditadura do «logocentrismo». Apesar de chamar a atenção para um
problema a superar, Rahner não chega, na prática, a superá-lo verdadeiramente. No
entanto, não é de minimizar, com isso, a importância de uma clara enunciação do
problema, para possíveis propostas de superação do mesmo.
Ainda no que se refere à teologia da imagem, seria de acrescentar que Rahner
permanece no horizonte teórico da sua filosofia e teologia do símbolo real, desta vez
abordada mais claramente pelo lado da corporeidade. De facto, a imagem adquire o
seu significado ontológico a partir a necessidade, que habita o espírito (e o conceito),
de em si mesmo ser constituído por um momento sensível (a isso se refere a temática
da conversio ad fantasma). Na medida em que a imagem – ou a obra de arte, em geral
– constitui esse momento, é parte integrante do próprio espírito. É o espírito que, para
poder tornar-se presente a si mesmo, se exterioriza no outro de si próprio (na
matéria)31.

3. A arte como teologia


Segundo o pensamento de Rahner, é o comum ponto de partida antropológico
que possibilita uma intrínseca ligação entre arte e teologia. “Na medida em que o ser

30  Ibidem,  362.  Penso  que  a  realidade  das  artes,  assim  como  a  própria  história  das  

imagens  contradiz,  claramente,  essa  afirmação.  


31  Deste  modo,  é  valorizado  o  mundo  sensível,  como  um  momento  da  própria  realidade  

total,  e  não  como  queda  do  espírito  (segundo  a  tradição  neo-­‐platónica).  No  entanto,  a  teoria  
rahneriana  do  símbolo  permanece,  ainda,  demasiado  sob  influência  da  fenomenologia  do  espírito  
hegeliana,  para  poder  libertar-­‐se  do  movimento  imanente  ao  próprio  espírito.  Como  tal,  o  
sensível  é  considerado  a  fronteira  mais  afastada,  inferior  do  espírito  que  regressa  a  si  mesmo.  No  
fundo,  a  teoria  do  símbolo  real  não  consegue  resolver  aquilo  que  pretendia,  ou  seja,  pensar  o  
equilíbrio  entre  essência  e  aparição,  unidade  e  multiplicidade,  espírito  e  matéria,  transcendência  
e  história,  etc.  (R.  BROSSE,  op.  cit.,  esp.  85ss,  é  da  mesma  opinião,  sobretudo  no  que  se  refere  à  
integração  da  história,  no  seu  carácter  de  evento  temporal).  Rahner  permanece  na  tradição  
ocidental  de  uma  «filosofia  do  mesmo»,  tão  fortemente  criticada,  nos  nossos  dias,  por  E.  Levinas.  
Além  do  mais,  Rahner  parece  não  ter  abandonado  a  habitual  atitude  racional  (ou  racionalista?),  
frente  às  imagens  e  a  todo  o  tipo  de  arte  (Cf.:  ST  XVI,  355-­‐356).  
humano... se diz em todas as artes e também na teologia, as diferentes artes e a
teologia encontram-se em parentesco e mútua relação”32. Como tal, ter-se-á que partir
da realidade humana da arte, para conseguir compreender o seu verdadeiro significado
para a teologia. É o que pretende Rahner, quando, na sua filosofia da religião e
teologia fundamental, relaciona intimamente a auto-dicção (aberta) do ser humano e a
auto-doação (comunicante) de Deus, na graça33.
A respeito do poeta, falava-se de uma aspiração, desejo ou saudade, que se
exprimiam numa questão. Dessa maneira se abre uma porta para o infinito, pela qual
ele poderá entrar. “O poeta é movido pela transcendência do espírito. Ele já está, em
segredo, sem disso ter consciência, submergido pela nostalgia que a graça do Espírito
Santo colocou no coração do ser humano”34. A palavra que se auto-anula, representa a
sua própria superação. Trata-se, pois, de um “gesto excedente, que aponta para o
infinito, para além de tudo o representável ou representado”35.
O que se diz da poesia é aplicável a todas as artes. Aquilo que nela acontece
realiza-se, de maneira única e insubstituível, nas outras artes. “A arte, a verdadeira, é
sempre mais do que aquilo que é. Se fosse praticada pelo simples amor ao valor
estético, cessaria de ser arte. Seria destituída ao estatuto de um narcótico, destinado a
acalmar a angústia da existência. Mas esse «mais», que faz parte dela e da qual ela
vive, não é a arte que o pode dar-se a si mesma”36. Pode falar-se, mesmo, de uma
orientação de todo o ser humano – e não apenas daquilo que é exprimível
linguisticamente – para a transcendência. Quando Rahner «define» o ser humano
como um “ser da transcendência”, quer com isso exprimir a experiência religiosa
fundamental de toda a pessoa humana, na medida em que, no conhecimento de si
próprio, dos outros e do mundo – assim como no seu agir livre – se torna a si mesma
presente e, nesse “estar-consigo” ( Bei-sich-Sein), aponta para o seu fundamento.

32  ST  XVI,  365.  


33  Desta  forma  é  evocado  o  pensamento  teológico  rahneriano  na  sua  mais  profunda  

dimensão  –  o  que,  neste  contexto,  não  pode,  como  é  óbvio,  passar  de  uma  simples  evocação:  só  
será  referido  aquilo  que  se  revela  de  maior  importância  para  a  temática  aqui  tratada.  O  horizonte  
pressuposto  é  constituído  pela  ideia  fundamental  de  que  o  ser  humano  é,  ele  próprio,  
acontecimento  da  auto-­‐comunicação,  enquanto  auto-­‐manifestação  e  auto-­‐doação  do  próprio  
Deus  (a  graça  como  “existencial  sobrenatural”).  Cf.:  K.  RAHNER,  Grandkurs  des  Glaubens,  Freiburg  i.  
Br.  /  Basel  /  Wien,  1984  (orig.  1976),  sobretudo  42ss.  88.92.  132-­‐138  (ver,  adiante,  o  respectivo  
estudo).  
34  ST  III,  374.  
35  Ibidem,  358.  
36  Ibidem,  374.  
Ora, o ser humano também é um ser da experiência sensível. Mesmo até o
conhecimento religioso “é necessariamente sustentado pela percepção, a qual se
baseia na experiência sensível e, portanto, também histórica” 37 . Desse modo é
abordado o difícil problema da coexistência, no ser humano, de transcendência e
historicidade38.
A analogia constitui, para Rahner, o caminho de mediação entres esses dois
«princípios», aparentemente opostos. “A analogia possibilita a compreensão de uma
realidade como revelação misteriosa de outra realidade mais alta, mais abrangente”39.
Sendo assim, desenvolve-se uma relação de condicionamento e possibilitação mútuos,
entre transcendência e história.
Neste preciso ponto, o recurso à arte pode tornar-se sumamente rico. Ela é, de
facto, enquanto realidade histórica e intimamente aliada ao sensível e concreto, mas
também como expressão privilegiada da questão transcendente de todo o ser humano,
um meio indicado para representar e realizar a irrepresentável transcendentalidade do
ser humano, ligado à história. Nela se manifestam os momentos fundamentais que
determinam as condições de possibilidade de um acolhimento da auto-revelação de
Deus: transcendência e história, eternidade e tempo, unidade e diversidade. E isso sem
que uns sejam absorvidos e superados – portanto, anulados – pelos outros.
Sendo assim, a arte não poderá ser apenas considerada como um fenómeno
com certo parentesco com a teologia, mas sim como um momento verdadeiramente
interno à própria teologia – o que raramente acontece, sobretudo na prática do
trabalho teológico. As imagens não poderão ser tomadas apenas como littera laicorum
ou biblia pauperum, mas sim no seu significado teológico específico e
insubstituível 40 . Mesmo uma «teologia poética» seria possível ou até desejável:
“Também se poderia dizer que falta uma teologia poética”41. E também se poderia
perguntar, com o próprio Rahner: “Será que a teologia melhorou com o facto de os
teólogos se terem tornado prosaicos?”42.

37  ST  XVI,  349.  


38  Problema  que  R.  BROSSE,  op.  cit.,  considera  a  chave  de  leitura  de  toda  a  teologia  de  

Rahner.  
39  ST  XVI,  368.  
40  Cf.:  Ibidem,  355-­‐356.  
41  Ibidem,  366.  
42  ST  III,  374.  
4. Questões
Para além das observações críticas que, de modo mais ou menos lateral, foram
feitas ao longo destas linhas, resta esboçar algumas questões de fundo, a colocar à
compreensão rahneriana da arte e à respectiva relação com a teologia. Concentrar-me-
ei em dois aspectos que julgo fundamentais: 1. a interpretação do fenómeno artístico –
na sua essência – como (mero) pressuposto da teologia e 2. o carácter marcadamente
«subjectivista» do pensamento rahneriano sobre a arte.
Em relação à crítica que se segue, deverá adiantar-se que não se trata de uma
crítica totalmente «externa», ou seja, baseada em pressupostos totalmente alheios ao
pensamento do próprio Rahner; pelo contrário, pretende-se questionar alguns dos seus
aspectos, partindo de outros que lhe são manifestamente «internos». Como se verá, é
possível encontrar suficientes afirmações do próprio Rahner que vão contra a sua
posição tida como fundamental – o que sempre tornou difícil, senão praticamente
impossível, criticar a sua teologia «em bloco».
1. “O poético é, na sua essência última, pressuposto para o cristianismo”43.
Nesta frase se resume, como vimos já, aquilo que o texto a que ela pertence, na sua
totalidade, pretende dizer. Nela se resume, também, a posição fundamental – não
única – de Rahner, frente ao possível relacionamento entre arte e teologia. Para além
da intenção espiritual-pedagógica do referido texto, nele se afirma uma das
fundamentais ideias do autor, a qual também domina outros textos anteriores,
relativos ao mesmo tema. Desse modo, arte e teologia contactam-se de maneira
bastante extrínseca. Assim como o sacerdote recorre ao poeta, a fim de melhor poder
dizer a Palavra de Deus44, também o teólogo (e o cristão, em geral) terá que ser capaz
de captar a poesia, a fim de a utilizar teologicamente. Em tal utilização, por parte da
teologia, a autonomia da arte é colocada em perigo, se não mesmo anulada, sendo a
sua utilidade reduzida a uma preparação pedagógica para o acolhimento – ou a
formulação – da palavra teológica.
Tal subjugação não pode, no entanto, ser aceite pela arte, que se pretende
autónoma (pelo menos, desde a renascença, como vimos). Outro caminho de
relacionamento terá que ser percorrido, senão mesmo inaugurado. A partir de algumas
observações tardias do próprio Rahner, poder-se-ia tentar descrever um

43  ST  IV,  449.  


44  Cf.:  ST  III,  367s.  
relacionamento intrínseco entre arte e teologia, baseado nos pontos de contacto entre
as respectivas estruturas fundamentais, sem destruir a autonomia de cada uma delas.
O principal ponto de encontro estrutural pode descobrir-se, precisamente, na
orientação transcendente-imanente de ambas.
Aqui, no entanto, seria necessário diferenciar algo mais a posição rahneriana.
Nos textos acima analisados, permanece a impressão de uma confusão – senão mesmo
identidade – entre experiência artística da transcendência e experiência teológica da
mesma. Tal identidade não corresponde, contudo, à realidade, que se sentiria, muitas
vezes, forçada a ser aquilo que não pretende ser. O papel central do acontecimento
crístico e da fé, para uma visão teológica da realidade, não pode ser esquecido, como
parece suceder nos referidos textos.
Mas tal esquecimento não é, de facto, mais do que aparente. Se tomarmos a
teologia de Rahner no seu conjunto – sobretudo a sua última fase, na qual se torna
mais evidente a sua intenção teológica fundamental – verificamos que a componente
especificamente teológica, centrada no acontecimento histórico da pessoa de Jesus
Cristo e na interpretação crente do mesmo e do ser, constitui o horizonte último de
todo o seu pensamento. Como tal, também o relacionamento arte – teologia é afectado
por essa leitura da realidade.
A arte, sem abdicar da sua autonomia, não se afirma como um mundo
autárquico, mas é também atingida pela força salvífica de Jesus Cristo. Como tal,
pode ser meio implícito da auto-manifestação e auto-doação de Deus, passando a estar
intrinsecamente ligada à teologia, sem estar meramente ao seu serviço, sem ser nela
absorvida (e, como tal, superada), como no caso típico de Hegel. Só na interacção
recíproca poderá ser pensada adequadamente a sua relação mútua.
Possíveis consequências práticas dessa forma de relacionamento: uma obra
teológica poderá possuir forma artística, sendo simultaneamente obra de arte, assim
como uma obra de arte poderá possuir, por princípio, carácter teológico45. Necessária
será, contudo, uma concepção multidimensional de teologia, não só no que respeita ao
seu conteúdo – que se pauta pelo «pluralismo» de ideias, de pontos de partida e de

45  Na  história  da  teologia  e  da  arte  existem,  de  facto,  muitos  exemplos  de  obras  de  

teologia  que  são,  simultaneamente,  poesia  (como,  por  exemplo,  muitos  hinos),  assim  como  de  
muitas  obras  de  arte  explicitamente  teológicas  (como  a  música  religiosa  de  Bach,  assim  como  
muita  da  música  de  Olivier  Messiaen,  ou  mesmo  muitas  obras  da  pintura  moderna  e  
contemporânea,  etc.).  De  forma  implícita  e  vaga,  qualquer  obra  de  arte  autêntica  possui,  no  
fundo,  um  carácter  teológico  (Cf.:  G.  STEINER,  Von  realer  Gegenwart,  München  1990).  
destinatários, de que Rahner é um dos primeiros defensores – mas também quanto à
forma – pluralidade de discursos e de formas de articulação das obras teológicas.
Salvo raras excepções – como certas tentativas da chamada «teologia narrativa»46 –
continua a dominar a teologia de tipo científico, isto é, sistemático-argumentativo.
É evidente que uma teologia plural nunca poderia pôr de parte a teologia
argumentativa tradicional – indispensável para “dar razões da esperança”, no contexto
complexo do pensamento contemporâneo, respeitando o valor do “melhor argumento”
(J. Habermas) – mas apenas relativizar o seu absolutismo, abrindo espaço teológico a
outras vias de auto-articulação.
2. O segundo aspecto da presente crítica não poderá ser aqui analisado em toda
a sua vastidão, uma vez que nele é abordado um dos aspectos mais polémicos de toda
a teologia rahneriana – e, no fundo, de toda a filosofia contemporânea, que se define
por uma tentativa geral de superação do subjectivismo (ou até mesmo do próprio
sujeito). Limitar-me-ei, portanto, a alguns tópicos essenciais.
“O poeta diz aquilo que traz consigo. Ele diz-se, em verdade, a si mesmo. Até
mesmo essa dicção é, também, um pedaço daquilo que ele próprio é”47. De forma
explícita, Rahner pensa a arte (neste caso, a arte da palavra) a partir do artista, à
maneira da «estética da produção», que estende as suas raízes ao início da
modernidade, sobretudo ao processo de subjectivação da estética – e também do
próprio fenómeno artístico, distinto da estética – sob o impulso da terceira crítica
kantiana. Segundo tal tendência, toda a arte se baseia, originariamente, na actividade
criadora de um génio, no qual encontra a sua verdadeira origem, e o qual se exprime a
si mesmo, na arte. Se, em Kant, esse génio ainda assumia a tarefa de manter a ligação
a uma natureza que o transcende, é sobretudo a partir de Hegel que a natureza é
superada pelo espírito, sendo a arte manifestação sensível da verdade, que é esse
espírito na sua forma absoluta, enquanto sujeito, auto-consciência, razão e conceito.
A subjectivação do fenómeno artístico atingiu o seu auge com o romantismo,
em que o culto do génio se transformou numa espécie de histeria colectiva – ou então,
numa forma de religião. A reacção a esse culto caiu, com certa facilidade, no oposto,
ou seja, na dita «estética da recepção». Mas, uma vez que a actividade receptiva é
vista, ou como uma espécie de congenialidade em relação ao artista produtor, ou

46  Ver:  J.  DUQUE,  Dizer  Deus  na  pós-­‐modernidade,  cap.  VII.  


47  ST  III,  364.  
como uma criação original – também ela genial – do receptor, o novo modelo não
deixa de confirmar e aprofundar o subjectivismo da concepção estética.
Tal abordagem de matriz subjectivista da arte foi, várias vezes, posta em
causa, ao longo do século XX. Heidegger, por exemplo, tentou uma abordagem da
arte a partir da obra, propondo-se superar, assim, a estética tradicional48. Tal ponto de
partida encontrou apoio e eco em muitos trabalhos no campo da ciência da arte,
sobretudo na teoria da literatura, mas também na «iconologia» e até na musicologia.
Filosoficamente, a posição heideggeriana foi, sobretudo, continuada por Gadamer,
que critica explicitamente a posição kantiana – ou melhor, a utilização errónea de tal
posição, pela posterior filosofia da arte49. A arte não é, aí, concebida apenas como
uma actividade genial do ser humano nem como pura auto-expressão de um sujeito. A
obra afirma-se, pelo contrário, na sua fundamental e inabarcável alteridade, em
relação ao produtor como ao receptor, transcendendo constantemente todas as
tentativas de uma total apropriação.
Ora, tal alteridade poderá ser assumida como ponto de partida para
compreender a arte como lugar de abertura à transcendência fundante. Ela é um – não
o único – lugar privilegiado, no qual irrompe na história o mistério que a transcende,
o qual nunca poderá ser compreendido – no sentido de uma apreensão ou apropriação
total – mas apenas acolhido no espaço que lhe é aberto. Este mistério que sustenta,
abarca e envolve o próprio ser humano e o seu mundo, pode ser chamado «ser»
(Heidegger), «história / linguagem» (Gadamer) ou «Deus» (Rahner) – o que,
naturalmente, não é o mesmo, evidenciando-se, assim, os pressupostos claramente
teológicos de Rahner. Mas a sua diferença não pode significar separação ou
incompatibilidade. Na arte, podem encontrar-se o mistério do ser, o da história e da
linguagem, no mistério fundante do próprio Deus.
Desta forma, Rahner é novamente criticado, a partir de si próprio. Se apenas
tivermos em conta o desejo – o eros – e a actividade do espírito humano,
permaneceremos no âmbito imanente da antropologia (ela própria reduzida, dessa
forma, até na sua dimensão de desejo, como acima se viu). Mas se – como o próprio
Rahner – concebermos o ser humano como um ser que é, primordialmente possuído e
encontrado pelo Outro, então teremos que pensar de outra forma a arte e a própria

48  Ver,  acima,  o  respectivo  estudo.  


49  Cf.:  H.-­‐G.  GADAMER,  Wahrheit  und  Methode,  Gesammelte  Werke  1,  Tübingen  1986,  esp.  

48-­‐86.    
teologia, bem como a relação entre ambas. “Apesar de ser sujeito livre, o ser humano
experimenta-se como possuído, e isso num acto de possuir sobre o qual ele não pode
pôr e dispor”50.
Para além do conceito, a arte deverá ser, em todas as suas manifestações,
compreendida como um fenómeno, através do qual o ser humano experimenta, do
modo mais denso, a sua situação de ser possuído pelo mistério, ou seja, encontra-se
não tanto como um ser da procura, mas sobretudo como um ser do acolhimento. Ele é
encontrado, mais do que alguém que deseja encontrar. Ele é reposta, mais do que
questão. Não uma resposta que re-solve, dis-solvendo, a questão; mas res-posta51 que
se experimenta perante algo ou alguém que, simultaneamente, a transcende e a
interpela.
Desse modo, a arte poderá determinar a teologia de forma intrínseca – mas
também ser determinada pela teologia: no fim de contas, o seu mistério não reside em
si mesma, mas ultrapassa-a constantemente. Tanto a arte como a teologia repousam
no mistério fundante do Deus transcendente, do qual brotam e ao qual regressam. A
miséria de uma e de outra reside no eventual esquecimento dessa sua origem e desse
seu fim. A grandeza de ambas reside na sua dimensão escatológica.

50  K.  RAHNER,  Grundkurs  des  Glaubens,  52.  


51  No  sentido  que  a  palavra  alemã  Antwort  (resposta)  parece  evocar:  Ant-­‐  (perante)  e  

Wort  (palavra).  A  ela  está  ligada,  também,  a  palavra  Verantwortung  (responsabilidade).  

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