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coluna
Bianca Santana
Marcia Tiburi
Wilson Gomes
estante cult
Só a morte diz a verdade
Satanismo, santidade e política
Fevereiro, março. Quando Água Preta, Sumaré, Verde – córregos canalizados pelo
desenvolvimentismo tacanho – inundam as ruas Turiassú, Francisco Matarazzo, Aspicuelta. A
classe média dos bairros de Perdizes, Pompeia e Vila Madalena, a nata da zona oeste paulistana
esbraveja. Quem passa, sem dar atenção às placas de “cuidado, risco de alagamento”, pode
perder o carro, se machucar. Ou, em casos extremos, morrer afogado, como aconteceu com um
rapaz que ficou preso debaixo de um automóvel há cerca de dois anos. O Plano de Avenidas, de
Prestes Maia, definiu, no final dos anos 1930, as políticas públicas de expansão da cidade, que
passavam por canalizar e ratificar rios e córregos, priorizando os carros. Enchente e trânsito são
resultados dessas políticas. Não são acaso, nem naturais. E a culpa não é do PT.
A situação é muito pior na zona leste da cidade, onde pessoas mais pobres perdem suas casas
ou suas vidas em enchentes e desmoronamentos. Mas, como sempre, os exemplos de desgraça
estão atrelados aos mais pobres, a escolha aqui é partir da miséria dos ricos. Ou melhor, da classe
média a serviço do capital, que se sente rica. Para lembrar que, contra a força das águas – e da
racionalidade no planejamento de políticas públicas – não basta ter os privilégios de classe
média, e não há fé ou desenvolvimentismo que se sustente. Nem da prefeitura de São Paulo que,
de tempos em tempos, escava em vão um pouco mais para ampliar a capacidade de escoamento
das galerias. Nem do atual presidente eleito e seu ministério do agronegócio. Mais do que
defender essa ideia, inspirada pelo atual momento da esfera pública em que os argumentos
racionais estão em baixa, sigo a linha “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, e enumero
pedidos de milagres:
1. Nenhuma arma de fogo será utilizada contra o cidadão de bem, sua esposa ou filhos. Nem em
caso de a própria arma desse cidadão ser roubada, como aconteceu com Bolsonaro em 1995; nem
nos casos de violência doméstica quando, além de espancar, ele pode atirar; nem em acidentes
domésticos, afinal, crianças não terão a curiosidade nem a perspicácia de encontrar armas de
fogo guardadas em segurança;
2. Leiloar a Petrobrás e o pré-sal, repassando os lucros com o petróleo para empresas
internacionais, vai gerar divisas para o Brasil, em vez de perda econômica e poder político;
3. O veneno pulverizado nos vegetais consumidos pela maior parte da população não provocará
doenças, nem por sua ingestão nos alimentos nem pela água contaminada;
4. Crianças, sem o tema da sexualidade na escola, que permite aprender a reconhecer e se
proteger de eventuais abusos, estarão mais protegidas;
5. A escola, liberta da ideologia de esquerda, vai formar pessoas criativas e preparadas para lidar
com os desafios do futuro;
6. Sem qualquer regulação ambiental, casas de alto padrão construídas em encostas não vão
desmoronar, como acontece com casas de pessoas pobres;
7. A falta de água, constante nas periferias de São Paulo mesmo antes da chamada crise hídrica,
não vai atingir todos os territórios;
8. A ausência de vacinas, medicamentos e profissionais de saúde não vai aumentar a proliferação
de epidemias;
9. O aumento da pobreza não vai gerar mais violência;
10. O incentivo ao encarceramento vai diminuir, ao invés de aumentar, o tamanho e o poder de
organizações criminosas;
11. A diminuição do salário mínimo vai aumentar o poder de compra e aquecer a economia;
12. O monitoramento e a perseguição a organizações do terceiro setor e a movimentos sociais vai
fortalecer o debate público, a participação cidadã e, por consequência, a democracia;
13. Destituir pessoas de esquerda, petistas, comunistas de cargos públicos vai reafirmar, de uma
vez por todas, critérios técnicos para a eficiência da gestão pública;
14. Deixar de reconhecer territórios indígenas e quilombolas para repassá-los a fazendeiros,
grileiros, madeireiros, garimpeiros é necessário para que o uso das terras beneficie o coletivo, e
não grupos minoritários; e
15. Perseguir religiões não cristãs, apesar de o ensinamento bíblico de Cristo ser o oposto disso,
vai honrar valores cristãos e colocá-los acima de tudo.
Sem tais milagres, além dos mais pobres, a classe média também vai ser prejudicada pelo
atual governo. Mas, quem sabe, a fé em um discurso de “Deus acima de tudo” não seja suficiente
para operá-los. Mesmo que não seja, é possível se dar mal e seguir culpando o acaso, a natureza,
ou, genericamente, o governo, como faz a zona oeste paulistana no caso das enchentes. De
repente, ainda cola dizer que a culpa é do PT. Ou, por milagre, lançar mão da razão, lógica,
história, ciência, ancestralidade e até religião para encarar a realidade e se organizar contra a
barbárie.
E nós? Colunista, leitoras e leitores da CULT? Qual é o nosso papel nesse cenário de
barbárie? Passei alguns números da revista argumentando sobre a necessidade de nos
aquilombarmos. Ainda me parece urgente perseguir o ideário preto de sociedade comunitária e
estarmos entre os nossos, inventando outros modos de existência, buscando a vida fora do
dispositivo, tal como nomeado por Foucault. Mas, além do quilombo simbólico dos encontros
intelectuais e espirituais, não tenho experimentado rupturas, sigo no mesmo apartamento, com os
mesmos trabalhos, pagando as mesmas contas. A maior radicalidade revolucionária da minha
vida hoje é fazer a faxina e o almoço, mesmo com o privilégio de poder pagar alguém que
fizesse isso por mim, na tentativa de não reproduzir o padrão do país escravocrata, desigual e
machista. E sei que não basta. Assim como nossas denúncias, análises e desabafos também não
bastam, seja nas redes sociais, seja nas páginas da revista.
Repito para cada uma e cada um de nós a pergunta insinuada ao outro: quando vamos, de fato,
nos organizar contra a barbárie? Há, cada vez mais, pessoas morando nas ruas. A violência física
contra gays, lésbicas e trans só aumenta. Em abordagens policiais a meninos negros, as ameaças
vêm acompanhadas do nome do presidente da república, como validação. Organizações do
terceiro setor começam a ser monitoradas. Povos indígenas têm seus territórios tomados. E
vemos, a olhos nus, o cerco fechar. Espero que estejamos conspirando, em segredo, e nos
preparando para a ação.
coluna
O fracasso da argumentação
MARCIA TIBURI
Não faz muito tempo que a visão um tanto romanceada em torno do que os cangaceiros foram
e representaram, especialmente nas décadas de 1920 e 1930 – embora o termo e atuação de
grupos semelhantes pelo sertão nordestino brasileiro já tenham sido noticiados no século 19 –,
passou a ceder lugar para o que atestavam os registros e importantes livros sobre o período: o
caráter cruel de Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938), vulgo Lampião, e os atos aterrorizantes
que ele e seu grupo praticaram, como o assassinato e a tortura de famílias inteiras, o estupro e
sequestro de mulheres, destruição de propriedades e roubo do que achassem interessante, fosse
de pessoas abastadas ou pobres.
O rei do cangaço, como era chamado, tinha como companheira Maria Gomes de Oliveira
(1910-1938), a Maria de Déa, conhecida na posteridade pelo nome que virou título de uma
infinidade de coisas, de grife de moda a grupos de música e salões de beleza: Maria Bonita. E
ela, por sua vez, era e representava muito mais do que o posto redutível de esposa, o único com o
qual era mencionada pela imprensa e pensadores do período, envoltos pelo obscurantismo
machista de boa parte das décadas do século passado – e ainda presente, em certas escalas, nos
tempos atuais.
Sim, cabia a Maria Bonita satisfazer as vontades de Lampião e cumprir os afazeres do lar;
também consta que não participava dos combates. Mas o importante e desconhecido papel
histórico que ela e outras mulheres desempenharam no cangaço, assim como as mazelas que
viveram, precisavam ainda ser narrados.
Desse modo é que o recém-lançado Maria Bonita – Sexo, violência e mulheres no cangaço
(Editora Objetiva) preenche essa lacuna. Mais do que isso, o livro de estreia da jornalista Adriana
Negreiros oferece o que sempre foi silenciado: a narrativa do cangaço pelo ponto de vista das
mulheres.
Pode-se dizer que, tal como se construiu uma visão romanceada em torno dos homens no
cangaço, também se criou uma história distorcida da realidade dessas mulheres nos grupos,
apontando-as como feministas?
Sim, muitos ainda pensam em Maria Bonita e Dadá nesses termos. Na verdade, de feministas
elas não tinham nada, e considero que seria até exigir demais, cobrar demais delas uma postura
feminista, naquele lugar, naquela época. Maria Bonita, depois, virou uma espécie de ícone
feminista equivocadamente. Um dos aspectos centrais do feminismo é a sororidade, mas não
havia isso, as mulheres eram extremamente inimigas umas das outras, rivalizavam entre si,
disputavam poder. Dadá e Maria Bonita, por exemplo, se detestavam. Havia, ali, um código de
conduta extremamente machista, que estabelecia, dentre outros absurdos, pena de morte para as
adúlteras. Em vez de rebelar-se contra essa situação, Maria Bonita, por exemplo, defendia o
cumprimento rigoroso da pena em caso de “infração”. E há outro equívoco que se criou: o de que
as mulheres eram guerreiras, valentonas, que saíam atirando nos inimigos que encontravam pela
frente. Com raras exceções, as cangaceiras não sabiam atirar. Dedicavam-se às tarefas
domésticas, ainda que suas casas fossem errantes, e à satisfação sexual dos homens aos quais
pertenciam.
Você relata no livro que muitas mulheres entraram à força, depois de serem sequestradas,
e não raro eram vítimas de estupros e demais violências físicas por parte de seus
companheiros. Permanecer no bando era uma forma de garantir a própria sobrevivência?
Elas permaneciam no bando porque eram proibidas de sair. Se tentassem, podiam ser mortas,
como aconteceu com Rosinha. Nem todas entraram no bando à força. Já Dadá, embora tenha
sido sequestrada e violentamente estuprada por Corisco aos 12 anos, diria, depois, que o ódio
acabou se transformando em amor. Tenho a impressão de que transformar o pavor que sentia por
Corisco em alguma simpatia acabaria por se configurar em uma estratégia de sobrevivência.
Maria Bonita decidiu viver com Lampião por amor ou existia também um fascínio pelo
poder?
Acho que é difícil estabelecer onde termina o fascínio e onde começa o amor. Em um primeiro
instante, o que motivou Maria a seguir com Lampião foi o fascínio que ela tinha por sua figura
heroica, de valentão, de homem invencível. Dizia-se que Lampião tinha o corpo fechado, que
podia enfrentar tiros e tudo o mais, e não seria abatido. Obviamente que, ao longo da
convivência, esse fascínio, estou convencida disso, foi se transformando em um sentimento
verdadeiro de afeição, em uma relação carinhosa.
Lampião e Maria Bonita tiveram uma filha, Expedita, entregue por eles aos cuidados de
um vaqueiro e sua esposa, quando a filha tinha 21 dias de vida. Como a experiência da
maternidade se dava para essas cangaceiras?
Como não usavam métodos contraceptivos, elas engravidavam com frequência. Mas não podiam
criar seus filhos. Bebês não combinavam com a rotina do cangaço. Além dos cuidados que
exigiam, inviáveis com a rotina de fugas pelo sertão, ainda podiam atrair a polícia com o choro.
Assim, as mulheres eram obrigadas a abandonar seus bebês tão logo eles nasciam. Alguns eram
enviados para famílias da região – geralmente coiteiros, como se chamavam os proprietários
rurais que davam abrigo para os cangaceiros. Outros, com menos sorte, eram simplesmente
largados em meio à caatinga. A experiência da maternidade, para as cangaceiras, era opressora
do começo ao fim – na concepção (muitas vezes fruto de um estupro), na gestação (sem
cuidados, enfrentando fome, sede e fugindo da polícia), no parto (sem assistência, o que levou
algumas delas à morte) e no puerpério.
O presidente Getúlio Vargas insistia em não se ocupar com o cangaço por questões
políticas. Isso até que Luís Carlos Prestes e a Aliança Nacional Libertadora começam a ver
o bando como um grupo de camponeses revolucionários. Só então Getúlio começa a ficar
preocupado, porque surge a ideia de uma “ameaça vermelha”. Quais foram as
consequências?
Depois da Intentona Comunista, a repressão das Forças Federais fica bem mais severa, com
medo de que os cangaceiros fossem apropriados por uma luta da esquerda. Aquela situação
bárbara de cangaceiros esfolando pessoas vivas, arrancando a pele delas, cortando seus corpos,
colocando em postes para serem comidos por urubus, não combinava com a imagem de um
Brasil moderno que Getúlio sustentava.
Gostaria que você falasse sobre a relação, diacrônica, entre Lampião e seus sequazes e as
milícias de hoje no Brasil, notadamente as que vêm atuando de forma ostensiva no Rio de
Janeiro.
Claro que há as devidas diferenças, mas a gente consegue notar algumas semelhanças entre o
fenômeno do sertão do Nordeste dos anos 1930 e o fenômeno urbano do Rio de Janeiro
contemporâneo, em especial a relação corrupta que há entre os traficantes e as forças repressoras,
a polícia. No caso dos cangaceiros, eles compravam armas da polícia, algo muito parecido com o
que acontece hoje em dia. Os cangaceiros tinham essa dupla identidade, muitos os viam como
uma espécie de força que ocupava um vazio deixado pelo Estado, até em relação a fazer justiça
com as próprias mãos, algo semelhante ao que ocorre com traficantes e as milícias, e essa relação
com o poder também. A ideia do cangaceiro como um camponês revolucionário é bastante
ingênua porque, se Lampião passou 20 anos transitando impunemente pelo sertão, fazendo e
acontecendo, tocando o terror, foi por ser um homem bem articulado com a elite.
O que é o homem? Alguns afirmarão sem pestanejar que homem é aquele nascido com
cromossomos XY e que, em decorrência dessa condição biológica, deverá interessar-se por
mulheres, futebol, armas e, no limite, nutrir uma aversão declarada pela cor rosa. Outros dirão
que é uma simples construção social que nada tem de natural. Há ainda a tese de que se trata de
uma autoafirmação: homem é quem se diz homem, a despeito tanto de seu fenótipo quanto das
imposições da sociedade. Homem é, também, o principal beneficiário de uma cultura patriarcal
que violenta e mata mulheres, além de gozar de liberdades e benefícios que vão desde o direito à
cidade, ao corpo próprio, até a uma diferença salarial – presente em todos os cargos, níveis de
atuação e escolaridade –, que chega, no Brasil, a 53%.
Mas notemos que, ainda que sensivelmente diferentes entre si, as respostas possíveis a essa
pergunta quase sempre se conjugam num imperativo determinado. Ou melhor, são escutadas e
interpretadas pelos homens a partir de uma lógica de “dever ser”. Desde as mais conservadoras
representações que ensinam a meninos que homem é quem bate, oprime e silencia o outro, até
aquelas segundo as quais é o dever de todo homem desconstruir-se, reconhecer e abrir mão de
sua miríade de privilégios, parece que estamos frente a uma pluralidade de ideais que acabam por
se reduzir a uma gramática rígida de injunções. Homem é aquele que tem que ser. Mas ser o quê?
Muito se fala atualmente em políticas identitárias. Grosso modo, trata-se de demandas,
discursos e propostas que teriam seu foco na afirmação das identidades de grupos que sofrem
processos de subalternização, como negros, LGBTs e mulheres. Tais políticas são
frequentemente acusadas de deixarem de lado pautas mais universais e amplas, que defenderiam
a todos e não apenas a grupos específicos. Haveria aí, portanto, uma oposição entre um universal
humano genérico e um conjunto de identidades marcadas por traços particulares. Tal
compreensão ignora, no entanto, um pequeno-grande detalhe: o homem (presumivelmente
branco, heterossexual e urbano) é, ao mesmo tempo, o horizonte dessa universalidade
supostamente impessoal e uma identidade em si, como as outras. Esse curto-circuito se
exemplifica no próprio título do documento que marca a chegada à modernidade republicana
representada pela Revolução Francesa, a Declaração dos direitos do homem e do cidadão. O
homem é, assim, a medida fixa do humano e qualquer coisa que escape a essa régua torna-se
uma identidade, um caso especial que diverge da regra e até mesmo uma costela, para os mais
beatos.
Voltemo-nos então à identidade masculina. Como exatamente ela se constitui, tendo como
tarefa tanto a correspondência ao universal quanto a injunção, tantas vezes ouvida por meninos
em tom ameaçador, “seja homem!”?
Para compreender as forças em jogo na construção das masculinidades é preciso não só conhecer
seus determinantes históricos e conceituais, mas verificar como elas efetivamente se aplicam e
qual a extensão de seus efeitos.
Tomemos como caso paradigmático o prometido decreto sobre a flexibilização na posse de
armas de fogo, assinado no mês passado. A princípio, trata-se do cumprimento de uma promessa
de campanha de Bolsonaro que teria como objetivo armar o dito “cidadão de bem” e, assim,
diminuir a violência no país, a despeito da esmagadora maioria dos estudos que comprovam que
o impacto sobre a segurança pública é negativo, ocasionando muito mais mortes por arma de
fogo do que inibindo a criminalidade.
Mas supor que o decreto, suas raízes e consequências se explicam apenas por uma promessa
de diminuição de violência seria equivocado. Para além da pirotecnia da medida, é importante
lembrar que a liberação da posse de armas tem forte e incontornável componente de gênero.
Em primeiro lugar, seu público-alvo são homens. Homens violentos, homens amedrontados,
homens frágeis, homens curiosos e homens que ostentam terão, agora, no fetiche da bala, uma
ilusão de solução de seus problemas, reais e imaginados. Esse é o que pode ser chamado de
“apelo semântico” da medida. Está em jogo fornecer uma significação, uma identidade para
vivências que – tanto em decorrência das conquistas da luta feminista, quanto do real aumento da
violência no Brasil e de seu alardeamento sensacionalista – se sentem fraturadas e se imaginam
encurraladas, perseguidas. A arma é vendida aqui, no fundo, como uma promessa de restituição
de sentido, um retorno à virilidade perdida.
Mas o decreto não apenas libera a posse àqueles que nutrem uma nostalgia de uma identidade
e segurança, e que aguardavam há tempos sua liberação. Mais grave do que isso é o discurso que
roteiriza e gera masculinidades que se meçam pelo padrão bala. Eis sua dimensão performativa.
Em outras palavras, está em curso uma linha de montagem não só de pistolas e projéteis, mas de
subjetividades que terão esse horizonte como ideal. Ao colocar holofotes na cena de assinatura
do decreto, chegando inclusive a produzir uma peça publicitária que chancela e defende o ato, o
governo está investindo pesadamente na produção de masculinidades marcadas por esse modelo,
que tem como alvo crianças, adolescentes, jovens e até mesmo adultos ainda em busca de um
ideal de homem para se ancorar.
Além disso, o decreto liberou, em toda a extensão do território nacional, a posse e não o porte
de armas, ou seja, em teoria as armas só poderiam ficar no trabalho ou em casa. Na prática, isso
significa que, num país com índices alarmantes de violência contra a mulher, teremos, a partir de
agora, homens incentivados a ter uma arma dentro de casa. É fácil imaginar para aonde vão
caminhar as “discussões” de casais Brasil afora. Essa é a dimensão estritamente patriarcal e
patrimonialista do problema, na medida em que articula duas das faces mais cruas do
patriarcado: a objetificação da mulher, tratada como uma propriedade sem voz, e a abjeção, que
faz de seu corpo um corpo matável.
No entanto, considerando tanto a ignorância quanto o desprezo pelas leis, é claro que essas
armas circularão. De um lado, teremos não apenas o feminicídio e a violência domésticos, mas
um componente adicional nos casos de estupro que, como sabemos, são cometidos também pelos
“cidadãos de bem”, e que terão agora um último recurso para não aceitar que não é não. De
outro, temos a incitação de violência não só contra a mulher, mas entre homens. Não é preciso
ter uma bola de cristal para saber o que serão as baladas, as brigas de trânsito e os
desentendimentos entre vizinhos sob o manto desse chamado às armas. E, claro, esses impactos
serão sentidos sobretudo na população preta, pobre e periférica. Essa é a “espessura edípica” da
questão, que articula, pela suspensão da proibição, tanto a esfera sexual quanto aquela da
violência: não nos esqueçamos que Édipo só rompe com a proibição do incesto porque matou
seu pai, surpresa, numa briga de trânsito num cruzamento a caminho de Tebas.
Por fim, há ainda um último elemento que torna o cenário ainda mais problemático: o
consumidor da arma de fogo não necessariamente é seu usuário final. Estamos falando aqui dos
suicídios que encontram na posse de armas uma ocasião privilegiada de passagem ao ato. A
cultura das armas (cultura entendida aqui não só em seu sentido de culto, mas também em sua
acepção bacteriológica) forma um ambiente ideal para a proliferação do caráter quase epidêmico
de suicídios em alguns grupos. Estudos feitos pela Universidade de Pittsburgh mostram que o
risco de suicídio em adolescentes é 30 vezes maior quando os pais possuem arma em casa. No
Brasil, em apenas 5 anos a taxa de suicídios na população negra aumentou 55,4 % em relação
aos demais grupos étnico-raciais. Entre mulheres, o aumento no número de suicídios já é duas
vezes mais rápido do que em relação aos homens. Há aí, portanto, um insidioso meio de
extermínio de grupos minorizados, nos quais a sombra de sua dominação recai sobre o/a próprio
assujeitado/a. Eis o caráter melancólico da questão.
O que esse decreto tem em seu horizonte não é, portanto, a diminuição da violência, mas
aumentar ainda mais o poder de homens privilegiados. Nesse sentido, o decreto assinado é
menos uma política pública de segurança e mais um capítulo das políticas de gênero e de
aumento das desigualdades que se anunciam.
Revisitando Adão e Eva
SUSANA MUSZKAT
A discussão sobre o masculino e suas vicissitudes não nos parece algo muito frequente, como se
sobre o ser homem não pairassem dúvidas ou coubesse qualquer indagação.
Nesse raciocínio, o homem e o masculino aparecem como mitos, no sentido barthesiano do
termo: narrativas que, naturalizadas, convertem-se em verdades últimas, materializadas a seguir
em imagens marcadas pela tautologia, como o sedutor do cinema hollywoodiano, o bom
malandro ou o cowboy solitário. Imagens que mostrariam o homem como ele é, sem contudo
nunca reduzi-lo a objeto. Imagens diante das quais, em geral, não temos muito a fazer senão
aceitá-las.
Por outro lado, na contracorrente da natureza mitológica do ser homem, nos acostumamos
recentemente a dizer que o masculino está em crise, ou pior, falamos agora não mais do
masculino, mas em masculinidades, todas elas marcadas por certa indefinição ou instabilidade.
Numa leitura usual, tal crise do masculino se articula a mudanças no lugar e nos papéis
ocupados pela mulher na sociedade. Mudaram as mulheres, e agora os homens já não sabem
quem são ou o que devem fazer.
A socióloga Eva Illouz, ao discutir o lugar privilegiado dos afetos no capitalismo
contemporâneo, também nos diz que alguns fatos marcantes do século 20, como a difusão da
psicanálise e das psicoterapias e a entrada dos psicólogos nas fábricas a partir dos trabalhos de
Elton Mayo ainda na primeira metade do século passado, junto com o movimento feminista e,
por fim, o desenvolvimento das literaturas de autoajuda contribuíram para uma espécie de
feminização das relações sociais e do ambiente de trabalho, com a valorização de atributos
normalmente associados ao feminino, como a empatia, a franqueza e a livre expressão e
discussão dos sentimentos, os quais vieram substituir valores ditos masculinos, como a
disciplina, o recolhimento afetivo e o pragmatismo.
Nesse contexto, a suposta crise das masculinidades nada mais seria que o reflexo de tal
contaminação do social e, em particular, do ambiente de trabalho por valores fundamentalmente
femininos. Aqueles mesmos que, em um livro clássico da autoajuda, servem para nos mostrar
que as mulheres vieram de Vênus e os homens são marcianos.
Talvez seja possível, no entanto, considerar também a suposta crise da masculinidade e
eventuais potências que tal crise torna possíveis a partir das transformações enfrentadas não pelas
mulheres ou por causa delas, mas por uma outra figura negativa do masculino, esse outro do
homem se vocês quiserem, que é o homossexual masculino, o gay, a bicha, o viado.
Meu ponto de partida é a suposição de que a dificuldade em falar de masculinidade, ou
melhor, de sentir-se e posicionar-se como homem, vem exatamente do fato de que, no universo
das identidades, a masculina nos pareceu por muito tempo a mais sólida, aquela na qual o projeto
identitário se revelou mais completo.
Naturalizada, tomada como verdade em si, a imagem do homem nos parecia então algo uno,
permanente, íntegro, único. Diante dessa imagem, a figura do homossexual masculino foi sendo
construída como seu negativo, num processo marcado pela sua apropriação pela medicina e por
sua localização estratégica na construção daquilo que Michel Foucault descreveu como
dispositivo de sexualidade: uma forma de relação consigo mesmo e com o corpo próprio
marcada pelo estabelecimento de uma ligação direta e absoluta entre sujeito, sexo e verdade.
Nesse quadro, o homossexual se viu definido pelo seu desejo por outro homem, desejo que o
esvaziaria de sua masculinidade e o colocaria em confronto com sua própria natureza.
Assim, a figura do homossexual demarcou historicamente para o homem algo fundamental a
qualquer identidade: seu campo de exclusão, o limite para toda e qualquer identificação possível.
Ou seja, para corresponder a essa imagem natural do homem, era preciso escapar a qualquer
traço, ao menor vestígio dessa outra figura, pertencente não ao mundo da natureza, mas
percebida como sua adulteração, sua perversão.
Nesse percurso, dois movimentos curiosos se fizeram presentes: por um lado, essa imagem
negativa do masculino, instituída como perversão da natureza, vinculou-se ao abjeto, fazendo
com que aqueles a ela identificados se tornassem alvo preferencial da injúria. Por outro lado, o
desejo homossexual, que representava a verdade íntima a manifestar-se exteriormente naquela
imagem, tornou-se uma sombra que ocupava insidiosamente o homem verdadeiro, heterossexual
– e também branco e, preferencialmente, europeu –, ainda que tal sombra, paradoxalmente,
pudesse desempenhar também um papel positivo, enquanto sustentáculo imaginário do afeto e da
solidariedade entre os homens.
Pensemos, por exemplo, ao ler a obra de Freud, no papel da libido homossexual sublimada
enquanto base das amizades e das associações entre homens, fundamentais ao progresso
civilizatório, e que marcam tal progresso precisamente com aqueles valores incorporados à
imagem naturalizada do homem moderno: a força, o pragmatismo, a racionalidade, a resistência
frente às paixões e afetos, a capacidade e o ímpeto de subjugar e transformar a natureza, o mundo
à sua volta e os seres naturalmente inferiores, como as mulheres e os povos ditos primitivos.
De todo modo, o limite deveria ser claro, ainda que precisasse ser definido e sustentado
continuamente, requerendo para isso a vigilância permanente, tanto das instâncias de controle e
agentes da disciplina, como educadores e médicos, quanto do próprio sujeito, sempre atento ao
menor vacilo ou sinal de afeição que pudesse ultrapassar os delicados limites do amor fraterno.
Mas se esse era o quadro clássico, no qual as fronteiras entre homens e gays pretendiam-se
claras e as amizades masculinas estavam acima de qualquer suspeita, algo diferente deve se
passar hoje, quando o homossexual não é mais o mesmo e sua imagem se transformou,
perturbando mais uma vez, para o bem e para o mal, o sistema de reconhecimento baseado na
diferença sexual, e ancorado imaginariamente nessa figura absoluta e natural do homem.
Essa transformação corresponde à crescente aceitação dos homossexuais no convívio social,
sua revalorização e a consequente perda do seu caráter transgressivo e de abjeção, o que justifica
descrever tal processo como normalização da homossexualidade, até mesmo em duplo sentido:
os homossexuais se aproximam da norma e tornam-se também normais, banais.
Assim, o homem gay desse princípio do século 21, ao menos na imagem hegemônica que
frequenta nossas mentes e, sobretudo, as engrenagens da indústria cultural, já não será um
pecador lascivo, mas sim um bom pai de família e, quem sabe, até mesmo um empreendedor de
sucesso. Ele terá aspecto viril, muitos músculos e dificilmente usará em seu vestuário antigas
marcas do feminino. Com isso, perdem nitidez as fronteiras identitárias entre o Homem e seu
Outro.
A normalização das homossexualidades, com seus efeitos particulares sobre essa
contraimagem do Homem que é o gay, contribuiu de modo decisivo para reduzir, agora
utilizando os termos de Paul B. Preciado, a masculinidade, de natureza absoluta, a uma “ficção
somática” como outra qualquer. Nessa direção, convém lembrar que, ainda seguindo o raciocínio
de Preciado, essa virilidade é construída em academias e alimentada por esteroides,
anabolizantes, termogênicos etc. Ou seja, nada tem de natural, e testemunha, tanto quanto as
experiências transidentitárias mais recentes, nossa inscrição no registro da biopolítica e do
farmacopoder.
Com a normalização do homossexual, ao perder seu Outro, ao ver borradas suas fronteiras, a
identidade masculina perde a integridade que lhe garantia a ilusão de natureza, e revela-se mais
uma ficção, uma construção histórica. Mas talvez isso não se refira exclusivamente aos homens,
e o que tenhamos em vista agora seja na verdade não a decadência do homem, mas o colapso das
identidades, sobretudo aquelas construídas em articulação com o que o filósofo francês
denominou dispositivo de sexualidade.
Assim, a suposta crise da identidade masculina poderá ser referida não apenas à nossa
dificuldade em lidar com uma ideia de homem que se afasta da natureza e perde suas fronteiras
nítidas, mas ao colapso da própria lógica identitária, representada paradoxalmente pelo modo
como as identidades e suas fronteiras se multiplicam continuamente e, assim, tornam-se
inevitavelmente instáveis e incapazes de oferecer a segurança ontológica que nos prometiam, ou
seja, a certeza de ser quem somos e de nos distinguirmos com clareza de quem e do que não
podemos ser.
A normalização da vida gay parece, desse modo, apontar não apenas para a desestabilização
do mito masculino, mas para o paradoxal esgotamento do pensamento identitário enquanto forma
hegemônica de enunciação de si e posicionamento no mundo, da qual a identidade de homem
era, sem dúvida, o modelo privilegiado.
A partir daí, trata-se de pensar nos efeitos de tal colapso do qual a crise nas masculinidades se
apresenta como sintoma privilegiado, e também em como podemos reagir diante de tais efeitos.
Para muitos, como a nossa nova ministra dos direitos humanos, a saída parece estar
simplesmente no reinvestimento das velhas identidades e no fortalecimento das fronteiras entre
elas, mesmo que para isso seja preciso apostar na lógica infantil de um mundo todo em azul para
os meninos marcianos em paralelo a um universo em cor-de-rosa para as meninas vindas de
Vênus.
Para outros, no entanto, a desestabilização das identidades, e seu esgotamento ético, estético e
político, pode apontar muito simplesmente para a necessidade urgente de imaginar e fazer operar
outras formas de reconhecimento, de enunciação de si e de posicionamento no mundo para além
das fronteiras identitárias. O que nos permitirá, por conseguinte, imaginar outras formas de ser
homem, outros papéis a desempenhar e – por que não? – novos modos de vivermos as relações
entre nós, nossos corpos e os eventuais prazeres e afetos que ali podem se fazer presentes.
O negro, o drama e as tramas da masculinidade no
Brasil
DEIVISON FAUSTINO
O ano era 2012. Fazia alguns anos que eu próprio me afirmara como um homem trans e,
aproximadamente há três anos, tinha começado a ganhar visibilidade no país a possibilidade de
uma pessoa ser assignada no nascimento como do sexo feminino e, em algum momento da vida,
recusar essa assignação, afirmando-se como homem.
Duas pesquisadoras fundamentais dos estudos de gênero, Berenice Bento e Larissa Pelúcio,
organizavam um dossiê para a revista Estudos Feministas do IFCH/Unicamp sobre
transexualidade, e me convidaram para ser um dos autores. Aceitei, e o artigo ganhou o nome de
“Homens trans: novos matizes na aquarela das masculinidades?”. A construção interrogativa do
título não era mera provocação. Ele retratava o contexto brumoso da própria escrita, onde cores e
matizes não eram nítidos.
Três anos antes, os homens trans do país estavam na casa das dezenas e, mesmo em 2012, nós
ainda conhecíamos quem era quem em cada estado da federação. Se, por um lado, nos
conhecíamos, por outro, desconhecíamos como seria quando a transexualidade masculina se
tornasse um fenômeno de massa, o que efetivamente aconteceu, sobretudo a partir da segunda
metade da década de 2010.
De todas as questões que passaram pela minha cabeça ao escrever o artigo em 2012, a que
mais me inquietava, epistemológica e pessoalmente, era como aqueles novos homens
performariam masculinidades. As transmasculinidades seriam réplicas passivas de modelos pré-
existentes? Fariam esforços extraordinários para se adequarem aos requisitos das masculinidades
hegemônicas? Como trafegariam nas relações de gênero em seu cotidiano familiar, sua rede de
amigos, suas relações afetivo-sexuais, seus espaços de trabalho e produção cultural?
Algumas pesquisas acadêmicas já foram felizmente produzidas, em contextos específicos,
sobre homens trans, e trazem contribuições para o conhecimento dessas masculinidades, mas
algumas dessas perguntas, e outras mais, permanecem ainda hoje sem respostas conclusivas.
Isso acontece porque, na última década, a aquarela das transmasculinidades se complexificou
muito, não só pela entrada numérica de muitos novos sujeitos, mas pelo conjunto de novas
questões trazidas por eles. Hoje, a metáfora da aquarela com novos matizes para olhar as
transmasculinidades me parece insuficiente. Trago também a da Caixa de Pandora, um artefato
da mitologia grega vinculado à criação da primeira mulher por Zeus: Pandora. Ela seria a
primeira mulher enviada do Olimpo à Terra para viver com os homens, e Zeus a presenteia com
a caixa, que não deveria ser aberta por conter todas as desgraças do mundo: guerra, discórdia,
ódio, inveja, doenças e, também, a esperança. Pandora, previsivelmente, não resiste à curiosidade
e deixa escapar na terra todo o resto, menos a esperança. Nos últimos anos, as
transmasculinidades vazaram da Caixa de Pandora em abundância, e dialogaram ativamente com
o conjunto das masculinidades disponíveis nas relações sociais para todos os homens.
Acompanhando como sujeito histórico e como pesquisador/ativista a cena pública dos
homens trans e observando as masculinidades ao longo desses anos, desconstruí algumas
percepções e construí novas, também a serem revisitadas. A primeira delas era um aforismo
muito difundido, sobretudo nos espaços das lutas sociais, de que pessoas trans e, neste caso
específico, homens trans, construiriam suas identidades necessariamente em oposição ao
binarismo de gênero. Parece óbvio que a existência mesma de pessoas trans colida com a lógica
binária que, em grande medida, fundamenta-se na biologia para justificar as diferenças entre
homens e mulheres. Todavia, embora as pessoas trans possam infringir potentes ranhuras ao
essencialismo biológico, não há nenhuma exigência mecânica de que pessoas trans tenham que
romper em suas trajetórias individuais com uma compreensão binária das relações de gênero.
O que observei é que, embora alguns homens trans possam ser reconhecidos por um ponto de
vista feminista por questionarem a assimetria de direitos entre homens e mulheres, por se oporem
à violência contra as mulheres, por assumirem posturas cooperativas no espaço doméstico, por
recusarem piadas sexistas, entre outros elementos, essa não é a postura de uma parte dos homens
trans. Para esses, a transição de gênero constitui a possibilidade de alcance de pelo menos alguns
dos privilégios aquinhoados pelas masculinidades hegemônicas: mais oportunidades de trabalho,
melhor renda, menor participação em atividades domésticas, maior liberdade sexual, maior
possibilidade do uso da força física e até dos recursos da violência. Nessa lógica, não tem sentido
o questionamento à privação das mulheres das mesmas prerrogativas. A despeito da crítica
inerente a essa descrição de posicionamentos, precisamos nos perguntar: por que seria diferente?
Por que há ampla autorização social para que homens cisgêneros tenham esse último
posicionamento, e deveria nos indignar que homens trans também o tivessem? Não seria
igualmente opressivo exigir que, por terem experienciado a condição feminina, tais sujeitos
necessariamente ou naturalmente teriam que desenvolver empatia com as causas feministas? É
possível dizer que o desejo de aceitação social em grupos masculinos, onde a preocupação com
as causas feministas passa a quilômetros, pode cooperar para uma adesão à masculinidade em
seus termos hegemônicos. Dessa maneira, passei a ter menos estranhamento e mais compreensão
quando observei homens trans explorando economicamente mulheres (fossem essas suas
parceiras sexuais, mães ou com outra vinculação), coautores de violência doméstica, ou
intimidando, por meio de performances violentas, principalmente os indivíduos não binários que
performam masculinidades mais fluídas em espaços políticos, por exemplo. Em outras palavras,
a construção de masculinidades críticas ao binarismo não é uma consequência inequívoca da
transição de gênero, mas produto direto da educação ético-política dos sujeitos.
Em direção semelhante, observei muitas vezes a referência aos homens trans como portadores
de uma “masculinidade doce”, necessariamente mais empática e sensível, como consequência
direta da sua prévia socialização de gênero. Para admitir que essa é uma característica de todos
os homens trans, teríamos que admitir, entretanto, que as relações de gênero atuam de forma
homogênea e produzem efeitos idênticos sobre todos os indivíduos, o que não é verdade.
Também teríamos que admitir que todas as mulheres cisgêneras devam ser percebidas como
“doces”, o que é outro sofisma. É possível que alguns homens trans correspondam a esse padrão,
mas é comum que outros tantos não correspondam ou o façam parcialmente. É cada vez mais
comum observar a existência de homens trans atuando em profissões como as forças armadas,
onde há legitimidade pública do uso da força e repressão, na masculinidade vigente nessas
instituições, a comportamentos empáticos, suaves ou hipersensíveis. Recentemente, estive na
banca de avaliação da tese de Rafaela Freitas da Psicologia Social da UFMG, que estudou a
existência de homens trans atuantes no Corpo de Bombeiros, Polícia e Guarda Municipal que,
em sua maioria, performam hipervirilização.
Transmasculinidades são efeito de bricolagem, criações produzidas na interseção de
necessidades induzidas por marcadores sociais de diferenças tão diversos quanto a classe social e
as necessidades econômicas, o contexto geográfico, o pertencimento étnico-racial, a geração e
outros tantos, como já dissemos. Não são meras criações individuais. Ao contrário, sua
complexificação, nos últimos tempos, vem sendo tributária de fenômenos variados, que
envolvem o uso das mídias e redes sociais, o acesso a biotecnologias e aos sistemas de
saúde/políticas sociais, a relação com os feminismos revitalizados nas grandes cidades
brasileiras, bem como com a existência, mínima que seja, de uma esfera pública de direitos no
país e do direito de reclamar direitos.
A transexualidade masculina, na última década, atuou como uma estufa de possibilidades no
cenário brasileiro. Naquele cenário foi possível ver emergir sujeitos que reivindicam
masculinidade sem desejar ser reconhecidos como homens. Foi possível também ver homens
trans não binários, homens trans orgulhosamente portadores de uma vulva refutando o paradigma
psiquiátrico da aversão à própria genitália, homens trans grávidos sem abrirem mão da afirmação
da paternagem, homens trans aderindo à contemporânea formulação de uma paternidade
próxima, afetiva e cuidadora, homens trans feministas, homens trans que se afirmam gays ou
bissexuais, homens trans trabalhadores sexuais, homens trans se relacionando afetiva e/ou
sexualmente com mulheres trans e travestis, assim como homens trans heteronormativos. Todas
essas características contribuem para uma miríade de possibilidades no que se refere às
transmasculinidades.
A despeito da diversidade inerente às transmasculinidades, homens trans incomodam. Eles o
fazem ao evidenciarem que o masculino não é presente dos deuses, grande prêmio da loteria
genética, nem exclusivo produto da “testosterona rex”, como ironiza a pesquisadora americana
Cordelia Fine. A cada vez que um homem trans diz “eu sou homem”, joga luz na dimensão
burlesca, sobretudo no que o pensamento conservador considera natural e fundamento do imenso
poder investido na categoria homem.
A Caixa de Pandora está entreaberta apenas. Descobrir-se homem trans num contexto de
recrudescimento do conservadorismo da sociedade e do Estado brasileiros será, assim, um
desafio que irá afetar a possibilidade de construção das transmasculinidades nos próximos anos.
estante cult
Só a morte diz a verdade
DANIEL DE MESQUITA BENEVIDES
Em 1954, o físico e matemático chileno Nicanor Parra (1914-2018) promoveu, com um livro
pequeno mas explosivo, uma Revolução Francesa particular e mandou todos os poetas anteriores
a uma guilhotina conceitual. À frente de seus condenados, estava a trinca sagrada do país andino
Pablo Neruda, Vicente Huidobro e Pablo de Rokha, além da matriarca Gabriela Mistral. A nata
da antiga vanguarda, que fazia uma “poesia de óculos escuros e chapéus de aba larga”.
“Segundo os doutores da lei este livro não deveria ser publicado / (...) /E eu decidi declarar
guerra aos cavalieri de la luna”
“Durante meio século / A poesia foi / O paraíso do bobo solene / Até que cheguei eu / E me
instalei com minha montanha-russa”
Com tudo isso, e com todos os prêmios que recebeu (entre eles o Nacional de Literatura em
1969, o Reina Sofia em 2001, e o Cervantes, em 2011, além de ser indicado ao Nobel algumas
vezes), é de se estranhar que só agora haja uma edição brasileira à sua altura, trabalho louvável
dos tradutores Joana Barossi e Cide Piquet. Só para maiores de cem anos é a melhor introdução
possível a essa obra de fato única, um mistério à luz do sol, louvada por Harold Bloom, Roberto
Bolaño, Ricardo Piglia, Allen Ginsberg, William Carlos Williams, Lawrence Ferlinguetti (esses
três o traduziram para o inglês) e os próprios Neruda e Mistral, entre tantos outros que ele instava
a “descerem do Olimpo”.
Esta coletânea reúne vários poemas do livro citado – seu segundo (o primeiro, Cancioneiro
sem nome, de 1937, uma tentativa de emular Garcia Lorca, ele renegava) – e de outros que
preencheram uma surpreendente carreira de 75 anos em 103 de vida! É evidente que qualquer
coisa que se diga, tem de passar pela ideia de antipoesia. Muitas vezes falando diretamente ao
leitor, como no famoso verso de Baudelaire, ele a menciona, de diversas formas, com um
discurso direto, aparentemente simples, mas com vários momentos de contradição explícita e
humor autoderrisório, além do sarcasmo seco e inteligentemente afiado contra seus “pais”, contra
a ideia burguesa de poesia, escapista, lírica, “nas nuvens”.
“Eu não aceito que ninguém me diga / Que não compreende os antipoemas / Todos devem
rir às gargalhadas.”
Oito anos antes desses “versos de salão”, já havia advertido ao leitor, com a saudável
arrogância de quem realmente não deve nada a ninguém:
“O autor não responde pelos incômodos que seus escritos possam provocar: / Ainda que lhe
doa / O leitor terá que se dar sempre por satisfeito.”
Como ele mesmo diz, “não vê nenhum inconveniente em se meter numa boa enrascada”. E
foram muitas. Se a primeira edição de Poemas e antipoemas se esgotou em uma semana e
recebeu críticas favoráveis mesmo dentre aqueles contra quem o livro se revoltava (para Neruda,
“Entre todos os poetas da América do Sul, poetas extremamente terrestres, a poesia de Nicanor
Parra se destaca por sua folhagem singular e suas raízes fortes”), houve quem o rebaixasse, como
de Rokha, que o chamou de “uma mancha no sapato de Vallejo”, ou, mais compreensivelmente,
como o padre Salvatierra: “é tanto lixo, que nem dá para dizer que é imoral”. Mais adiante, no
entanto, o onipresente Bolaño se tornaria seu paladino fiel: “Quem for valente, que siga Parra”,
desafiou. No livro Entre paréntesis, ensaia a descrição de um poema, mas que vale para toda a
poesia do mestre: “É como uma bomba prestes a explodir para que nós, chilenos, abramos os
olhos e deixemos de bobagens, é uma poesia que indaga em quarta dimensão, tal como queria
Huidobro, mas em uma quarta dimensão da consciência cidadã, e ainda que à primeira vista
pareça uma piada, e muita vezes é mesmo uma piada, um segundo olhar nos revela que é uma
declaração de direitos humanos. É uma poesia que, ao menos aos compungidos e atarefados
chilenos, nos diz a verdade (...)”.
Parra, diga-se, não o escreveu de forma programática (o próprio “Manifesto” da antipoesia
surgiria apenas em 1963). Na verdade, juntou poemas que vinha anotando desde 1938 aos mais
recentes antipoemas, nome que surgiu por acaso, ao ver o livro de um poeta francês, Henri
Pichette, chamado Apoèmes. Como ele mesmo já declarou numa conversa (detesta entrevistas!),
o livro que o tornou famoso é dividido em três partes: uma com poemas neorromânticos e pós-
modernos, a segunda com poemas expressionistas – na qual se destacam os tão citados
“Autorretrato” e “Epitáfio” – e por fim sua marca “anti”:
“a palavra arco-íris não aparece em nenhuma parte / Ainda menos a palavra dor, / A
palavra torcuato. / Já cadeiras e mesas aparecem a granel, / Ataúdes!, apetrechos de
escritório! / O que me enche de orgulho / Porque, a meu ver, o céu está caindo aos
pedaços.”
Por outro lado, suas enrascadas com a esquerda e a direita até hoje são motivo de
controvérsia. Irmão da cantora e compositora ícone do Chile, militante ardente pelas causas
populares, Violeta Parra (1917-1967), a quem adorava, Nicanor, o mais velho de oito filhos de
um professor primário e músico e uma costureira – e o único a terminar os estudos –, sempre fez
questão de manter-se livre de amarras ideológicas e partidárias, ainda que nunca tenha saído do
campo humanista, ou do que poderia se chamar de esquerda humanista (defendia especialmente
os índios, “os filhos da terra”. Aos 96 anos, chegou a fazer greve de fome em apoio à causa dos
mapuches). Nos anos 1980 e 90, embarcou na causa ecológica – não à toa, as árvores abundam
em seus versos, estejam frondosas ou secas pela ação do outono. Antes, curiosamente, editou, em
1965, uma antologia de poesia soviética.
Mas em 1970, no auge da Guerra Fria, comunistas e socialistas mais ferrenhos e rígidos,
torceram o nariz para uma foto casual de Parra cumprimentando a primeira dama norte-
americana Pat Nixon. A imagem, que depois revelou-se um malentendido (Parra estava ali meio
de gaiato, num encontro de escritores), valeu-lhe a expulsão do júri do prêmio cubano Casa de
Las Americas. Sua oposição à ditadura de Pinochet (1973-1990) também foi considerada pouco
enfática. Ele recusou um cargo do governo, mas, crime dos crimes, continuou a lecionar na
Universidade do Chile. Os mais dogmáticos talvez não tenham considerado que seu
departamento de estudos humanísticos da faculdade de matemática era um espaço livre de
resistência intelectual, que contava com nomes como o poeta Enrique Lihn e a escritora Diamela
Eltit; tampouco consideraram que muitos dos poemas que publicou nesse período eram críticos
aos regime militar. No fim das contas, como as fake news de hoje, a malfadada foto falou mais
alto. Sua resposta, tipicamente desafiadora, já tinha sido dada:
E os rompeu, de fato. De uma forma tão acachapante, que se fala em antes e depois dos
antipoemas de Parra. O próprio Neruda seguiu por esse caminho, numa obra que lançou também
em 1954, Odes elementares. Como se tivesse concordado com o pedido de Parra, desceu das
alturas e tornou-se o “homem invisível das ruas”. A diferença, claro, continuava grande. Neruda
agora ria-se dos outros, os poetas que, como ele antes, viviam olhando para o céu e não para as
coisas da vida real, mas continuava sua carreira de oráculo, sempre no centro do mundo literário.
Parra ria-se não apenas dos outros mas de si mesmo, para não dizer da própria antipoesia. Era
rabugento, arredio, publicava menos, desconfiava da glória. Costumava mandar seus filhos e
netos para receber os prêmios que lhe outorgavam com frequência. E escreveu irônicos versos à
guisa de discursos, publicados em 2006, como Discursos de sobremesa (o que faz pensar no
igualmente brilhante Thomas Bernhard – mas essa é outra história)
E mais:
“Me dá sono os meus poemas / E no entanto foram escritos com sangue.”
Mesmo “com caxumba”, há um sorriso diabólico por trás de cada verso seu, inteligente,
incisivo e com um senso do ridículo e da inutilidade de tudo. Deus, anjos e a fé são alguns de
seus alvos. O sagrado não está no céu que “cai aos pedaços”, mas no amor chão, terreno, e no
sexo.
“Cordeiro de deus que lava os pecados do mundo / Nos deixe fornicar tranquilamente: /
Não nos intrometa nesse momento sagrado.”
No mesmo livro, Obra gruesa, de 1969, uma coletânea que ele próprio organizou, ajuntada
por alguns inéditos, há o poema em que fala de criador para Criador, com divertida
condescendência:
“Pai nosso que está onde estiver / Rodeado de anjos desleais / Sinceramente: não sofra mais
por nós / Você precisa entender / Que os deuses não são infalíveis / E que nós perdoamos
tudo.”
Aos poucos fica evidente que, a despeito de sua independência feroz, o dadaísmo de
Duchamp era um de seus faróis (assim como a poesia falada de Whitman e o teatro de
Shakespeare, que inspirou suas muitas vozes e a métrica tradicional, à qual se prendia em vários
poemas, como um comentário irônico sobre a liberdade e os limites da linguagem). O mictório
deslocado do contexto (“A minha catedral é o banheiro”), a roda de bicicleta incrustada num
banco, tornando o movimento imóvel. Coisas. Coisas numa linguagem que não canta nem conta,
mas fala; com palavras simples, vocabulário elementar, ideias desconcertantes.
“A verdade, como a beleza, não se cria nem se perde / E a poesia reside nas coisas ou é
simplesmente uma miragem do espírito.”
Shakespeare, que o estimulava a criar múltiplos “Yos”, fantasmas de palco, tão reais como os
ataúdes, esculpidos em seu tom pedregoso, era de fato uma de sua obsessões. A ponto de fazer
uma retradução do Rei Lear, Lear, rey y mendigo, lançada em 2004, com a ajuda de Alejandro
Zambra, o jovem escritor de Bonsai, uma das melhores revelações da prosa chilena. Amigo de
Parra nos últimos anos, em que o poeta vivia no balneário de Las Cruces, numa casa de pedra,
próximo ao túmulo de Huidobro, Zambra conta que ele nunca estava satisfeito com o trabalho,
vivia fazendo emendas e mais emendas, o que mostrava seu lado perfeccionista e inquieto. Como
um Picasso ou Matisse das letras, realizava também colagens e invenções visuais, os artefactos
visuales , e chegou a expor junto com o genial artista visual catalão Juan Brossa. Uma das
tradutoras deste Só para maiores de cem anos, Joana Barossi, foi, acompanhada de Zambra,
visitar o poeta recluso. A experiência está narrada num apêndice ao final livro, com humor e rara
sensibilidade.
Sobre o amigo centenário, Zambra, em seu livro de ensaios No Leer, lembra que conversar
com ele era uma aventura – de resto, sentimento compartilhado por Barossi e dos que iam vê-lo,
com sua “irreverência sedutora”, incluindo todos os presidentes chilenos desde Allende. A
Barossi, que reparou que ele “fala ritmadamente, em versos”, declarou: “Eu não leio as traduções
de meus poemas; elas devem ser uma expropriación revolucionária, quando traduzidos já não
me pertencem mais”. Ao que ela ajuntou: “E piscou o olho”. E nisto, nessa piscada de olho,
talvez se resuma todo o mistério de sua poesia tão clara, violenta, engraçada e alucinante. É
como em seu “Epitáfio”. Depois de descrever suas faces esquálidas, abundantes orelhas, seu
nariz de boxeador mulato, banhado por uma luz entre irônica e pérfida, conclui:
“Nem muito esperto nem doido varrido / Fui o que fui: uma mescla / De vinagre e azeite de
oliva / Um embutido de anjo e de besta!”
estante cult