parece outro mundo, um mundo de todos e de ninguém, multidões solitárias num estado de medo, se Defoe estivesse vivo, escreveria outro diário. As ruas estão cheias de gente e as praças também, mas os abraços e os apertos de mão já morreram, vitimas da hora da nossa dor, afetos contaminados pelo receio. Se Camus estivesse vivo teria boas inspiração para escrever uma nova peste. As cidades estão cheia de almas isoladas e o luto quebra a oscilação do planeta, tumultos na beira do abismo de todas as fontes e as arvores queimam as luzes de natal. Colecionam-se as amarguras e o cultivo da depressão, no sopé da montanha brada as dores de preces calamitosas do ermitão. Estamos separados, morremos emocionalmente de frio, até que todos se transformem em homens de gelo. Não é pois grande o clamor de Pessoa, que sendo poeta se fez profeta no tumulto de todas as civilizações: “Vivemos todos longínquos e anónimos; disfarçados, sofremos desconhecidos. A uns, porém, esta distância entre um ser e ele mesmo nunca se revela; para outros é de vez em quando iluminada, de horror ou de mágoa, por um relâmpago sem limites; mas outros ainda é essa a dolorosa constância e quotidianidade da vida.” A fecundidade do sentimento reaparece entre as nuvens guardiãs do orvalho, no silencio que faz tremer todo o globo, na tenaz brisa de um suspiro da face presa a janela embaçada pelo respirar de uma alma que olha toda a dimensão do infinito. Escreve na areia do rosto, todas as epopéias que surgem no interior da infância, a saga de andar descalço e o épico de banhar-se nas torrentes silvestres das montanhas, e vida vaga não de descarrilha no momento solitário, ganha fronteiras, transcende o presente e volta para o passado, e como as dificuldades lapidaram o amor, quebramos a solidão dentro de nós buscando nas lembranças, todos os nossos amigos de infância, então no vácuo da vastidão social, no meio tumultuado de passos de transeuntes mudos, olhares frios deslizam pelos ventos astrais, e nós sem fugir do presente e acorrentados pelo passado humanos, em meio aos seres sobreviventes, encontramos a amizade divina.
“Estranhas são as vias do Amor:
E bem o sabe quem as quer seguir: Muitas vezes ele perturba o coração seguro: Quem ama não encontra constância. Aquele a quem a Caridade Toca no fundo da alma Conhecerá muita hora de desolação” (Hadewijch de Antuérpia)