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All content following this page was uploaded by Gerson Pastre Oliveira on 09 February 2021.
Introdução
A pesquisa científica pode ser vista, entre outras formas, como um empreendimento
individual ou coletivo cuja finalidade é compreender, delimitar, descrever, tratar e,
eventualmente, propor alternativas e/ou soluções para problemas muito específicos de
determinada área de conhecimento, com o uso de metodologias e abordagens adequadas,
sistemáticas e rigorosas. Caracteriza-se, então, por procedimentos investigativos,
iluminados por referenciais teóricos e direcionados por questões, hipóteses e objetivos,
sempre ligados a um tema, delimitado e relevante em relação a um campo do saber. Trata-
se da construção de estudos que devem ser marcados por uma característica essencial, a
validade, a ser garantida justamente pelos procedimentos adotados em toda a trajetória
percorrida, desde a concepção da temática até a elaboração das análises e eventuais
conclusões. Como resultado, espera-se que venham à lume os resultados relativos ao
trabalho envidado, entre os quais, evidentemente, um relatório de pesquisa, do qual se
cuidará neste capítulo, em algumas de suas partes.
O que chama a atenção no parágrafo anterior é o caráter restrito e formal de que se investe
a pesquisa. Delimitar um tema, encontrar questões e engendrar um problema, em um
contexto claro e coerente, pode ser uma tarefa inicial bastante árdua. Em outras palavras,
para o pesquisador novato (e, às vezes, para qualquer pesquisador), a delimitação do
alcance e do escopo da pesquisa pode representar uma etapa bastante difícil, em um
primeiro momento. Trata-se de um processo que demanda reflexão apurada, leituras sobre
os temas que surgem como candidatos, trocas de ideias com pesquisadores mais
experientes e, eventualmente, se for o caso, longas conversas com o orientador ou
coordenador da iniciativa/projeto de investigação.
1
OLIVEIRA, G.P. A elaboração do problema de pesquisa em Educação e Educação Matemática. In:
OLIVEIRA, G. P. (Org.). Pesquisa em Educação e Educação Matemática: um olhar sobre a metodologia.
Curitiba: CRV, 2019.
tempo médio de finalização em torno de 4 anos. De igual forma, projetos de pesquisa,
geralmente com a participação de pesquisadores mais experientes, com certa estrutura,
duram não menos de 24 meses. Ainda que a duração não seja, em si, o fator mais
importante, e que não seja possível criar uma regra absoluta para isso, é preciso dizer que
a adaptação da rotina do pesquisador às atividades do projeto precisa ocorrer rapidamente,
de modo que os prazos não se esgotem ou se tornem muito exíguos, e que toda a inciativa
incorra em fracasso, ou que se produza, como resultado, algo aquém do que se poderia
obter.
A ideia deste capítulo é, então, colocar o foco sobre uma parte da elaboração dos relatórios
de pesquisa, especialmente aqueles que resultam das dissertações de mestrado e teses de
doutorado, relativa à construção do problema de pesquisa e de seu contexto. O discurso
traçado aqui será estruturado em torno de pesquisas de caráter qualitativo, e esta pode ser
uma importante distinção. Por este motivo, percebe-se como relevante a caracterização
deste delineamento investigativo, o que se faz a seguir, do ponto de vista de alguns
autores.
O que Borba indica aqui é que o velho mito da neutralidade científica, absolutamente
insustentável de qualquer modo, encontra ainda menos salvaguarda nesta abordagem: o
pesquisador acaba por emprestar cores específicas ao quadro que vai pintando como
resultado da pesquisa que realiza. É, de certa forma, uma contaminação ligada às ideias e
valores pessoais do pesquisador, que os procedimentos metodológicos e o rigor devem,
quanto possível, controlar e minimizar. Além disso, na pesquisa qualitativa, cenários
provisórios vão sendo construídos, descontruídos, feitos e refeitos; as questões, o
problema e os objetivos são revisitados sempre que necessário, quando os dados, as
leituras e as condições do estudo apontem para outros rumos ou peçam ajustes.
Outros autores apoiam as ideias supramencionadas. Para Ludke e André (2013, p. 18), “o
estudo qualitativo (...) é o que se desenvolve numa situação natural, é rico em dados
descritivos, tem um plano aberto e flexível e focaliza a realidade de forma complexa e
contextualizada” (2013, p.18). As autoras também mencionam que o foco deste gênero
de pesquisas é muito mais o processo do que o produto: “o interesse do pesquisador ao
estudar um determinado problema é verificar como ele se manifesta nas atividades, nos
procedimentos e nas interações cotidianas” (2013, p. 12), com vistas a abarcar a
complexidade presente nos contextos variados submetidos à perquirição. Para Bogdan e
Biklen (1994) o uso conjunto das diversas abordagens encontra amparo em alguns
trabalhos de relevo, mas os autores guardam restrições, esclarecendo que a integração de
componentes é válida, mas sem procurar conduzir a investigação com grandes
aprofundamentos nas duas abordagens – é o caso, então, de um estudo qualitativo com
elementos quantitativos ou vice-versa.
Asseveram Laville e Dione (1999) que as ocorrências que envolvem pessoas – portanto,
“fenômenos humanos” – possuem uma multiplicidade de causas (multicausalidade),
típica de um emaranhado de elementos em interação e conjugação constante. Exemplos
desta tessitura complexa podem ser frequentemente encontrados em pesquisas que têm
ambientes virtuais de aprendizagem (AVAs) como cenários. É bastante comum que,
nestes espaços, quando proporcionem múltiplas interações por meio de estratégias
didáticas adequadas, que tais complexidades e multicausalidades estejam presentes com
grande intensidade. Dada a possibilidade, aberta pelas interfaces destes ambientes, de
registrar por diversos meios as trocas de mensagens realizadas entre os participantes de
uma iniciativa de formação, por exemplo, surge a possibilidade de recuperar a palavra
dos participantes em sua essência original, de modo a apreender as “condições
estruturais”, os “sistemas de valores, normas e símbolos” (MINAYO; SANCHES, 1993,
p.245) fundamentadores das ocorrências de caráter complexo que têm lugar durante a
experiência proporcionada nestas ocasiões. É uma questão de recuperar o significado
atribuído pelos sujeitos àquilo que vivenciam em situações cotidianas: “ao considerar os
diferentes pontos de vista dos participantes, os estudos qualitativos permitem iluminar o
dinamismo interno das situações, geralmente inacessível ao observador externo”
(LUDKE; ANDRÉ, 2013, p.12).
Neste aspecto, Godoy (1995, p. 62) argumenta que a pesquisa qualitativa tem caráter
descritivo, possui um enfoque indutivo, permanece atenta para os significados que as
pessoas atribuem aos elementos que as cercam e à própria vida e adota o que a autora
chama de “ambiente natural” como fonte direta dos dados, bem como enxerga o
pesquisador como instrumento primordial. O processo de indução, no caso específico das
categorias produzidas em estudos deste tipo, é um elemento aperfeiçoador daquelas
categorias produzidas primitivamente por dedução (LAVILLE; DIONNE, 1999).
Além disso, o caráter da pesquisa qualitativa não é o da comparação, seja entre grupos,
seja entre momentos (‘antes’ versus ‘depois’), ou seja, não pretende estabelecer relações
causais entre ocorrências, coisas ou fenômenos; por outro lado, permite ao pesquisador
“atentar para os diversos fatores ligados a um problema para compreender o jogo e, uma
vez adquirida esta compreensão, tornar conhecida esta relação” (LAVILLE; DIONNE,
1999, p.148).
2
Ainda que os mesmos possam ser usados, em caráter complementar, como os próprios autores concordam.
e substanciar a apresentação”, procurando respeitar a forma pela qual foram
obtidos. Os relatórios resultantes podem, desta maneira, surgir de forma
minuciosa, considerando que nenhuma visão de mundo pode ser reduzida à
trivialidade e nenhum detalhe é vazio de significado;
3
Não se está falando aqui dos itens formais geralmente recomendados nos guias acadêmicos acerca da
redação de relatórios científicos, e que contêm, entre outros elementos, capa, folha de rosto, listas, sumário,
• Introdução: pode trazer uma descrição inicial relativa ao tema pesquisado,
posicionando-o no rol de assuntos capazes de gerar problematizações na área
de pesquisa em que se insere. Além disso, a introdução pode indicar as
motivações do pesquisador, ou seja, aquilo que o levou a se debruçar sobre a
temática, a qual, por sua vez, deve ser apresentada de maneira concisa e
fornecer um esclarecimento geral ao leitor acerca de sua importância. Quando,
em Educação Matemática, por exemplo, a pesquisa delimita um objeto
matemático de interesse especial, é comum que a descrição, nesta parte do
trabalho, se ocupe em esclarecer os eventuais encaixes sobre o ensino do
objeto presentes nos currículos, a abordagem didática mais frequente, seu
status epistemológico e alguns aportes históricos que concorram para
encaminhar o aprofundamento da discussão, a ser feito no restante do texto;
• Problematização, problema de pesquisa, questões, objetivos e procedimentos:
O problema de pesquisa é, geralmente, redigido em um parágrafo, e representa
uma declaração sucinta, com recorte bem definido, acerca de que interesse
específico ligado ao tema eleito será cuidado pelo pesquisador na
investigação. Geralmente, o problema de pesquisa é anunciado com questões
ao final (ou em seguida), as quais possuem caráter norteador em relação ao
trabalho, ou seja, servem de guias para que se produzam os arrazoados formais
que tratarão de obter respostas para as mesmas, ou, pelo menos, de equacioná-
las no âmbito do conhecimento relativo à área. Neste sentido, não é possível
indicar um item do trabalho de tamanha importância e profundidade sem a
construção de um contexto, que é chamado de problematização (ou
problemática, como preferem alguns autores), uma descrição mais
aprofundada acerca do entorno epistemológico, didático, cognitivo e histórico
no qual se assenta o problema. Ou seja, o problema surge como resultado de
uma descrição densa, a problematização, a qual, geralmente, pode conter,
também, aportes advindos da revisão bibliográfica. A partir deste arrazoado,
pode-se, então, em complemento às questões norteadoras, anunciar os
objetivos do trabalho e adiantar, ainda que resumidamente, os procedimentos
metodológicos que permitirão dar conta da tarefa assumida;
etc., mas do que se poderia considerar como os elementos centrais de uma produção deste tipo, cujos títulos
e formas de apresentação podem variar significativamente.
• Referenciais teóricos: compostos, de maneira geral, por um marco teórico,
cujo conteúdo é estruturado pelas teorias que subsidiarão as análises mais
diretamente (por exemplo, em um trabalho com tema ligado às representações
geométricas de certo objeto matemático, a Teoria dos Registros de
Representação Semiótica, desenvolvida por Raymond Duval, pode ser usada
como eixo central das asserções teóricas e validações que terão lugar); e por
textos subsidiários, geralmente ligados ao marco teórico e provenientes da
revisão bibliográfica, ou seja, são constituídos pela síntese daqueles trabalhos
relacionados ao tema, produzidos anteriormente ao que se está escrevendo,
que podem contribuir de alguma maneira para a compreensão do problema,
seja quanto ao tratamento dado ao tema, seja quanto aos procedimentos,
quanto à abordagem metodológica, as teorias principais, ou outras
características julgadas importantes;
• Metodologia: consiste na abordagem formal e sistemática definida para o
estudo, bem como o delineamento específico que norteará os passos da
investigação, considerando que uma opção neste sentido condiciona o
pesquisador em relação a um conjunto de procedimentos, os quais, por sua
vez, permitem planejar, elaborar e justificar a construção dos instrumentos
necessários. Via de regra, certos temas tendem a sugerir determinadas
abordagens metodológicas, ainda que não representem qualquer obrigação
neste sentido;
• Coleta de dados: na coleta, cabem as descrições ligadas ao levantamento e
organização dos dados relativos à pesquisa, quer venham de documentos, quer
do contato com eventuais sujeitos ou de fontes alternativas, se for o caso. O
texto resultante deste processo também deve, com eventual ajuda de elementos
gráficos (tabelas, gráficos, figuras, quadros, etc.), sistematizar e organizar as
formas de apresentação pelas quais os diversos elementos levantados pela
investigação surgem, assim entendidos aqueles dados fundamentais para que
se venha a discutir profundamente o problema de pesquisa;
• Análise de dados: de forma geral, as análises representam um confronto entre
as escolhas teóricas do pesquisador, objetivadas previamente no texto, e os
dados coletados, por meio dos procedimentos metodológicos adotados,
sempre sob a luz das questões elencadas e dos objetivos do estudo. Trata-se,
então, de uma discussão sobre o que os dados mostram, considerando o ponto
de vista teórico adotado para o trabalho, e estruturada a partir da
sistematização provida pela abordagem metodológica. Há inúmeras formas de
construir as análises. Uma delas consiste em lançar mão de categorias, vistas
como unidades significativas e estruturadas de maneira a direcionar o discurso
que se fará nesta parte do trabalho, como se fossem “filtros” ou “lentes” a
partir das quais se focará o balanço entre os dados e as teorias – por exemplo,
se considerado o tema “o uso de tecnologias digitais em estratégias didáticas
para o ensino do Teorema de Tales”, uma categoria poderia ser “fluência em
tecnologias digitais e apreensões em geometria plana”. Evidentemente, assim
como vários outros elementos da pesquisa qualitativa, as categorias de análise
podem ser revistas inúmeras vezes, sendo difícil delimitá-las totalmente a
priori;
• Considerações finais: aqui, pretende-se constituir uma síntese dos principais
elementos do trabalho, principalmente ao recapitular questões, hipóteses e
objetivos, além de esclarecer como estes elementos foram contemplados (e
com que alcance/dimensão) ao longo do relatório e se foram respondidas as
questões norteadoras – ou, ao menos, de que maneira receberam algum
tratamento por parte dos instrumentos investigativos empregados. Também se
deve consignar as lacunas eventualmente a preencher, ou seja, quais elementos
não foram tratados pela pesquisa e que poderiam ser objeto de interesse em
futuras perquirições, inclusive partindo dos resultados exibidos pelo texto
atual.
Por óbvio que possa parecer, nunca é demais afirmar que a construção do problema de
pesquisa é elemento essencial em qualquer iniciativa de investigação nos vários campos
científicos. O problema, em si, consiste em uma inquietação que se procura traduzir como
algo a resolver na área de perquirição na qual atua o pesquisador, o autor da iniciativa.
Ter um problema é ter uma dúvida em determinado campo científico, consistente e
importante o suficiente para que se demande tempo e recursos no seu tratamento e
eventual proposta de resolução, se for o caso. De todo modo, é o correto dimensionamento
do problema que encaminha a compreensão acerca dos demais detalhes da pesquisa,
desde o levantamento da bibliografia necessária, passando pela definição dos marcos
teóricos e elementos metodológicos, até a construção das análises e das conclusões.
Pode ser importante indicar que elementos históricos incidem de forma relevante sobre o
objeto/tema da pesquisa, menos para caracterizar a personalidade de alguém que
desenvolveu originalmente os estudos sobre os quais se debruça o pesquisador naquele
momento, mas para ressaltar, por exemplo, o caráter evolutivo e as influências que
permearam a constituição dos saberes vinculados, as tensões provocadas pelo
desenvolvimento das ideias em tela, as discussões promovidas em distintas épocas sobre
os saberes em constituição, entre outros aspectos. Não se trata, portanto, de ilustrar o
tema, dando-lhe um verniz erudito, mas de recuperar partes importantes da memória
relativa ao objeto/tema, o que pode ajudar, inclusive, na descrição destes elementos.
Por exemplo, em Educação Matemática, um estudo que envolva o tema “homotetia” pode
partir da recuperação das propostas originalmente indicadas em “Os Elementos”, e as
discussões subjacentes, como feito por Lima (2016), em pesquisa orientada pelo autor
deste capítulo, que optou por trazer a contribuição de Roque (2012):
Percebe-se que o discurso que o autor alinha em seu texto não é mera colagem desde os
trabalhos originais que compulsou, mas uma elaboração pessoal, a partir da leitura crítica
dos escritos levantados. Com isso, o aspecto histórico de sua problematização encaminha
a articulação com outras frentes, como o autor indica, ao dizer que o tema correlato,
semelhança, já gozava de um estatuto formal, apesar das polêmicas que marcavam as
discussões no âmbito das distintas vertentes historiográficas. Ou seja, o aspecto histórico
concorreu para caracterizar o objeto, do ponto de vista de sua constituição, o que permite
discuti-lo a partir de outros olhares.
Existem inúmeras maneiras por meio das quais se podem criar as descrições de caráter
epistemológico aqui referidas. Em sua dissertação de mestrado, por exemplo, Gonçalves
(2015) opta por envolver, também neste ponto, algumas das descrições históricas que
levantou a partir da revisão da literatura, o que indica a possibilidade de construir um
discurso com imbricações entre os aspectos que se menciona aqui, e não necessariamente
fazê-lo de forma linear. O texto, resultado de investigação que também foi orientada pelo
autor deste capítulo, emprega figuras para ilustrar importantes aspectos da demonstração
que propõe e faz as seguintes asserções:
A figura 1, mencionada pela autora, e que apoia sua narrativa, pode ser vista a seguir.
b.c
(b + c)² = a ² + 4.
2
b.c
(b + c)² = b² + c ² + 4.
2
Em seguida, Gonçalves (2015) emprega mais um elemento gráfico (figura 3) para apoiar
o desenvolvimento dos resultados que procura evidenciar:
Observe que, após a construção dos triângulos APQ, PDS, QBR e RCS,
forma-se o quadrilátero PQRS ao centro. Pode-se provar que esse
Também podem ser levantados eventuais fatores que dificultem, de alguma forma, o
processo de construção do conhecimento. Neste sentido, por exemplo, Brousseau (2002)
indica como relevante o estudo da noção de obstáculo, quando observa em que contextos
ou ocasiões o saber estruturado sobre o conteúdo em questão passa se colocar de forma
mal adaptada ou inadequada, ou, ainda, quando mecanismos do sistema de ensino
constituído concorrem para favorecer o surgimento de erros na resolução de problemas
acerca de determinados temas ou objetos. Outros autores lidam com questões deste tipo
de outra forma e o uso de determinados conceitos dependerá, por certo, das escolhas
teóricas que o pesquisador fará.
Em sua tese de doutorado, Fonseca (2015) realizou, sob a orientação do autor deste
capítulo, uma pesquisa que tratava, fundamentalmente, dos conhecimentos acerca da
Teoria dos Números, e, em especial, do Teorema Fundamental da Aritmética, tendo como
sujeitos alunos de licenciatura em Matemática. Ao compor sua problematização, do ponto
de vista didático, o autor criou descrições com base em sua revisão da literatura, que
abarcou pesquisas previamente realizadas na área e compulsou, também, as orientações
curriculares disponíveis sobre o tema. Após posicionar a importância de sua escolha
temática no âmbito do acervo de conhecimentos do professor que ensina matemática e na
trajetória escolar dos alunos, principalmente do Ensino Fundamental, o autor pondera:
A situação descrita no parágrafo anterior pode não ser tão imaginária assim. Inúmeras
vezes, pesquisadores iniciantes esbarram no dilema relativo à definição do escopo
específico para a construção de suas pesquisas. Seus anúncios iniciais refletem,
geralmente, mais a configuração de uma ideia, bastante ampla e genérica. Sem que se
pretenda negar a utilidade deste exercício inicial, é preciso que se progrida a partir dele,
buscando um refinamento, um recorte, uma delimitação que proporcione a construção de
um tema, ou seja, de um texto sucinto que indique o alcance, os limites e os
objetos/elementos cobertos pela proposta de pesquisa a ser implementada.
Na maior parte das vezes, as ideias acerca da investigação acadêmica a realizar estão
relacionadas às experiências pessoais/profissionais do pesquisador. Pode ser, quando este
exerce a docência, uma subárea específica que prefira na disciplina que leciona – como
quando o personagem da pequena história supramencionada se refere à geometria, por
exemplo. Em todo o caso, leituras e diálogos sempre podem ajudar na construção mais
sólida do tema perseguido.
Após a fase inicial, uma etapa de refinamentos sucessivos ocorrerá, também marcada por
diálogos, orientações e leituras. Conforme os recortes acerca do tema se tornam mais
claros e evidentes, o processo de revisão de literatura se torna também, por sua vez, mais
específico e direcionado, detendo-se sobre os textos que realmente possam apoiar a
construção da nova pesquisa. É importante que todo este processo seja registrado por
escrito, ou seja, que as leituras levem à produção de sínteses textuais, as quais, por sua
vez, devem se mostrar mais completas à medida que venham a se referir a textos com
maior relação ao relatório em preparo.
É importante assinalar que o processo descrito anteriormente não é linear, mas conta com
múltiplas idas e vindas, e com fases intermediárias que podem apenas ser supostas como
mais prováveis, mas que podem ocorrer em distintas quantidades e com diferentes
repetições. Além disso, no caso de relatórios resultantes de pesquisas realizadas no âmbito
de cursos de mestrado ou doutorado, os diálogos com o grupo de pesquisa e com o
orientador são, geralmente, constantes e recorrentes, o que auxilia no posicionamento
crítico diante do que se escreve. A figura 4 procura sintetizar os argumentos aqui
expostos.
Em toda a trajetória descrita até aqui, um destaque deve ser dado ao importantíssimo
papel que a revisão da literatura tem nos trabalhos científicos. Este processo,
compreendido como a busca e exame de materiais textuais (teses, dissertações, artigos)
que tenham alguma correlação com as propostas de uma investigação que esteja sendo
planejada, pode (e deve) ser realizado em distintos momentos. Inicialmente, tem um
caráter mais exploratório, e auxilia sobremaneira na transição ideia – tema. Aqui, as
leituras permitem compreender o alcance que podem ter os temas da área, o quanto já
foram explorados, que abertura trazem para continuidades ou novas abordagens. Estas
primeiras leituras podem, inclusive, influir decisivamente na elaboração do tema em uma
versão mais definitiva, por assim dizer (ainda que mudanças sempre possam ser feitas).
Uma vez delimitado o tema de alguma forma, a revisão, em uma segunda etapa, é mais
precisa, podendo aproveitar os textos das primeiras leituras e devendo agregar outros mais
específicos, agora já tendo como guia o tema escolhido. Nas duas etapas de leituras
mencionadas, mas especialmente na segunda, a produção de sínteses significativas dos
trabalhos correlatos é de suma importância, de modo que se anotem as principais
características de cada texto e em que contribuem com a pesquisa em elaboração. Estas
sínteses, com a devida “costura” textual, ou seja, integradas e colocadas em conjunção
com a lógica do texto principal, comporão o trabalho em construção, seja como apoio aos
referenciais teóricos, seja como parte da problematização, ou, ainda, em ambas as partes.
Cabe, ainda no âmbito das revisões, uma recomendação: não se devem incluir sínteses
relativas a textos examinados neste processo sem que eles tenham contribuições a fazer
para o trabalho como um todo. A inclusão de elementos teóricos em um trabalho, sejam
aportes referenciais, sejam produtos de revisão, deve, de alguma forma, estruturar ou ao
menos apoiar as análises. Se um texto qualquer aparece na revisão e, em seguida, não
volta a ser utilizado em coisa alguma, para que serve? Deve-se descartar desde o início o
mito de que bons trabalhos devem ser volumosos e conter centenas de referências: bons
trabalhos devem ser consistentes e comportar as referências necessárias.
Quanto à forma e ao conteúdo, não devem ser longas demais, nem tão simples que não
impulsionem o esforço de pesquisa. Por exemplo, uma questão do tipo “as tecnologias
digitais podem auxiliar no processo de aprendizagem de lugares geométricos no ensino
fundamental?” não é adequada. Ora, neste caso, a resposta é obviamente “sim”, partindo-
se do princípio de que poder, podem (as tecnologias podem auxiliar no referido processo)
– resta saber como, com que estratégias, com quais interfaces e tipos de ferramentas etc.
Além disso, a questão, da forma como está, é vaga e muito ampla. Assim, dependendo
fundamentalmente do contexto construído na problematização, uma das questões
relacionadas ao mesmo tema poderia ser “como uma estratégia didática com uso de
tecnologias digitais pode auxiliar o processo de aprendizagem de lugares geométricos
entre alunos do sétimo ano do ensino fundamental de uma escola pública?”.
Evidentemente, como se disse, esta questão dependeria da forma como a problematização
foi constituída para se revelar realmente adequada, mas, como exemplo, aponta para
alguns itens importantes: não é óbvia, é específica, está ligada ao tema, define um
conteúdo de conhecimento e um grupo de sujeitos, e assim por diante.
Há, entretanto, outra forma de encarar a relação entre questão e hipótese em uma pesquisa
qualitativa, que ocorre, justamente, quando o próprio problema de pesquisa é anunciado
como questão (ou pergunta substantiva). Neste caso, as hipóteses surgem como
proposições a serem comprovadas e que concorrerão para dar, em algumas dimensões, as
respostas procuradas para o problema levantado, considerando a estrutura formal e
metodologicamente válida construída pelo pesquisador.
Por sua vez, o anúncio dos objetivos busca revelar o que se quer produzir com a
investigação, o que se pretende descobrir, esclarecer, revelar ou, ainda, sobre o que se
refletirá. De certa forma, o pesquisador procura, ao elencar os objetivos, indicar em que
ponto o trabalho chegará e quais resultados virão à lume quando de sua finalização. O
objetivo geral deve indicar as intenções do trabalho de forma mais ampla, o que significa
que este item está ligado à finalidade principal da pesquisa e ao problema proposto, em
torno da qual foram elaboradas as questões e feitas as escolhas teóricas e metodológicas.
Como exemplo, o trabalho de Lima (2016), já mencionado anteriormente neste capítulo,
possuía, como objetivo principal, “desenvolver uma estratégia didática para uso de
tecnologias em atividades/problemas ligados à geometria plana, tendo o tema de
“homotetia” como elemento matemático principal, e a intenção de evidenciar as
compreensões constituídas a partir de pressupostos interativos no âmbito de pessoas-com-
tecnologias-digitais” (LIMA, 2016, p.20). Os objetivos específicos secundam e apoiam o
pesquisador na consecução do objetivo principal da investigação, sendo, geralmente,
escritos a partir do conjunto de atividades/tarefas/construções necessárias à realização do
objetivo principal. Na pesquisa que se mencionou, os objetivos específicos eram:
Percebe-se que os objetivos específicos e geral estão fortemente interligados, sendo que
os primeiros seriam formas pelas quais se poderia alcançar a consecução do último, ou,
ainda, procedimentos/etapas na construção de uma lógica de pesquisa que permitiria
alcançar a meta traçada primordialmente.
Considerações finais
É importante esclarecer que não existe um guia infalível para a elaboração de questões,
hipóteses e objetivos, apenas recomendações. A redação destes elementos, bem como a
interligação deles com o restante do trabalho pode variar e admite bastante flexibilidade;
no entanto, o que se propõe neste capítulo é que haja uma estreita ligação entre eles e a
problematização, como contexto, e o problema de pesquisa, mais diretamente. Isto pode
ser feito considerando o desenvolvimento dos elementos textuais constituintes tanto em
um mesmo capítulo como em partes diferentes do trabalho, desde que se observe a
proposta contida na figura 5.
Problematização
Problemazzzzz
de pesquisa
Questões ou
Objetivos hipóteses
Como se procurou mencionar em várias partes deste capítulo, não se pretendeu, aqui,
construir um guia ou um manual para a redação de relatórios científicos, mas levantar
aspectos importantes relativos a esta atividade, cuja implementação pode variar de acordo
com as diretrizes existentes nos diversos centros de pesquisa, ou de acordo com a
flexibilidade maior ou menor existente nos grupos aos quais o autor da peça se filie. O
foco na construção do problema de pesquisa e em seu contexto, a problematização,
considerou a importância e a relativa dificuldade que esta etapa representa na construção
de um texto consistente, que reflita de modo fidedigno e com qualidade, o esforço
realizado em uma investigação científica, principalmente aquelas que admitam
delineamento qualitativo.
Referências
LUDKE, M.; ANDRE, M. E.D.A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. 2. ed. São
Paulo: EPU, 2013.
ROQUE, T. História da Matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas. Rio de
Janeiro: Zahar, 2012.