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“Niklas Luhmann: as tecnologias do poder e o sistema político na teoria dos sistemas” in


José Gomes André, José Manuel Santos & Bruno Peixe Dias (eds.), Teorias Políticas
Contemporâneas, Lisboa, Sistema Solar – Documenta, 2015, pp. 239-257.
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As Tecnologias do Poder e o Sistema Político na Teoria dos Sistemas


de N. Luhmann

Edmundo BALSEMÃO PIRES

1. O Poder como meio de comunicação simbólico e como Tecnologia

O problema teórico do poder esteve presente na obra de N. Luhmann desde os


escritos sobre temas de administração da década de 1960 passando pelo ensaio sobre a
“Crítica da Teoria Clássica do Poder” (1969), os trabalhos sobre Sociologia do Direito, os
textos sobre teoria das organizações, sobre comunicação sobre decisões e planeamento até à
publicação, postumamente, da obra A Política da Sociedade (2000) em que o sistema político
funcionalmente diferenciado se toma como a referência das descrições das decisões políticas
propriamente ditas. O conceito de poder é investigado sob o prisma da sua reprodução
comunicativa na sociedade moderna e como um objecto comunicativo.
O conceito de poder designa a capacidade social para transferir reduções de
possibilidades de agir entre diferentes pontos de cadeias de acções e decisões mediante a
atribuição a esses pontos de valores de domínio ou subordinação. Este conceito geral
particulariza-se na medida em que a descrição se focar na interacção, na administração ou no
sistema político.
No trabalho sobre o poder de 1975 (Macht) baseado na concepção dos meios de
comunicação generalizados do ponto de vista simbólico, N. Luhmann sistematizou os níveis
analíticos do conceito sociológico de poder como meio de comunicação generalizado do
ponto de vista simbólico particular ao lado do “dinheiro”, da “verdade” ou do “amor”,
relacionou-o com o processo construtivo de sistemas parciais funcionalmente diferenciados e
examinou o poder nas organizações. Interacção, organizações e sistemas parciais da
sociedade são os níveis analíticos desta descrição do poder do ponto de vista comunicativo.
Meios de comunicação generalizados do ponto de vista simbólico designavam já em
trabalhos de T. Parsons condições gerais de compatibilidade para trocas entre elementos de
sistemas autonomizados e orientados segundo selecções de possibilidades práticas. Segundo
esta descrição, ao garantir as bases da autonomia de sistemas de acção a evolução social das
sociedades modernas punha de lado o esquema elementar da troca de necessidade por
necessidade ou de preferência por preferência que servira em sociedades menos evoluídas
para coordenar as motivações, as acções e as vivências dos agentes. A sociedade moderna
coloca equivalentes simbólicos no lugar das necessidades e das preferências e são estes que
passam a servir de filtros e condensadores das selecções das possibilidades de trocas entre
elementos de sistemas autonomizados. Assim, os meios simbólicos estão disponíveis para
indicar, por exemplo, como as mercadorias se trocam habitualmente por “dinheiro”; os
sentimentos da vida íntima se devem traduzir em “amor”; a distribuição social da diferença
dominação / subordinação em “poder”. Eles também servem para perceber se pode ou não
pode sobrepor-se o código de um meio simbólico por outro, gerar-se absorção ou
simplesmente limitação recíproca. A evolução social que contribui para a especificação dos
meios simbólicos também está a contribuir para a crescente especialização das necessidades e
preferências mudando significativamente a importância da comunicação e dos símbolos
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comunicativos em sistemas que até aí se definiam como sistemas de acção orientados pela
percepção psíquica dos estados psíquico-orgânicos dos agentes directamente envolvidos em
sistemas de interacção muito limitados.
O recurso a símbolos facilita a comunicação que implica coordenação entre acções e
vivências que se atribuem a agentes diferentes - ego e alter numa relação mínima. A escrita e
em geral a evolução tecnológica dos Media vem amplificar o valor da comunicação com base
em símbolos para reduzir complexidade em sistemas de interacção e em sistemas formais
(organizações) ou funcionalmente diferenciados (sistemas parciais da sociedade). A tendência
para comunicar com símbolos e sobre símbolos em vez de comunicar sobre estados psíquicos
tende a acentuar-se e a reforçar-se com a evolução social e eles tornam-se então
indispensáveis na resolução de problemas que implicam redução da contingência e da
complexidade no encadeamento de selecções em que estão presentes várias possibilidades e
em que as preferências dos agentes não são directamente conhecidas.
Na época do livro sobre o Poder, em que o tema dos meios de comunicação
generalizados do ponto de vista simbólico constituía um assunto nuclear, o poder era descrito
com base no binário acção / vivência distribuído pelos pólos ego / alter da análise da acção
que se podia encontrar na Sociologia de T. Parsons e nos trabalhos fenomenológicos de A.
Schutz. Muitas das direcções analíticas relevantes no par acção / vivência se relacionam ainda
com a Fenomenologia e as teses fenomenológicas. Esta é uma influência já muito notória no
trabalho sobre a Confiança como Mecanismo de Redução da Complexidade (1968). Alguns
anos depois, em 1982, em Liebe als Passion, o mesmo binário distribuído pelos mesmos dois
pólos é retomado de uma forma desenvolvida para a análise do meio de comunicação “amor”.
Uma parte eloquente destes trabalhos em que o poder é escrutinado ao lado de outros
meios simbólicos está centrada no problema da redução social da complexidade e da
contingência mediante a generalização social de ordenamentos emergentes da auto-
organização da acção social e da sua estabilização normativa mediante a referência a códigos
simbólicos generalizados pela escrita. A emergência e generalização social da ordem é uma
questão que se pode encontrar entre as preocupações teóricas de A. Gehlen e de H. Schelsky
ou nos escritos de F. Hayek muito embora não seja possível traçar uma linha inequívoca de
filiação até N. Luhmann. Mas não se pode ignorar o problema da ordem nas formulações
sobre estabilidade normativa na obra sobre Sociologia do Direito mesmo que a estratégia
analítica desta época seja considerada mais tarde insuficiente. Todavia, o conceito de ordem
não chega a ganhar na obra de N. Luhmann uma autonomia temática suficiente para se poder
considerar uma noção nuclear, o que significa que a análise do poder não tem de se polarizar
exclusivamente ou maioritariamente pelo tema da ordem social.
A singularidade da perspectiva da Teoria dos Sistemas reside na articulação que
estabelece entre formas da comunicação e formas do exercício do poder. Na medida em que
os três níveis da Teoria da Sociedade (interacção, organizações e sistemas sociais parciais)
reflectem todos formas da comunicação o poder socialmente generalizado tem de ser
entendido como poder comunicativamente generalizado e não como poder exercido por
indivíduos sobre outros abstraindo da comunicação. O carácter segmentável e distribuído do
poder na sociedade é uma prova da sua difusão comunicativa e não tanto do facto de ele ser
exercido por indivíduos sobre indivíduos. Deste ponto de vista a análise causal do poder, em
que percebemos como “poder” a capacidade de produzir efeitos, como potência activa, não é
falsa mas tem de ser percebida segundo um prisma comunicativo, de tal modo que as formas
da comunicação se não reduzam a componentes psíquicos. Aqueles elementos e relações
típicos da análise do poder da tradição da Filosofia Prática que partem do isolamento de
sujeitos das preferências, das decisões e das acções e da identificação de motivações,
propósitos conscientes e graus de imputabilidade têm de se sujeitar a uma reformulação de tal
forma que sem negar as dimensões volitivas sublinha as estruturas comunicativas de alcance
sistémico-funcional ou as formas comunicativas menos institucionalizadas como as que se
dão na interacção. Só assim se conseguirá evitar o problema habitual da Filosofia Política
convencional, utilitarista ou deontológica, que parte da categoria do sujeito individual do agir,
das suas preferências ou do seu dever, para daqui retirar depois consequências para o
comportamento dos agregados sociais e políticos.
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Nas análises sociológicas do poder houve a tentação de ir desde o mecanismo


propriamente causal do poder até às bases não causais que estariam a condicionar a corrente
causal do poder. Este procedimento é aquele que se ilustra na obra de K. Marx e dos
marxistas mas também em Durkheim quando conduziu a análise do poder até ao estudo da
sociedade; a análise das relações de poder até à investigação de relações que tomamos como
relações sociais. Este caminho é também o que N. Luhmann percorre mas com um sentido
diferente.
Na obra deste último o procedimento metódico a adoptar não é o de uma busca das
bases antropológicas do poder na sua associação com a vontade e a acção humanas, numa
acepção de Antropologia que foi aquela que o século XVII nos legou como investigação
sobre as bases psíquico-orgânicas do comportamento, presente no conceito hobbesiano de
poder, por exemplo. Por isso, é equívoco examinar com as categorias do sujeito conceitos
como o de redução da complexidade social ou o de orientação para a redução da contingência,
que não se conseguem situar na malha das mesmas distinções analíticas da observação
psíquico-orgânica dos sistemas psíquicos.
A retomada da investigação do poder na moldura da Teoria da Sociedade na
perspectiva de N. Luhmann implica demarcações frente a estratégias semelhantes do passado
que também não se centraram nas dimensões psíquicas e volitivas do poder.
Ao pensarmos na concepção do marxismo, na sua perspectiva sobre o político, a luta
de classes e os aparelhos de estado encontramos um modelo de investigação social do poder
que leva em conta a diferenciação social, tipos de estratificação e relações “objectivas” do
poder. Este foi um modelo para a análise do poder com referência à estrutura da sociedade.
Não se tendo limitado à investigação sociológica o marxismo manteve uma orientação
normativa relativamente ao poder, à sua justeza, à necessidade da transformação histórica das
relações do poder, etc. A mesma ou muito próxima da que voltamos a encontrar, entre outros,
em M. Foucault. Uma tal tendência normativa não se pode manter intocada se a teoria da
sociedade perceber que certas preferências normativas são formadas no tipo de diferenciação
social e nas mesmas formas do poder e da sociedade que se quer transformar.
Por outro lado, as concepções sistémicas da ciência política (D. Easton ou O. R.
Young) correspondem a versões em que se percebem ainda mal os contornos do meio
simbólico do poder frente a outros meios de comunicação, mal distinguem entre componentes
psíquicos e comunicativos no conceito de “influência” e não têm em conta a singularidade do
processamento de comunicação nos níveis da interacção, das organizações e do sistema
político.
A proposta de exame sociológico do poder em N. Luhmann é diferente destes
modelos de investigação que igualmente se reclamam de uma componente social do poder. A
sua sugestão parte da Teoria dos Sistemas com as correspondentes exigências metodológicas,
entre as quais um conceito adequado da observação e descrição da sociedade “a partir da
sociedade”, e esboça-se na obra Poder em redor de três direcções: i) a pesquisa do poder
enquadrada numa teoria sobre a formação dos sistemas sociais e da diferenciação social; ii) a
linha que relaciona a evolução social e as formas de poder; iii) o poder no molde mais geral
da “teoria dos meios de comunicação generalizados do ponto de vista simbólico”.
Para desenvolver a concepção do poder como meio simbólico particular é-lhe
necessário mostrar como os meios simbólicos e em especial o poder são “universais sociais”.
Com isto se significa que os meios simbólicos possuem uma aplicação geral na sociedade e
não estão restritos a esferas particulares, a tipos especiais de interacção ou a sistemas
funcionais parciais determinados. O código do poder é pois de aplicação universal nos
domínios em que se desenvolve a análise da sociedade: na interacção ou na comunicação
entre presentes, nas organizações e nos tipos formalizados e institucionalizados de interacção
e nos sistemas sociais parciais da sociedade, diferenciados do ponto de vista funcional, como
o sistema político.
Há uma vantagem metódica em que a análise do poder se desenrole primeiramente na
especificação do poder como meio simbólico particular.
Os meios simbólicos possuem códigos. O código do meio do poder é investigado com
base na estrutura simbólica da relação que o poder torna possível mas também com base na
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forma da mediação linguística que permite estruturar a experiência que recorre a símbolos na
distinção entre sim / não; verdadeiro / falso. Assim, o apoio da estrutura de um código
mobilizado nos meios simbólicos é uma oposição binária tecida pela negação simples. Esta
exprime-se na distinção basilar querer / não-querer e pode aplicar-se ao detentor do poder na
relação com os não-detentores. A negação simples lógico-linguística tende a reforçar o valor
opositivo em que o próprio código se estrutura e os respectivos aspectos semânticos.
Por outro lado, a análise do poder como meio simbólico não pode evitar defrontar-se
com a individuação e diferenciação dos outros meios simbólicos como o “amor”, o “dinheiro”
ou a “verdade” que igualmente estão coordenados com determinadas especificações
funcionais da sociedade moderna como a família, a economia ou o sistema da ciência. Saber
como opera o poder implica descrever as distinções de outros meios simbólicos e
compreender como elas se relacionam com a diferenciação funcional. Por este motivo, a
teoria do poder implica a teoria da diferenciação social, a caracterização aqui da diferenciação
funcional e mais particularmente a diferenciação dos meios simbólicos.
Em Poder o tema sociológico do poder como meio simbólico é investigado em
relação com a acção, com o binário acção / vivência e com o sistema social a partir da
seguinte questão geral: como é possível na sociedade a especialização de um domínio
consagrado à transmissão social de reduções de possibilidades da acção (LUHMANN,
1975: 19).
O tema é então esclarecer os mecanismos da transmissão da redução de possibilidades
da acção entre agentes situados em cadeias de acções reciprocamente condicionadas.
Ao analisar o meio do poder N. Luhmann mostra a importância da modalização e do
desenvolvimento de perspectivas sobre a acção com base em representações de alternativas.
São estas que garantem a densidade particular ao meio do poder e não já a orientação fáctica
segundo esta ou aquela via determinadas em sentido imperativo. O poder abre possibilidades
na modalidade de redução de possibilidades e assim traça aquelas possibilidades que podem
ser também para os outros revelando assim o problema da aceitabilidade social das
possibilidades reduzidas para sujeitos possíveis. Poder não é forçosamente mandar.
Da construção contrafáctica, modalizada, da relação de poder se segue que o poder é
uma relação que se desenvolve em dois níveis: um deles que permite descrever o poder na sua
dimensão de potencialidade e o outro que o descreve como relação situacional do exercício de
poder – o plano da actualização do poder.
No uso habitual do conceito de poder estão presentes as notas da causalidade e da
resistência. Estas últimas foram relacionadas com a ideia de um cálculo das condições e
possibilidades de aplicação das forças num jogo de interacção de forças e de poderes com
referência a opositores actuais ou potenciais, mas que só tomam lugar porque o problema da
aceitação social das possibilidades reduzidas do poder foi introduzido pelo próprio poder. O
grau de actualidade e virtualidade do uso do poder ou da ameaça do recurso ao poder e da
resistência é referido nas concepções políticas do poder, não só por estas terem de conceber
assim a distinção entre aliados e opositores mas também por com base nessa graduação se
referir o poder à violência como uma possibilidade sua sem se confundir nela.
A análise do poder implica então a descrição completa da diferenciação do meio de
comunicação que mobiliza o poder como símbolo e os seus tipos e graus de modalização. Os
meios de comunicação generalizados do ponto de vista simbólico foram desenvolvidos para
interacções específicas e para a solução de problemas que emergem nas interacções. Na
medida em que as diferentes formas de interacção se sobrepõem e se coordenam podemos
usar o termo da Fenomenologia e falar num “mundo da vida” estruturado nessas interacções e
nos tipos simbólicos que asseguram a reprodução de determinadas sequências comunicativas,
de vivências e de acções. O uso que N. Luhmann faz do conceito de “mundo da vida” da
Fenomenologia parte de dois aspectos nucleares: i) do carácter do “dado por garantido” de
certo tipo de crenças sobre a realidade circundante e sobre o que é esperado da interacção que
conduz a padronizações de expectativas, a antecipações por projecção e a pré-compreensão de
motivações; ii) o carácter de latência do pré-concebido e de possibilidades que no modo da
pré-concepção constituem um halo virtual projectivo a que aponta o conceito de mundo.
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As modificações na coordenação das acções que evoluem a partir deste “mundo da


vida” partem da premissa da estrutura diferencial da actualidade / potencialidade. Dimensões
importantes das relações de poder da interacção e da comunicação entre presentes se
desenvolvem nesta base de pressuposições na forma explícita ou tácita. A análise do poder na
interacção não inclui os aspectos da formalização da autoridade, da definição de cargos e de
atribuição de níveis hierárquicos que são supostos do processo de institucionalização e da
reprodução das organizações por via burocrática.
À expansão da ordem social que parte do “mundo da vida” para formas mais
especializadas do ponto de vista funcional mediante uma libertação das possibilidade
disponíveis quer para as vivências quer para as acções chama N. Luhmann “técnica”. A
técnica é uma explicação dos nexos de sentido articulados nas vivências e nas acções e deste
modo ela representa um modo de ordenar esse “mundo da vida” segundo explicitações de
possibilidades (LUHMANN, 1975: 71). Pelo facto de a explicitação se desenvolver
efectivamente resultam consequências para o entendimento da distinção entre possibilidade e
actualidade e para a orientação selectiva da experiência do mundo. O modo como o poder se
propaga na sociedade tem uma ligação óbvia com a generalização das suas tecnologias pois
são estas que asseguram a visibilidade para os participantes do valor das possibilidades
práticas que em cada caso se abrem para os cursos das acções e das motivações.
É com base nesta compreensão sociológica geral de técnica como libertação de
possibilidades latentes mediante explicação de sequências de sentido disponíveis para as
vivências e para as acções que o conceito de poder se pode reconhecer como uma “forma
fenoménica da técnica” (LUHMANN, 1975: 72). O poder como técnica está baseado na
capacidade para codificar e simbolizar cadeias causais segundo a distinção geral entre o
possível e o actual. Com base nisto se abre não apenas para níveis de processamento de
sentido crescentemente complexos como ainda se torna o poder mais capaz de enfrentar a
contingência sem nunca a eliminar.
Nas condições comunicativas da sociedade moderna o código do poder tem de
pressupor como actantes sujeitos dotados de auto-determinação da vontade, portanto, sujeitos
livres. É a partir deste pressuposto que o código determina as condições em que se podem dar
as transmissões de selecções relativas às possibilidades da acção.
A transferência (Übertragung) de selecções de possibilidades da acção que
correspondem a formas de redução da complexidade têm lugar na acção quando a acção de
alter co-determina a selecção da acção de ego. O poder não destrói a relação dos actantes
com as alternativas presentes na situação que a própria relação de poder ajudou a gerar. O
poder torna evidentes essas alternativas, mas ao mesmo tempo estrutura o sentido de uma
relação negativa para com elas, tornando viável uma co-determinação da situação de tal
ordem que o poder faz com que os actantes queiram evitar certas alternativas e escolher só
algumas de entre elas. As preferências práticas são ordenadas desta forma na estrutura do
meio do poder através da transferência de selecções de possibilidades de acção. A
coordenação de possibilidades práticas e a coordenação das próprias acções tornam-se assim
possíveis mediante a referência cruzada ao que se pretende evitar na representação das
alternativas disponíveis. É assim que a estrutura da relação de poder assenta numa orientação
condicional para as possibilidades da acção. Só aqui podem ter lugar expressões de acordo e
desacordo, consenso ou conflito.
A dimensão técnica do poder ainda é mais evidente se percebermos que este se pode
tomar como um modo de regulação de cadeias de operações cujos momentos podem
corresponder a elos dotados de imputabilidade consecutiva e interdependente. Este aspecto da
modulação do exercício do poder seguindo cadeias causais em que níveis de imputabilidade
se ligam a níveis de motivação exprime bem o que está em causa nas técnicas do poder nas
organizações. Aqui as decisões tomadas estão relacionadas com cargos referidos a funções, ao
mesmo tempo dependentes e subordinadores de outros cargos articulados com funções. Mas o
mais importante está em compreender que o poder que o cargo confere não se traduz em
imperativos para os subordinados mas sim na selecção de possibilidades que outros escalões
aceitarão ou negarão (se resistirem) e poderão mobilizar para os escalões inferiores. É o jogo
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selectivo e sequencial sobre possibilidades práticas que as tecnologias do poder abrem e não
tanto esta direcção determinada de um imperativo ou exercício do mando.
É claro que se o poder se generaliza socialmente nas condições modernas mediante a
sua crescente afirmação como uma tecnologia, isso significa que o poder não pode ter um
carácter violento e directamente impositivo.

2. O Poder como Tecnologia e a Diferenciação Funcional da Sociedade Moderna

As análises de Poder que partiam do poder como meio simbólico aproximavam a


abordagem de N. Luhmann da investigação sociológica de T. Parsons mas garantiam-lhe, ao
mesmo tempo, autonomia. A Teoria da Sociedade iniciada nos fins dos anos 1960 se tornou
nos anos 1980, depois de Sistemas Sociais (1984), em uma concepção que pressupõe o
isolamento para fins analíticos do sentido processado em sistemas sociais do sentido em
sistemas psíquicos. Daqui se seguem consequências na concepção da sociedade como
“sistema de comunicações” e na investigação do poder como um meio de comunicação
particular, mas também diferenças relativamente ao exercício teórico de T. Parsons.
No meio de comunicação que é o poder é possível identificar certo tipo de reacções a
comunicações sobre decisões ou preferências de outrem que contam directamente como poder
ou podem ser relevantes para comunicações ulteriores com recurso ao poder. Trata-se da
recusa ou descarte das mensagens a que se atribui o significado de transmissão de reduções
das possibilidades de acção. Recusar uma mensagem deste tipo é opor-lhe resistência. A
distinção entre poder e resistência tem então lugar e pode ser objecto de mais selecções e
escolhas. Além disso, a tematização explicita da recusa de certas mensagens abre o terreno do
conflito.
Os sistemas sociais não estão imunes ao conflito como dimensão da comunicação
com referência ao poder. Na realidade, conflito implica já uma referência ao poder. O que
pode variar é o modo como o conflito é objecto de processamento e reconfiguração por outros
tipos de comunicação, com recurso a outros meios de comunicação generalizados do ponto de
vista simbólico, o que ocorre num contexto sistémico mais complexo que não conta apenas
com a referência ao poder mas com várias referências cruzadas. Sem dúvida que para
perceber de que modo os outros meios simbólicos se juntam na expressão do conflito é
necessário ter em conta a evolução social e especialmente o tipo geral de diferenciação da
sociedade. Os recursos à linguagem verbal e à interacção de tipo linguístico verbal não são
obrigatórios para o funcionamento do meio simbólico do poder. Aliás, nas sociedades mais
avançadas reconhecemos na divulgação e expansão da escrita condicionalismos importantes
para articular vários meios simbólicos e não apenas o poder, para além da linguagem verbal.
O meio da escrita será fundamental nas sociedades funcionalmente diferenciadas para
estruturar sequências decisórias com recurso ao poder na administração e burocracia. Mas
mesmo antes, nas sociedades estratificadas, ao serviço, por exemplo, da concentração do
poder, a generalização do uso da escrita como meio de fixação do sentido comunicado foi um
modo de articular motivações para a acção, vivências e comunicação que já prescindia da co-
presença dos actores e de um consenso comprovado entre indivíduos, mobilizando signos
linguísticos da comunicação verbal.
Os meios de comunicação generalizados do ponto de vista simbólico tornam possível
a relação entre participantes na forma de uma mediação simbólica entre o que conta de um
lado como selecção e do outro lado como motivação para a acção. Os meios de comunicação
tornam este nexo especialmente evidente e aliás, em certas condições, são os meios que criam
o próprio nexo entre o que se dá como orientação motivacional da acção com referência a
selecções aceites e o que aparece expresso no plano simbólico sobre essas mesmas selecções.
São os meios e os símbolos em que eles se baseiam que tornam mutuamente acessível o que
está em causa como selecção no quadro de situações de dupla contingência em que são
centrais a condicionalidade recíproca das acções de ego e alter e as expectativas sobre rumos
possíveis.
O que neste quadro caracteriza o poder não é o exercício directo da força sobre
alguém ou a orientação de alguém relativamente a fins definidos. Mas, a abertura de um tipo
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de jogo em que é a incerteza e as expectativas em redor da incerteza que se tomam como


essenciais. O facto de existirem sempre mais possibilidades de acção e de o poder nunca
comandar isto ou aquilo mas gerar um espaço em que a incerteza tem lugar e em que o
importante é precisamente dirigir a incerteza distingue entre poder e coacção.
Como se viu atrás, o que o poder deve ser capaz de definir são as condições de
transferência de selecções (Selektionsübertragung) de um lado (ego) para o outro (alter).
Sistemas sociais dotados de complexidade como aqueles que caracterizam sistemas
funcionalmente diferenciados não suportam a confusão entre poder e coacção e portanto não
desenvolvem acções na suposição de um controlo centralizado da coacção. Sempre foi um
erro conceber o poder na forma pura do imperativo. Ao contrário da coacção o poder das
sociedades funcionalmente diferenciadas aumenta com as alternativas que coloca ao dispor
dos participantes, “aumenta com a liberdade de ambos os lados”.
O esquema do poder com recurso à mediação de meios simbólicos na sua relação com
a vontade não consiste em impor à vontade um rumo mas em última análise em neutralizá-la.
A função do poder consiste numa regulação da contingência e nesta medida numa orientação
das possibilidades oferecidas no jogo entre ego e alter. É nesta capacidade de orientação das
possibilidades que o poder é compatível com o direito.
Se a relação entre poder e causalidade é uma relação característica, ela vai contudo
até um dado ponto do que caracteriza o poder. Na sociedade moderna, este último é mais que
uma causa simples: manifesta-se quando aumenta a probabilidade de se tornarem reais certas
selecções improváveis. O poder é então tanto mais necessário quanto é impossível ou cada
vez mais difícil regular na relação directa e imediata dos indivíduos as consequências
contingentes das suas acções. Mas isto tem evidentemente consequências na forma altamente
socializada do código do poder. O exemplo paralelo do amor mostra que só quando não
conseguimos saber como explicar uma escolha de uma pessoa é que a referência a um código
social como o amor se torna forçosa.
Na medida em que o poder se define pela capacidade de transferir selecções de
possibilidades prévias, ou seja, reduções prévias de possibilidades de motivações e acções, de
um pólo (ego) para outro pólo (alter), ele é influência, faculdade de influenciar outrem e de
generalizar socialmente essa influência. Aqui, a definição de poder concorda com a acepção
de T. Parsons.
Pelo facto de se desenvolver no meio do sentido o poder organiza-se mediante os três
modos da sequencialidade do sentido: na dimensão temporal, na objectiva e na social. De
onde resulta a tripla orientação da generalização da influência segundo a categoria temporal
da autoridade; a categoria objectiva da reputação e a categoria social da chefia. Nas três
categorias se trata de modos muito elementares da generalização de motivos para aceitação da
influência.
A autoridade está situada na dimensão temporal na medida em que ela garante a
generalização social da influência por remeter ao papel desempenhado no passado pela
redução da complexidade em acções anteriores. A reputação está baseada na suposição de
algum fundamento cognitivo (objectivo) para a aceitação da influência. A chefia desenvolve-
se mediante as regras sociais da imitação, o que acarreta que a aceitação da influência esteja
dependente do reconhecimento de que os outros seguem as mesmas orientações.
As tecnologias do poder correspondem a mecanismos selectivos orientados para
sequências de forma a garantir a generalização da influência nas condições modernas da
diferenciação do meio simbólico do poder. Servem para enfrentar a contingência mediante
selecção de possibilidades da acção e pela propagação social das selecções. Porém, para o
poderem concretizar as tecnologias do poder têm de gerar sempre mais complexidade, têm de
definir instâncias de poder, prerrogativas, níveis de responsabilidade e de imputabilidade,
cadeias de tomadas de decisão, de chefia e hierarquias de comando e obediência. O que assim
se concretiza é um aumento de racionalidade do conjunto do mesmo modo que um aumento
do próprio poder socialmente disponível. Na sociedade funcionalmente diferenciada o caudal
do poder é incomparavelmente maior que nas sociedades arcaicas, o que significa que o poder
é tanto maior e mais racionalizado quanto mais descentralizado e menos próximo estiver da
exigência da concretização das acções mediante o recurso à violência.
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3. Poder e formas diagramáticas de selecção sequencial de possibilidades

Para que a forma da relação de poder ganhe densidade comunicativa é necessária a


representação concreta das sanções, que podem ser positivas ou negativas e, pelo facto de
influenciarem as expectativas mútuas, são essencialmente condicionais e acompanham a
orientação condicional da própria relação de poder tal como a avaliação relativamente
positiva ou relativamente negativa das alternativas de acção que se oferecem aos
participantes. Em Organisation und Entscheidung (2000) N. Luhmann referia a absorção da
insegurança como um terceiro aspecto da gestão social da influência (LUHMANN, 2000:
184). A absorção da insegurança que é muito importante nas organizações e na gestão
representa em geral, nas tecnologias do poder, a orientação sequencial e em certos casos
abertamente polietápica das decisões. Sabe-se que uma decisão abre para outras decisões e
que é nesta abertura interdecisional que o poder se modula mesmo que não se consiga
antecipar tudo o que vai ocorrer em todos os momentos da cadeia.
O direito torna possível nas sociedades mais complexas a utilização mais
aperfeiçoada da estrutura modalizada do meio do poder na sua concretização decisória. Pelo
direito se podem criar normas que representam orientações esperadas de cargos de poder já
despersonalizados. Pela invocação das normas e do que é expectável do ponto de vista
normativo se podem gerar equivalentes funcionais da relação de poder. Assim, o poder como
tecnologia se pode organizar de um modo a que chamaremos diagramático.
As decisões estão inscritas na estrutura temporal da relação de poder de tal modo que
elas se ligam, condicionalmente, por um lado à avaliação preferencial e por outro à
oportunidade temporal que os actantes representam no quadro das alternativas. Mediante a
selecção e ordenação temporais das decisões os sistemas sociais podem organizar a redução
da complexidade. É também mediante a cadeia de decisões no tempo que o poder realiza a
transferência das selecções de um ponto para outros pontos dos nexos que estabelece. É a
propósito que N. Luhmann usa a metáfora do fluir e do elemento líquido para explicar como o
poder se procura desenrolar a ele mesmo, relativamente às suas selecções, ponto a ponto,
momento a momento, decisão a decisão até se diluir.
Observámos já como a codificação da base binária dos meios simbólicos se estrutura
na negação lógico-linguística. É a negação que permite um reforço da diferença binária que
está na fonte do próprio código, como acontece com a diferença entre poder / não-poder. Mas
a negação simples não é a única possibilidade para estruturar os elementos das combinações
binárias do códigos. A sobrecodificação resultante de transjunções (G. Günther) como a que
ocorre entre o código do meio do poder, o código do meio simbólico do dinheiro ou o código
do direito torna expansíveis as relações de poder muito para lá do que a interacção facilitaria
com base no reconhecimento imediato e directo dos detentores do poder e dos subordinados.
Mais ainda, a sobrecodificação facilita a relação entre sistemas parciais funcionalmente
diferenciados como o sistema político, o económico e o jurídico e os mais diversos
acoplamentos estruturais. Isto acentua o valor diagramático do poder como tecnologia.
Na evolução moderna do código do poder teve especial relevo a despersonalização do
seu uso e a sua mobilização para atingir finalidades determinadas e para garantir a sua
adaptação à sociedade funcionalmente diferenciada, largamente anonimizada. Nesta evolução
teve importância a distinção entre pessoa e cargo. A relação de poder deve supor a referência
ao cargo mas não à pessoa numa acepção psíquico-orgânica.
As transformações no sentido da abstracção das características pessoais dos
detentores do poder estão relacionadas com a possibilidade do recurso a organizações para
fazer cumprir orientações e fins práticos. Com a abstracção das funções de comando em
relação às características pessoais a administração do poder ganha em formalização do
mesmo modo que a torna adequada às exigências jurídicas da planificação da tomada de
decisões. Da formalização dos lugares do poder pode então passar-se à formalização da
cadeia sequencial do poder desde os postos que são indicados como fonte da cadeia até ao
ponto terminal.
9

O poder que é exercido sobre as instâncias subordinadas pode encontrar resistências.


As resistências ao exercício do poder formalizado não se podem esperar nem definir em toda
a sua extensão de um ponto de vista formal. É por isso que os contra-poderes dentro das
organizações obrigam à distinção entre poder formal e poder informal. O grau de relevância
que pode assumir nas organizações o poder informal é muito variável, mas é um facto que nas
condições diagramáticas do poder na sociedade funcionalmente diferenciada o poder informal
tende a generalizar-se. N. Luhmann propõe para as formas do poder informal o conceito de
código paralelo e mostra como este tipo de codificações paralelas ocorre em outros casos de
meios de comunicação generalizados do ponto de vista simbólico - para a “verdade” na
comunicação científica é o caso da “reputação” dos cientistas.
A especificação funcional do poder em modelos diagramáticos e o seu grau de
institucionalização andam a par. Para além disso, do ponto de vista da organização da cadeia
decisória relacionada com a administração do poder a especificação funcional tem a vantagem
de se relacionar particularmente bem com a programação condicional. A organização das
cadeias causais do poder pode ser feita com base no chamado poder hierárquico tal como o
encontramos na prática da decisão política mas também na prática administrativa. A
burocracia implica um modelo de hierarquização das cadeias do poder e dos pontos de
transmissão das responsabilidades por decisões do topo à base. Nos sistemas políticos das
sociedades funcionalmente diferenciadas a tomada de decisões formalizada segundo um
modelo hierárquico de poder, diagramático, supõe naturalmente o sistema jurídico e a
regulação jurídica dos conflitos e do próprio horizonte da aplicação das relações de poder.
A hierarquização das relações de poder e das cadeias de comando dá sentido à
impressão que do ponto de vista político-legal há poder e que este existe numa determinada
proporção entre os elos previstos e mencionados. A esta regra de proporcionalidade chama N.
Luhmann a “premissa da soma constante” (LUHMANN, 1975: 52). Quer dizer que
modificações nas relações de poder implicam sempre novas repartições do poder no sentido
do reequilíbrio. Como consequência de tais alterações o que se passa a ganhar num lado tem
de ter sido forçosamente perdido em outro lado.

4. Poder e sistema político

Baseada na Metafísica da Perfeição a ideia da soberania política da época medieval


supõe um ponto final na hierarquia do poder. O coroamento do poder num último detentor,
identificado com a fonte da perfeição política e natural, qualifica a concepção pré-moderna.
Da identificação do último detentor com o grau último na cadeia das perfeições dependia
igualmente a legitimação do poder que se baseava em princípios morais e religiosos.
A forma moderna da legitimidade do sistema político longe de se poder basear na
perfeição ou no bem descreve-se na modalidade da “bifurcação no topo” (LUHMANN, 1990:
232) que N. Luhmann associa à constituição do código do sistema político democrático na
distinção entre governo / oposição. “1800” é uma data simbólica para perceber como no
Ocidente se começa a desenvolver a autonomização funcional do sistema político segundo o
ideal desta “bifurcação no topo” sobre as ruínas dos modelos estratificados de concepção do
político como unidade da sociedade e realização da perfeição moral. Começam a evitar-se as
soluções morais que inferem a legitimidade política dos detentores do poder da partilha
comunitária de valores de que esses detentores são representantes.
A oposição binária do justo / injusto pode ter os seus próprios efeitos comunicativos
nas operações do sistema jurídico e no modo como aqui se processa informação sobre “cases
and controversies”. Mas do seu uso moral para descrever um sistema político como
“legítimo” ou “ilegítimo” pouco ou nada se pode esperar. Dessa distinção não se podem
extrair quaisquer consequências para a estrutura da sociedade moderna no seu conjunto, do
mesmo modo que do protesto moral em nome da perfeição ou do bem não se seguem
consequências na estrutura de uma sociedade diferenciada do ponto de vista funcional.
Para N. Luhmann o problema da legitimidade do poder da sociedade moderna não se
pode solucionar combinando consenso e conflito, crenças partilhadas e dissenso ou paz e
violência. Trata-se de um problema que envolve as estruturas e os processos que atravessam o
10

código do poder e a autonomia funcional do político que em parte se revê na evolução do


estado moderno. A forma como alguns autores traduziram na oposição simples “consenso ou
conflito” os problemas mais complexos da transjuncionalidade de códigos de sistemas
parciais e de meios simbólicos revela o carácter redutor da semântica moral mas nenhuma
vantagem analítica.
Partamos da relação do poder com a violência na forma latente ou manifesta. O poder
no seu exercício não estabelece com a violência uma relação com a sua ultima ratio. Não foi
pela negação dos valores transcendentes e afirmando a violência como cenário dissuasor para
as perturbações do consenso politicamente disponível que a modernidade se afirmou. Na
sociedade moderna, o que a referência do poder à violência concretiza é um aspecto da
diferenciação do próprio meio do poder relativamente ao que é definido como âmbito
orgânico ou psíquico-orgânico do exercício do poder (LUHMANN, 1975: 61). Se é possível
que na relação de poder se organize uma referência a uma base orgânica não é esta referência
como tal que constitui a codificação do poder como meio simbólico ou a sua mobilização
pelo sistema político. É então necessário entender de modo mais adequado o significado da
violência na sua relação com o poder à luz da evolução. Depende da estrutura social
organizada em consequência da evolução o valor atribuído à vida como referência de uma
relação de poder.
Vários meios de comunicação generalizados do ponto de vista simbólico dispõem de
“mecanismos simbióticos” (LUHMANN, 1974: 116). A percepção funciona como um
mecanismo simbiótico para a verdade; a sexualidade para o amor e o poder mantém com a
violência física uma relação análoga. A percepção não exprime a verdade, do mesmo modo
que a sexualidade não representa o amor. O poder é tanto mais poderoso quanto mais
prescinde da exigência da vida daqueles a que se aplica a sua relação. É uma dimensão
essencial do exercício do poder o facto de este se articular sempre de um ponto de vista
simbólico e tendo em vista a complexidade própria do código do poder. Os códigos
simbólicos relacionam-se com os seus mecanismos simbióticos como com os equivalentes de
evidências histéricas. Para os códigos funcionarem precisam de os virtualizar e de os
apresentar no modo da latência, com recurso por exemplo a ficções. É nesta medida que a
modernidade não substituiu de um modo simples a representação de um universo ordenado
segundo a crença na perfeição pela violência de um mundo sem Deus, mas virtualizando a
comunicação sobre a violência.
Da análise dos mecanismos simbióticos nos meios de comunicação simbólicos,
nomeadamente no poder / violência, resulta que o poder nunca se pode interpretar na
oposição simples consenso / coerção. É uma dimensão essencial do exercício do poder o facto
de este se articular sempre de um ponto de vista simbólico. A distinção entre detentores /
subordinados do poder não pode reflectir directamente a diferença entre posse / ausência de
força o que a torna uma distinção que o sistema jurídico assimila para o seu próprio
processamento de sentido em paralelo com o sistema político e a noção de estado. Esta é a
vantagem de o código do poder não se identificar com o seu mecanismo simbiótico. É
também uma das explicações para o conceito composto de “estado de direito”.
No tema dos riscos do poder estão incluídas várias facetas entre as quais as que se
prendem com lacunas na interpretação do que os detentores do poder pretendem transmitir
sobre possibilidades de acção até aos abusos do poder por parte dos detentores do poder. Em
redor destas questões se desenvolveram na modernidade vários discursos, surgiu uma
variedade de temas conexos com coloração moral e se organizaram as salvaguardas de tipo
institucional. Pode posicionar-se neste terreno também a discussão do conceito moderno de
soberania, a sua dependência em relação às teses político-morais da limitação do poder e as
tecnologias defensivas ou protectoras correspondentes.
Um aumento ou uma diminuição no poder socialmente disponível para obter certos
fins só pode medir-se com base na análise da evolução. Partindo deste horizonte evolutivo
podem ter sentido as medidas contra os riscos de abuso do poder ou pelo contrário as medidas
contra a sua fragilidade. Conta-se ainda entre os riscos associados ao poder o da perda da
capacidade de ficcionalização pelo meio do poder de que o poder ainda consegue concretizar
as próprias possibilidades. As crises do poder são também expressões de riscos quando têm
11

lugar na cadeia decisória. Estas eventualidades são corrigidas mediante planeamento do


poder, mas quando este não consegue agir de modo eficaz podem resultar os fenómenos
conhecidos como situações de emergência que vão desde as crises que ocorrem dentro de
organizações específicas até ao sistema político na sua generalidade. O binário interpretativo
inflação / deflação proveniente da descrição do meio “dinheiro” pode ser atraente para revelar
flutuações perigosas na percepção social da capacidade de influência das estruturas do
sistema político na tomada de decisões e na obtenção de obediência.
A formação do poder como algo de especificamente político é um acontecimento
decisivo e afecta não apenas a administração localizada do poder mas toda a sociedade
(LUHMANN, 1975: 91) Muito embora a mobilização do poder pelo estado seja central para
caracterizar o sistema político moderno não se pode afirmar que não resta já poder fora do
estado. O facto de continuar a existir poder fora do âmbito da administração e planificação
propriamente política conduz à questão dos limites da politização do poder, que o próprio
sistema político reflecte no seu código.
O modo como o poder político se distinguiu da violência ou da coerção física é um
assunto que no pensamento social, jurídico e político está ligado aos nomes de M. Weber, H.
Kelsen, H. L. Hart e T. Parsons. Percebemos como entre H. Kelsen e H. L. Hart se dá um
desenvolvimento consciente das tecnologias modernas do poder que o estado assume para si
segundo as formas processuais do direito. Quando em 1969 N. Luhmann introduzia o seu
conceito de uma “legitimidade pelo procedimento” não só dava continuidade a esta linha
como ainda sustentava que não é correcto conceber uma justificação das decisões políticas
sem a coerência diagramática dos procedimentos. Mais tarde dirá que sem a
institucionalização de “chances improváveis de acção” (LUHMANN, 2000a: 51-52) e, por
conseguinte, sem a formação do sentido das acções no meio do poder não tem lugar o tema da
legitimidade. Numa fórmula se tem de afirmar que é a legitimidade que pressupõe o poder e
não o poder que pressupõe a legitimidade. Na obra postumamente editada A Política da
Sociedade (2000) N. Luhmann desenvolve esta tese no seu tratamento do sistema político da
sociedade funcionalmente diferenciada e distingue a sua posição sobre legitimidade da que se
encontra em H. Arendt e J. Habermas (LUHMANN, 2000a: 52).
O sistema político moderno usa o meio simbólico do poder segundo o seu próprio
código. Na sua expressão binária e no topo que representa simbolicamente a hierarquia
política o código político opõe governo / oposição. O conceito de democracia está muitas
vezes associado à possibilidade da alternância no topo que, assim, parece estar ele próprio
bifurcado. Uma das características do código moderno do sistema político consiste em que
para ser aceite se supõe a suspensão ou a colocação em parêntesis dos juízos morais sobre os
adversários. Se os contendores políticos se defrontam num plano moral e mutuamente se
qualificam mediante a diferença bom / mau dificilmente podem aceitar a alternância que o
código impõe. Isto levou a asseverar que o sistema político funcionalmente diferenciado, ou a
democracia, implica um nível de elevada amoralidade (LUHMANN, 1990: 237). É claro que
esta amoralidade significa que os adversários não só não são inimigos como o código exige
que eles mutuamente se reconheçam na sua capacidade política plena.
Nas condições da “sociedade mundial” a que se referia N. Luhmann em A Sociedade
da Sociedade ficará por reconhecer como se pode articular a governação global com os tipos
políticos nascidos no berço da Soberania Nacional, entre os quais se conta a Democracia no
sentido moderno. Algumas propostas estimulantes neste sentido foram articuladas por H.
Willke (2001) e por R. Stichweh (2007).

5. Protesto

N. Luhmann concebe o crescimento dos movimentos de protesto na sociedade


moderna como uma consequência da diferenciação funcional. O protesto consiste na
promoção de uma linha de distinção frente a uma unidade indiferente e com essa linha
observa-se a sociedade ou instituições do estado com clivagens do discurso. O mesmo
mecanismo serve a auto-observação do movimento. É possível categorizar os movimentos de
protesto de diversas formas com recurso a linhas de fronteira como aquela que separa
12

inclusão de exclusão. É também conveniente atender à sua evolução: os movimentos sociais


recentes não obedecem a padrões bem definidos; os designados “novos movimentos sociais”
não estão focados nem em assuntos religiosos nem em exigências de melhores condições de
vida. Os primeiros tipos foram característicos da evolução inicial para a diferenciação
funcional enquanto os segundos relacionados com a luta socialista ou com o sindicalismo são
expressões muito típicas da industrialização.
Além do aspecto evolutivo o posicionamento sociológico dos movimentos de protesto
é indefinido. N. Luhmann considera que eles não são nem organizações nem sistemas de
interacção.
Os movimentos de protesto não são organizações pois não processam decisões, não
têm capacidade para submeter os seus membros a decisões com valor disciplinar e não
possuem controlo sobre a sua própria mudança. O que os movimentos de protesto
concretizam é a partilha de motivações e compromissos. Estes movimentos não são sistemas
de interacção pois não se esgotam no estar em conjunto dos membros envolvidos, mas estão
activamente voltados para a representação das metas do movimento e do seu cumprimento.
Uma das características mais relevantes dos movimentos de protesto está na formação
no seu seio dos destinatários do protesto. Do mesmo modo que no movimento se constitui um
“nós” por participação e partilha de determinadas orientações do sentido ou de opiniões, que
se pretendem muitas vezes expressões da “opinião pública”, se constitui também um “eles” e
um “a quem” se endereçam exigências e reivindicações. Na medida em que o protesto
concretizou firmemente um opositor pode falar-se em pressão ou em contra-poder.
Na escolha e desenvolvimento de temas particulares o protesto oscila entre aspirações
e realizações, reivindicações e satisfação de reivindicações. Muito embora a sociedade se
ligue no protesto como o meio de que emergem as formas temáticas do protesto é como se a
sociedade fosse a visada no próprio movimento, como de fora. Daqui decorre o modo
especial como a distinção centro / periferia é mobilizada contra os “centros” da sociedade,
que são tidos como espelhos dos detentores do poder (LUHMANN, 1996b: 205). Mas
também se exprime nesta aparente exterioridade a diferença entre o protesto e a oposição
política. Esta última articula-se por dentro do sistema político e implica a aceitação do código
do sistema político assim como as normas constitucionais relativas ao exercício institucional
da oposição. A forma dramática da comunicação no protesto, com envolvimento da
componente física, serve para reforçar os lados da distinção que o movimento construiu e a
sua aparente transcendência. O protesto é incapaz de produzir “re-entries” dos lados da
distinção com que opera sem destruir o próprio movimento. Tais características permitem
perceber a forte cristalização moral do uso das distinções nos temas com que o protesto
organiza as controvérsias e a incapacidade do protesto para gerar reflexão sobre a sua própria
forma temática e da controvérsia.
O sistema político ao articular a re-entry do seu próprio código segundo a diferença
entre governo / oposição e ao fazer com que ela decorra do funcionamento do sistema
eleitoral e da alternância, graças à reflexão ultrapassa o carácter cego da posição das
distinções e das controvérsias dos movimentos de protesto.
A exigência de visibilidade do desenvolvimento dos temas e das controvérsias que a
autopoiesis do protesto articula faz com que estes movimentos sociais mantenham com os
mass-media relações muito estreitas, pois os meios de comunicação social exprimem os
temas, os lados das controvérsias, os “prós-“ e “contras” e a evolução temporal dos temas
segundo a ilusão de transparência da “opinião pública” e à luz do seu próprio tempo
mediático ritmado pela “agenda”.

Referências Bibliográficas
(os textos de Niklas Luhmann mencionados referem-se aos trabalhos mais directamente relacionados
com o tema do poder e do sistema político e não é uma lista exaustiva)

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