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Da classe do Lula à classe do lulismo:

emergências, conexões e os transbordamentos do petismo

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Somos parte de uma tradição dos oprimidos, dos subalternos, das classes trabalhadoras. Somos uma
esquerda que se reivindica socialista e democrática. Somos parte do petismo, a mais forte e bela
experiência de auto-organização em massa dos trabalhadores brasileiros, uma cultura política de
direitos e liberdades que transborda as estruturas partidárias e que segue viva e potente mesmo com
todos os descaminhos que marcam o PT.

Queremos defender aqui o “petismo” enquanto cultura política, organizadora de uma rede de
associações, coletivos, ativistas, expressões, agir coletivo. Cultura política que produz e é produzida
pelos valores, corpos, desejos das classes subalternas brasileiras, instrumento da proliferação de
lugares de resistência. Isso é o petismo, que segue firme, vivo, transborda as instituições partidárias,
que não tem dono, não pertence a ninguém, que é feito no dia a dia, no cotidiano do fazer da vida,
nos valores de solidariedade, justiça, auto-organização, combate às opressões. O petismo vive e é o
grande produtor de encontros dos oprimidos e suas resistências na história da política brasileira: das
fábricas à universidade, das lutas no campo ao direito à cidade, das liberdades da organização
sindical às liberdades do corpo e da sexualidade. O petismo é o mais potente conector político das
classes subalternas brasileiras até hoje.

E é inegável, por parte de qualquer petista, que existe um desencontro, um descompasso, entre essa
energia que o petismo produz e as instituições e estruturas que geram e representam o petismo.
Direção partidária, governos, parlamentares, estruturas sindicais, em suma, todos esses importantes
espaços organizativos parecem não se alimentar mais do petismo, aparentam não conseguir mais
extrair forças dessa energia que é o nosso maior organismo coletivo. Estão ocos.

Apresentamos este texto e nossas propostas ao V Congresso do PT a partir de um desabafo, um


sentimento: não agüentamos mais. Olhamos para o partido e o que vemos são algumas das piores
práticas do poder entre nós: “uso e abuso do dinheiro nas disputas internas”, conforme as palavras
do companheiro Patrus Ananias e alianças com os piores setores da política em diversas cidades e
estados, com participação em governos “aliados” cuja prática é exatamente igual à dos tucanos que
combatemos. Em outubro de 2013 o governador Cabral Filho, no Rio de Janeiro, fez, com os
professores em greve, a mesma violência que Beto Richa protagonizou no Paraná. No entanto, o PT
estadual seguiu no governo. E, pasmem, a aliança com o PMDB será retomada. Ou, ainda, o caso
do Maranhão: Na medida em que o governo Flávio Dino vai abrindo a caixa preta da gestão Sarney,
mostrando o coronelismo em pleno século XXI, dói demais no petismo saber que o PT contribuiu
para a produção dos piores indicadores sociais desse país, que o PT participou – contra a vontade do

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petismo – de um governo que produziu miséria e sofrimento ao nosso povo. São dois estados-
símbolo da tragédia partidária, ponto máximo de afastamento entre PT e petismo, porém tais
situações se repetem em outras cidades e experiências de governo em maior ou menor grau.

Muitas e muitos petistas seguem firmes em suas convicções, dedicando-se dia e noite para ampliar
os direitos e liberdades no Brasil, combatendo a criminalização do partido promovida pelas elites
corruptas, enfrentando o ódio que cresce entre os privilegiados, os reacionários. E, quando olham
para o partido, não encontram apoio.

O petismo, apesar de tudo, mostra ainda muita vitalidade, força e base social. Nas greves dos
professores, nas resistências à terceirização, no combate à redução da maioridade penal, na defesa
das liberdades individuais e dos direitos humanos, na disputa de valores que se revelam em numa
miríade de ações, sobretudo desde junho de 2013.

A cultura política do petismo é maior e melhor do que a estrutura administrativa do PT, como ficou
claro no segundo turno das últimas eleições. O petismo é a potência criativa das (r)existências, é o
calor das ruas, lutando contra o comodismo inercial das desistências e a frieza de quem se
acostumou com ares condicionados. É o contra-burocratismo, a constante suspeita do “isso é o que
é possível fazer hoje”.

O petismo se alimenta de uma concepção de democracia abrangente, dinâmica, que ultrapassa o


momento das instituições: Democracia é produzir igualdade social através da distribuição de renda,
da diminuição da distância entre os mais ricos e os mais pobres. Democracia é também produzir
direitos, sejam eles civis, políticos, sociais, econômicos, culturais, de reconhecimento, etc. Os
direitos permitem que se diminua o poder dos mais ricos, das classes dominantes. Não há
democracia sem ambas as dimensões. Por isso, rejeitamos qualquer forma de autoritarismo, ainda
que produza igualdade social, e, também, as concepções liberais, que justificam a desigualdade pela
liberdade.

Acreditamos nessa dupla dinâmica democrática e isso justifica a práxis política não sectária. Não há
democracia sem que o conjunto de sociedade se manifeste, produzindo ação política e associativa
em alguma medida. Rejeitamos dinâmicas de pequenos grupos iluminados que crêem ser possível
transformar a sociedade pelo exemplo de sua liderança. Ao mesmo tempo, acreditamos que essa
concepção de democracia em dupla chave é fundamental para impedir a cristalização de uma

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esquerda que se apega ao aparato estatal, que apenas administra o capitalismo, que é capturada pelo
modo de “governar os pobres” e não pelo objetivo de acabar definitivamente com as desigualdades.

É graças a essa concepção de democracia que fazemos um balanço positivo do PT enquanto criação
coletiva das classes trabalhadoras brasileiras. Fomos capazes de fazer avançar a democracia no
Brasil nos dois fundamentos que importam. As contradições e impasses não apagam essa vitória.
Isso também não anula que, nesse 13º ano de governo petista, a democracia brasileira esteja
ameaçada como não ocorria desde os anos 1990. O Congresso mais conservador desde 1964 avança
na aprovação da terceirização que destrói os direitos trabalhistas, avança na redução da maioridade
penal, institucionalizando a violência como política pública para a juventude brasileira,
aprofundando os mecanismos estatais e sociais que promovem o genocídio da juventude negra.

Diante desse ataque, as esquerdas e a cidadania ativa brasileira apresentam uma valorosa
resistência, recompondo seus laços, produzindo frentes de luta, etc. Contudo, entendemos que há
nesse movimento um limite do nosso próprio campo. Fazemos as resistências hoje da mesma forma
que fizemos nos anos 1990, na luta contra o neoliberalismo, como se o Brasil e o mundo em nada
tivessem mudado. Mudaram. O capitalismo enquanto sistema mundo adquiriu e aprofundou novas
dinâmicas sócio-políticas. A sociedade brasileira se transformou como parte desse processo. É
fundamental que reconheçamos isso, é urgente uma atualização das concepções e práticas do
socialismo democrático. O petismo precisa ser definitivamente afetado por Junho.

As esquerdas e a cidadania brasileira estão, portanto, diante de um desafio político estratégico


decisivo e específico do nosso tempo e espaço. Trata-se de reconhecer que temos hoje duas
experiências de luta e produção política desde as classes trabalhadoras que se desenvolvem em
paralelo na nossa sociedade. De um lado, as classes trabalhadoras que se constituíram no final da
Ditadura Militar, que lutaram pela redemocratização e produziram novas instituições democráticas,
em um processo que culminou na Constituição de 1988 e que foi defendido por elas contra os
ataques neoliberais dos anos 1990. Foi essa classe trabalhadora que impulsionou o PT e Lula à
conquista da Presidência da República. Do outro lado, estão as classes trabalhadoras que se
constituem enquanto sujeito político no século XXI, para as quais as instituições da
redemocratização e a Constituição de 1988 são ponto de partida e não de chegada. Estão a produzir
suas instituições, seus desejos, suas formas de fazer política. É um processo em aberto, em pleno
andamento. A “classe do Lula” e a “classe do lulismo”.

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O reconhecimento dessa dinâmica diferenciada de experiências de luta e de formas de sociabilidade
é crucial para evitar que a distinção se cristalize em uma cisão. Ao contrário, defendemos que é
possível produzir encontros, articulações, frentes entre essas duas frações das classes trabalhadoras,
produzindo um novo bloco histórico cuja tarefa será impulsionar a democracia brasileira a novos
patamares, com mais liberdades e mais direitos, menos mercado e menos violência.

Identificamos, assim, uma crise nas esquerdas brasileiras, inserida em contextos mais amplos e
gerais: no contexto sul-americano, na medida em que processos análogos também afloram em
outros países da região, após o sucesso inicial das experiências progressistas, e no contexto mundial
de crise e defensiva da esquerda após a falência e conseqüente esfacelamento do bloco de países
socialistas, capitaneado pela URSS, e conseqüente instituição da hegemonia neoliberal através de
um capitalismo globalizado.

Os impasses e dilemas que vivemos e que se apresentaram na apertada vitória eleitoral em 2014 e
na crise política que atingiu o governo e o PT neste início de 2015 têm profunda relação com essa
dificuldade de reconhecer e legitimar essas novas experiências de classe que não se inserem
imediatamente no campo “petista”, como ficou posto na reação das esquerdas do nosso campo à
irrupção de junho de 2013. O fato é que a formação do novo bloco histórico não ocorrerá somente
reafirmando o que já foi conquistado. É preciso organizar o novo para forjar e consolidar essa
aliança. Sem um novo programa, uma nova narrativa e novas práticas é impensável supor que as
novas redes, articulações, formas de fazer política, que as novas classes trabalhadoras e a juventude
irão eternamente aderir ao PT apenas porque o neoliberalismo tucano é pior. É preciso mais,
podemos mais.

1 – Crise das esquerdas sul-americanas

É importante reconhecer essa dimensão de crise na medida em que Argentina, Brasil e Venezuela
vivem impasses decisivos em suas experiências progressistas. Isso não é algo menor uma vez que
estamos falando das três principais economias da região e que formaram o eixo central do processo
de integração regional nesse século XXI.

Mas que crise é essa? Ao menos no que se refere à dimensão brasileira, é preciso responder essa
pergunta. Não se configura, no momento, enquanto uma crise com potencial de atomizar a esquerda
e as organizações que os trabalhadores construíram com suas lutas, tal como ocorreu no pós-1964.

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Nosso arcabouço constitucional permanece de pé, sólido, e o mesmo vale para nossa estrutura
econômica – não vivemos nada que se assemelhe a uma crise econômica que desorganiza o tecido
social (desabastecimento, falências e desemprego em massa, etc.).

Em outras palavras, com exceção da improvável hipótese “impeachment” (que se configuraria em


um golpe institucional cujas conseqüências seriam imprevisíveis), em qualquer quadro futuro,
teremos um partido com força eleitoral significativa (o PT) e uma central sindical sólida (a CUT)
mesmo que venham a ser instrumentos em crise. Isso sem falar na permanência em atividade de
movimentos sociais tais como a UNE, o MST, MTST, MMM, movimento negro, além da contínua
emergência de novas formas de associação e de redes.

É uma crise que possui dois tempos que se complementam. Um é o tempo de longa duração. O
tempo da inconteste hegemonia do capitalismo. Hoje, não existe nenhum projeto político no mundo
que afirme a superação do capitalismo com força social para se apresentar dessa maneira à
sociedade como um todo. Todas as esquerdas internacionais se movem hoje em um quadro de
defensiva, em um quadro de conquistar espaços no capitalismo sem, contudo, alterar seus marcos
fundamentais. Isso não pode ser desprezado, inclusive porque divide a esquerda. Uma parcela se
abstém de disputar hegemonia nesse terreno, optando por manter sua tropa coesa em torno de um
programa que, talvez, seja factível em um momento posterior. O PSOL é o exemplo brasileiro dessa
opção.

O segundo tempo é o da curta duração, que pode ser sintetizado pela frase do companheiro Marcio
Pochmann: “não estamos conseguindo ser contemporâneos das nossas próprias transformações”.
Isto é, a esquerda brasileira está em crise porque não é capaz de compreender o novo Brasil que
surge dos primeiros dez anos de governo petista.

Essa é a crise do PT, mas não só. PSOL, PC do B, Consulta Popular, MST, MTST, movimento
sindical em geral, intelectualidade, novas redes e lideranças surgidas na última década, enfim,
ninguém foi capaz de produzir e/ou organizar uma interpretação coletiva que se torne orgânica (no
sentido gramsciano) do bloco histórico das classes trabalhadoras.

Isso não significa que os atores acima citados – que são os protagonistas da política brasileira desde
um olhar à esquerda – não estejam produzindo análises e impressões preciosas sobre a conjuntura e

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sobre nossos dilemas, desafios, potencialidades, caminhos. Mas não há nada que organize um
caminho coletivo de superação dessa crise.

Não se trata de “crise de direção” trotskista. É algo mais profundo e mais positivo. A nova
sociedade brasileira exige uma nova esquerda, esta entendida aqui como novo momento das
tradições de esquerda que atuam no país desde o século XX, e que envolve, necessariamente, uma
exigência de renovação dos olhares, categorias, posicionamentos, composição, etc.

A narrativa que impulsionou a maioria da esquerda brasileira desde pelo menos os anos 1980 não
faz mais sentido do ponto de vista estratégico. Ela está em crise diante de um capitalismo que segue
hegemônico, está em crise na medida em que sua ideia-força desenvolvimentista na economia
enfrenta dificuldades estruturais decisivas e está em crise, ainda, porque novíssimos atores entram
em cena, a partir das mudanças na estrutura de classes que os governos petistas produziram, e o
fazem sem se referenciar a priori nessa narrativa e no conjunto dos seus pressupostos.

2 – A nova estrutura de classes brasileira

No debate sobre a emergência de uma nova classe trabalhadora brasileira é preciso derrotar duas
visões. Por um lado, o empreendimento das forças do mercado em favor da narrativa da “nova
classe média”. Nesse caso, a ascensão social seria fruto do mérito individual somado ao dinamismo
mercantil que garante oportunidades para todos crescerem, embora nem todos aproveitem. O
consumo aqui é o paradigma de ascensão social.

Do outro lado, as diversas resistências da esquerda em admitir que existe uma nova classe
trabalhadora na sociedade brasileira, fundamentalmente porque isso implica em assumir que as
instituições que a classe trabalhadora dos anos 1970 e 1980 produziu no processo de
redemocratização estão no mínimo desatualizadas, devendo então passar por mudanças que mexem
com os interesses das burocracias consolidadas nos últimos 30 anos.

Esse segundo combate deve ser travado por dentro do nosso campo. Na verdade, os elementos que
sustentam nossa afirmação sobre a existência de uma nova classe trabalhadora já estão
consolidados. O ponto é enfrentar a postura conservadora que existe em parte do PT, parte da CUT,
e provavelmente se repete, em maior ou menor grau, nas demais organizações da esquerda (PC do
B, PSOL, Consulta, etc.) e que consiste em negar valor às formas de fazer política que surgem

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desde as experiências de vida dessa nova classe, formas essas que estão ainda em elaboração e, por
isso mesmo, têm dinâmicas diferenciadas, acúmulos e temporalidades próprias e que são mais
difíceis de serem enquadradas e normatizadas.

Como se caracteriza essa nova classe trabalhadora? Trata-se de uma imensa parcela de trabalhadores cujo
contato com o mercado de trabalho era sempre precário e formal, resultando em uma precária
(muitas vezes inexistente) dinâmica de direitos. Se estamos falando de jovens, esses novos
trabalhadores e trabalhadoras são os primeiros de suas famílias a conseguir um emprego formal com
carteira assinada ou a ter êxito em montar um pequeno negócio próprio formalizado, a acessar o
ensino superior, a viajar de avião, comprar carro novo, e até mesmo ter casa própria legalizada.
Quando não são jovens, são trabalhadores que, na maior parte da vida, viveram na precariedade
laboral e de renda, muito deles na pobreza extrema, e que, finalmente, conquistaram a dignidade da
carteira assinada.

É muito importante demarcar a diversidade social dessa nova classe trabalhadora. As formas de
ascensão em uma sociedade dinâmica como é o Brasil do século XXI são muitas. Acesso à carteira
assinada em trabalhos de baixa remuneração e alta rotatividade (garçons, porteiros, balconistas,
empresas de limpeza, telemarketing); montagem de pequenos negócios familiares (cabelereiros,
lanchonetes, etc.); ingresso no funcionalismo público via a multiplicação de vagas de ensino
fundamental e médio (bancos públicos, empresas públicas, universidades, polícia, funcionários da
justiça); acesso ao diploma universitário em algumas carreiras massivas (advogados,
administradores, licenciatura em geral) com remuneração e estabilidade média ou mesmo em
carreiras tais como medicina e engenharia com remuneração e estabilidade mais alta.

Outra característica decisiva é que essa nova classe trabalhadora forja suas concepções de vida e seu
modo de compreender o mundo em uma temporalidade pós-fordista. A velocidade é acelerada vis a
vis as dinâmicas de sociabilidade do século XX. Há, também, uma nova noção de espaço.
Distâncias são mais facilmente percorridas, ainda que de modo virtual. Aliás, nessa nova
subjetividade, a própria noção de virtual e concreto se altera. Os jovens possuem domínio de novas
tecnologias que não param de se desenvolver e que fazem parte do processo de produção de novas
subjetividades. Um elemento fundamental e que a esquerda não tem tido coragem de enfrentar é o
fato de que essa nova classe trabalhadora não encontra no trabalho, na maior parte das vezes, sua
maior fonte de produção de identidade e identificação. Essas novas identidades políticas e coletivas
vêm sendo elaboradas a partir da relação com a cidade: mobilidade, acesso à cultura, combate às

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marcas territoriais da desigualdade que segregam e tornam a vida muito mais difícil, como violência
policial cotidiana, dificuldade de ter acesso às creches, hospitais, etc.

As experiências que marcam a consciência de classe dessa nova classe trabalhadora também são
múltiplas. Muitos não mudam de bairro, mantendo seus vínculos comunitários nas periferias,
contribuindo para a dinamização dessas regiões; outros se mudam para bairros menos
estigmatizados. Outra marca é a diversidade religiosa. Ainda há uma hegemonia do cristianismo,
porém não majoritariamente pela Igreja Católica, como ocorria no final dos anos 1970 e início da
década de 1980. O crescimento das igrejas protestantes neopentecostais é um fenômeno do qual
estamos muito distantes de compreender.

Em geral, estão todos imersos em um ambiente de otimismo com suas vidas e com o país. Contudo,
ainda é enorme o impacto em suas consciências e valores causado pela existência e o perigo da
miséria. Por um lado, um medo de entrar/retornar a essa dinâmica trágica. Por outro, os
investimentos simbólicos e políticos de se diferenciar dos mais pobres. Nesse aspecto, é preciso
identificar o peso alto que a violência urbana tem na produção das subjetividades: medo do espaço
público, crença que o privado traz mais segurança, etc. Logo, ser pobre implica estar vulnerável não
somente na dimensão econômica, mas também nesse aspecto da vida cotidiana.

A maioria dessa nova classe trabalhadora busca acessar os direitos fundamentais (saúde, educação,
mobilidade, lazer, comunicação) pela mesma chave da classe média tradicional (plano de saúde,
escola particular, carro, shoppings). Esta é a grande vitória do mercado: a realização desses setores
se dá – assim como ocorre com as elites, com as classes médias tradicionais e com o que estamos
chamando de classe trabalhadora tradicional – pelo consumo. Vitória essa que está intimamente
ligada ao que chamamos de crise das esquerdas no tempo de longa duração. Não há, nesse
momento, um modo de vida alternativo ao capitalismo.

Não obstante, essa principal vitória da narrativa mercantilizadora também alimenta sua principal
contradição, pois o consumo no Brasil se faz pela desregulamentação extrema do mercado. São
escolas particulares que fecham no meio do ano letivo, planos de saúde que não prestam serviços
prometidos, carros que não andam nas grandes cidades, shoppings cada vez mais caros, telefonia e
internet igualmente caras e de péssima qualidade.

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A forma como grandes parcelas dessas novas classes trabalhadoras se portam diante disso resulta de
sua relação ambígua com o Estado e com o mercado, fruto das suas experiências de vida imersas na
tensa teia de processos de regulação estatal e de afirmação mercadológica.

O Estado é visto como o responsável por serviços ruins, o que revela também que existe uma
consciência mais ou menos consolidada sobre a necessidade de o público regular o privado, o que
nos permite abrir um debate sobre os limites ao lucro. Há, ainda, uma rejeição generalizada das
grandes empresas, conforme indicam todas as pesquisas de “defesa do consumidor”, o que também
indica um saber sobre o papel do privado e do lucro desmedido nos problemas cotidianos. Há, por
fim, um consenso consolidado sobre serem a saúde e a educação direitos fundamentais pelos quais
vale a pena lutar, além de uma dinâmica nova, incipiente, de organização dos problemas da cidade
(transporte, moradia, lazer) a partir do conceito de direito à cidade.

Para finalizar, sobretudo para a juventude, há todo um novo entendimento cognitivo sobre o mundo:
novas formas de associação; organização em rede; horizontalidade; novas temporalidades; novas
velocidades; novas formas de fazer cultura; rejeição da escola e demais organizações tradicionais;
interatividade como elemento decisivo das formas de agir; ir e vir de informações; produção
descentralizada de saberes e valores; e uma nova concepção de representação política que exige um
maior peso para o momento da “auto-representação” e um menor para o momento da delegação de
poderes.

Aqui, a rejeição à política possui uma dimensão distinta, qual seja, são amplas parcelas de jovens
que não viveram diretamente a estrutura de classes anterior, que não experimentaram o
autoritarismo, a redemocratização e possuem vaga lembrança do neoliberalismo. Por isso,
encontramos, em menor grau, o medo de retorno àquela condição de pobreza e precariedade. A
narrativa da polarização com o neoliberalismo faz menos sentido imediato para essa juventude,
embora não se possa concluir que ela é menos resistente às posições neoliberais.

A “classe do Lula”. Por classe trabalhadora tradicional, entendemos o bloco histórico que protagonizou
a redemocratização nos anos 1980 e que impulsionou a crescente mobilização e polarização social
dos anos 1950 e 1960.

Esse bloco histórico tem dois eixos fundamentais: o operariado fabril em geral e a classe média
urbana progressista (o funcionalismo público clássico, os profissionais liberais que sempre

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existiram na sociedade brasileira, tais como jornalistas, médicos, professores, advogados). A esses
dois eixos, somavam-se, com diferentes graus de engajamento e organização, os camponeses
organizados e os trabalhadores no setor de serviços que surgiram com a urbanização brasileira
desde os anos 1950.

A “classe do Lula” também era diversa na sua composição, como podemos ver na multiplicidade
que compôs o PT. Fora a classe média progressista, que tem na família um caminho pavimentado
para as profissões liberais e para o Estado, a maioria dos membros dessa classe trabalhadora
tradicional era composta de migrantes – sobretudo dos estados do Nordeste, sendo os primeiros de
suas famílias a acessar o mercado de trabalho. A maioria estava sujeita a baixa renda e baixa
estabilidade nos serviços, enquanto uma parcela “privilegiada” se tornou operariado fabril. Um
menor número conseguiu romper as barreiras simbólicas e culturais, ingressando no funcionalismo
público e nas profissões liberais.

Talvez o que não exista para as classes trabalhadoras tradicionais em comparação com as novas
classes trabalhadoras seja a dinâmica dos pequenos negócios familiares formalizados. Também
podemos intuir que o medo de ser pobre era muito maior, pois a presença da miséria extrema era
mais evidente, cotidiana, era mais vívida. E, embora a necessidade de diferenciação das classes
médias e trabalhadoras com relação aos pobres fosse igualmente forte, isso não se configurava em
identidades do tipo “novo rico”. É provável que essa categoria tenha surgido nos anos 1990, no
primeiro surto de crescimento econômico do plano real. Mesmo que tenha surgido antes, como
resultado do sucesso inicial dos diversos planos econômicos, seu alcance era limitado pela recessão
que resulta do fracasso sucessivo da política econômica da ditadura desde a segunda metade dos
anos 1970 até o plano real.

Nessa classe trabalhadora tradicional, o peso da classe média é enorme, sobretudo de profissionais
liberais. Eles têm acesso privilegiado ao Estado, aos postos de direção e, também, aos direitos
fundamentais que fazem uma democracia. Trata-se de herança secular da sociedade colonial
brasileira. Eles buscam se colocar como a liderança intelectual das classes trabalhadoras. A figura
de Lula e a consolidação da classe trabalhadora como protagonista político quebrou essa
“liderança”, tanto do ponto de vista simbólico quanto prático.

As diferenças políticas entre as duas dinâmicas de classe são enormes. O ambiente vivido pelas
classes trabalhadoras tradicionais era de intensa valorização da democracia e de suas instituições

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fundamentais: partidos, sindicatos, escola, associações de moradores, etc. Inclusive a Igreja gozava
de legitimidade elevada nos anos 1970 e 1980.

Em geral, não há, nessa classe trabalhadora tradicional, a mesma ambigüidade em relação ao
Estado. Seu comportamento político era marcado pela negação explícita das instituições da
ditadura, mas isso não se convertia em uma negação genérica das instituições. Os sindicatos
possuem peso decisivo nisso: apesar da repressão, a estrutura sindical se conservou como espaço de
lutas da classe trabalhadora ao longo do regime militar. O fato dos militares terem nomeado
interventores só reforçou uma relação de negação/reconquista que depois seria reproduzida diante o
Estado. Os sindicatos pertencem aos trabalhadores, é preciso tirar os pelegos de lá e fazer com que
eles retornem aos trabalhadores. O mesmo se deu com o Estado: todo o poder emana do povo, é
preciso tirar os usurpadores de lá e é preciso, também, construir mecanismos que impeçam novas
usurpações. Os temas da participação e do controle cidadão – que se tornaram estrategicamente
centrais para o programa petista – respondem fundamentalmente a essa problemática.

As formas de organização da classe trabalhadora tradicional se remetem a esse ambiente político. A


relação entre horizontalidade e direção parece relativamente bem desenvolvida: o momento síntese,
vertical, dirigente é necessário, mas deve se submeter à soberania do todo, do coletivo. O partido, as
eleições, o voto são instrumentos valorizados. As vitórias eleitorais do MDB, em 1974 e 1978,
constituem um exemplo dessa valorização anterior à experiência petista. As esquerdas que, nesses
momentos, pregavam o voto nulo terminavam quase sempre isoladas.

A temporalidade, nesse momento, é própria do fordismo, da cultura de massas que se organiza pela
televisão, jornal e rádio. Não há a dinâmica da interatividade. A produção de conhecimento, dos
saberes, é coletiva, mesmo quando é hegemonizada pelas classes dominantes através dos grandes
meios de comunicação. O povo sempre ouviu o rádio e viu a TV em comunidade. O mesmo vale
para a leitura dos jornais. Temos uma cultura de leitura coletiva, forma de fazer o saber escrito
chegar às amplas parcelas de analfabetos.

Intelectualmente, o paradigma marxista estava de pé nos anos 1970 e 1980, quando essa classe
trabalhadora iniciava sua constituição enquanto sujeito político. A URSS organizava um horizonte
alternativo bem definido, mesmo para aqueles que eram críticos ao seu desenvolvimento. O
capitalismo possuía um contraponto de peso igual, com uma narrativa factível, viável, sólida e
duradoura.

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Do ponto de vista cultural, havia uma positivação das instituições totalizadoras. A escola era
valorizada e fornecia os instrumentos necessários para o domínio do mundo da indústria cultural de
massas, para acessar o mercado de trabalho formal, etc. Havia, ainda, o predomínio da igreja
católica, que deixava de ser um corpo monolítico, incorporando demandas e subjetividades típicas
da esquerda. Esses elementos repercutiram fortemente nas formas de organização da classe
trabalhadora. Um bom exemplo foi a multiplicação de revistas e jornais da imprensa alternativa nos
anos 1970, todos eles organizados por um ou mais grupos políticos (a maioria compostos por
jovens), a maioria reivindicando uma identidade de classe trabalhadora, valorizando o operariado
fabril e o projeto socialista.

Por fim, essas classes trabalhadoras tradicionais vivenciaram o crescimento caótico e brutal das
cidades, porém sem comparação com o quadro urbano existente hoje. As formas de sociabilidade
comunitária (cuja forma mais dinâmica pode ser encontrada na sociabilidade rural que marca a
maioria dos migrantes) seguiram fortes nas cidades dos anos 1950 até 1980, sendo quebradas pelo
neoliberalismo e o império dos valores individuais. Para ilustrar esse modo de vida comunitário,
temos os mutirões para construir casas próprias ou mesmo as relações cotidianas de vida entre
vizinhos e vizinhas que compartilham saberes e mercadorias (o gesto de pedir açúcar na casa ao
lado) entre si, trocam experiências, organizam redes de cuidados das crianças e dos idosos, etc. O
mesmo vale para a violência. Ela existia, mas era incipiente. E muitas vezes identificada com o
Estado (grupos de extermínio, ROTA), o que reforçava a negação das instituições existentes e a
necessidade de se construir novas instituições em seu lugar.

3 – A conjuntura atual diante do Junho Disruptivo

Afirmamos que as esquerdas vivem, hoje, uma dinâmica de múltiplas crises: dispersão e isolamento
na maior parte do mundo; ausência de um projeto alternativo que faça frente ao capitalismo; crise
conjuntural e regional, com algumas das experiências progressistas da América do Sul passando por
impasses e limites importantes; e, enfim, a crise brasileira diante das novas dinâmicas de classe que
a própria esquerda produziu ao conquistar o governo federal, reativar a economia e organizar e
ampliar direitos. Essas múltiplas crises ajudam a entender a atual conjuntura política polarizada,
com exacerbação dos conflitos sociais brasileiros.

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Do ponto de vista da economia, essa crise se manifesta enquanto êxito e crise do
desenvolvimentismo. Já vencemos o debate relativo ao “caráter neoliberal” ou “social-liberal” da
política econômica do governo Lula. Desde 2005 (queda do Palocci), momento da primeira virada
desenvolvimentista e depois de 2008 (enfrentamento da crise internacional) tais interpretações
resultaram em isolamento e gueto e não dão conta de explicar as dinâmicas de mobilidade e
ascensão social produzidas na última década.

Há, porém, uma dimensão nova, qual seja, os impasses decorrentes da paralisia desse processo de
mobilidade. Consumo e renda das famílias apresentam queda pela primeira vez em dez anos. A
política econômica do governo Dilma foi virtuosa em resistir aos efeitos da crise econômica
internacional evitando o aumento do desemprego no Brasil. Contudo, o dramático retorno do léxico
do “ajuste fiscal” estabelece os limites atuais da imaginação desenvolvimentista. A ofensiva contra
os juros e os bancos foi derrotada. Os vultuosos estímulos que o Estado direcionou ao setor privado
não resultaram no esperado investimento por parte de empresários.

Em suma, a clássica estratégia desenvolvimentista dos anos 1960, embora atualizada, teria
fracassado pelo mesmo motivo no século XXI: a burguesia industrial, fusionada com o setor
financeiro e completamente imersa na dinâmica capitalista transnacional, não cumpre “sua função
histórica”, seja porque não tem interesse no desenvolvimento nacional, seja porque a continuidade
da crise econômica internacional não permitiu.

Esse fracasso exige uma nova política econômica? Ou trata-se apenas de “segurar a onda” por um
ou dois anos via ajuste fiscal para depois soltar novamente a economia via consumo de modo a
garantir um novo ciclo eleitoral? Como, nesse processo, minimizar os custos das classes
trabalhadoras, cobrando dos mais ricos sua contribuição no ajuste? Taxação das grandes fortunas,
das heranças, dos bens de consumo de luxo (barcos, iates, jet skis, lanchas, helicópteros)?
Sonegação como crime hediondo?

O fato é que essas respostas precisam ser produzidas em um processo novíssimo de polarização da
política brasileira. Tal divisão em dois campos políticos claramente definidos não ocorria desde os
anos 1960. A ditadura militar acabou com a polarização naquele momento exterminando (política e
literalmente) um dos lados. Já o ocaso da ditadura se fez em grande consenso. Não havia quem
defendesse a manutenção do regime militar nos anos 1980. Era só uma questão de como fazer a
transição. A hegemonia neoliberal que se impôs à transição não anulou de todo as conquistas da

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constituição de 1988, de onde o PT e o campo democrático popular buscaram forças para resistir
nos difíceis anos 1990, quando também não houve polarização. E, por fim, a primeira década de PT
na presidência também foi dotada de forte legitimidade social. Por mais forte que tenha sido a
oposição conservadora, em nenhum momento ela foi capaz de polarizar a sociedade. O resultado
apertado da nossa quarta vitória eleitoral é o melhor exemplo dessa polarização.

Uma situação política polarizada equivale a um quadro de conflitos político-sociais exacerbados.


Nesse caso, alguns consensos e pactos democráticos perdem a validade, precisam ser refeitos em
novas bases. Existem duas formas de superar a polarização. Uma é a partir das próprias dinâmicas
democráticas existentes. A outra é interditando, a um dos lados, o “fazer política”, que se
materializa na hipótese do impeachment. As dinâmicas democráticas existentes podem produzir
diversos resultados. A direita não aderiu ao golpismo como um todo, ela se organiza em várias
frentes. O retorno do ajuste neoliberal é uma delas. A desmoralização da política também. A marcha
do empresariado brasileiro, com apoio da maioria do Congresso Nacional, contra os direitos
trabalhistas também é parte dessa estratégia da direita para retomar a direção da sociedade brasileira
pela via democrática.

Diante desse cenário complexo, as esquerdas, como já falamos, vivem sua crise. A narrativa que
organizou a intervenção dos anos 1990 até 2012 não faz mais sentido. Junho de 2013 atravessou
essa construção produzindo algo novo, forçando um trânsito contínuo entre o mundo das esquerdas
tradicionais e o mundo das novas formas de fazer política. Junho foi, assim, uma espécie de batismo
político das novas classes trabalhadoras.

No Junho disruptivo, todas as ambigüidades e novidades que já identificamos ocuparam as ruas.


Valorização dos direitos e negação da política lado a lado. Reconhecimento das conquistas sociais
em paralelo ao orgulho individual do mérito. Novas formas de associação em rede que não excluem
a hegemonia da sociabilidade individualista/egoísta.

É preciso afirmar que as jornadas de junho produziram um deslocamento positivo para a esquerda
no que tange ao padrão dos conflitos sociais brasileiros em três dimensões igualmente importantes.
Primeiro, seu valor em si, ao explicitar a existência dos conflitos sociais e ao valorizar a capacidade
de alterar o rumo da política por meio da mobilização. Nem mesmo o fortalecimento da direita que
parece, enfim, (re)descobrir as ruas, como fizera nos anos 1960, anula essa primeira dimensão.

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Segundo, pelas conquistas objetivas que a esquerda conseguiu pós-junho de 2013. O programa Mais
Médicos foi aprovado após um ano parado devido à oposição do corporativismo médico mais
tacanho. A lei que vincula os recursos do petróleo à saúde e à educação também foi aprovada após
anos de espera. Não haveria a narrativa eleitoral potente do segundo turno de 2014 sem essas
conquistas.

Por fim, e talvez o mais importante, o marco civil da internet, com ampla participação da esquerda
clássica e também das novas formas de fazer política que surgem na esquerda. Precisamos entender
essa vitória como um primeiro laboratório do novo bloco histórico a ser construído entre as classes
trabalhadoras tradicionais e as novas classes trabalhadoras. Aprovamos a legislação sobre internet
mais avançada do mundo e derrotamos no parlamento os interesses das grandes empresas de
comunicação, que naquele processo foram articulados pelo poderoso líder do PMDB, Eduardo
Cunha, hoje presidente da Câmara, posição que é usada para exterminar direitos.

Embora tenha sido um processo de vanguarda, restrito a uma disputa parlamentar, e que contou com
um ambiente político para a sua aprovação favorável, graças às denúncias de espionagem norte-
americana sobre a presidenta Dilma, o Marco Civil só foi aprovado porque coletivos das novas
formas de fazer política (horizontal, em rede, com novas temáticas) se unificaram com partidos,
sindicatos, movimentos sociais que lutam pela democratização da comunicação, todos eles surgidos
nos anos 1980 e 1990. Juntos, produziram uma mobilização que ultrapassou as paredes do
Congresso onde Eduardo Cunha domina os saberes e tinha mais condições de vencer a batalha,
ganhou as redes com petições na internet, twitaços e outras formas de mobilização nas redes sociais
que ampliaram em muito a pressão sobre os congressistas.

Nisso reside a terceira dimensão, qual seja, o reconhecimento de que o avanço da hegemonia da
esquerda passa necessariamente pela conexão das classes trabalhadoras tradicionais com as novas
classes trabalhadoras em um bloco histórico de tipo novo.

As ruas produzem o encontro de várias temporalidades. A temporalidade contemporânea da


velocidade, da virtualidade e da interatividade se depara com a temporalidade inercial das
instituições e da política. Estas estão em um estado de letargia que é “natural” em uma situação de
polarização, quando nenhuma força social é capaz de ser hegemônica. Paralelamente, a
temporalidade das instituições das classes trabalhadoras tradicionais também se opõe à inércia das
instituições, por meio das formulações clássicas da esquerda. Assim, as esquerdas tradicionais

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desejam acelerar o tempo da política sem, contudo, alterá-lo como desejam e vivem as novas
gerações e parte das novas classes trabalhadoras.

Por isso, dizemos que, diante do impasse e da polarização, a esquerda tem se proposto apenas a
organizar o seu campo, ou seja, a manter seus fundamentos e sua narrativa de pé, buscando adaptá-
los à nova conjuntura de modo a conquistar os novos setores das classes trabalhadoras. A proposta
majoritária no PT (majoritária no sentido de envolver a maioria das correntes, campos, teses,
agrupamentos), hoje, é de formação de um bloco histórico entre classes trabalhadoras tradicionais e
novas classes trabalhadoras que se realize pela incorporação destas últimas na narrativa e
instituições das primeiras, sem alterações de fundo em suas formas de produção da política.

E nossa constatação diante desse cenário é que as possibilidades de sucesso são limitadas. É pouco
crível imaginar que grande parte dessa juventude vá aderir ao mesmo programa político das classes
trabalhadoras tradicionais (reformas agrárias, urbana, tributária, das comunicações e política) e
simplesmente aceitar compor um PT renovado, ou uma CUT revitalizada.

4 – Redes e ruas produzindo o novo bloco histórico

A impressionante energia social produzida no 2º turno das eleições presidenciais foi outro – e, até
aqui, o mais importante – laboratório desse novo bloco histórico. Diferente do processo do Marco
Civil, que, por mais amplo que tenha sido, ficou restrito a um evento limitado ao Parlamento, a
mobilização das esquerdas no segundo turno foi “espontânea”, diversificada, com vários eixos
temáticos, protagonizada por diferentes setores sociais. Ao mesmo tempo, foi nacional e
descentralizada, foi programática e colaborativa. Conseguiu em muito superar o mero elemento
reativo (não ao Aécio) para organizar uma narrativa positiva em torno do reconhecimento dos
avanços desde 2003 e necessidade urgente de romper com os impasses para avançar mais.

O quadro inicial do governo jogou contra essa energia. O ministério foi simbolicamente negativo
diante da presença de figuras tais como Kátia Abreu e Gilberto Kassab. O retorno maldito do
discurso fiscalista parece repor a agenda neoliberal derrotada no Brasil desde 2005.

Paradoxal, no entanto, é que as inciativas mais inovadoras da esquerda, aquelas que se mostram
mais capazes de se conectar com a diversidade das novas classes trabalhadoras, têm origem
justamente nas experiências que essa esquerda produz desde a administração federal. A presença do

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companheiro Miguel Rossetto na Secretaria-Geral ou o retorno de Juca Ferreira ao Ministério da
Cultura ilustram a positividade que opera desde o governo federal. O mesmo se pode dizer sobre as
recentes nomeações de Renato Janine Ribeiro, para o MEC, e de Jessé de Souza, para o IPEA.

Não se trata, aqui, de fetichizar o Estado e descartar o que vem da experiência partidária e/ou
sindical. De fato, muitos dos nossos impasses atuais são de responsabilidade do que fizemos e
deixamos de fazer desde que Lula conquistou a presidência em 2003. As opções pela
governabilidade, o não enfrentamento de pautas centrais tais como democratização da mídia, o
enfrentamento da violência da Polícia Militar, entre outras. Também é verdade que o sindicalismo
apresenta algumas experiências virtuosas de mobilização e renovação de suas práticas, como ocorre
na bela experiência dos professores paranaenses em greve contra o governo estadual.

Mas é inegável que, nestes últimos 12 anos, muitas das experiências de governo foram mais
avançadas e capazes de dialogar com novos personagens e desejos, a partir de novas políticas
públicas e novas ferramentas. Momento exemplar desse processo de inovação está nos Pontos de
Cultura, com sua dinâmica descentralizada, horizontal, aberta. Em vão, procuraremos algo similar –
não no sentido de política pública, mas de abertura e inovação programática e prática – em alguma
iniciativa do partido e de sua estrutura partidária. Inclusive, tentativas de reorientar algum aspecto
da organização partidária são, com frequência, abandonadas ou derrotadas. Foi o que ocorreu com
diversas propostas de reorganizar a juventude do PT protagonizadas pelos próprios jovens entre os
anos de 2007 e 2008, e que não foram incorporadas pela direção do PT e da maioria as tendências.

O que, então, provoca esse distanciamento entre inventividade e criatividade da esquerda quando
está no governo e burocratização e conservadorismo no partido, sindicato? É urgente que
respondamos essa pergunta.

Essa resposta surgirá de um processo político de encontros e aberturas entre as diferentes dinâmicas
das classes trabalhadoras. Podemos e devemos contribuir com isso a partir de propostas e caminhos
que fortaleçam os laços entre o “velho” e o “novo”, buscando fortalecer as solidariedades, as
experiências comuns. Trata-se de uma luta para que a atual cisão cognitiva e subjetiva não se
cristalize em divisão definitiva e objetiva. Precisamos combater tanto a burocratização do velho
impermeável às novidades que surgem por fora das instituições tradicionais quanto o fetiche do
novo que ignora os valores das experiências pregressas da esquerda.

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Conectar essas duas experiências das classes trabalhadoras é possível porque ambas já estão juntas
vivendo o caos urbano brasileiro. “Novas” e “velhas” classes trabalhadoras sofrem com os
problemas das nossas metrópoles e seu crescimento desordenado: longos deslocamentos entre o
lugar de moradia e de trabalho, ausência de espaços de lazer, violência urbana, carestia dos modos
de vida nas cidades. Nisso, reside o conteúdo que dará liga ao novo bloco histórico.

É possível também porque as duas experiências de classe estão imersas em uma mesma cultura de
direitos: saúde, educação, comunicação, ir e vir, direitos reprodutivos, enfim, trata-se de um
acúmulo coletivo que abrange as diferentes frações de classe.

A cidade é, portanto, o território das experiências de classe, das lutas de resistência, e dos processos
de produção política tanto das novas classes quanto das classes trabalhadoras tradicionais. Desse
terreno, pode emergir um programa político que unifica essas experiências de classe. Tarifa zero que
permite aos jovens circular pela cidade. Ciclovias que se encontram com os corredores de ônibus
para permitir acelerar os tempos da mobilidade urbana, devolvendo às pessoas qualidade de vida e
tempo livre. Praças e parques abertos para que possamos produzir novas formas de aproveitar esse
tempo livre, produzir uma cultura viva de liberdades e desejos.

Isso, contudo, não é suficiente para produzir uma aliança política de fundo. Estamos falando de
dinâmicas de classe distintas também nas subjetividades, nas temporalidades, nos modos de vida e
de sociabilidade. Nesse sentido, a forma importa, a forma é também conteúdo. O encontro entre
essas experiências que se processa no território urbano precisa ser horizontal, participativo,
dinâmico, ousado. Precisamos, em um primeiro momento, abrir mão das nossas formas tradicionais
de reuniões fechadas e ocupar as praças e demais espaços públicos. Produzir não somente textos e
plataformas, mas também imagens, vídeos e campanhas. Estimular não apenas a formação política,
mas também a troca e o aprendizado diante das novas criações do século XXI.

Precisamos abrir mão também da defesa intransigente da “democracia que conquistamos”. Para
essas novas classes, não basta saber que poderia ser pior. Precisamos nos abrir em um movimento
autocrítico para entender em que medida os impasses democráticos que vivemos hoje –
simbolizados pelo poder de Eduardo Cunha ou pela cínica captura que a direita fez do discurso da
ética – são resultados de processos que nós, petistas, fomos protagonistas, desde que ganhamos a
presidência.

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Trata-se de entender que a Constituição de 1988 possui um duplo valor histórico e praxiológico nas
lutas dos subalternos hoje. Para as classes trabalhadoras que lutaram pela redemocratização, a
Constituição Cidadã é a síntese de um caminhar político que se iniciou nos anos 1970, na
resistência (em alguns casos, com a própria vida) contra os militares, no trabalho de formiguinha
contra a ditadura que explode em mobilizações a partir de 1978, sob a liderança de Lula. Por isso,
termos conquistado a presidência em 2002 é algo tão significativo.

Já para as novas classes trabalhadoras, a Carta Magna e o conjunto de direitos nela representado é
apenas o ponto de partida, um piso de direitos que não organiza as utopias, mas que serve de base
para impulsos maiores, rumo a demandas e desejos que sequer estão formatados ainda. Nesse
sentido, embora se mobilizem nas eleições, como vimos em 2014, as vanguardas dessa nova classe
conferem menos centralidade ao momento eleitoral, e devemos encarar isso com naturalidade e
como oportunidade de renovação, e não enquanto um menosprezo do que fizemos até aqui.

Outras experiências de luta se tornaram laboratórios desses encontros. Em Belo Horizonte, o


movimento “não vai ter copa” foi liderado pela CUT, em profunda conexão com os movimentos
urbanos do “Fora Lacerda”. Mais recentemente, a bela e vitoriosa greve dos professores
paranaenses foi organizada a partir dessa mesma dinâmica de encontros. O sindicato se renova e se
abre para a cidade, promovendo um acampamento permanente em frente ao parlamento, no qual
promoveu debates e atividades, recebeu e a dialogou com a população, conectou-se com a vida
urbana de Curitiba. Mais do que isso, o dia da vitória foi marcado por um saber urbano inigualável,
com grupos de professores espalhados pela cidade para protestar contra os deputados desde a casa
deles, e com uma ocupação territorial do entorno da Assembléia Legislativa em 7 pontos, de modo a
evitar que o governo conseguisse mobilizar a sua bancada para votar. Por fim, o papel da juventude
na mobilização foi decisivo, com cerca de 5 mil novos professores concursados incorporados à
mobilização antes mesmo do primeiro contato com a escola, muitos deles com participação nas
jornadas de junho.

Os exemplos positivos dos encontros entre as diferentes dinâmicas de classe estão aí para nos
animar: Marco Civil da Internet, 2º turno presidencial, greve dos professores do Paraná. A
resistência aos ataques da direita também ensaia processos positivos, tais como as lutas contra a
terceirização e a campanha do Amanhecer contra a Redução da Maioridade Penal.

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Os sinais negativos, contudo, seguem firmes. Uma estrutura partidária completamente fechada ao
petismo. O avanço na recusa do partido em receber doações empresarias significa pouco se os
candidatos a prefeito e vereador em 2016 seguirem autorizados a pegar dinheiro com empresas. A
nossa prática combativa contra a terceirização e a redução da maioridade penal será enfraquecida
com a manutenção política de alianças ampla para as próximas eleições. Não existe racionalidade
possível que justifique a continuidade dessas “estratégias eleitorais”.

Esses sinais negativos são o PT tentando matar o petismo. Temos convicção que isso não ocorrerá.

Apresentamos algumas das nossas propostas para o PT em nosso manifesto, mas precisamos criar
um processo intensamente participativo para fazer do petismo a substância reanimadora do PT.
Continuaremos apostando no petismo como esse espírito das resistências subalternas, como o
conector das lutas e produtor dos encontros. O petismo hoje – é o que defendemos – precisa se
voltar e canalizar seu potencial articulador e criador para a urgência da luta pelo direito à cidade:
mobilidade, espaços coletivos, produção cultural, ocupação e reinvenção dos espaços públicos, das
praças, das ruas; para o combate à violência policial e o extermínio da juventude negra; para a
garantia dos direitos reprodutivos das mulheres, do direito de livre expressão de toda e qualquer
sexualidade em todo e qualquer lugar, do direito ao tempo livre e à experimentação, do direito de
existência da vida e da experiência cultural dos povos indígenas e das comunidades tradicionais –
tudo isso, também, compõe nosso quadro de direitos urgentes e irremediáveis no horizonte de
conquista do nosso projeto de radicalização democrática.

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Assinam este texto inicialmente, os petistas:

Alana Moraes
Barbara Lopes
Caio Valiengo
Clara Castellano
Daniel Angelim
Eduardo Valdoski
Iuri Faria Codas
Jaime Cabral Filho
Jean Tible
Jeferson Mariano Silva
Jordana Dias Pereira
Josué Medeiros
Mariana Armond Dias Paes
Marilia Jahnel
Rafael Borges Pereira
Rafael Costa
Ramon Szermeta
Tatiana Oliveira
William Nozaki

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