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INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E PSICANÁLISE: uma articulação possível

Paulo Victor dos Reis Silveira1*, Suziani de Cássia Almeida Lemos 2


1
Centro Universitário do Triângulo-UNITRI. Curso de Psicologia. Av. Nicomedes Alves dos
Santos, 4545, Jardim Sul cep 38411-849, Uberlândia - MG.
2
Universidade de Brasília-UnB. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura.
Campus Universitário Darcy Ribeiro ICC Sul cep 70910-900, Brasília – DF.

*E-mail: pvreis.silveira@gmail.com

RESUMO
O trabalho teve como objetivo apresentar como a teoria Psicanalítica pode se articular com
a ciência da Inteligência Artificial para estipular teorias que visam resolver os maiores
desafios no campo do comportamento de máquinas. Para isso foi realizado uma pesquisa
científica de cunho exploratório buscando identificar estudos e pesquisa que estabelecem
essa articulação. A literatura inaugura uma nova necessidade da área e apresenta uma
aproximação entre os desafios e os principais tópicos da Psicanálise bem como teoriza a
criação de um termo, o algoritmo inconsciente e formas nas quais a teoria Psicanalítica
auxilie na interação da máquina com seres humanos revelando uma afinidade entre ambas as
áreas de conhecimento.

PALAVRAS-CHAVE: Psicanálise, Inteligência Artificial, Afinidades.

1. INTRODUÇÃO
Na literatura, os termos da teoria Psicanalítica como a noção de um Eu
descentralizado, atos falhos, objetos e relações objetais, inconsciente, agentes e complexo de
Édipo de Freud possibilitam uma interpretação que auxilia nas áreas da Inteligência Artificial
(IA) de ensino de máquinas e de programação. O conceito de agentes e objetos internos
podem ser utilizados para explicar como funciona certos aspectos na IA emergente que tem
como foco mecanismos que se auto regulem e aprendam com seus erros e façam sempre o
melhor julgamento possível em qualquer situação, com a dinâmica equivalente à dinâmica do
inconsciente freudiano e um agente interno baseado no Superego (TUKLE, 1998).
Para Possati (2020) a teoria do Estádio Espelho de Lacan possibilita a teorização
sobre a máquina representar o desejo humano de identificação. Além disso o conceito de
inconsciente de Freud interpretado por Lacan é usado para analisar a interação entre máquinas
e humanos e para criar o termo “algoritmo inconsciente” para explicar a instabilidade da IA.
O objetivo principal desse texto é mostrar que certos conceitos e métodos centrais
da Psicanálise podem ser usados para o estudo da Inteligência Artificial e a interação entre
humanos e máquina, e como a teoria Lacaniana tem sido utilizada no entendimento dessa
interação.
A justificativa do trabalho vem do interesse à temática da Psicanálise e da ciência
da computação, construindo uma pesquisa que tenha como propósito agregar conhecimento
para a literatura e chamar a atenção para a falta de estudos sobre o tema e a necessidade de
maiores estudos com essa articulação. Além disso propõe ser uma fonte de informação para
futuras pesquisas com a mesma temática.

2. METODOLOGIA
Este trabalho realizou-se através de uma pesquisa bibliográfica em que foram
utilizados artigos científicos e um livro que servem de base ao tema proposto. A pesquisa
bibliográfica implica em um conjunto ordenado de procedimentos de busca por soluções,
atento ao objeto de estudo, e que, por isso, não pode ser aleatório (LIMA; MIOTO, 2007).
O foco é na articulação entre Psicanálise e Inteligência Artificial, se utilizando de
conceitos psicanalíticos para discorrer sobre o assunto. Foram feitas consultas em artigos
científicos através de diversos bancos de dados existentes na internet como: ResearchGate,
PePSIC, SciELO, Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações e livros do acervo
pessoal para a elaboração desta pesquisa. Para a busca dos artigos foram utilizadas as
palavras-chave: Psicanálise, Inteligência Artificial e Afinidades. A seleção foi realizada com
os artigos e livros que tratavam das temáticas contidas na busca.
Foi realizada uma análise qualitativa á partir do material encontrado, estabelecendo
uma discussão sobre os elementos envolvidos na relação entre a Psicanálise e a Inteligência
Artificial.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
No início da década de 50 a psicologia era fadada a um cientificismo fechado
proveniente do Behaviorismo americano, que focava em estímulo e resposta e não permitia
uma profunda análise sobre memória, propósito e aprendizado. Porém o nascimento do
computador demonstrou que era possível falar sobre “estados internos” sem esbarrar na
fronteira entre ciência e mito e isso afeta diretamente a Psicologia e suas vertentes (TURKLE,
1998).
Segundo a autora os engenheiros mostraram que é possível construir uma
máquina que possui memória, tem um propósito, pode jogar xadrez, detectar sons externos
etc. Se elas podem fazer isso, aquilo que se dizia sobre as máquinas na época um Psicólogo
podia também dizer sobre o ser humano. De repente, engenheiros estavam usando termos que
Psicólogos gostariam de ter usado na época, mas foram impedidos por não serem científicos o
suficiente. Isso propiciava uma investigação mais ampla acerca do comportamento humano e
estas respostas poderiam ajudar a resolver um dos maiores desafios que a ciência da IA tenta
resolver: Como fazer uma inteligência que se iguale ao “nível humano”?
A autora ainda coloca que a psicanálise era rejeitada em grande parte no meio
acadêmico. Alguns tópicos entravam em conflito direto com assuntos em alta da biologia
psiquiátrica. A Neurociência se destaca atualmente na busca de respostas sobre o cérebro,
suas funções e funcionamento da mente e comportamento humano. A inteligência artificial
inaugura um novo paralelo entre Psicanálise e a ciência pois subverte a noção tradicional de
um Eu autônomo, uma vez que busca a criação de uma mente em uma máquina.
A experiência diária reforça uma ideia de “Eu faço, ajo e desejo conforme a minha
própria vontade” e de livre arbítrio. A Inteligência Artificial nos desafia a pensar onde está o
Eu, se ele é livre e se ele realmente existe. Ela se afasta do racionalismo e se aproxima da
Psicanálise e da filosofia desconstrutivista. O sujeito Psicanalista descende do inconsciente, o
sujeito da filosofia desconstrutivista da linguagem e o sujeito computacional (e talvez
dissolvido) na ideia de programa. A experiência de criação de uma inteligência artificial
impele o engenheiro a um processo de auto análise no sentido de entender o que se sabe e
como chega as conclusões que se tem sobre determinado conhecimento (TURKLE, 1988).
Para a autora, é necessário primeiro atribuir a ideia de um sistema inteligente com
recursos, sendo possível entender que algumas funções executivas podem não acontecer, ou
algum recurso falhar. As funções separadas não necessariamente indicam uma perfeita
execução de ambas as partes e é por isso que separar essas noções se torna importante, tanto
para explicar o comportamento humano tanto para teorizar um protótipo de IA mais
fragmentada.
Utilizando o conceito de objetos e agentes nos possibilita descentralizar o Eu
como responsável por observar a parte responsável pelos recursos e só então executar, pois a
parte executora não precisa ser também a parte que gera os recursos. Isso não significa
necessariamente que o Eu está sendo dissolvido, mas sim que a restrição de papeis está sendo
utilizada como forma de explicar partes da mente mantendo o todo intacto e protegido
(TURKLE, 1988).
A autora também discorre sobre a ideia de objetos internos e relações objetais de
Freud apontando para o fato que o sofrimento melancólico decorre de censuras mútuas do Eu
e de um pai interno do qual o Eu se identifica. Esse mecanismo é normal do desenvolvimento
o qual se deriva o Superego através da introjeção de pais ideais e um eu idealizado. Essa
noção é o aspecto central para a área de IA emergente e forma conexões entre IA e novas
direções para o pensamento psicanalítico. Na programação baseada em objetos internos, o
programador cria objetos que, uma vez criados, são “livres” para interagirem de acordo com
suas instruções iniciais. O programador não especifica o que o objeto precisa fazer, mas sim
“quem ele é”.
Segundo Ogden (1983) apud Turkle (1998), internalizamos objetos porque nosso
impulso nos impele a isso. As relações objetais estão associadas por uma sociedade de agentes
internos ou sub organizações inconscientes do Ego capaz de gerar significado e experiência,
ou seja, de pensar, sentir e perceber. As estruturas internas, portanto, precisam de se espelhar
em outras estruturas como forma de desenvolver ferramentas mais especializadas na relação
com o ambiente externo e a interação interpessoal. A estrutura interna age nas memórias,
pensamentos e vontades e relacionando com a ideia de objetos é possível criar uma relação
direta entre o processo e quem processa. Trazer essa ideia para a ciência Inteligência Artificial
nos permite pensar em um programa que certos movimentos internos vão em direção contrária
e de maneira mais passiva do que a programada, possibilitando agentes internos livres dentro
de sistemas computacionais.
Turkle(1998) aponta que teoristas da IA construíram um modelo computacional
com uma “sociedade” de agentes internos que trabalham em conjunto para decidir qual
direção de um comportamento e ação tendo como agente central o agente censurador baseado
na ideia de Superego de Freud. Essa ideia permite a construção de máquinas mais inteligentes
e autônomas, formulando a ideia de que não é possível ter uma máquina inteligente sem
repressão uma vez que para se processar informações é necessário ter opiniões diferentes e
conflitos dentro do sistema. Esse sistema funciona de forma semelhante a dinâmica do
inconsciente freudiano com conteúdos que precisam ser constantemente reprimidos.
No campo da IA existe uma área chamada de Comportamento de Máquinas, que
visa estudar as máquinas não só como performance, mas sim seu comportamento como
agentes que interagem com o ambiente. O comportamento é tratado de forma empírica e suas
propriedades se aproximam da ideia biológica, sendo moldadas pelo ambiente. O contexto é
importante para a explicação e para a criação de um algoritmo, que precisa ser estudado junto
com o ambiente social que é onde ele opera. As diversas áreas de estudo da Inteligência
Artificial alertam para consequências não intencionais que agentes artificiais podem exibir
(positivamente e negativamente) que não foram previstas pelos seus criadores (RAHWAN
2019 apud POSSATI 2020).
Cully (2015) apud Possati (2020) demonstrou que é possível construir um
algoritmo de tentativa e erro inteligente que permite robôs se adaptarem a danos em menos de
dois minutos em explorações espaciais sem precisar de um auto diagnóstico ou planos de
contingência. Quando o robô sofre algum dano ele usa seu conhecimento anterior para
processar o algoritmo de tentativa e erro que realiza experimentos para descobrir um
comportamento que compensa esse dano sofrido. Sistemas de IA são capazes de criar formas
de comportamento se adaptando a novos contextos.
Entender como métodos e conceitos psicanalíticos podem ser aplicados no estudo
do comportamento de máquinas possibilita melhoria na área de interação entre máquinas e o
ambiente, principalmente com humanos. Para entender a interação entre humanos e máquina
utiliza-se a teoria de um “algoritmo inconsciente”, que é diferente de atribuir uma consciência
a uma inteligência artificial. Essa noção de “inconsciente” é da noção Freudiana com a
interpretação de Lacan de inconsciente como uma linguagem, sendo, portanto, a interação
entre máquina e humano mediada por uma linguagem específica entre ambos (POSSATI,
2020).
A linguagem é o grande Outro que faz o sujeito um sujeito somente à partir de
suas raízes no contexto social. E é exatamente isso que faz com que o sujeito se divida,
separando-se da parte mais autentica de si mesmo. É na divisão do sujeito que o inconsciente
se articula e essa separação se dá pela linguagem. O sujeito como individuo social é produto
da linguagem, ou seja, do recalque e, portanto, é sempre alienado (Lacan, 1966).
Além da noção de linguagem, o estádio espelho é outra grande contribuição da
psicanálise lacaniana e diz respeito a um acontecimento que surge entre os 6 e 18 meses de
vida de uma criança. Nessa etapa a criança é incapaz de ter controle do seu corpo, não
consegue andar ou se movimentar sem ajuda de um adulto, ou seja, não possui autonomia.
Quando o bebê vê sua imagem no espelho ela percebe um outro bebê que imita seus
movimentos e gestos. Ao tentar interagir com esse outro bebê ela percebe a superfície do
espelho, tenta dar a volta ou passar pelo espelho e procura a criança do espelho sem sucesso.
Ela então explora e percebe o seu cuidador também refletido no espelho, fazendo ela perceber
que existe um outro duplicado, um real duplo. Tudo que está ao seu redor é duplicado no
espelho exceto a si mesmo criando uma ruptura entre ela e o resto do mundo. Pela primeira
vez o bebê se percebe como um ser inteiro e integrado e esse momento desencadeia uma
verdadeira tragédia na busca de identidade nos anos que se seguem (Lacan, 1966).
Incorporando essas noções na Inteligência Artificial, Possati (2020) afirma que a
IA é a nova etapa do processo de identificação humana, o novo desenvolvimento de
inconsciente. Tudo que for produzido pela máquina está sujeito a interpretação humana sobre
seu comportamento e não é arbitrária sendo, portanto, somente um objeto de identificação
humana. A máquina responde ao desejo humano de identificação e é uma extensão do mesmo
movimento do trabalho de Lacan sobre o Estádio Espelho. É através do algoritmo que o
desejo do programador se projeta na busca constante de auto identificação.
O autor ainda coloca que o inconsciente tem ao mesmo tempo o efeito de um
mediador tecnológico e a origem de uma nova forma de tecnologia. É possível interpretar que
o programador ao mesmo tempo transfere seu desejo consciente e seu recalque inconsciente
impossibilitando a criação de máquinas sem erros e sempre precisa ser reparada e
supervisionada por um humano pois os erros de programação podem ser vistos como atos
falhos provenientes da tensão entre desejo humano, lógica e maquinaria que não pode ser
controlado e tende a retornar (o retorno do recalcado).
Possati (2020) conclui que a Inteligência Artificial abre um novo campo de
estudos para a Psicanálise, o da Psicanálise de artefatos. O artigo também inaugura estudos
que interligam pesquisas que serão realizadas para verificar se a IA consegue ajudar a
entender e diagnosticar transtornos mentais, se é possível fazer com que sistemas de IA
reproduzam e assimilem estes transtornos e quais são as possíveis contribuições dessa área da
ciência em conjunto com a Psicanálise.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar das diferenças, a Psicanálise e a Inteligência Artificial possuem afinidades
como: o desafio de autonomia, ator intencional, necessidade de auto referência na formulação
teórica e a necessidade de objetos (como a censura) para lidar com conflitos internos. E os
principais problemas da IA reforçam ainda mais a necessidade de uma proximidade das duas
áreas: gestão de conflitos, inconsistência interna e a subversão do sujeito ou eu
descentralizado. A ideia de um eu descentralizado que não é total autor de suas ações, pois
sofre constantes pressões por parte de um inconsciente, um eu tripartido (Id, ego e superego)
pode auxiliar na programação de uma IA autônoma.
Pensando de forma Psicanalítica, uma parte da Inteligência Artificial seria
executora, a que regula e interage com o externo enquanto outra parte seria gerente de
recursos. Algumas áreas da ciência sobre Inteligência Artificial têm como foco somente a
parte executiva, sendo a mesma responsável por gerir seus conteúdos internos (recursos) e
assimilar as respostas externas com sua matriz interna. Essa descentralização da mente
humana pensada por Freud contribui para o aprimoramento de programas complexos.
É necessário realizar maiores estudos na criação de um algoritmo inconsciente
levando em conta a noção de projeção de identidade por parte do criador de IA. Na literatura
pouco se encontra sobre a relação entre Psicanálise e Inteligência Artificial e as discussões
apontadas nesse resumo demonstram que explorar essa área pode trazer inúmeros benefícios
para o avanço de inteligências mais complexas e autônomas.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1985

POSSATI, L.M. Algorithmic unconscious: why psychoanalysis helps in understanding


AI. Palgrave Commun 6, 70 (2020). https://doi.org/10.1057/s41599-020-0445-0

WINTER 1988, Artificial Intelligence. Issued as Volume 117, Number 1, of the Proceedings
of the American Academy of Arts and Sciences, p241.

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