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‘SIZANGA’
Fábio L eite*
LEITE, F. ‘Sizanga’. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 251-260, 1995.
‘Sizanga’,1 term o da língua Senari, falada do Marfim. É possível citar a maioria de seus gru
pelos Senufo, sociedade agrária negro-africana, é pos: ‘D yam ala’, ‘Falafolo’, ‘Folo’, ( ‘Folonbele’),
uma formação florestal conhecida, em terminologia ‘Gbato’, ‘Gonzoro’, ‘Kadie’, ‘Kaine’, ‘Kafinbele’,
ocidental, por Bosque Sagrado. No conjunto da ‘Koroboro’, ‘Kasse’, ‘Kofolo’, ‘Kulele’, ‘Minianka’,
explicação Senufo do mundo, assume notável im ‘N anergue’, ‘N afara’, ( ‘N afana’, ‘N afanbele’),
portância por se constituir em universo de múltiplas ‘N ohw u’, ‘N yarhofolo’, ‘P alanka’, ‘P om poro’,
configurações estreitam ente ligadas a práticas ‘Sankem ’, ‘Sye’, ‘Tafire’, ‘Tagba’, ‘Tagponi’ e
sociais decisivas, como veremos mais adiante. ‘T agnaw a’, ‘T en eu re’, ‘T u d u g u ’, ‘T y em b ara’
A sociedade Senufo estende-se sobre um terri ( ‘Kiembara’, ‘Kiemgbara’, também chamados por
tório africano que cobre áreas da Costa do Marfim, ‘Tyebabele’), ‘Tyefo’ e ‘Yoli’. Quanto ao número
do M ali e do Burkina-Faso (ex-Alto Volta), ocu de in d iv íd u o s, som ente no D ep artam en to de
pando ainda pequena porção do Gana. Os limites Korhogo (Costa do Marfim) - área localizada nas
geográficos dessa ocupação, com exceção do Gana, savanas onde realizam os nossas pesquisas de
são estabelecidos ao norte pela localidade de campo entre os Senufo, eles são quase 300.000
Koutiala - abrangendo o Burkina-Faso e o Mali - (Coulibaly, 1978), mas não temos condições de
ao sul por Katiola, a leste por Bondoukou e a oeste fixar o número de pessoas que constituem seu
por Odienne, localidades estas situadas na Costa conjunto.
Alguns fatores definem fortemente ainda hoje
a identidade histórica Senufo, conforme já explici
(*) Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo.
(1) ‘Sizanga’é um termo provavelmente composto pela pala tamente indicado em texto anterior (Leite, 1986).
vra ‘S i’, que corresponde à designação do que se convencio Origens ancestrais comuns é um deles, assim como
nou chamar "deforça v ita l”, e da palavra ‘Zanga’, que signi a ocupação de um território bem configurado.
fica lugar de recolhimento, de iniciação. É assim, o "lugar ‘Senari’, a língua Senufo, é elemento unificador
da vida ” (Ouattara, 1981). Acrescentamos aqui que para não
de seus grupos não obstante suas variações regio
correr o risco de utilização errada, temos preferido não usar
em nossos escritos sinais gráficos indicativos da entonação
nais. A sociedade optou pelo modo agrário de
das palavras africanas, salvo quando se tratar de eventuais produção que exige a sacralização da terra e esta
transcrições de autores. Por isso, as colocam os entre aspas, belece sua inapropriabilidade na conformidade das
apenas. normativas ancestrais. Não existe venda da força
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de trabalho e os recursos básicos da produção são cabalmente sua socialização. Ainda mais, é o espa
obtidos dentro da própria sociedade. Não há centra ço onde ocorrem outras cerimônias, rituais e atos
lização jurídico-adm inistrativa que abranja o con secretos relacionados com divindades, ancestrais
junto da sociedade, inexistindo as figuras do Estado e outras forças da natureza. ‘Sizanga’constitui um
e de um mandatário único que o represente. Outro aparato histórico concebido pelos ancestrais a fim
fator é a organização matrilinear do parentesco, que de, a partir da explicação da origem divina do
constitui a mulher na única fonte legitim adora de aparecimento da vida e do conhecimento, integrar
ascendências e descendências.“ Os Senufo criaram o homem nos processos sociais sem causar uma
um mecanismo disciplinador das práticas sociais ruptura crucial entre o natureza e a sociedade. Ele
- o ‘Poro’ - que atinge todo o complexo, o qual, é, assim, a fonte geradora do ‘Poro’, sistema estru-
no dizer de Ouattara (1979), estabelece os turador e regulador da sociedade, bem como instru
direitos e deveres de cada um dos habitantes... ”. mento iniciático destinado a elaborar o homem
No ‘Poro’ são encontradas, por exemplo, as regras acabado, cuja configuração parece inseparável do
que orientam os processos de socialização e as ‘Sizanga’. ‘Sizanga’ é também a fonte geradora
formas de inserção dos indivíduos na sociedade dos modelos ancestrais básicos explicativos do
segundo valores extrem am ente precisos (Leite, mundo e do homem, recriados periodicam ente
1988). Outro elem ento marcante da identidade através das representações que sintetizam o teatro
desses voltaicos é o ‘Sizanga’, localizado nas adja sagrado Senufo, amálgama das relações existentes
cências das aldeias, que sintetiza e reproduz os entre n atu ral e social. É tam bém um espaço
principais valores Senufo e sua organização social, epistem ológico, propondo a p ro b lem ática do
assunto deste texto. conhecimento sintetizante que, através da inicia
Não falaremos aqui sobre esses outros elemen ção, é transmitido de geração a geração, permitindo
tos reveladores da identidade profunda Senufo. a sobrevivência dos principais valores ancestrais
D esejam os abordar apenas alguns aspectos do que organizam a sociedade. ‘Sizanga’ é, dessa
‘Sizanga’. form a, o local da elaboração final do homem
‘Sizanga’ reproduz a imagem dos processos natural-social, ligando-se vitalmente aos processos
primordiais da criação do mundo, da emergência de socialização.
da vida e do homem, bem como de suas transforma Essas qualidades fundamentais levam a socie
ções. É habitado por divindades, seres e forças dade a considerar essa formação florestal a síntese
desconhecidas, assim como pelos ancestrais, com de um universo sagrado, estando intimamente rela
pondo um m undo irre d u tív e l que som ente é cionado à organização social dos Senufo. Essa
atingido e manipulado pelos detentores do conhe configuração abrangente é evidenciada, ao nível
cimento de seus mistérios e segredos, mas que está histórico, pelo fato de que uma localidade que não
em relação constante com a sociedade. ‘Sizanga’ possua o seu ‘Sizanga’ não é considerada autô
é o universo privilegiado, no espaço terrestre, da noma, não é uma ‘K aha’ (aldeia) mas um ‘Vogo’
soberania de ‘Katyeleo’, princípio vital feminino (acampamento), conforme indicado por Ouattara
primordial, que então transparece como regente dos (1979). E continuará nessa situação até que se
processos ligados à evolução do hom em e da sacralize o seu ‘Sizanga’ respectivo, permanecendo
sociedade, presidindo os atos iniciáticos que sinte subordinado até então ao ‘ Sizanga’ da ‘K aha’ da
tizam esses processos. Esse espaço é mesmo, de qual se desmembrou.
certa maneira, aquele de um encontro vital e decisi Vejamos, resum idam ente, com o essas pro
vo entre homem e divindade dentro da proposta de posições referentes ao Bosque Sagrado se mani
sacralização, do indivíduo a fim de complementar festam.
Parece extremamente difícil tentar estabelecer
a época em que o ‘Sizanga’ foi concebido e criado
(2) Com o aparecimento da dominação colonial e depois sob a forma de aparato social, mas tudo leva a crer
do Estado, os países então configurados sob os moldes oci que isso ocorreu ao longo dos processos de sedenta-
dentais criaram figuras centralizadoras e regionais da admi rização dos Senufo, processos esses que provoca
nistração oficial, como cantões e departamentos. Mas os
ram uma m utação na essência da organização
Senufo, enquanto complexo étnico, não possuem esses apa
ratos, que lhes foram im postos. Sobre a organização social desses voltaicos. Com efeito, daí emergiram
matrilinear Senufo, vide Leite. 1986. outras tipologias das relações do homem com a
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terra, nascendo as aldeias. A necessidade de então porte, arbustos, folhagens, etc., enfim, uma vegeta
estabelecer, integrar e difundir as principais norma ção densa que perm itiria o estudo das antigas co
tivas sociais organizadoras da sociedade diante das berturas florestais hoje desaparecidas. Sua forma
novas perspectivas históricas, teria dado origem tende para o circular, ocupando, segundo Coulibaly
ao ‘Sizanga’ e ao ‘Poro’, que concretizam essa pro (1978), entre dois e quatro hectares. Nós conside
posta. Assim , nessa sociedade agrária, ‘K aha’, ramos que as entradas que levam a seu interior são
‘Sizanga’ e ‘Poro’ são elementos complementares, dissimuladas ou, pelo menos, dificilmente visíveis
indissociáveis da explicação do mundo e da organi ao estrangeiro que o observa de uma certa distância,
zação da realidade. M as de qualquer m aneira, embora as trilhas ao ar livre que partem do espaço
considerando que os Senufo foram talvez os primei social em sua direção sejam bem demarcadas. De
ros ocupantes de seu território, nele se encontrando qualquer maneira, existem orlas em suas entradas
possivelmente desde o “primeiro milênio de nossa e somente após ultrapassá-las é que se com eça
e ra ” (Rougerie, 1977:77), a hipótese é a de que a verdadeiramente a penetrar em seu interior. Nós
configuração social de ‘Sizanga’ é de significativa nunca penetram os em um ‘Sizanga’ chegando
antiguidade. Nossos informantes, em sua lingua apenas a um de seus limiares. Assim, temos de
gem poética, disseram que o Bosque Sagrado existe nos servir da parca bibliografia existente e das
“desde sempre ”, “desde os primeiros ancestrais ” informações obtidas na pesquisa de campo - geral
ou que “sempre fo i assim ”. A tese dessa grande mente bastante reticentes - para apresentar alguns
antiguidade de ‘Sizanga’ é reforçada ainda pelo dados sobre o que existe dentro dele.
fato de que se constitui na praticamente única teste No interior do ‘Sizanga’ existem caminhos
munha da grande vegetação florestal densa ainda principais e caminhos secundários. Os primeiros
existente numa região dominada pela savana. levariam a um espaço diferenciado, talvez em seu
‘S izanga’ é um espaço natural preservado, centro e sob a forma de clareira, sendo possível
altamente diferenciado, e uma formação florestal que estejam orientados segundo os pontos cardeais,
testemunha. De fato, como o território Senufo lo- mas as informações não permitem assegurar que
caliza-se em zona de savana, o ‘Sizanga’ destaca- isso seja aplicável a todos eles. Quanto aos cam i
se fortem ente na paisagem sendo praticam ente nhos secundários, eles levariam a determinados
impossível deixar de notá-lo quando se percorre o locais e espaços destinados a certos rituais, seja a
território Senufo. Localiza-se sempre nos arredores lugar nenhum , podendo ou não, ainda, fazer
das aldeias, sua distância delas podendo variar, conexões com os caminhos principais. Registre-
mas é geralmente visível a partir das localidades. se a propósito que a fim de enganar o estrangeiro
O B osque S agrado é um a form ação florestal que penetre nesse espaço, existem dispositivos
bastante cerrada, principalmente se colocado em constituídos de “... fa lso s caminhos de acesso,
comparação com a savana, e possui uma variedade duplo sistema de lugares sagrados... “ homens
expressiva de grandes árvores,' árvores de menor de palha ” em lugar do encarregado real do culto,
etc. ’’(Holas, 1957:147, nota 1). Mas, é bem possí
vel, senão certo, que esse sistema enganador seja
(3) Sobre a noção Senufo de aldeia e sua administração, vide
destinado também a aumentar as dificuldades dos
Leite, 1986.
(4) Em uma das aldeias que visitamos - aliás bastante isolada iniciandos que são recolhidos no Bosque Sagrado
- seu ‘Sizanga’ encontra-se suficientemente perto. Pudemos nas fases iniciáticas em que isso é previsto. Por
ouvir o som de tambores e de outros instrumentos de maneira outro lado, clareiras, pequenas ou maiores, locais
distinta. Tratava-se de uma cerimônia do ‘Poro’ e vários ini de abrigo, de rituais, de sacrifícios, objetos sagra
ciados, vestidos com as roupas adequadas para essas ocasiões,
dos e litúrgicos, com pletam o espaço.
estavam se dirigindo ao ‘Sizanga’. A intervenção de um velho
iniciado, sobretudo indignada, nos fez partir em seguida, sen
H olas (1957) registra que anteriorm ente o
do recomendado que nem mesmo voltássemos o olhar em dire ‘Sizanga’ era povoado por animais sagrados, como
ção ao Bosque Sagrado. Ao hesitarmos em partir imediata
mente, fomos advertidos por nosso acompanhante Roger Soro, (6) Nós estivem os perto de vários ‘Sizanga’ e chegamos
ele mesmo um Senufo de outra localidade, de que isso poderia mesmo a uma de suas entradas. Mas nunca nos foi oferecida
ocasionar problemas imprevisíveis. permissão para entrar em um deles. Para que isso se tomasse
(5)Coulibaly (1978) cita nove espécies principais: ‘Bligia’, possível, foi-nos sugerida a possibilidade de passar por uma
‘Sapida’, ‘Cola’, ‘Cardiofolia’, ‘Antiaris’, ‘Africana’, ‘Ceiba’, “iniciação rá p id a ”, prática que existe e que condenamos
‘Pentadra’ e ‘Adansonia Digitata’. fortemente.
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Foto 1 - Um ‘Sizanga’, com pequena edificação em sua orla, destinada à guarda de objetos a serem
utilizados nas cerimônias que se passam em seu interior. (Foto: Fábio Leite)
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com o, por exem plo, os m onstros ‘N asso lo ’ e sátira às práticas sociais e a situações (os ‘Kamao’),
‘K agba’, que reproduzem a forma de quadrúpedes, de representações ocorridas em ritos funerários
este último produzindo uma dança, ao longo de (os ‘Y aladiogo’). Um a menção deve ser feita ao
determinadas cerimônias, que constitui, segundo personagem ‘K outo’. Trata-se de ator m asculino,
Holas a imagem de um mundo paradisíaco per totalm ente escondido por vestes elaboradas com
dido, aquela que p recede o aparecim ento do fibras vegetais m ulticoloridas e por um capuz de
homem." (1978:248). cor negra. O ventre do ator é colocado em evidên
As máscaras ocupam lugar de destaque nesse cia m ediante arranjos feitos sob as vestes e desti
universo e os Senufo possuem um grande número nados a representar as últimas fases da gestação.
delas, geralmente aparecendo no ‘Sizanga’ ou dele O conjunto lem bra um a grande ave, talvez uma
vindo para outros espaços, destinadas a inúmeras galinha. Esse tipo, no contexto iniciático, repre
práticas sociais como rituais de iniciação, funerais senta a figura da mãe, sim bolizando ‘K atyeleo’,
e legitimação de certas instâncias como, por exem divindade regente do ‘Sizanga’, princípio fem i
plo, a de representar as gerações de iniciados, cada nino prim ordial ligado à organização m atrilinear
uma possuindo a sua, ligando-se pois a inúmeros dos Senufo que se manifesta, concretam ente, na
campos de conhecimento e, mesmo, das práticas venerável figura que na com unidade eterniza essa
políticas. Cita-se, dentre as mais conhecidas, as proposta, possuindo o mesmo nome de ‘K atyeleo’.
máscaras ‘K pelie’, ‘W abele’, ‘Korobla’, ‘Yabli- ‘K o u to ’ exerce ainda outros papéis: an u n cia
que’, uma das quais, ‘K orobla’, tivemos a inesque ritualm ente as m ortes e dança em público no
cível oportunidade de ver manifestar-se em ação. encerram ento dos funerais. Está, pois, com pro
Essas máscaras aparecem por ocasião de certos metido com os ciclos sucessivos de aparecim ento
ritos iniciáticos ( ‘Kpelie’); simbolizam "m ásorte" e térm ino da existência visível. D iferentem ente
e doenças, mas podem expulsar influências nega de outros personagens disfarçados, ‘K outo’ pode
tivas que se abatem sobre as plantações ou, no tipo ser visto sem nenhum perigo pelos não-iniciados,
em que são pintadas de branco, fazer parte das ceri mulheres e crianças.
mônias destinadas ao aparecimento real ou sim Esses habitantes do ‘Sizanga’, dentre outros,
bólico de ancestrais ( ‘W abele’); ligam-se à proble integram a proposta de explicação do m undo
mática da morte e da separação eficiente dos princí através de arquétipos sociais. Constituem-se em
pios vitais constitutivos do homem, sendo com pa agentes dos modelos m ítico-históricos que são
nheiras dos cadáveres e dos ferreiros que, na forja, transm itidos à sociedade com certa frequência
produzem ruídos que penetram nas entranhas do através das representações que com põem o que
solo ( ‘Korobla’); podem simbolizar o desconhecido pode ser chamado de teatro sagrado Senufo. A
( ‘N iarou’) e as divindades da noite ( ‘Yeblique’). importância desses modelos não é pequena, pois
Além do bestiário sagrado e das máscaras, a de certa maneira encontram-se na base dos princi
proposta Senufo de explicação do mundo concebeu pais aparatos sociais que entre os Senufo são,
também os atores travestidos. O papel desses per segundo os seus valores civilizatórios, geralmente
sonagens parece ser o de auxiliar ou complementar sacralizados. Para Holas, a exteriorização desses
a ação das grandes m áscaras ao longo de ceri modelos - quando agentes eficazes da sociedade
mônias e a dos dignitários delas encarregados. De são acionados - constituem-se em representações
qualquer maneira, esses atores manifestam-se em “... dramáticas, periódicas, cuidadosamente ela
variadas circunstâncias. É o caso da recriação pú boradas, segundo temas m itológicos que fa zem
blica da história dos ancestrais e o exercício da parte da tradição sagrada constantem ente re
transmitida... Assim, mantêm-se vivas as lembran
ças históricas e os elementos constitutivos de uma
(9) Conforme depoimento de Gon Coulibaly, 1979, em
imagem do mundo sobre a qual repousa, com
Korhogo. A mesma informação foi obtida em Nenekry,
efeito, toda a edificação social.” (1978: 48).
1978.
(10) Vista na localidade de Nenekry, 1979, fora do ‘Sizanga’,
em local vedado às crianças e mulheres ainda em idade de
menstruar.
(11) Pudemos observar vários deles em Korhogo e em (12) A galinha é um tema que aparece em certas dimensões
Niapieoledougou, neste último caso ao longo de uma ceri da iniciação do ‘Poro’. Este seria a galinha-mãe com seus
mônia funerária cíclica. filhotes, os iniciandos.
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Não cabe discutir aqui como e em quais mo face de uma determ inada circunstância.15 Cabe
mentos precisos da vida social esses modelos se acrescentar ainda que essas exteriorizações drama
exteriorizam, passando do plano da consciência ao tizadas da explicação Senufo do mundo exigem o
da sua reprodução material. Para tanto, teríamos domínio do conhecimento dos arquétipos ances
de penetrar em um universo que não constituiu alvo trais de um grupo determinado, privilégio detido
de nosso trabalho. Pode-se entretanto registrar por um a confraria de sábios - os velhos iniciados
que essas representações se produzem como prática da com unidade - que acionam os atores e super
social nos principais momentos que envolvem e visionam os acontecimentos.
atingem a comunidade. Dentre outras, propõem Do ponto de vista que nos interessa reter aqui,
explicações sintéticas das relações existentes entre consideramos que esses modelos e suas exterioriza
o homem e a natureza dentro da ordem cósmica ções materiais envolvem a problemática do conhe
universal, envolvendo toda um explicação a respei cimento e de seu acesso a ele segundo os padrões
to de seus eternos ciclos e etapas. Q uanto ao ancestrais, pressuposto básico da elaboração do ho
homem, ligam-se aos diversos escalões do conhe mem natural-social e da sua integração ótima na
cimento, do mais elementar ao mais complexo e sociedade. Essa problemática também se configura
esotérico, por interferir ao longo dos processos de e se resolve no Bosque Sagrado. Vejamos de que
iniciação que propõem a transformação paulatina maneira.
do hom em natural em hom em natural-social, ‘Sizanga’ propõe ao homem a problemática
transm itindo-lhe a consciência dessas mutações do desconhecido, configurando-se como um misté
vitais e integrando-o plenam ente na sociedade rio permanente colocado às vistas da comunidade.
segundo os valores ancestrais. Na liturgia, são Ele é habitado por seres atemorizantes, divindades
indissociáveis dos ritos agrários, dos cultos às boas e más, assim como pelos ancestrais, que ali
divindades e aos ancestrais, indispensáveis ao equi retomam e se manifestam com frequência. O medo
líbrio material, moral e espiritual da comunidade. instintivo de penetrá-lo e, mesmo, a interdição de
Estão também fundamentalmente ligados à proble fazê-lo por quem não esteja habilitado a enfrentar
mática da morte e do renascimento, à elaboração suas forças, servem tam bém para m anter essa
dos ancestrais e às relações entre vivos e mortos, imagem. Por outro lado, o mistério que envolve
produzidas ao longo dos ritos funerários e certas ‘Sizanga’ é reforçado pelas transfigurações que
cerim ônias secretas. Ou seja, nessa instância sofre pela ação humana, sobretudo ao cair da noite,
ligam-se não apenas à continuidade da própria domínio dos temores. Realmente, se bem que certas
sociedade e seus valores, como à continuidade que cerimônias ocorram à luz do sol, à noite, nas oca
se configura no país dos ancestrais após o fim da siões necessárias, o Bosque Sagrado produz ruídos
existência visível, proposição básica e fonte de estranhos, ouvidos à distância. São os iniciados
legitim ação desses mesmos valores. É possível que se reúnem para cerimônias “fechadas”, ritos
também avançar que essas representações se pro
duzem num espaço privativo e interdito aos não
iniciados - o ‘Sizanga’ - e em certos espaços públi (15) As manifestações esotéricas fazem parte do conhecimento
oculto que é revelado paulatinamente ao longo dos processos
cos, quando é o caso, compreendendo determinadas
de iniciação. Ou que são privativos apenas das sociedades
áreas das plantações, cem itério e até mesmo a secretas.
aldeia na dependência do efeito que se necessita, (16) Os Senufo não pretendem deter o conhecimento total,
se deseja e se pode transmitir à coletividade em que seria privilégio do preexistente. Isso explicaria a exis
tência de diversas confrarias de sábios, as chamadas “socie
dades secretas", altamente especializadas em domínios
precisos do conhecimento e que se diversificam em vários
(13) O estudo das propostas contidas nessa problemática pode pontos das áreas ocupadas por essa sociedade. Se todas
talvez revelar as concepções mais profundas da explicação estivessem juntas, o homem deteria o conhecimento total e
Senufo do mundo e do homem. Um notável trabalho feito seria então igual ao preexistente, o que é impossível.
nesse sentido, a partir do ponto de vista da sociedade Bambara, (17) E justamente esse conhecimento que se encontra em vias
é o de Zahan, 1960. de desaparecimento. As tentativas para ao menos registrar a
(14) Nós pudemos constatar entre os Senufo um notável entro- palavra desses sábios são tímidas se comparadas com o
samento entre a aldeia e o cemitério, não ficando estabeleci trabalho que isso representa. A nosso ver, somente o trabalho
dos definitivamente em casos observados os limites entre os em equipe poderia trazer algum resultado. Mas já é quase
dois espaços que, ao contrário, pareciam complementares. tarde demais.
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funerários e com unicações com os seres da noite e transm itir os principais valores sociais. Nesse pro
ancestrais. Os não-iniciados, as m ulheres e as cesso, as representações do teatro sagrado e as m ás
crianças, recolhidos na aldeia, sabem que homens caras significam, em última análise, o conhecimen
qualificados estão estabelecendo relações com to de que é detentora a sociedade com o um todo,
forças tem íveis, mas ignoram com o e quais os tom ando-a capaz de decifrar o enigma proposto
meios para fazê-lo e dominá-las. pela explicação do mundo e do homem.
D essa m aneira ‘S izanga’ é um desafio ao Mas o processo de elaboração do homem se
conhecimento e um enigma a decifrar. De fato, não gundo as propostas da sociedade não é simples e
obstante o seu caráter aparentemente irredutível, nela ‘Sizanga’ desempenha papel da mais relevante
ele pode ser acionado pelo hom em e, de certa importância, senão insubstituível.
maneira, dominado por ele. Mas antes tem de ser O ‘Sizanga’ é um centro irradiador da vida em
conquistado. Ou seja, em últim a análise, o Bosque sentido amplo, pois sintetiza o início do mundo e
Sagrado representa as dificuldades que se apresen do homem, bem como a organização e o desenvolvi
tam para a conquista e obtenção do conhecimento. mento da sociedade. Realmente, é no ‘Sizanga’ que
O conhecimento está perto do homem e este sabe ocorrem os processos finais da iniciação do ‘Poro’
que é possível atingi-lo, mas é um mistério às vezes - a fase ‘Tchologo’ - dos quais emerge o homem
perigoso, enganador, é necessário m uita cautela natural-social idealizado pela sociedade. O Bosque
para penetrá-lo e familiarizar-se com seus múltiplos Sagrado, nesse campo, exerce um papel reparador
aspectos, como é o caso do próprio ‘Sizanga’. Essa das sucessivas dissoluções e recom posições do
conquista - tem ida mas desejada - já foi obtida homem ocorridas ao longo das fases iniciáticas que
por alguns homens, aqueles que têm o direito de antecedem o recolhimento nesse espaço diferencia
penetrar no Bosque Sagrado e entrar em comunhão do. Essas fases propõem a passagem paulatina do
com ele. Esses homens conhecem e dominam seus homem natural ao homem natural-social e a cada
mistérios, pois que descobriram as suas vias de uma delas o indivíduo toma consciência de sua con
acesso e percorreram os seus caminhos, que condu dição existencial através das revelações concernen
zem a múltiplos objetivos, alguns mais importan tes a cada um dos níveis atingidos. Ora, o homem
tes, outros menos significativos, que às vezes po ao nascer e durante um certo período, é um ser
dem estabelecer conexões, às vezes conduzir a natural completo. Sua integração na sociedade vai
nenhum lugar. O Bosque Sagrado não é assim tirá-lo dessa condição paradisíaca e cada etapa de
apenas o universo mágico e misterioso proposto sua iniciação, produzida no quadro am plo dos
pelo imaginário saído das profundas relações que processos de socialização, corresponde de certa
os Senufo mantêm com a terra e o sagrado, mas maneira ao esfacelamento de uma das partes dessa
também a própria imagem do conhecimento. unidade. Inútil realçar que não se trata de um a
O acesso ao desvendamento e domínio desse divisão da personalidade, produzida pelo sentimen
conhecim ento é aparentem ente sim ples: ele é to de agressão à natureza que se fundamenta na
obtido, segundo as regras ancestrais Senufo, pelo separação entre o homem e a terra, na apropriação
sistema iniciático estabelecido pelo ‘Poro’, com dos recursos naturais e dos instrumentos de traba
suas etapas sucessivas - outros tantos caminhos lho, elementos desconhecidos pela sociedade Senu
que levam ao ‘Sizanga’ - onde cada grau obtido fo originária. Tratam-se na verdade de mutações
corresponde a uma síntese da explicação do mundo, sucessivas que correspondem aos processos de
localizando diferencialmente o indivíduo em seu integração do homem na sociedade com a conscien
interior e em suas relações com a natureza e a socie tização ótima das relações existentes entre o natural
dade de acordo com o conhecimento que correspon e o social, que é preciso unir.
de a esses graus. Ao atingir as orlas desse conheci A humanização progressiva do ser divino - o
mento, isto é, quando chegar a ocasião em que inte homem absolutamente natural - é um a imposição
grará o grupo de aspirantes ao último grau iniciá da sociedade devido aos processos históricos que
tico - ’Tchologo’ - o indivíduo com eçará realm en a constituem. D essa maneira, o indivíduo distan
te a penetrar no ‘Sizanga’ para finalmente começar cia-se de seu estado natural e acaba reunindo um a
a conhecê-lo e desvendá-lo. A exteriorização do som a de consciência da sua condição natural-
d o m ínio do conhecim ento é dada assim pelo social, mas não a sua síntese. Mas o homem guarda
hom em perfeitam ente caracterizado, capaz de sempre, em sua essência, um a dimensão natural
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LEITE, F. ‘Sizanga’. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 251-260, 1995.
Foto 2 - Por vezes há até mesmo uma integração geográfica entre a aldeia, espaço social, e ‘Sizanga
espaço da natureza. (Foto: Fábio Leite)
abalada momentaneamente por esses processos de o esfacelamento relativo do homem natural pro
socialização, as práticas históricas sendo substan duzido pelas sucessivas iniciações anteriores é um
cialmente diversas dos processos da natureza. Ao processo de sacralização do ser humano em sua
final do processo o homem deve recuperar de certa dimensão natural-social, pois de certa maneira ele
maneira sua condição primordial, portador entretanto passará a ser uma espécie de imagem do preexis
de uma consciência histórica. Essa é a síntese vital tente, do qual já detém o sopro vital ( ‘Neri’) e o
que, chegado o momento, lhe é oferecida pelo princípio da imortalidade ( ‘Pile’), justamente sua
‘Sizanga’. dimensão mais histórica. Esse é o conhecimento
De fato, o preexistente Senufo, responsável pe possível, que assemelha o homem ao preexistente.
los processos primordiais da criação, é o único deten Mas esse processo reparador e sintetizador exi
tor do conhecimento universal e o ser mais com ge absolutamente a “morte” do iniciando, ou seja,
pleto da natureza, sendo portanto lógico que o ini o desaparecimento da personalidade anterior que
ciando, que se encontra à busca de uma síntese, vá devido aos processos de socialização tendeu a fazê-
ao seu encontro e a ele se una. Essa fusão entre la distanciar-se de seu estado original puro tal como
homem e divindade é proposta, materialmente, por foi criada pelo preexistente. Exige também a sua
um ritual que se desenrola no ‘Sizanga’ durante o gestação em direção ao próprio nascimento social,
qual ‘Katyeleo’ pode “... materializar-se em ima gestação essa que corresponde à fase das revela
gem de vulva sagrada, com a qual o adepto consu ções que ocorrem no ‘Sizanga’ quando os inician-
ma um casamento simbólico.” (Holas, 1957:145). dos ali são recolhidos. E exige o renascimento total
‘Sizanga’ é assim o próprio centro do universo do propriamente dito, vale dizer, a emergência da nova
qual emana a vida em seu sentido mais abrangente, personalidade onde se fundirão harmoniosamente
representando todos os processos e todas as sínteses. o natural e o social. Esses são os processos funda
O acesso ao conhecimento sintético, proporcionado mentais que configuram o novo homem sob a égide
por uma união com o preexistente e que irá reparar de ‘Katyeleo’.
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Dessa maneira, o ‘Sizanga’, centro irradiador extrema im portância a esse respeito deve ser reti
de vida, é o próprio ventre de ‘K atyeleo’, que do: ao longo dos processos iniciáticos da fase
preside esse com plexo processo de m utação do ‘Tchologo’ do Bosque Sagrado ocorre efetivamente
homem. É nesse ventre sagrado que são recolhidos um nascim ento simbólico. Esse ato é dirigido pelo
os iniciandos da últim a fase do ‘P oro’ iniciático personagem ‘K outo’, a que nos referimos antes,
( ‘T chologo’), um a vez despojados de todos os que assume na ocasião o papel de parteira. Os
emblemas da vida social dada pela aldeia - mundo iniciandos tomam a postura de feto, sendo então
acabado da cultura que não é atingido em sua signi sim ulado um nascim ento, após o que ‘K outo’
ficação plena senão pelo conhecim ento de sua impõe-lhes um novo nome, iniciático e secreto, um
explicação. R ealm ente, indo da aldeia para o dos p rin cip ais atrib u to s d essa m e tam o rfo se,
Bosque Sagrado, os iniciandos estão praticando tocando-os com um bastão ritual. Aqui eviden
uma regressão ao estado intra-uterino, desta feita ciam-se, ainda uma vez e da forma mais expres
dentro de ‘K atyeleo’ - verdadeira imagem da mãe siva, as relações que os Senufo estabelecem entre
Senufo - de onde renascerão unificados, homem e as várias instâncias da realidade: ‘K outo’ é o mes
natureza constituindo uma só proposta e uma única mo ‘O leo’ ou ‘Sienleo’ da aldeia, o “rio”, o repre
síntese. Daí serem “mortos” pela divindade, pois sentante masculino mais velho dos ancestrais e
seu estado de afastamento da natureza primordial guardião da terra que, travestido, assume nesse m o
que continha em si - dado pela vida em sociedade mento o papel de parteira. No ato, sim boliza tanto
e pelos processos de socialização - bem como o a divindade ‘Katyeleo’, imagem da mãe e do prin
de d e te n to r de c o n h e cim en to s p a rc ia is, não cípio matrilinear, como a sua dimensão concreta
perm itiria a união com a divindade. Inicia-se então de elemento integrador de práticas sociais. ‘Sizan
a gestação, período durante o qual os jovens são ga’ , útero mágico, é na verdade o espaço sagrado
subm etidos às m ais duras provas físicas e in sintetizador de princípios da natureza e dos valores
telectuais tendentes a revelar os mistérios do mun essenciais da sociedade. Acionado pelos agentes
do, a verdadeira localização final do homem na sociais que se encontram em interação ótima com
natureza e na sociedade, o caráter sintético do ele, ‘Sizanga’ dá nascimento a um homem pleno
conhecimento segundo os valores ancestrais. Após de identidade e lhe indica o caminho do conheci
essa gestação, o homem renascerá. Um dado de mento.
LEITE, F. ‘Sizanga’. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 251-260, 1995.
ABSTRACT: This text deals with some aspects of ‘Sizanga’ (Sacred Wood),
social apparatus of the Senufo, African-Negro society, and of the relationships it
establishes in the universe of the historical practices, revealing perception-and reality
organization-forms according to originary values which define the deep identity of
this civilization.
(18) Holas (1957) lembra sobre a existência, no interior de (19) Segundo um depoimento, o ato de tocar com o bastão
‘Sizanga’, de um cone de sacrifícios, elaborado em terra, o vem do fato de que os Senufo consideram que a memória é
qual representaria o “umbigo do universo ritu a l”. N ós des também sensorial, dela fazendo parte o corpo. Assim , por
crevemos em outros trabalhos um centro irradiador de vida exemplo, uma criança encarregada de transmitir uma mensa
social localizado sobre monumento em terra que esconde a gem terá sua cabeça tocada três vezes por um pequeno golpe,
pedra que sim boliza o ancestral-fundador de uma aldeia e o que lhe impedirá de esquecer o conteúdo da mensagem por
que existe nas comunidades Senufo (Leite, 1982,1986). força das maravilhas que encontrará no seu percurso.
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Referências bibliográficas
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