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Isabel Antunes

Aprenda a lidar com emoções, sentimentos,


comportamentos, reacções físicas
e pensamentos

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Pré-Impressão:
PAULUS Editora

Impressão e acabamento:
Rolo & Filhos II, S.A.

Depósito legal: 294 079/09

ISBN: 978-972-30-1405-1

© PAULUS Editora, 2009


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editor.

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1. Isabel Antunes é psicóloga clínica. É, também, membro desse grande movimento
universal de serviço chamado Lions. É, finalmente, uma pessoa com um rico mundo
interior e apelos de criatividade literária.
2. O somatório destes traços reflecte-se neste livrinho, muito simples e
despretensioso que pretende juntar experiência clínica, sensibilidade social e ajuda
pessoal.
3. O tema é, ele próprio, de todos os tempos e de todos os lugares. Quem não
passou já pela provação do luto, em particular de parentes ou amigos muito
próximos?
Quem não sentiu que o seu caminho é específico, já que, podendo aprender com o
dos outros, tem o seu tempo e o seu modo muito particulares? Não há dois lutos
iguais. Nem nos experimentados pelo mesmo enlutado.
Saber conviver com essa diferença, convertendo a saudade dolorosa da separação
em saudade serena e doce da aceitação – eis um desafio que, entre outros, justifica
este contributo.
Por ele ficamos gratos a Isabel Antunes. À profissional, à Lions, à amiga, à mulher.

Marcelo Rebelo de Sousa

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Este livro introduz-nos na dor do luto que nós sofremos quando morre o nosso pai,
a nossa mãe.
A colecção Descubra o seu caminho é uma forma de ajuda ao leitor e à leitora no
aconchego do lar, nos momentos em que mais necessita, nas condições logísticas que
se lhe deparam. Pretende-se que este livro seja uma espécie de “manual” para
melhorar as fases do luto que está a pesar na sua vida.
Leia este livro e vá seguindo todos os capítulos, um a um, pois o processo de “cura”
da “ferida” originada pelo luto tem uma sequência evolutiva e em cada capítulo
encontrará motivos de interesse para si.
O turbilhão das recordações e dos sentimentos arrasta sofrimento e invade o
pensamento exprimindo-se em comportamentos e reacções corporais graves ou leves,
conforme a pessoa e a situação.
Quando chegar ao fim do livro, consulte novamente o «Índice», releia e refaça os
exercícios conforme as “suturas” que ainda “sangram”. No fim, a “cicatriz”
permanecerá como uma recordação saudosa da vida passada com o progenitor
falecido que não pode ser enjeitada por ter contribuído para o seu amadurecimento e
enriquecimento como pessoa humana, inteligente e consciente.
Na apresentação desta colecção escolhemos uma determinada forma estrutural, por
acreditarmos que é a maneira adequada para podermos acompanhar, passo a passo, a
evolução saudável do seu sofrimento, oferecendo em cada página a nossa capacidade
de lhe dar apoio, nesta circunstância difícil da sua vida.
Dividimos o livro em quatro capítulos.
O I Capítulo refere-se à dor anestesiada vagamente sentida aquando da
confrontação com a realidade da perda, a negação da situação de morte.
No II Capítulo aparece a revolta como fase de grande dor.
No III Capítulo entra-se em depressão, uma tristeza profunda quando há ainda
lágrimas sentidas para chorar.
No IV Capítulo trata-se já da resolução do luto com integração e, numa evolução
saudável, a saudade, no final.
Os capítulos correspondem às fases em que os sentimentos, as elaborações mentais,
os comportamentos, as reacções físicas e as emoções revelam os aspectos mais
estudados quando o luto acontece.
Estrutura:
a – Cada capítulo tem como título um queixume que tantas vezes ouvimos;
b – A introdução do tema faz-se através de um pensamento universal
expressamente dedicado ao tema do capítulo;
c – Segue-se o excerto de um caso que acompanhámos em psicoterapia (os

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protagonistas obviamente ostentam nomes fictícios);
d – Em itálico, contamos uma história tradicional, popular ou imaginada que, à
primeira vista, poderá parecer alheia ao seu problema; trata-se de uma ferramenta
usada em biblioterapia, que se revela extremamente interessante e útil por despertar
em si descontração, descentralização e distanciamento, libertando a sua imaginação e
pensamentos mais maduros, de autêntica descoberta com vista à sua própria vivência
presente e futura. Da história, deverá destacar uma conclusão a que chegou, uma frase
que sublinhou e que possua significado para a sua vida, na sua actual situação.
Escreva-a num papel e guarde-o consigo, de modo a poder ler essa mensagem
frequentemente, até obter mudanças positivas nas suas emoções, sentimentos,
reacções corporais e pensamentos;
e – A seguir, colocamos-lhe algumas questões para reflexão. Partindo da
experiência de estudos psicológicos que demonstraram a obtenção de bons resultados
pela escritoterapia, com vista a uma boa evolução da problemática de vida,
recomendamos que, após a leitura das questões, reflicta e responda, à parte, num
bloco de apoio para o efeito, tendo o cuidado de preservar a sua privacidade;
f – Terminamos cada capítulo com um aconselhamento prático que esperamos que
possa pôr em prática, de modo a obter o melhor efeito para si na presente situação.
Esperamos que os conteúdos e a forma estrutural deste livro lhe agradem.
Confiamos que chegará à descoberta de novos ângulos para poder analisar a sua
situação e ultrapassar as emoções dolorosas, os sentimentos negativos e as reacções
físicas complicadas, descobrindo connosco como vencer e mudar os seus
pensamentos destrutivos. Estamos certos de que, com este livro, terá acesso a uma
nova perspectiva construtiva para eventuais problemas.

Eu estarei presente nessa busca, incansável, até que Descubra o seu caminho.
Com toda a dedicação,
Isabel Antunes
Psicóloga Clínica e Escritora

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Capitulo I

«Levanta-me no dia terrível, pois eu confio em Ti.»

Sl 56(55),4

– Depois do choque da repentina morte do meu pai há três meses, eu ainda não
aceito… Não acredito que ele se tenha ido embora…
Com uns olhos baços, enrugados e fundos numas olheiras largas e negras,
ressaltando inexpressivos num rosto cinzento, Emília estava diante de mim, enrolada
sobre si própria.
– Depois do vazio imenso que eu sinto com a falta dele, o que eu agora mais
lamento é o facto de que eu nunca disse ao meu pai que o amava… Perdi todas as
oportunidades da minha vida… e perdi o tempo dele, todo…
Com voz tranquila, empática, mas neutra, perguntei-lhe:
– Como era o seu pai?
Os ombros endireitaram ligeiramente e Emília fixou os olhos num horizonte para
além das paredes do consultório. Pelo movimento ocular deduzi que, dentro de si, ela
refazia a recordação visual, auditiva, cinestésica e afectiva do pai.
Alternando a expressão do rosto entre sorrisos tímidos, inconscientes e breves,
denotando sinais de uma tristeza antecipatória da depressão, ela começou:
– Podia-se considerar o meu pai como um homem muito bonito… Era alto… Nem
gordo, nem magro… Tinha as costas direitas e nunca ganhou barriga com a idade…
Fumava um ou dois cigarros por semana… Gostava da comida bem temperada e

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apurada…
Eu não queria interrompê-la. A minha intenção psicoterapêutica durante as
consultas iniciais consistia em facilitar-lhe a associação livre de ideias. Por isso,
deixei-a expressar-se durante todo o tempo disponível para o efeito.
Emília falava com toda a liberdade como se estivesse a conversar consigo própria,
em voz alta. Parecia que eu não estava ali presente. Não me via.
Pensei: “Óptimo. A paciente está a reagir bem e da forma que eu pretendo.”
– Sempre foi um homem saudável… O meu pai… O meu pai nunca se queixava de
dores, nem de cansaço... Parecia indestrutível…
Baixou a cabeça e as lágrimas correram, mansas, pelo rosto.
Atenta a tudo aquilo que ela me comunicava verbal e não verbalmente, notei a
forma como se expressava, ou seja, o orgulho e o sentido de posse com que ela
pronunciava “o meu” e o amor com que sublinhava a palavra “pai” num sussurro que
lhe vinha do fundo do coração e dos pulmões.
Aquele pai era o pai dela, só dela, não o queria partilhar com ninguém.
Agora, perdera-o. Ele fora-se embora, sem a avisar. Sem lhe dar qualquer sinal
sobre a sua futura partida, pois “nunca estivera doente”.
“Nunca estivera doente aparentemente”, pensei eu para mim própria. Ele poderia
estar doente sem que a filha soubesse, sem que ele tenha comunicado o seu estado de
saúde ou sequer tenha dado conhecimento dentro do seu meio familiar.
Desamparada, ela continuou:
– Eu e o meu pai formávamos uma equipa forte quando eu era pequena… Só nós os
dois…
Eu pensei: “A mãe ficava do lado de fora dessa equipa.”
Emília soltou as asas da sua imaginação e voltou mentalmente aos seus tempos de
criança:
– Quando eu era pequena e o meu pai me pegava ao colo, sentia que era capaz de
vencer todos os problemas do mundo… Nada de mal me poderia acontecer… Ele
comigo ao colo… Ele e eu formávamos um grande dragão poderoso…
Os ombros dela elevaram-se de orgulho.
– O meu pai tinha muita força física… Lembro-me de que… de que o colo do meu
pai era mais poderoso quando comparado com o colo da minha mãe…
Calou-se.
Não interrompi. Percebi que, durante alguns momentos, pensou na mãe. Aquela
mãe que, por vezes, era sentida como um corpo estranho pelo par que o pai e a filha
pequena formavam.
Esperei que ela regressasse ao furacão de sentimentos que estava a viver com a
perda do pai, motivo que a tinha trazido à consulta.
Suspirou imperceptivelmente.
– O meu pai estava ausente a maior parte do tempo. Muitas noites, quando eu era
criança e depois como adolescente, ia deitar-me sem o ter visto...

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Considerando tamanha ausência paterna, parecia-
-me que este pai tinha sido para a filha mais idealizado do que real. Eu teria de
comprovar esta hipótese através da livre associação das recordações de Emília, que
continuava a relatar:
– Havia uma coisa no meu pai de que eu não gostava… Talvez porque, quando era
criança, isso escapava à minha compreensão… Assustava-me porque eu não
percebia… e também não queria que existisse… sempre tive medo de perder o meu
pai…
Correspondendo à minha expressão corporal interessada e estimulante, Emília fez
uma careta e explicou:
– O meu pai tinha… às vezes… não era sempre… e fazia-o só com certas
pessoas… não era comigo… se me recordo, essas pessoas eram mulheres da idade
dele…
No meio daquela baralhada de ideias, Emília especificou:
– O meu pai sorria com a boca ao lado, num sorriso que me parecia horrivelmente
trocista… Eu penso agora que esse sorriso fazia parte do seu “charme” como
homem… Lembro-me até de que havia artistas de cinema antigos com aquele sorriso
de boca torta…
Emília sorriu ligeiramente, num rosto simétrico, abanou a cabeça num gesto de
incredulidade e acrescentou:
– Olhe, Dr.ª, é engraçado… mas, agora que estou a falar sobre isso aqui consigo,
em voz alta, reparei que vejo na televisão pessoas mediáticas… – estou até a pensar
precisamente numa mulher que faz o mesmo – … pessoas que têm aquele sorriso…
mas acho que está fora de moda… – rematou com um ar divertido.
Eu percebi que o tal sorriso do pai dela era um instrumento que ele usava em
determinadas circunstâncias e só com mulheres, talvez para “agradar aos corações
femininos”.
Não me enganei, porque Emília rememorou:
– Onde ele estava, havia sempre um enxame de mulheres à volta dele… Ele sorria
ou ria daquela maneira e elas davam gritinhos ridículos, horríveis para os meus
ouvidos de filha… de criança… de adolescente… Apetecia-me empurrá-las, deitá-las
fora, no lixo… apagá-
-las com a borracha…
Registei que Emília usara locuções de criança para se exprimir. Obviamente ela
sentira ciúmes do pai, reacção normal na evolução do desenvolvimento da criança-
menina.
– Nunca perdoei ao meu pai o facto de ele ser tão simpático para as outras
mulheres!
Emília passou os dedos várias vezes pela testa a tentar afastar ou modificar
pensamentos. Percebi que este aspecto tinha de ser trabalhado na psicoterapia.
Ela prosseguiu:
– Bom, afinal aconteceu o que tinha de acontecer… o meu pai… parece que foi…
ou era… infiel à minha mãe…

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Emília fez uma pausa e continuou, com o corpo contraído e um esgar de rejeição no
rosto:
– Toda a minha vida de adolescente foi marcada por essa dor… essa repulsa…
– Então os seus pais não se divorciaram, como acontece nos nossos dias? –
perguntei eu, quando o silêncio pesou demasiado.
– Nós pertencíamos a famílias muito tradicionais e católicas… tudo se passou em
segredo… Eu nem posso afirmar a pés juntos que o meu pai foi alguma vez infiel no
casamento… A minha mãe, por meias palavras, dava-me a entender que isso
acontecia… A minha mãe chorava todos os dias… Fez-se velha depressa, de tanto
chorar… mas nunca ninguém teve certeza alguma!
– E em relação ao que a Emília sentia?
A minha pergunta era um pouco vaga, propositadamente. Esperava que ela a
interpretasse como entendesse.
Ela olhou-me, estupefacta. Apanhada de surpresa, foi sincera e rápida:
– Eu sentia-me traída, também… e o meu pai despenhou-se do pedestal onde eu o
tinha colocado! Andei anos sem poder olhá-lo a direito… Parecia-me também que ele
fugia de mim… que não me queria enfrentar…
A minha análise sobre quais os pontos a tratar na psicoterapia com Emília começou
a ficar clara.
Induzi, com voz neutra:
– O que sente a Emília, actualmente, sobre esse assunto?
Ela contorceu-se. Sentia-se indubitavelmente incomodada.
– Tento afastar esse pensamento… estou sempre a enxotá-lo…
– Mas ele volta… – repontei eu rapidamente.
– Pois é… custa-me imenso… – os olhos encheram-
-se-lhe de lágrimas, fugindo de mim.
Num golpe de rins propositado, mudei de assunto e ripostei:
– A Emília casou cedo?
Olhou-me surpreendida. Ela não esperava que eu fosse buscar um tema alheio à
morte do pai. Respondeu, um pouco desorganizada:
– Quer dizer… acho que foi com a idade normal…
Com as pupilas muito redondas e dilatadas, ela olhava-me com espanto.
– Tem sido um casamento feliz… – acrescentei eu, provocatoriamente.
Emília estava atónita. Balbuciou:
– Feliz, feliz, não posso dizer que seja… temos as nossas divergências…
– Mas, porquê? Divergências sobre quê?
Ela remexeu-se, incomodada. O pescoço dela, que eu podia entrever na gola aberta
da blusa, parecia intumescido e vermelho.
– Bom, o meu marido é demasiado ciumento… é uma maçada… faz-me a vida
negra, Dr.ª

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– Porquê? – disparei eu, sem a deixar respirar.
– Ora, porquê, Dr.ª! Porque ele acha que eu não devo conviver tanto com os
homens que são meus colegas! Se já se viu! Até porque eu gosto mais de colegas
homens do que de colegas mulheres! Elas são umas invejosas, inventam coisas,
andam sempre com bisbilhotices…
– Os homens, não… – continuei eu ao ataque.
– Não, os homens não têm essas conversas parvas…
Ela calou-se.
Eu voltei à carga:
– Então, que conversas têm eles? – o tom da minha voz era incisivo.
– Ora, são… – A voz dela adoçou, sorrindo. – Os homens são simpáticos… mais
gentis… gostam de agradar…
– A Emília também gosta de lhes agradar… – esta conclusão era demasiado
confrontadora.
Ela defendeu-se:
– Quer dizer… eu gosto de ser educada… trato-os bem…
– Tal como o seu pai tratava bem as outras mulheres…
Ela fitou-me, aterrada.
Por um longo momento, olhámo-nos de frente. Dei-
-lhe tempo para que ela assimilasse todo o conteúdo e significado do diálogo.
A chicotada psicológica deixou-a prostrada.
Abriu e fechou a boca várias vezes, incrédula com o que se estava a passar na sua
cabeça.
Eu sugeri:
– Fale-me agora das divergências com o seu marido…
Ela gaguejou:
– Bem… é isso… ele não… ele cria-me problemas…
– Não… a Emília é que lhe cria problemas a ele… – afirmei eu, subtilmente, sem a
deixar desviar o olhar.
Cativando a máxima atenção dela e acentuando cada sílaba, expliquei:
– A Emília ainda não resolveu o seu problema de criança e de adolescente… A
Emília continua a viver o drama… que pensa… que foi vivido pelo seu pai e pela sua
mãe…
Ela ouvia-me, fascinada.
Eu acrescentei, com uma voz neutra e lenta:
– A Emília actualmente assume o papel do seu pai, quando se comporta como ele,
num esforço de compreender o que se passou com ele…
Esperei um pouco e depois rematei:
– Ao mesmo tempo… no seu papel de mulher – porque a Emília sofreu como
mulher a traição do seu pai – transfere para si o papel da sua mãe, querendo aplicar o

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castigo que acha que a sua mãe devia ter infligido ao seu pai… A Emília tem para
com os outros homens um comportamento de conquista que denota a vingança que
acha que deveria ter sido assumida pela sua mãe – se ela tivesse sido, como a Emília
queria, uma mulher forte – com o objectivo na vida de infligir sofrimento e ensinar
uma lição, no campo do “charme”, ao marido dela, ao seu pai…
Emília escutava-me, perfeitamente atónita.
Eu continuei:
– Só que a Emília está a aplicar esse castigo ao seu próprio marido… o seu marido
que, coitado, não tem culpa de nada, nem está a perceber o que se está a passar…
num processo circular que não termina… pois a Emília sente que não está
resolvido… Está sempre a começar, a insistir… num autêntico sistema fechado… que
vamos ter de resolver aqui na psicoterapia.
Emília desabou num choro soluçado batendo com os punhos nos próprios joelhos.
Deixei-a chorar.
Antes de poder resolver este luto complexo, Emília precisava urgentemente de
percorrer o caminho do seu processo de vida.
Vim a confirmar posteriormente que a dor, a culpa, a sua atitude mental de
justiceira inconsciente e intolerante em relação a um pai que ela nunca entendera nem
perdoara, mantivera-se latente nos seus comportamentos relacionais de criança e de
adolescente para com os rapazes que dela se tinham aproximado.
Para Emília o pai era uma figura idealizada, um super-herói, sem os contornos
humanos de quem comete normalmente erros e tem naturalmente fraquezas.
O amor que sentira durante tantos anos pelo pai era um amor secreto, irrealista e
mais tarde portou-se como uma namoradinha enganada.
Emília precisou de crescer e de reformular todos os afectos sentidos em relação ao
pai agora desaparecido para sempre.
Nunca mais o veria.
A situação da ausência do pai, na morte, não era a mesma que Emília vivera quando
era criança e o pai chegava tarde, adormecendo ela quase todas as noites sem se
verem, sem se falarem.
No entanto, em época passada, a criança-adolescente Emília tinha a certeza de que
o pai ausente-invisível andava lá por casa.
Agora, ele nunca mais voltaria. Nunca mais chegaria a casa. Era o confronto com a
perda total.
Emília continuou a vir ao consultório.
Foi um processo que demorou quase dois anos de psicoterapia, a recordar todos os
pormenores da sua vida com o pai, sem mistificações da figura paterna, até
compreender e aceitar a dimensão humana dele.
Promovi a alteração do ângulo de análise mental de Emília com vista à construção
real e positiva da figura paterna, anteriormente falsa e idealizada. No princípio, as
críticas directas ao pai eram impiedosas e constantes. Só com a psicoterapia
abrandaram e pararam totalmente, tendo Emília ganho um amor maduro, tolerante e

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compreensivo ao pai falecido que a fazia feliz.
Foi possível fazê-la compreender e alterar o mecanismo dos seus próprios
comportamentos de conquista dos colegas homens.
A guerra que fazia ao marido terminou. A relação deles melhorou visivelmente.
Ao mesmo tempo, fomos resolvendo o processo do luto passando por todas as
fases: a revolta, a depressão, a integração/resolução e a saudade.

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A PRINCESA NEYDE
Havia num reino distante uma jovem princesa muito bela chamada Neyde.
A princesa Neyde tinha uma pele dourada como a areia das praias, uns cabelos
longos e sedosos que brilhavam como o sol do meio-dia e uns olhos expressivos como
os lagos profundos e límpidos das florestas.
Quando a princesa completou seis anos, o feiticeiro Kirok, que queria para si o
poder do reino maravilhoso de Khandalipur, lançou um fumo misterioso sobre as
montanhas e sobre as cidades sagradas. Fingindo-se muito amigo, o feiticeiro deu à
princesa uma venda tecida de nuvens negras e disse a Neyde que ela só poderia ver o
reino através daquela venda nos olhos.
A princesa Neyde acreditou, porque não sabia que o feiticeiro Kirok era malvado.
Durante toda a sua infância e adolescência Neyde não se apercebeu de que via
tudo distorcido, nada correspondia à realidade com aquela venda de nuvens negras
nos olhos. A princesa via tudo muito feio à sua volta e por isso vivia profundamente
infeliz.
Um dia, na manhã em que perfazia dezoito anos, a princesa Neyde passeava no
bosque e sentou-se junto do lago.
De repente, apareceu à tona da água um peixe que a princesa achou muito sujo e
feio.
– Retira a venda, princesa Neyde… – pediu o peixe.
– Que dizes, peixe horrendo? Eu tenho de usar sempre esta venda nos meus olhos
para poder ver tudo o que se passa à minha volta!
– Não, princesa Neyde, eu não sou um peixe horrendo… eu sou um peixe dourado,
brilhante, saudável e queria que tu me pudesses ver como eu sou… Acredita que este
pedido que te faço é a melhor prenda do mundo para o teu aniversário…
Muito a medo, a princesa Neyde encheu-se de coragem e retirou a venda que lhe
tapava a visão clara do mundo e ficou deslumbrada com a beleza do peixe dourado.
Depois, maravilhou-se vendo o lago, as árvores, o céu.
Confrontada com a realidade, a princesa Neyde concluiu que o feiticeiro lhe tinha
mentido, descobrindo assim que Kirok era malvado.
Usando todo o seu poder, a princesa Neyde expulsou do reino o feiticeiro Kirok e
viveu feliz e liberta para sempre…

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– Esta morte foi surpresa para si?
– Viveu todos os momentos do velório e do funeral? Chorou?
– Há aspectos negativos na relação que tinha com quem morreu?
– Esses aspectos negativos prejudicam ainda a sua vida actual?
– Quando vai entender e perdoar quem morreu?

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No caso de Emília, podemos analisar vários aspectos da rea-
lidade.
Um aspecto comum refere-se ao choque sentido pelos familiares, amigos e conhecidos em relação ao facto
inexorável da morte.
Segue-se uma pergunta clássica que se coloca no silêncio do respeito pelo outro, ou exprimida em voz alta,
como uma reacção natural:
– Morreu de quê?
A notícia é uma surpresa porque há pessoas que não admitem perante si próprias e/ou perante os outros que a
doença as atacou. Travam uma luta interna de sobrevivência e coragem, mas não querem mostrar o que estão a
encarar, porque não admitem que os outros possam sentir pena delas pela sua condição.
Só em situações-limite, quando a doença já é demasiado evidente, os familiares, os amigos e conhecidos se
apercebem da gravidade do estado de doença e da probabilidade de que essa pessoa possa estar a chegar “ao
fim da linha”.
Nestas circunstâncias, e após a morte do pai ou da mãe, os filhos que o/a amavam podem sentir-se excluídos
porque quem morreu não se abriu, não confiou, não partilhou o segredo da sua doença.
Há filhos que podem sentir-se traídos porque acham que foram abandonados pelo progenitor que morreu, sem
aviso prévio.
Outros filhos ainda, porque os tempos que correm convidam ao individualismo egocêntrico e andam muito
ocupados com as suas despesas, com os seus descendentes e com as suas carreiras profissionais, acham que
foi extremamente confortável o facto de não terem sido incomodados.
Esta situação leva a sentimentos negativos após a morte seja do pai, seja da mãe, que provocam um
“remoinho” de confusão entre pensamentos, emoções e comportamentos, difícil de destrinçar e que
prejudicam o processo de luto normal.
No recôndito das suas almas, o/a morto/a não é facilmente perdoado/a por todos os filhos.
Em grupo, socialmente, os filhos que ficam neste mundo falam e procedem com prudência, não deixando
escapar negativismos acerca do pai ou da mãe que morreu. Porque é socialmente correcto dizer que qualquer
pessoa que morre foi sempre “uma boa pessoa”.
Esta é uma das razões mais comuns pela qual é necessária ajuda técnica especializada em consulta de
psicoterapia.
O processo de luto inicia-se sempre com a fase de negação.
Independentemente do aspecto de que a morte tenha sido, ou não, uma surpresa, os filhos nunca aceitam a
morte nos primeiros tempos. Negam-na, não acreditam que tenha acontecido.
Se conseguem adormecer e mesmo dormir razoavelmente bem, quando acordam e pensam no sucedido, não
aceitam, não conseguem acreditar que o pai ou a mãe “se foi embora”. “Para sempre.”
Podem sentir necessidade de acompanhamento psicoterapêutico imediatamente após a morte, seja qual for o
amor nesse laço que possuía com quem morreu. O processo de luto bem sucedido evolui até à última e
saudável fase da saudade.
É difícil estabelecer quanto tempo demora, uma vez que cada caso é um caso. No entanto, conhecem-se
pessoas que nunca conseguiram ultrapassar esta primeira fase do luto – a negação – facto altamente
perturbador para a saúde mental de quem permaneceu neste estádio.
Na consulta promove-se a confrontação com o quotidiano e ao fim de algum tempo resolve-se esta primeira
fase da negação.
Assim, aconselha-se:
• A colocação de fotografias do pai ou da mãe que morreu em sítios nobres e visíveis da casa e na carteira
pessoal;
• Conversas acerca do pai ou da mãe que desapareceu para sempre, com as pessoas que o/a conheciam e com

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outros que não o/a conheciam;
• A contemplação das fotografias, dos álbuns de família, rememorando todos os momentos passados;
• Que sejam recordados os pormenores da morte, mesmo que provoquem dor e choro;
• Que sejam vividos com intensidade todos os sentimentos, os “bons” e os mais “difíceis” sempre trazidos
pela confrontação com a realidade;
• A recordação das circunstâncias do velório e do funeral, da presença do corpo no caixão, são factos
absolutamente necessários para a evolução saudável do luto.
Facilmente se compreende a razão por que, muito sabiamente, as culturas respeitam a realização dos rituais
fúnebres.
A seguir à fase da negação sobressai um período de revolta caracterizado por sentimentos de culpa, quando se
faz a rememoração dos pormenores da vida da pessoa que morreu.
As fases do luto não são estanques no tempo. Interpene-
tram-se, vão e vêm, durante anos. Conhecemos casos difíceis de luto que não receberam apoio técnico
especializado no tempo certo e o luto prolongou-se patologicamente ao longo de toda a vida, prejudicando o
quotidiano do/a filho/a.
Pretende-se na psicoterapia que o nosso paciente entenda e identifique o que está a sentir, a fim de poder
monitorizar a sua dor de forma mais construtiva e saudável.
O problema mais importante neste caso de Emília foi o seu ressentimento contra o pai morto, devido à
vivência que ela experienciou desde criança por uma culpa humana atribuída ao pai, mas não provada.
Nestas circunstâncias, todo o aconselhamento vai no sentido de reviver factos passados.
Assim, aconselhamos:
Analise os actos do pai ou da mãe que lhe desagradaram e procure maduramente as razões do porquê dessas
atitudes e responda num bloco de notas para o efeito, honestamente:
• Como foi a infância do seu pai/da sua mãe?
• Como foi a educação recebida pelo seu pai/pela sua mãe?
• Quais as condições económicas, familiares e ambientais em que viveu o seu pai/a sua mãe?
• O seu pai/a sua mãe poderia ter agido de forma diferente?
• Se você estivesse no lugar do seu pai/da sua mãe, como faria?
• Houve mal-entendidos?
• As querelas de que se queixa não foram verdadeiramente importantes, pois não?
• Essas discordâncias eram muito relativas, verdade?
• Você ama o seu pai?
• Você ama a sua mãe?
• Prefere viver amando?

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Capitulo II

«Os dias do homem são como a relva,


ele floresce como a flor do campo.
Passa por ele um vento, e já não existe,
e ninguém mais reconhece o seu lugar.»
Sl 103,15-16

O João faz parte do estrito círculo de amigos que estimo e admiro e, precisamente
por isso, não poderia tê-lo atendido em consulta. No entanto, teve a generosidade de
me dar autorização para que eu pudesse falar dele neste livro.
Em meu nome pessoal e de todos aqueles que lêem estas páginas e que poderão,
espero, beneficiar com este relato e aconselhamento, muito agradeço ao João
dedicando-lhe este capítulo.
Confesso que também espero poder, deste modo, dar o meu contributo para ajudar
o João a ser um homem mais feliz, mais apaziguado com a humanidade e a melhorar
o seu bem-estar intelectual e físico.
Neste capítulo, vamos recordar o que sabemos do processo de luto pelo qual o João
passou e mencionar algumas das suas profundas cicatrizes do passado. Tenhamos a
certeza de que nós podemos mudar, pois nunca é tarde para sermos livres.
O João é um homem que perfez os sessenta anos. Estava na transição entre a
adolescência e a faixa etária da juventude quando a mãe morreu. Atravessava nessa
época a tão conhecida problemática que envolve a procura e a afirmação da própria
identidade.
João amava a mãe mais do que amava o pai. A primeira razão, a primordial, liga-se
ao facto de, como está estudado, os filhos do sexo masculino terem uma maior
apetência para lidar com a mãe. A outra razão, igualmente forte, da sua preferencial

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ligação à mãe prende-
-se talvez com aquele sentido instintivo que todas as crianças têm mais apurado do
que os adultos, quando sentem que são amadas por uns, mas não por outros.
Foi um luto solitário, tecnicamente desacompanhado, talvez com uma longa e
difícil fase de negação que evoluiu para uma atitude de revolta e raiva generalizadas
contra um mundo injusto, desprovido de afectos e incompetente.
Mais tarde, João sofreu uma depressão relacionada com problemas de rejeição, mas
todas as reacções, emoções e atitudes do João parecem enraizar neste luto ainda não
totalmente resolvido no presente e que aconteceu num momento delicado da sua
existência.
Todos sabemos como os adolescentes e os jovens sofrem de uma grande
vulnerabilidade, podendo cair na cilada da auto-rejeição. São anos de uma fragilidade
assustadora em que o corpo cresce em quatro dimensões, mas a quinta dimensão, da
maturação psicológica, não acompanha tal ritmo de aumento, uma vez que se
desenvolve com maior lentidão. Em geral, esta fase da existência é difícil de enfrentar
porque é vivida pelo jovem como uma maldição.
Segundo o investigador Eric Berne, nós atravessamos e comportamo-nos ao longo
da vida conforme diferentes estados do nosso “ego”. Vejamos, em breves palavras,
como o paradigma da análise transaccional explica a forma de pensar, sentir e agir
dos adultos de acordo com o estado do respectivo “ego” nas variadíssimas situações
que se deparam.
Características: (1) o estado do “ego” de “criança” é dominado pelos sentimentos,
com respostas puramente emocionais e por isso desadequadas à situação; (2) o estado
de “pais” do “ego” denota a soma total de toda a informação recolhida ao longo da
infância e da pré-adolescência; neste estado do “ego” somos a voz de todos aqueles
que cuidaram de nós, como os nossos pais, familiares, professores e colegas;
carregamos os valores, a moral, os padrões, as convenções, as mensagens ocultas e as
regras que são responsáveis pelos nossos preconceitos, sentimentos de ansiedade e de
culpa; este estado expressa-se pelo “deve ser”, “ter de”, “bom”, “certo”, época em
que nós sentimos excesso de raiva e de ansiedade, sofremos de depressão; também no
estado do “ego” de “pais” comandamos, ditamos leis, queremos dominar e impor os
valores herdados; (3) no estado “adulto” do “ego” somos racionais, sensíveis e úteis,
esforçamo-nos por realizar avaliações objectivas e correctas das situações, libertamo-
nos com maturidade.
Auto-instituído “cavaleiro andante do Bem”, o João cedo começou a perseguir o
“Mal”, ferozmente. Desgasta nesta peleja toda a sua energia vital física e inteligência
intelectual brilhante. Contudo, confunde e pratica a agressividade em vez da
assertividade.
Um dos problemas maiores do quotidiano do João reside na área da comunicação:
ele interpreta os actos dos outros como sendo comportamentos e sentimentos de
rejeição da sua pessoa e não como críticas de pura reacção às atitudes hostis que o
João toma. Já Marco Aurélio dizia, no século ii d. C., que «As pes-
soas não são perturbadas por coisas, mas pela visão que têm delas.»
O João julga e condena pessoas em vez de criticar os actos dessas pessoas.

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Ele próprio esforça-se e exige obsessivamente de si próprio: manter-se
perfeccionista, coerente, rigoroso, metódico – comporta-se como o padrão teórico do
super-herói que se impõe ser perante a sua consciência. Tem na mente a idealização
de um “mundo perfeito” e quer obrigá-lo a que assim o seja, um “mundo perfeito”
com regras e onde as regras têm de ser absolutamente cumpridas. Para ele, um
“mundo perfeito” onde apenas existem parâmetros mensuráveis rígidos, onde não há
cabimento para pequenos desvios. Como todos nós sabemos, as regras que
caracterizam as ciên-
cias humanas não são rígidas nem estanques, mas o João não aceita estas
características nos comportamentos sociais dos humanos.
No campo social, e como mecanismo de defesa, o João quer racionalizar e pensa
que consegue racionalizar tudo. Para ele só há certezas. Os mal-entendidos não
existem. As opiniões dos outros que sejam díspares das suas ou que sejam contra as
“regras” são classificadas como incorrectas e estúpidas.
É intransigente, não quer entender, não perdoa. Possuindo uma inteligência racional
e cultura superiores, a sua inteligência emocional estabilizou num patamar juvenil.
O que mais impressiona nas actuais reacções do João “quando alguém lhe faz
alguma” é a dimensão da cólera que sente e demonstra.
Vejamos, nesta situação, o que se passa no corpo humano. As hormonas da tensão
nervosa segregadas pelo organismo demoram muitas horas a ser eliminadas. A
angústia sentida diminui as capacidades e a competência para a empatia característica
da expressão da inteligência emocional. A dissonância entre as pessoas acarreta altos
custos biológicos. A toxicidade emocional transmite mensagens emocionais de
repugnância e de desprezo que aumentam o ritmo cardíaco, uma verdadeira
“inundação” de estímulos de sobrevivência como lhe chamava John Gottman.
Na outra pessoa, aquela que é a vítima de cólera, há activação da reacção, surgindo
um sentimento que o impede de ouvir o que lhe dizem porque “desliga” e adopta uma
postura emocional distante ou defensiva, ou nega a responsabilidade de que é
acusada.
Os sistemas neuronais responsáveis pelo intelecto são diferentes dos que geram as
emoções. Em traços breves, a estrutura denominada amígdala, situada no interior do
cérebro constitui o centro das emoções e está sempre alerta para o plano de acção
imediata: lutar, fugir ou ficar imóvel. Os impulsos emocionais desta estrutura, que
denominamos límbica, percorrem vastos circuitos neurológicos até à zona pré-frontal
do córtex, especialmente o lado esquerdo, onde podem ser vetados, garantindo à
pessoa uma reacção económica da energia, mais eficaz. Sem esta acção do pré-frontal
esquerdo, no circuito límbico, seriamos submersos pelos actos emocionais
comandados pela amígdala.
Na verdade, a cólera é a emoção com mais graves consequências negativas para
dentro e para fora da pessoa que a experimenta.
Para dentro, porque a cólera desencadeia doenças físicas no corpo do próprio, nos
vários sistemas do organismo: gastrointestinal, cardiocirculatório, cerebrovascular,
imunitário e nas funções alimentar, se-
xual, etc. As consequências psicológicas e neurológicas que a pessoa sofre são

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importantes em termos do seu presente e do seu futuro porque causam sofrimento. A
cólera transforma-se em comportamento aprendido, habitual, criando um círculo
vicioso. Para conseguir substituir a reacção da emoção ao nível do pensamento damos
algumas pistas no aconselhamento.
A cólera também tem sérias consequências para fora, dificultando os
relacionamentos do indivíduo com os outros, porque envenena, culpabiliza, rejeita e
odeia, transformando a vida destas pessoas num inferno.
As pessoas que vivem a cólera sacodem as suas responsabilidades e não tentam
melhorar esta emoção tão negativa. Sentem rejeição, mas quanto ao mal que
espalham à sua volta afirmam que isso “é para o lado que dormem melhor”. Esta
atitude não corresponde à verdade total. O ódio e a cólera continuam a intoxicar-
-lhes o sangue, o pensamento, os hábitos. Entranham--se nas células e não falham a
sua disfarçada aparição em sintomas, doenças e em actos.
Como consequência desta tempestade de emoções negativas e destrutivas, e para se
proteger contra “quem me rejeita” – conclui ele, erradamente, como veremos adiante
na análise do solilóquio irracional –, o João distancia-se, remete os outros ao
ostracismo total, numa situação sem retorno.
Muitas vezes deixamo-nos vencer pelos nossos medos que, não sendo enfrentados e
consciencializados, evoluem para complexos: o complexo de abandono, muito
comum no luto, pois sentimo-nos órfãos, e o complexo de rejeição, porque quem
morreu deixou-
-nos entregues à nossa triste sorte, parece que não se importou connosco, não nos
achou suficientemente importantes, não nos amou, enfim, rejeitou-nos.
Todos nós gastamos a nossa pequena existência defendendo-a das vozes ruidosas
dos outros.
O grande problema do meu amigo João parece ser o medo de se sentir novamente
rejeitado como experienciou na infância, adolescência e juventude. Antes que
aconteça algo que o faça sentir-se rejeitado como adulto, na leitura que faz dos
comportamentos e atitudes dos outros que o rodeiam, ele apressa-se a actuar
de imediato para que isso não aconteça, rejeitando antecipadamente esses tais outros.
É a sua maneira de estar na vida: acaba por dar motivos reais aos outros para que o
rejeitem para que haja congruência nos relacionamentos que mantém.
O João recebeu uma educação esmerada. É moral e eticamente bem formado,
embora inflexível e com rígida intolerância. Sem que disso tenha consciência, elabora
um esquema de justificações racionais banais que, para ele, são verdades de
dimensões assustadoras, de culpa atribuída aos outros. Justifica assim a rejeição que
faz dessas pessoas. Tudo parece ficar racionalmente justificado. Rejeição para cá,
rejeição para lá, num pingue-pongue constante.
É comum vermos que as pessoas têm culturalmente esta tendência de
hiperdramatizar as mais simples situa-
ções que são normais na nossa existência social, mas que, quando lhes tocam
pessoalmente, são hipervalorizadas de imediato.
O período de negação do luto da mãe foi prejudicado pelo facto de terem dado a
tomar, no dia da morte, ao indefeso e jovem João, um forte antipsicótico na moda à

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época que impediu a vivência consciente do momento.
João, todo vestido de preto, causou na vida de todos os colegas uma impressão
profunda e duradoura. Um impacto de que ele nunca se apercebera até ter
reencontrado, décadas depois, um antigo colega que se lembrava do seu nome
completo e lhe falou da impressão que nele causara a morte da mãe do João, quando
pensara o que seria dele se essa morte tivesse acontecido à sua mãe.
A roupagem negra era uma situação que nessa época envolvia o aspecto exterior do
enlutado e que não se coloca nos nossos dias. Todavia, a dor interior da perda está lá,
latente, pronta para destruir o quotidiano de um jovem que se vai desenvolvendo e
envelhecendo e que sofreu uma tão grande dor da perda “para nunca mais” de uma
mãe alegre ainda na faixa etária dos cinquenta. Uma mãe necessária ao filho, mesmo
que este se pudesse mostrar naturalmente contestatário na sua adolescência e
juventude. As figuras parentais são sempre necessárias como contraponto à
tempestade de rebeldia dos jovens, sejam filhos ou filhas. Se eles não estão lá,
guerreiam com quem?
Antes e depois da morte da mãe, João apagava-se como indivíduo na presença de
outros familiares socialmente mais visíveis. Desenvolveu um certo handicap de
aptidões sociais perante um irmão um pouco mais velho que se apresentava como “a
estrela”, açambarcando a atenção dos outros e das namoradas. A tragédia desta fratria
é que o mais velho mostrou sinais físicos de que também sofria secretamente. No
entanto, não houve uma boa ligação entre estes irmãos.
Já adulto, João lutou para conseguir ultrapassar o défice de aptidões sociais, tendo
conseguido conquistar, pontualmente, a simpatia dos outros. Ele tem esta experiência.
Talvez não tenha ainda percebido é que tal acontece só quando ele se mostra gentil e
bem disposto, ou seja, quando assume um comportamento socialmente correcto e
maduro.
Actualmente, pode dizer-se que “enterrou” o estrelato do irmão, pois os seus actos
sociais tornaram-se visíveis para os outros. É verdade. Contudo, o problema é que, na
maior parte das vezes, a forma como o faz é desajustada. A popularidade negativa de
que João goza foi ganha pela sua insociabilidade.
O luto pela mãe revelou o que, instintivamente, o João já tinha sentido: o pai não
lhe dava o mínimo sinal de apoio ou de afectividade. Pelo contrário, foi mostrando
certas atitudes hostis que em nada abonaram a relação pai-filho e filho-pai.
Vieram à tona verdades terríveis que estavam escondidas como segredos de família.
Foi-lhe brutalmente desvendado o segredo mais horrível que um jovem poderia saber:
quando a mãe descobriu que estava grávida para ter o seu filho João, o pai queria que
ela abortasse; daí advieram desentendimentos frios e constantes entre o pai e a mãe;
logo a seguir, o pai arranjou uma amante com quem despendia mensalmente metade
dos seus proventos.
Estas verdades prejudicaram a afectividade de João, tornaram-se fonte de angústia
existencial que se colaram para sempre à perda da mãe.
Outro aspecto prejudicial liga-se às situações agravadas pela luta de heranças e de
partilhas de bens materiais que foram resultando em relações para sempre
envenenadas.

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Como reacção, o João refugiou-se nos estudos e apostou no seu desenvolvimento
intelectual que actual-
mente atingiu qualidade superior.
Fazemos uma chamada de atenção ao queixume do João com que iniciámos este
capítulo. Trata-se de uma frase negativa e infeliz que foi dirigida, em época passada,
por um familiar de João a uma rapariga que era hipótese de namorada dele: «És pior
do que um par de sapatos apertados...» Foi imediata a identificação do João que
aceitou e assumiu «Eu sou um par de sapatos apertados...», demorou um nano-
segundo de aprendizagem.
Trabalhando a abstracção, a subjectividade e o envolvimento do inconsciente, o
investigador Gregory Bateson chegou ao conceito dos níveis lógicos de aprendizagem
e mudança. Sobre estes estudos, Robert Dills desenvolveu o paradigma aceite pela
programação neurolinguística sobre a hierarquia de seis níveis neurológicos, onde a
“Identidade” ocupa a segunda posição de importância na nossa existência.
Na pirâmide hierárquica dos seis níveis neurológicos da pessoa humana existe, na
base mais primária, o “Ambiente/Meio Externo”. Subindo em complexidade, segue-
se o “Comportamento”; depois temos as nossas “Capacidades”; mais acima na
hierarquia, as “Crenças e Convicções” que fomos ganhando; depois, aumentando em
subjectividade do inconsciente, temos a nossa “Identidade”, tão importante para tudo
o que pensamos e sentimos; e na posição do topo temos a “Espiritualidade” da nossa
vida de missão, o nosso sentido pessoal de existência. Os níveis superiores
influenciam poderosamente os níveis que lhe estão abaixo em hierarquia.
Vemos, assim, o peso que o nível neurológico da “Identidade” “Eu sou...” tem na
vida de uma pessoa. Há exercícios realizados ao vivo que são muito úteis para alterar
esta maneira de pensar inconsciente, porque fazemos a pessoa passar por todos os
níveis neurológicos até ao topo hierárquico da sua “Espiritualidade”; depois, fazemos
o regresso, para que, quando chegar ao nível do seu “Ambiente”, na base da pirâmide,
venha mais enriquecida e capacitada em termos do seu “Sentido de Vida”.

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A ÁRVORE E A PLANTA
Era uma vez uma pequena planta, bonita, mas frágil, enraizada na encosta de uma
montanha.
Perto dela havia uma grande árvore que possuía um tronco forte e grosso e que
ostentava lá no alto uma larga copa cheia de folhas.
A árvore olhava desdenhosamente para a pequena planta e comentava:
– Ó pequenitates! És mesmo ridícula aí nesse sítio... Ninguém quer saber de ti, és
uma espécie sem graça... Não vales nada... Toda a gente te rejeita...
A pequena planta ouvia, sentia-se triste, mas não tinha coragem de falar nem de
enfrentar a grande árvore.
Vinha a brisa, passava e dobrava a pequena planta e, na grande árvore, tocava um
concerto belíssimo nas folhas e nos ramos.
Um dia, porém, o céu escureceu estranhamente e uma perigosa tempestade
desabou sobre a montanha.
A neve caíu pesadamente das volumosas nuvens negras em gigantescos flocos
como lençóis voando em todos as direcções.
Fustigada pelo vento e pela neve, a frágil planta dobrava-se. A sua flexibilidade
não permitia que a neve lhe poisasse em cima.
Pelo contrário, a copa cerrada da grande árvore começou a acumular toda a neve
que caía. Mesmo assim, a árvore escarnecia:
– Ó plantinha! És tão fraquinha, coitadinha! Nem aguentas com o peso da neve!
Ah! Ah! Ah!
A pequena planta não respondeu, intimidada.
De repente, com um vrrrruuuuummmmm assustador, o peso da neve conseguiu
torcer e quebrar completamente a copa da árvore, deixando-a desnudada, com três
troncos partidos espetados no ar.
Logo que a tempestade de neve amainou, sobreveio uma trovoada e um raio
destruidor foi atraído pela árvore que não resistiu e desapareceu, completamente
carbonizada.
Se os leitores visitarem aquela montanha, nada vêem que vos fale da grande
árvore.
Apenas encontram uma planta humilde, flexível e feliz por estar viva.

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– Quando se recorda da sua mãe, que expressão vê no rosto dela?
– Como teriam evoluído as várias fases do seu desenvolvimento como pessoa se a sua mãe não tivesse
morrido?
– Como seria a sua vida, hoje, se esta morte não tivesse acontecido?
– Como homem, procura algo da sua mãe nas outras mulheres?

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Sabe-se que a maneira como cada pessoa resolve o seu luto, principalmente de um progenitor que lhe é
querido, seja o pai, seja a mãe, relaciona-se com o conceito religioso que essa pessoa tem da vida e da morte.
Penso que é importante nesta fase do livro citar uma frase de Henri J. M. Nouwen: «Preciso de alguém que me
ajude a resistir, que me garanta que há paz para além da angústia, vida para além da morte e amor para além
do medo.»
Quando se acredita que a nossa vida não se reduz aos limites das datas entre o nosso nascimento e a nossa
morte e que contém em si uma missão no intervalo, torna-se mais fácil compreender e aceitar a morte.
A morte acontece como uma certeza.
O mais difícil, no entanto, é aceitar o momento das nossas vidas em que o nosso progenitor parte para nunca
mais voltar.
Se a mãe tem bastante idade, se estava a sofrer de doença prolongada e dolorosa, incurável, a morte e o luto
são difíceis, mas aceitam-se e integram-se com melhor resolução.
No entanto, no caso relatado neste II Capítulo, foi um adolescente prestes a entrar na fase da juventude que
sofreu a morte da mãe. À medida que os anos vão passando, as relações pessoais adultas podem começar a
degradar-se.
Acontece que um pai viúvo pode revelar-se perante o filho como indigno da mulher que tinha, quando se
mostra egoísta e incapaz de amar o filho. Um filho precisa de se sentir desejado, amado. Precisa de saber que
está neste mundo porque é o fruto do amor que existiu entre duas pessoas.
Coloco aqui a ressalva de que cada pessoa vivencia a realidade que percebeu. Será que esta é a verdade da
verdade? Ou serão percepções individuais de uma situação? Perante um estímulo que é aparentemente igual
para todos, as reacções do corpo e da mente de cada pessoa são diferentes.
A mesma situação de luto vivida por dois irmãos evolui para reacções díspares porque são pessoas distintas
com percepções diferentes. Todos nós sabemos isto de exemplos comuns.
Na sequência do luto e da descoberta de um pai que casa novamente, e porque a natureza tem horror ao vazio,
no lugar deixado pela mãe persiste um complexo de abandono e de rejeição.
Ouvimos muitas vezes os amigos e os familiares que nos aconselham em situações difíceis: “Não penses
nisso...” Estes conselhos de senso comum, embora louváveis por denotarem amizade e desejo de ajudar, não
fazem o mínimo sentido. Ninguém pode deixar de pensar. Na verdade, não se pode tirar “algo” deixando em
troca um “nada” ou “distracções” para esquecer. É bem clara a necessidade de ajuda técnica especializada
nestes casos para proceder à substituição de pensamentos, comportamentos e atitudes que podem beneficiar a
vida das pessoas.
Um jovem que cresce e se faz adulto sofrendo complexos de abandono e de rejeição faz uma única leitura dos
comportamentos e atitudes dos outros. Elabora, em diálogo solitário, percepções distorcidas através da sua
“bolha de lógica pessoal”, segundo o conceito proposto por Manuel Smith. Todos nós possuimos esta espécie
de lupa, composta por camadas como uma cebola, que correspondem às experiências pelas quais passámos
desde os nossos tempos mais precoces.
Exemplo de um solilóquio irracional que pode ser desmontado como se indica mais adiante:
1.º – Esta pessoa que conheci agora parece ser boa pessoa;
2.º – No entanto, fez-me agora algo que me faz pensar que não é tão boa pessoa como eu pensava;
3.º – Logo, está a trair-me;
4.º – Portanto, está a rejeitar-me;
5.º – O que não lhe admito;
6.º – Antes que me rejeite, rejeito-a eu;
7.º – Com a máxima agressividade que eu puder, para justificar a rejeição;
8.º – Nunca mais lhe admito que me magoe;
9.º – Porque eu não deixo que ninguém me magoe;

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10.º – Vou castigar esta pessoa, porque merece;
11.º – Não lhe perdoo e detestarei esta pessoa para sempre.
Este processo, este encadeamento de pensamentos e comportamentos de reacção são mais difíceis de
ultrapassar em pessoas que não queiram mudar a sua maneira de agir.
Infelizmente, há pessoas que consideram “ter muita personalidade” quando reagem ostensivamente contra os
outros, mantendo teimosamente opiniões “sem quebrar nem torcer”.
Ouvimos isto em todo o lado, principalmente quando os adultos falam de crianças... Nada mais errado. O ser
humano é um ser social e a compreensão, a aceitação do outro, o diálogo e o perdão são atributos que o
tornam um ser superior em maturidade, sabedoria, consciência e responsabilidade social.
Volto a citar Henri J. M. Nouwen:
«O sofrimento humano não tem de ser necessariamente um obstáculo à alegria e paz que tanto desejamos,
mas, ao contrário, pode ser um meio para chegar a elas.»

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SETE EXERCÍCIOS ACONSELHADOS
Mesmo nos casos em que tenha havido um sofrimento desacompanhado, prolongado ao longo de décadas,
aconselho os seguintes exercícios de reformulação de pensamentos, comportamentos e atitudes.
1.º EXERCÍCIO
A GALERIA DA NOSSA EXISTÊNCIA
Às vezes empurramos a gratidão que devemos a todos os seres humanos que nos acarinharam na fase difícil
do luto, para muito fundo, lá para o “sótão” ou para a “cave” da “casa-museu” que constitui as nossas
experiências de vida, colocando-a, assim, longe do nosso quotidiano consciente.
Só mantemos na nossa “galeria” de visualização habitual os “quadros” da nossa vida que queremos ver. Esses
não são, às vezes, os mais convenientes para a nossa felicidade. Não valorizamos a importância de agradecer,
não optamos por perdoar e sermos gratos. Preferimos optar por ser pessoas amarguradas, rejeitadas,
esquecidas de todos, solitárias. Ser grato é fonte de esperança e de inspiração, pois a gratidão gera gratidão e o
amor gera amor.
“Limpe o pó” às recordações do bem que lhe fizeram. Mantenha conscientemente e bem à vista no seu
quotidiano, chamando à sua memória e atenção focada todas essas acções e as pessoas que contribuiram para
o seu bem-estar. Nunca é tarde para sentir e mostrar gratidão.

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2.º EXERCÍCIO
PERGUNTAS-CHAVE
São quatro as perguntas que, em circunstâncias de revolta por luto, deverá re-pensar e responder
maduramente.
Responda a estas perguntas, uma vez por mês, em dia certo, ao longo de seis meses para se aperceber da
evolução positiva da sua maneira de sentir o luto.
Para tal, sugiro que obtenha um bloco de apontamentos só seu, transcreva as perguntas e responda a todas, em
separado, honestamente:
1.ª Pergunta: Porque é que isto aconteceu?
2.ª Pergunta: Porque é que isto me aconteceu a mim?
3.ª Pergunta: Porque é que não me deveria acontecer a mim?
4.ª Pergunta: Para que é que isto me aconteceu a mim?

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3.º EXERCÍCIO
O LUGAR SEGURO DO AMOR ESPIRITUAL
Todos conhecemos a sabedoria popular que afirma que “o amor é mais forte do que a morte”, portanto, há que
saber aprofundar afectos e fortalecer relações de amizade e laços de amor.
Nos momentos de grande ansiedade e desconforto em que pode sentir o seu bem-estar ameaçado, é
conveniente
que conheça dentro de si, só seu, um lugar onde se possa refugiar, num espaço espiritual de amor.
O “seu lugar seguro de amor espiritual” contém todas as condições secretas de protecção, só suas, que a sua
razão e as suas emoções necessitam para elevar o seu espírito até onde quiser em conexão superior e poder,
depois, encarar a vida e levá-la por diante, de forma mais iluminada, feliz e esperançosa.
Este exercício que lhe aconselhamos reequilibra a sua inteligência emocional, ajuda a sua inteligência racional
a flexibilizar e a aprender a adaptar-se da melhor maneira possível no seu ambiente social.
Pode gravar este texto em voz calma, tranquila, ou tenha presente a sua sequência. É uma questão de treino.
Sente-se numa cadeira...
Costas e pernas descontraídas...
Pés bem pousados no chão…
Apoie os cotovelos nas suas pernas, em posição de cocheiro, como se segurasse as rédeas de um cavalo...
Feche os olhos...
Entre em meditação, assim:
“Sinta-se em paz…
Respire com tranquilidade…
Calmamente…
Agora pense… que se encontra num jardim…
É o jardim com que sempre sonhou…
Ouve os pássaros a cantar...
Sente uma brisa que passa nos seus cabelos… devagar… com calma...
Qualquer ruído que ouça à sua volta não tem importância...
Ouve apenas as instruções para se sentir bem… num ambiente agradável… muito agradável… como sempre
desejou...
Avança pelo jardim... devagar… e encontra mais adiante… a paisagem onde se sente muito bem...
Esta paisagem é sua...
Só sua...
É o seu lugar especial…
O seu lugar seguro... de amor espiritual...
Nada à sua volta tem importância… porque agora se encontra… no maravilhoso local… que é só seu...
Ninguém mais conhece esse refúgio… que é só seu...
O lugar seguro… de amor espiritual... onde se encontra bem…
O lugar seguro… de amor espiritual... que é só seu… e que pode encontrar… sempre que quiser...
Sinta-se bem… nesse lugar só seu… só seu… o seu lugar seguro… que é só seu…
Sem pressa... mantenha-se nesse lugar algum tempo
...........................................................................................
...........................................................................................
Porque se sente bem...
Agora… olhe bem… esse lugar seguro… de amor... espiritual... e guarde-o bem… no seu coração...
Agradeça… ao seu lugar seguro…
Agradeça ao... seu amor espiritual... que lhe tenha dado… tamanha tranquilidade… e que vai permanecer
sempre… à sua espera…
Sempre que quiser voltar... sempre que quiser voltar… está lá… à sua espera…

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Lentamente… encontre o seu caminho… de volta… através do jardim tranquilo... Agora… no regresso…
ouve… no regresso… ouve os pássaros… novamente a
cantarem…
Sente a brisa… perpassar-lhe nos cabelos...
Lentamente… volte ao lugar onde se encontra...
Agora… lentamente… devagar… sem pressa…
Sentindo-se bem…
Agora... vai contar… lentamente… até cinco…
Quando chegar a cinco…
Lentamente… poderá mexer as mãos... os pés... e abrir os olhos…
Conte… um… dois… três… quatro… cinco…
Com calma… pode devagar… abrir os olhos...
Pode espreguiçar-se lentamente…

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4.º EXERCÍCIO
PARA MELHORAR A SUA AUTO-ESTIMA
Para melhorar a sua auto-estima, aconselhamos que recolha num caderno ou bloco de apontamentos, todos os
dias, num esforço de memória projectado no passado, todos os elogios que alguém, uma vez ou mais vezes,
lhe dirigiu.

De igual modo, faça uma tabela diária para o seu presente e escreva: a data e a hora,
quem lhe fez ou dirigiu um elogio, uma palavra simpática e a seguir essa frase, tal
como segue:

As frases negativas aqui são proibidas.


Não se esqueça absolutamente de nada, de nenhuma palavra positiva que lhe tenha sido dirigida. Aponte tudo.
Terá, assim, oportunidade de rever e concluir que as pessoas também se comportam bem consigo às vezes.
Esta constatação terá um efeito benéfico na sua maneira de pensar sobre si mesmo e dará felicidade à sua vida.
Sabe-se que o nosso cérebro capta mais as críticas do que os elogios. Este exercício dá ressonância às atitudes
positivas que nos passam despercebidas.
Última recomendação: nunca confunda os actos das pessoas com as pessoas.

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5.º EXERCÍCIO
COMO DESMONTAR SOLILÓQUIOS IRRACIONAIS
De acordo com os estudos de Margaret Fourie, e tomando o exemplo dado anteriormente, as ideias em que se
baseiam os nossos pensamentos e certas ilações que tiramos podem partir de crenças que herdámos ou
desenvolvemos sem as testarmos. Trata-se, neste caso, de conclusões inválidas porque não foram confrontadas
com a realidade. Podemos perceber que estes solilóquios se baseiam em falsas convicções e desenvolvem
pensamentos irracionais.
Para desmontarmos a eventual irracionalidade dos nossos solilóquios, poderemos seguir um esquema de
análise. O processo de um solilóquio espontâneo é o seguinte:

No caso apresentado neste II Capítulo, a escalada das ilações, da emoção e do comportamento mostra que se
trata de um solilóquio irracional.
Aconselhamos o seguinte esquema estratégico:

Para testar e desafiar o nosso solilóquio, podemos, por exemplo, realizar a seguinte desmontagem:

Pode acontecer que tenha de desafiar todos os seus solilóquios para os testar e saber se são ou não irracionais.

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6.º EXERCÍCIO
A FÓRMULA MÁGICA
PARA DOMINAR A CÓLERA
Segundo Ken Keyes, as pessoas podem tornar-se dependentes de atributos abstractos como a amizade, a
pontualidade, a segurança, a honestidade, a limpeza, a perfeição, etc.
O problema destas pessoas dependentes é que se sentem desconfortáveis quando não estão satisfeitas as suas
exigências de dependência.
A solução de libertação destes “vícios” reside na mudança de uma “dependência” para uma “preferência”,
como veremos a seguir.
Quando somos invadidos pela cólera, proferimos ofensas irreparáveis. Existe uma “fórmula mágica”, ou seja,
uma fórmula específica de construção de frase que não ofende, porque não ataca as pessoas, apenas expressa o
descontentamento.
Constrói-se assim:
“Eu… (sinto… por exemplo, ‘eu detesto’)
quando tu (acção ou comportamento do outro… por exemplo, ‘abres indevidamente a porta’)
e gostaria que (solução… por exemplo, ‘me tivesses pedido desculpa’).”
Através desta fórmula que contempla as seguintes características:
– Será específico,
– Evitará palavras ofensivas,
– É dono da sua cólera,
– Está seguro dos factos,
– Não admite manipulações,
– Propõe solução.

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7.º EXERCÍCIO
TÉCNICA DO NEVOEIRO
Quando se encontra numa situação de vítima da cólera do outro, poderá usar a “técnica do nevoeiro”, de
Manuel Smith.
Através desta estratégia pretende-se obter um maior distanciamento, desvalorizando a parte que pode ser
considerada eventualmente ofensiva. Se o colérico lhe disser: “Não prestas para nada… Andas para aí a dizer
mal de tudo e de todos… Passas o tempo à caça de ninharias…”
Deverá seguir a “técnica do nevoeiro” e responder, aceitando uma generalização que para si seja aceitável,
verdadeira e não valorizando, omitindo mesmo tudo o resto. Responderá então, neste caso: “Tens razão…
Gasto muito do meu tempo a zelar pelos direitos das pessoas…”

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Capitulo III

«Invoca-Me no dia da angústia:


Eu te livrarei, e tu Me glorificarás.»
Sl 50,15

Quando o Paulo veio ao meu consultório tinham passado onze meses sobre a morte
do pai.
Por curiosa coincidência, Paulo explica-me que nasceu no dia em que o pai fizera
trinta anos.
Celebrando ambos os respectivos aniversários no mesmo dia, as festas englobavam
os dois, o pai e o filho que cresceu neste bom ambiente; os familiares criavam à volta
deles uma alegria, surpresas e prendas que Paulo não pode nem quer nunca esquecer.
Como passará daqui para o futuro todos os seus aniversários, lembrando sempre o
pai?
Conta-me que sempre viveu numa grande fusão com o pai, como companheiros nas
brincadeiras, jogos e desportos em casa e ao ar livre.
Paulo sofre uma depressão reactiva natural cuja causa é a perda deste alguém
profundamente amado: o seu pai.
Respondendo às minhas perguntas, fico a saber que Paulo já passou pela fase da
negação e da revolta. Agora, a sua tristeza fá-lo chorar ainda todos os dias quando se
lembra do pai, o que acontece frequentemente ao longo das vinte e quatro horas, o
que perturba um pouco o seu quotidiano.
Recorda os bons momentos que passaram juntos. Iam à pesca, conversavam. O pai
ajudara-o nos estudos, apoiara-o no tempo da tropa, aprovara a namorada, agora sua
mulher.
Todos se entendiam bem. Naquela família havia grande abertura, sinceridade e
afectividade nas relações.

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Paulo está agora com trinta e quatro anos. O pai morreu com a idade de sessenta e
três, vítima de um acidente vascular cerebral cuja patologia vinha a alertar a família
desde há alguns anos a essa parte.
Foi um episódio horrivelmente triste, mas todos estavam à espera de que, mais dia,
menos dia, a morte não perdoaria.
Ultimamente, o pai aparentava estar um pouco diminuído, mas este aviso não foi
suficiente para o filho que não concebia que o pai pudesse partir. Pudesse partir “para
nunca mais voltar...”
Paulo passa as mãos pelos olhos e as pontas dos dedos vêm molhadas.
Por momentos cala-se. Engole em seco.
Pestaneja e olha para o tecto a enxotar as lágrimas.
Vejo que ainda não chorou tudo o que precisa de chorar.
Parece falar consigo próprio quando diz:
– É uma grande perda... Ele era muito novo para se ter ido assim...
Paulo olha distraídamente para os seus sapatos.
– Fale-me do seu pai... – incitei eu, com uma voz baixa e tranquila.
Paulo suspirou.
– Estou um bocado lento... – queixou-se.
Eu sabia que ele estaria inevitavelmente lentificado; faz parte da sintomatologia da
depressão.
– Então... Como era o seu pai? – insisti eu, com calma.
– Sei lá... Parece que ele não está cá... Nem está lá... –
respondeu ele, como um autómato.
– O seu pai era parecido consigo? – desbloqueei eu.
Paulo encontrava-se no impasse da depressão, depois da primeira fase da negação e
da segunda fase da revolta em que durante algum tempo se revoltara com o facto de
que isto lhe tivesse sucedido. A seguir à depressão que é a terceira fase, seguir-se-á a
quarta fase da integração. Espera-se que, com o acompanhamento das consultas,
Paulo aceite e integre a morte do pai. Mais tarde, espera-se que sinta saudades
resolvidas, para o resto da sua vida.
O facto de ter conseguido ultrapassar as fases da negação e da revolta em
relativamente pouco tempo, era um bom prognóstico de que ele poderia vencer a fase
da depressão e chegar gradualmente às fases da integração e da saudade.
Paulo esboçou um sorriso intimista.
– Era... Éramos parecidos, sim. Quem o dizia era a minha avó, a mãe do meu pai.
Quando eu nasci e ela me viu, disse logo: “Ai, este meu neto é tal e qual o meu
Pedro!” Pedro era o meu pai... Contaram-me isto quando eu era ainda pequeno... –
acrescentou ele, com um ar envergonhado por estar a falar em coisas antigas, falar de
si próprio quando era ainda muito pequeno e por estar a mencionar episódios que lhe
diziam respeito a ele e não ao pai, o seu foco de atenção.
Fiquei satisfeita com a resposta dele. Reforcei:

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– Que interessante! Então eram parecidos...
– Sim... Eu sou um pouco mais alto e ele é mais forte do que eu...
Notei que ele falava no presente.
Contudo, Paulo ainda não conseguia autonomizar-
-se para falar sem estímulos. Tive de acrescentar:
– E a cor dos olhos do seu pai?...
– São castanhos, tal como os meus! – respondeu Paulo, desta vez com vivacidade, e
rapidamente começou a soltar ideias, em livre associação:
– Eu e o meu pai... A gente, às vezes, nem precisava de falar... Olhávamos um para
o outro e pronto, estava tudo dito! Acontecia que começávamos a rir, a recordar
alguma anedota que ambos sabíamos... Se havia um dia em que a gente não se via,
parece que não estava completo... Faltava qualquer coisa... Então eu dava-
-lhe uma telefonadela e era o suficiente para sabermos um do outro e ficarmos mais
tranquilos.
O rosto dele iluminara-se. Continuou:
– Quer saber o que aconteceu uma vez? Um dia íamos os dois na rua e resolvemos
beber um café. Então um homem, que parecia muito mais velho do que o meu pai,
mas depois o meu pai disse-me que eram os dois da mesma idade, que estava ali
numa mesa, veio ter connosco e deu um abraço ao meu pai. Tinham sido camaradas
na guerra de África e nunca mais se tinham visto. Foi uma festa entre os dois. Depois,
o outro voltou-se para mim, quase a chorar e disse que eu era tal e qual o meu pai
quando eles eram novos. Eu gostei de saber as peripécias que eles tinham passado e
fiquei satisfeito quando o outro disse que o meu pai tinha sido um verdadeiro amigo
para todos os camaradas deles. No entanto, fiquei um pouco surpreendido com a
reacção exagerada do outro, parecia extremamente emocionado e nervoso...
Ficou um pouco calado, depois levantou a cabeça e afirmou:
– Tenho orgulho do meu pai, sabe?
– O seu pai era bom camarada... – disse eu, como um eco empático.
– Se era! Olhe o meu pai depois contou-me que aquele camarada dele, o do café,
tinha vindo muito esquisito da guerra, com dores no estômago, não fazia bem as
digestões com dores e tinha palpitações no coração e sei lá que mais... Muito
estranho...
– Será que esse amigo do seu pai ainda revive o que passou na guerra? – perguntei
eu, quase adivinhando a resposta.
– Diz que sim! Parece que sonha de noite e tudo... Diz que é violento em casa e em
todo o lado... É esquisito... Dá saltos de repente se ouve um barulho mais alto...
– Pois é... Provavelmente sofre de stresse pós-traumático de guerra...
– Já ouvi falar... – interessou-se Paulo.
– Já tratei alguns homens com stresse pós-traumático de guerra... bem como das
pessoas da família desses homens que também sofrem bastante por causa do
comportamento deles... – expliquei eu, para informar o Paulo, no caso de o seu pai ter
sofrido deste problema.

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Rapidamente, ele rematou:
– No meu tempo já não tivemos essas situações de guerra, o que foi bom...
– Pois foi, não há dúvida... Então gostavam do seu pai, os camaradas dele? –
retomei eu o fio condutor.
– O meu pai tinha muitos amigos! Toda a gente gostava dele! Era uma pessoa
simpática, era raro irritar-
-se... Ria e ficava a olhar “p'ra” gente! Ficava à espera que a gente emendasse se algo
estava mal... Ou que a gente continuasse, se estava bem! Nunca o vi nem ouvi
ofender ninguém...
Notei que Paulo estava já a falar no passado. Bom indício.
– Não ofendia ninguém... – repeti eu.
– O meu pai era uma pessoa impecável... Pertencia a várias associações não-
governamentais e levava-me com ele, sempre que podia, para eu, desde pequeno, me
habituar a ser um cidadão consciente dos meus direitos e... claro, principalmente dos
meus deveres, como ele me dizia! O meu pai era o melhor pai de todos os pais que eu
conhecia, desde os meus tempos de escola, quando eu era miúdo. Eu ia a casa dos
meus amigos e comparava os pais deles com o meu... e o meu pai ficava sempre a
ganhar! Era o meu “medalha de ouro!” – Paulo deu uma gargalhada com gosto.
Estava “no ponto”, pensei eu. Ri-me com ele.
– Que ele também teve medalhas e diplomas e essas coisas todas porque ele
merecia mesmo! Eram cerimónias bonitas e eu tinha imenso orgulho de saber que ele
tinha sido agraciado e via o meu pai ali, a ser distinguido entre todos os outros
colegas dele!
Parou e afirmou com força:
– Belos tempos aqueles!!!
Durante o tempo que fez comigo psicoterapia, Paulo chegava deprimido e saía
gradualmente cada vez mais animado.
Apliquei-lhe exercícios de relaxamento com instruções específicas adiante
explicadas no “aconselhamento”, bem como muitos TPC – “Trabalho para casa” –
que ele cumpria com mais ou menos esforço, mas sempre de boa vontade.
O Paulo foi um daqueles pacientes que achava que não tinha nada a ganhar com o
facto de ser considerado pelos outros um “coitadinho, morreu-lhe o pai com quem ele
se dava tão maravilhosamente bem”.
A depressão aumenta quatro vezes a taxa de mortalidade, mas há muitas pessoas
que não se sentem felizes quando começam a sair da depressão rumo às fases da
aceitação e da integração. Essas pessoas são demasiado acarinhadas porque os outros
sentem pena da sua situa-
ção e rodeiam-nas de cuidados. Passam a ser o centro das atenções.
Inconscientemente, quem retira benefícios secundários da situação do luto prefere
continuar a ser o centro da compaixão dos outros. Acabam então por perpetuar
patologicamente a sua situação. É uma forma de se sentirem pessoas especiais
quando, anteriormente, ninguém reparava nelas. Talvez porque, em muitos destes
casos, existe um complexo de culpa naquela morte.

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Um dos aspectos que é largamente mencionado na dor do luto é a consciência de
que tudo foi feito para evitar a morte ou então foram proporcionadas as melhores
condições de apoio e de cuidados na doença a quem morreu.
É sempre mais saudável que a pessoa consiga ultrapassar a fase da depressão, atinja
a integração e a saudade e se autonomize.

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O PAI E O FILHO
Era uma vez um rei, senhor poderoso de um país distante.
Este rei chamava-se Al-Rachid-pah e o seu filho tinha o nome de Al-Rachid-fil.
O rei Al-Rachid-pah era justo, bondoso e compreensivo.
Quando o filho via o pai no salão de audiências rodeado por todo o califado do
reino, ensinando como se governa bem uma nação, Al-Rachid-fil conseguia
distinguir perfeitamente que uma luz branca brilhava por cima da cabeça de seu pai.
Um dia, o rei Al-Rachid-pah adoeceu e morreu.
O príncipe Al-Rachid-fil, seu filho, teve um grande desgosto com a morte de seu
pai. Olhou e viu que a luz branca que sempre iluminara a cabeça do pai ficara a
pairar junto à abóbada do palácio.
Parecia que aquela luz brilhante andava perdida. Às vezes, aproximava-se da
janela e o príncipe Al-Rachid-fil recea-
va que a luz do pai se fosse embora e o deixasse sozinho.
Uma noite, o príncipe Al-Rachid-fil não conseguia adormecer. Sentou-se no meio
do aposento onde a luz branca já um pouco esmaecida ainda pairava lá no alto junto
à abóbada.
Fechou os olhos e durante a noite meditou muito carinhosamente na vida do seu
pai, Al-Rachid-pah.
Durante as longas horas daquela noite infindável Al-
-Rachid-fil recordou-se de todos os actos bons que observara seu pai ter realizado e
chorou-o com muita saudade.
Ao romper do novo dia, o primeiro tom róseo do nascer do sol despontou por cima
das dunas do deserto, espalhou-
-se suavemente pelo aposento e reflectiu-se nas lágrimas do príncipe Al-Rachid-fil.
Lentamente, lá no alto da abóbada, a luz branca e brilhante palpitou.
Muito devagar, a luz começou a descer, a descer e aproximou-se da cabeça do
jovem príncipe Al-Rachid-fil.
Aí permaneceu um pouco ganhando força e espiritualidade.
No momento em que este novo dia começava para o príncipe Al-Rachid-fil e ele se
ergueu, a luz branca brilhou mais ainda, iluminou-lhe a testa, o rosto, o pescoço e o
peito, entrou no seu coração, abençoando para sempre aquela profunda ligação
entre o pai, o rei Al-Rachid-pah, e o filho, o príncipe Al-Rachid-fil.

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– Tem a consciência tranquila de que tudo fez para dar ao seu pai as melhores condições de apoio e
cuidados de que ele necessitava?
– Recorda todos os momentos bons que passou com o seu pai?
– Recorda-se do rosto do seu pai quando estava feliz e bem disposto?
– Recorda-se da expressão de paz no rosto do seu pai após a morte?

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Seja o pai ou seja a mãe que lhe tenha falecido, se se encontra na fase de depressão em que ainda chora, tem
um aconselhamento especial neste capítulo.
Este foi um caso de bom relacionamento de um filho com o pai.
O filho era já adulto por ocasião da morte, embora o pai fosse considerado ainda muito novo para morrer.
Há sempre um sentimento de revolta e de injustiça que se prolonga no tempo e do qual se mantêm as
reminiscências ao longo da vida de quem sobrevive.
Este homem encontrava-se na fase da depressão. A sua tristeza pela perda reflectia-se no pensamento,
comportamento e emoções, com sofrimento.
Com a terapia, conversámos bastante a propósito do pai de Paulo, da guerra de África e do amigo do seu pai
que sofria agora de stresse pós-traumático.
Falei-lhe então de uma qualidade psicológica chamada resiliência.
“Resiliência” é um neologismo científico com origem no termo latino resalire que quer dizer “voltar a saltar”.
Todos nós temos, em maior ou menor grau, esta capacidade de nos sobrepor à dor emocional e aos traumas.
Pessoas sujeitas a verdadeiras catástrofes são capazes de sair delas reforçadas e, inclusivamente, conseguem
crescer para construir uma nova vida. Outros, como se costuma dizer, afogam-se num copo de água.
Este conceito em Psicologia é relativamente recente, desde os anos sessenta, quando Emmy Werner, uma
psicóloga americana, estudou, durante trinta anos, as crianças de uma ilha do Havai, onde preponderava a
miséria e a violência mais abjectas, com pais alcoólicos e sofrendo de várias doenças mentais.
Este estudo longitudinal levou à conclusão que dois terços dessas crianças perpetuavam os mesmos
comportamentos dos pais, enquanto um terço dessas crianças melhorava de vida, tornando-se cidadãos
conscientes e lutavam para ajudar os outros. A este terço de crianças foi atribuída a qualidade positiva da
resiliência.
Depois disso, vários estudos foram realizados.
Por exemplo, um outro, realizado por Boris Cyrulnik e assistentes. Este psiquiatra francês, quando era criança,
conseguiu fugir de um campo de concentração, estudou Medicina e interessou-se por esta área. Também este
investigador chegou à conclusão de que, nas guerras que envolveram Beirute e Tripoli, as crianças de Beirute
sofreram menos traumas de guerra por se encontrarem mais apoiadas emocionalmente pelas famílias, vizinhos
e amigos com maior qualidade de afectividade.
A guerra no Vietname veio confirmar que o stresse pós-
-traumático conseguia ser ultrapassado pelos soldados com melhor resiliência e mais apoiados
emocionalmente.
Actualmente, Israel é o país que possui os melhores técnicos de apoio emocional com vista a melhorar a
capacidade de resiliência e que mais sabe prevenir o stresse pós-traumático, uma vez que o trauma é vivido
com uma verdadeira “arte de navegar”.
A resiliência permite ao indivíduo escapar da espiral da desgraça e decidir a sua própria vida. Muito para além
disso, converte os traumas numa oportunidade de crescimento.
Também no caso estudado neste capítulo se viu que o pai de Paulo não sucumbiu perante o ambiente tóxico da
guerra de África. Pedro foi capaz de ajudar os camaradas, lutar pelos seus objectivos num contexto hostil e
quando chegou a Portugal continental soube extrair dessa experiência negativa a sua admirável adaptação à
vida pessoal, familiar, profissional e social o que provou a sua excelente resiliência.
Senhor do seu próprio projecto de vida, Pedro, o pai de Paulo, praticou e ensinou o filho a respeitar os outros e
a tornar-se um cidadão de corpo inteiro, lutando pelos direitos humanos e cumprindo deveres.
Aconselhamos os seguintes cinco exercícios:
1.º EXERCÍCIO
Quando a depressão ainda lhe provoca sofrimento, aconselhamos que chore tudo o que ainda lhe apetece
chorar.

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2.º EXERCÍCIO
Deverá rodear-se de recordações do seu pai, em que o veja como o pai amigo, bem disposto.
Coloque uma foto do seu pai em cada um destes locais, por exemplo: na sua carteira, bem escondida, olhando
para ela sempre que quiser e quando sentir que precisa.
Ponha também uma foto do seu pai em local onde o veja quando acordar.
Não veja a foto quando se for deitar.
3.º EXERCÍCIO
Ao princípio, todos os dias, deve escrever cartas ao seu pai.
Fale com ele através das palavras que lhe saiam da cabeça, do coração e das mãos.
Queixe-se da falta que ele lhe faz. Reviva a falta que sente dele. Dedique-lhe palavras de gratidão, de humor,
de amor e de compreensão mútua.
Escolha só os pensamentos positivos. Os negativos estão proibidos.
Seja sincero, honesto, verdadeiro, bem humorado.
Ou escreva várias vezes ao dia, usando uma frase curta, sempre que queira falar com ele.
Mais tarde, pode ir espaçando as cartas, conforme deixe de sentir necessidade de falar com o seu pai e o
processo passe para o nível da saudade sem dor.
Releia o que escreveu.
Guarde essas cartas.
4.º EXERCÍCIO
Uma pessoa que sofre de depressão tem enorme dificuldade em dormir. Por vezes, quando adormece pode
acordar durante a noite e não conseguir conciliar o sono outra vez.
Neste caso aconselhamos:
Deite-se de costas na cama, já com a roupa de dormir;
Feche os olhos;
Coloque uma mão em cima da sua barriga e a outra sobre o peito, procurando que a sua respiração seja calma,
compassada, profunda, regular, sem esforço;
Verifique que a sua barriga sobe e desce mais do que o seu peito;
Depois, lentamente, coloque os braços ao longo do corpo;
Contraia durante uns segundos cada um dos pés, descontraindo a seguir;
Mantenha sempre a respiração calma, tranquila;
É importante que pense para si: “Respiração calma, tranquila” ao longo de todo o exercício, até ao fim;
A seguir aos pés, concentre-se mentalmente no seu corpo e vá contraindo e descontraindo sucessivamente os
seus joelhos, as coxas, as nádegas; vá subindo com o seu pensamento pelo seu corpo, lentamente, contraindo e
a seguir descontraindo: a barriga, o peito, as mãos, os braços, as costas, os ombros, o pescoço, a nuca, a testa,
as bochechas, as sobrancelhas, os olhos, a boca;
Ocupe o seu pensamento com estas instruções: “Sinto a testa fresca… O meu corpo está pesado, pesado,
pesado... Sinto o peso do corpo sobre o colchão…”
Se acordar durante a noite, não fique na cama a dar voltas, comporte-se como se começasse toda a rotina que
tem, antes de se deitar.
Então:
a. Levante-se,
b. Endireite a roupa da cama,
c. Faça de novo tudo o que costuma fazer antes de se deitar (vá à casa de banho, leia, veja um pouco de TV,
etc. sem exagerar) e
d. Torne a deitar-se,
e. Com respiração calma,
f. Pense “Tenho o corpo pesado...”
“Sinto o peso do corpo... sobre a cama...”

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5.º EXERCÍCIO
A fim de ganhar maior capacidade de resiliência e assim
adquirir qualidades que ajudem a encarar a sua vida e a vencer os ambientes tóxicos que, por vezes, todos nós
temos de aprender a ultrapassar, aconselhamos que tome nota destes princípios no seu bloco de apontamentos
pessoal e vá verificando, sempre, todas as semanas se está a cumprir este programa em seis passos:
1 – DESENVOLVA A SUA AUTOCONSCIÊNCIA
Cultive o conhecimento realista e na medida certa sobre os seus pensamentos, emoções e reacções físicas em
situações difíceis; não hiperdramatize, não catastrofize, isto é, relativize a dimensão dos acontecimentos;
2 – AME O SEU ESPÍRITO E O SEU CORPO
Cuide com amor do seu espírito. Trate do seu corpo carinhosamente, pois ele é o seu património único. Evite
começar adições negativas. Saiba seleccionar as suas escolhas e fuja de situações que lhe possam provocar
dependência destrutiva, como o álcool, as drogas, o jogo, a violência, relações íntimas superficiais, etc.;
3 – CONSTRUA A SUA VIDA
Saiba encontrar as pessoas e descobrir em si as capacidades que sejam positivamente construtivas e
conducentes a uma vida plena de sentido, com projectos, planos, alguma coisa pela qual valha a pena sentir a
necessária vontade de saltar alegremente da cama todas as manhãs: um professor, um amigo, um amor, um
talento escondido. Pense que terá sempre de definir metas adaptadas à sua situação. Não se perca a ter pena de
si;
4 – APOIE-SE EM PESSOAS POSITIVAS
Rodeie-se de pessoas afectuosas, empáticas, compreensivas e solidárias cujo contacto seja para si positivo;
aprenda a receber e tenha o prazer de dar também;
5 – AJUDE OS OUTROS
Inscreva-se como voluntário numa organização não-governamental ou procure a sua paróquia ou outro local
que lhe proporcione, de forma organizada, a possibilidade de ajudar e ser útil aos outros. Verá como essa
actividade pode ser gratificante. Melhorará, assim, a sua auto-estima;
6 – ENCARE A SUA VIDA COM SENTIDO DE HUMOR
Treine-se a encontrar e descobrir em tudo o reverso da medalha, a bonança, a vantagem, o ridículo, a piada.

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Capitulo IV

«Coração alegre ajuda a sarar,


mas espírito abatido seca os ossos.»
Pr 17,22

A primeira vez que a Ana veio ao meu consultório deveu-se ao facto de


acompanhar uma das suas netas, jovem excessivamente tímida e calada, a qual
iniciou nesse dia a psicoterapia.
Ana também quis ser ouvida em consulta. Sentou-
-se e começou a falar-me da sua vida e da sua família. Desde então nunca deixou de
marcar as sessões, de quinze em quinze dias, para si própria. Explicou que estas
consultas lhe faziam bem.
Ana acha que, actualmente, o facto de vir desabafar e, principalmente, porque
nunca sai de mãos vazias, levando conselhos que põe em prática com bons resultados,
é razão importante para a sua decisão de continuar a procurar-me.
Tenho muitos casos destes, desde há vários anos. Tanto no hospital como nos
consultórios, os psicólogos atendem pessoas com necessidade de apoio para o
quotidiano da vida. Esclareço desde já que Ana não tem diagnóstico psicopatológico
nem sofre de qualquer problema que necessite de acompanhamento técnico
específico.
Ninguém deveria sentir-se envergonhado, com complexos ou com medo de que lhe
chamem “maluco” por procurar as consultas de psicoterapia.
A própria Organização Mundial de Saúde define “saúde mental” não só como a
ausência de doença, mas também como um bem-estar longitudinal na vida da pessoa
humana.
Conforme estava a explicar, Ana tem sido uma dessas pessoas. Vem e continua a
vir, com uma notável vontade de viver, que sai daqui reforçada. Ana tem tido tempo à

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sua disposição para me contar muito da sua vida. Falou sobre a sua infância plena de
brincadeiras, dos amigos e das amigas da sua idade; relembrou com saudade outras
amigas mais velhas que eram as irmãs das meninas da sua idade e que marcaram a
sua existência e ambição cultural com tintas de todas as cores. Despertaram-lhe uma
vontade indomável de ultrapassar fronteiras e alimentaram a sua vontade de conhecer
o mundo. Com essas amigas mais velhas Ana ganhou asas em pequena.
No entanto, a adolescência foi difícil. Tinha mudado de casa e só conseguia
conviver com os seus novos amigos e as amigas adolescentes como ela, no tempo das
férias, o que, obviamente era muito pouco.
Casou contra a vontade da mãe e do pai. Ultrapassou, sozinha, alguns obstáculos.
Ana tem um espírito aberto e moderno. É tolerante, aceita as pessoas como elas são.
Não tem por costume julgar ninguém, embora possa criticar alguns actos dessas
pessoas.
Possui uma maneira lutadora de estar na vida, procurando ferozmente a sua
independência de espírito.
Aprecia estar sozinha. Gosta da sua profissão de arquitecta. É feliz a ouvir música,
ler, pintar, pensar e conversar sobre assuntos que tenham “sumo”, ou seja, não perde
tempo a falar nos pormenores da vida dos outros, repetindo boatos.
– Não sei como as pessoas gastam tempo e energias com bisbilhotices...
– Como, por exemplo?... – perguntei eu.
Se, na verdade, eu sou útil nestas consultas (e acredito que sou), também esta
senhora me confere uma excelente disposição.
Como Ana quer vir de forma continuada a estas consultas de apoio psicológico, de
puro aconselhamento, negociámos ambas um esquema de preços baixos que a
beneficiam abertamente e que eu acho justo.
Respondendo à minha pergunta, replicou:
– Olhe... No outro dia, num jantar… estávamos numa mesa redonda, oito pessoas...
Então, duas das senhoras que eu prezo... minimamente, enfim... de um lado ao outro
da mesa, sobre o diâmetro, sabe?... começaram a falar dos cães delas, que eram muito
limpinhos e não sei que mais... Bem, como todas as pessoas presentes, educadamente,
ouviam a conversa sem interromper, eu temi que fôssemos estar toda a noite a ouvir
aquilo... Eu só pensava para mim própria como é que ia conseguir mudar o assunto!
Tantos problemas no país, no mundo, tantos assuntos interessantes para se trocar
opiniões, de modo que pudéssemos ganhar todos com o convívio, saíssemos dali
enriquecidos e elas assim, distraídas, a falar de pormenores nada próprios para se
contarem à mesa... Eu gosto muito de cães, mas não acho adequado um grupo de
pessoas passar um jantar inteiro a falar sobre a higiene dos cães!
Ana fala por palavras e acentua com gestos. A sua comunicação corporal é
extremamente expressiva.
– E conseguiu mudar o assunto? – eu mal continha o riso, imaginando a cena.
– Claro! Elevei um pouco a voz para me sobrepor ao ruído que elas faziam e
mencionei um tema candente do momento... Elas, coitadas, calaram-se
imediatamente, mas também já tinham falado tanto durante a entrada do fatal “melão

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com presunto” que já tinham dito o suficiente para todos ficarmos a saber os nomes e
os costumes dos cãezinhos delas... Os outros presentes pegaram logo na minha pista e
o jantar foi salvo, graças a Deus! É difícil a sociedade avançar se estreitamos assim os
nossos horizontes...
– A Ana não costuma “atropelar” as pessoas dessa maneira, pois não?
– Não, Dr.ª, não... Mas o tempo para mim é precioso, as oportunidades na nossa
vida têm de ser maximizadas, a vida é curta e se não aproveitarmos, o tempo passa
e... quando pestanejamos já passou... Passam os momentos maus... e vão-se os bons,
também...
Baixou os olhos e mexeu nos anéis, rodando-os nos dedos. Calou-se.
– Está a recordar algo? – perguntei eu, porque estou à-vontade com ela, depois de
todos aqueles meses de consultas.
Ana suspirou e sorriu.
Depois encarou-me e os seus olhos estavam brilhantes.
– É... estou a recordar-me da minha mãe, sabe?... que Deus a tenha em descanso...
– Tem boas recordações da sua mãe?
Ana abanou negativamente a cabeça, como se dissesse em voz alta “nada disso”,
mas permaneceu calada. Estava a elaborar as cenas vividas.
– Morreu há muito tempo, a sua mãe? – perguntei eu, para ajudar.
– Foi no ano passado, no Verão... há pouco mais de um ano... A minha mãe... a
minha mãe...
Notei-a um pouco hesitante para o estilo dela. Ana tossiu para aclarar a voz. Depois
estendeu o olhar através das paredes e fixou a sua atenção longe no espaço, longe no
tempo.
– Ainda não lhe tinha falado da minha mãe...
Ficou muito séria, talvez um pouco carrancuda e acrescentou:
– Durante cinquenta e dois anos tive um péssimo relacionamento com a minha mãe.
Ela era do tipo autoritário, conservadora. Queria mandar em mim, em tudo, à maneira
dela...
– Mas ela era a sua mãe... as mães mandam, não é?
– Era uma muralha de gelo... – respondeu Ana com o ar mais natural e tranquilo
deste mundo.
Rapidamente, comecei a analisar: Ana teria sofrido durante quanto tempo a
primeira fase do luto, a negação? E a revolta? E a depressão? Não me parecia nada
deprimida... Teria já feito a integração? Era o mais provável, mas como estava a
referir-se à mãe de certo modo negativo, não poderia estar já na fase final do luto, a
saudade... Por outro lado, embora dizendo algo negativo da mãe, os seus gestos, o
tom de voz, a atitude corporal denotavam extrema doçura e tranquilidade... Parecia
que não batiam certo com as palavras... Incongruência? Não era costume da Ana ser
incongruente na comunicação, pois as palavras e a linguagem não verbal tinham
sempre coerência... O que teria acontecido?
Tive de perguntar para melhor identificar a evolução daquele luto:

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– Se ela era uma “muralha de gelo” dava-se mal ou bem com a sua mãe?
Ana sorriu docemente. Inclinou o corpo na minha direcção e explicou:
– O que nos aconteceu, a mim e a ela, foi uma coisa espantosa...
Como eu abri os olhos cheia de interesse antecipando o que ela me iria contar, Ana
acrescentou, sussurrando:
– Fizemos as pazes quase no fim da vida dela! Foi depois de ela ter enviuvado,
sabe?... Estreitámos relações, ela transformou-se radicalmente, tornou-se charmosa e
feminina... Com os seus setenta e tal anos... Como eu nunca a vira antes! A minha
mãe tornou-se uma pessoa diferente depois que o meu pai se foi... Nunca mais lhe
ouvi uma palavra autoritária! Bem, ela já estava com outra idade e eu também, mas,
enfim... nunca mais debitou aquelas opiniões intolerantes dela que não davam
margem para eu argumentar... O que ela sempre me respondia tinha como
consequência o meu gradual afastamento...
– Então... estavam afastadas?
– Enquanto o meu pai foi vivo, o distanciamento afectivo entre nós era enorme... Eu
telefonava-lhe, friamente, para saber como ela estava... Era um pro forma... Para não
criar mais problemas entre nós não lhe contava os meus problemas, não havia
confidências entre nós, não havia cumplicidade, não havia uma história engraçada,
uma anedota, um sorriso, uma gargalhada...
Percebi que estas relações entre mãe e filha não tinham sido nada fáceis de gerir.
Deviam ter trazido à filha sentimentos de isolamento, solidão, abandono. Por outro
lado, este relacionamento não tinha sido certamente gratificante para a própria mãe.
– E depois, passaram a dar-se bem? Como aconteceu isso? – perguntei eu.
– Exactamente, Dr.ª! Olhe, passou a ser como Deus no céu, com os anjos e eu na
Terra, com a minha mãe...
Fazendo graça, indaguei:
– Então quem, das duas, fazia o papel de “Deus”?
Ana soltou uma gargalhada.
– É uma forma de dizer... porque o que aconteceu quase me pareceu um milagre!
Nunca mais discutimos... passeámos juntas. Eu perguntava-lhe onde lhe apetecia ir e
ela respondia-me: “Onde quiseres, filha... estando contigo estou sempre bem...” Eu
custava-me a acreditar nesta nova relação afectuosa que estava a acontecer, no que
ouviam os meus ouvidos...
– Recorda-se se alterou o seu comportamento em relação à sua mãe?
– Talvez... eu estava muito preocupada com problemas lá de casa que a Dr.ª já sabe
que aconteceram e quando arranjei coragem para contar tudo à minha mãe, confesso-
lhe que esperava da parte dela uma frase costumeira do género “Eu bem esperava
isso... Nunca acreditas no que eu digo... depois acontecem-te dessas...”
– E como é que ela reagiu?
– Não me recordo bem, mas foi qualquer coisa do tipo “Deixa lá... essas coisas
acontecem... Não tiveste culpa… Não foi desgraça nenhuma...”
– Que efeitos tiveram essas palavras em si?

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– Fiquei desarmada... Durante mais de cinquenta anos estava habituada a sair de ao
pé da minha mãe sempre de coração amargurado... Sempre que falávamos havia algo
que corria mal... Nesse dia, fiquei maravilhada...
– Que decisão tomou a Ana depois dessa reacção da sua mãe?
– Fiquei tão bem... Senti-me feliz com a minha mãe, pela primeira vez da minha
vida... Prometi-lhe que iria ter com ela, logo no fim-de-semana seguinte!
– E cumpriu?
– Se cumpri! Cumpri com todo o gosto! A partir daquele dia, estávamos juntas
todos os fins-de-semana, conversávamos, ríamos... Cheguei a contar-lhe anedotas…
de que ela aprendeu a rir, moderadamente…
– E esses diálogos decorriam de forma diferente da maneira como era o diálogo de
antigamente?
– É verdade!
Toda ela sorria.
Pensei que tinha aqui dois temas interessantes: primeiro a reviravolta das relações
entre a mãe e a filha, bem como dos respectivos comportamentos, emoções e
pensamentos; em segundo lugar, investigar se Ana tinha, ou não, o seu luto resolvido.
Achei aconselhável aprofundar alguns aspectos. Para bem da minha cliente, teria de
ver se ela ainda precisava de ajuda. Avancei com mais perguntas:
– Magoa-a falar na morte da sua mãe?
Ana suspirou. Apertou o nariz com dois dedos e depois puxou a mala, encontrou
um lenço e assoou-se.
– Lembro-me muito bem dessa noite... A empregada dela telefonou-me... Era uma
hora da madrugada... Eu já estava deitada... Disse-me que a minha mãe estava a
respirar com enorme dificuldade... A empregada já estava habituada a estes episódios,
pois a minha mãe era uma doente cardíaca crónica...
Ana fez uma pausa. Eu mantive-me calada. A música de fundo que tenho no
consultório tocava suavemente.
Ana continuou:
– Eu cá para mim pensei: “Pronto… Acabou-se… vai ser o fim…” Apercebi-me de
que era realmente o fim... o fim daquele maravilhoso relacionamento que nós as duas
mantínhamos desde há seis anos... O meu coração doeu-me muito...
Ana tinha os olhos marejados de lágrimas. Não afastei os meus olhos do rosto dela.
– Eu disse à empregada que ligasse para a Emergência, que eu ia lá para casa,
imediatamente...
Eu mantive-me calada.
– Sabe, Dr.ª? Essa noite… nunca a esquecerei…
A voz dela tornou-se lenta, arrastada, rouca, enquanto me contava:
– Quando cheguei lá... à casa da minha mãe... ela tinha acabado de falecer...
Ana calou-se. Eu respeitei.
– Ainda estava lá o INEM, mas não tinham conseguido reanimá-la... Foram

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extremamente gentis...
Um soluço cortou-lhe a palavra.
– Comecei logo a tratar do funeral... uma pessoa parece que sobe... sobe... não está
lá... mas vai tratando de tudo... enquanto se mantém longe... longe... sem acreditar no
que está a acontecer... Eu sabia que algum dia aquilo teria de acontecer... mas mesmo
assim… é um nevoeiro na cabeça... um aperto no estômago... uma pedra na
garganta...
Ana tinha presente tudo o que sentira. Descreveu vivências da negação que nunca
mais esquecemos.
– Os senhores da agência funerária apareceram logo... trataram de tudo... só me
restava esperar que a manhã chegasse... não sei se fiz bem, se fiz mal... Eu estava
sozinha... mandei a empregada deitar-se... estendi-
-me no sofá, na salinha da minha mãe... Fiquei deitada de costas... virada para o tecto
e para a porta da varanda... de olhos abertos... toda a noite... sem chorar... Eu acho
que nunca pestanejei... É a estranha sensação e recordação que tenho dessa longa
noite... Do outro lado da parede, no quarto dela... estava a minha mãe, tranquila... em
paz...
Ana calou-se durante muito tempo, mas não chorava. De cabeça baixa, revivia o
que passara naquela noite.
Deixei passar vários minutos. Depois, perguntei, empaticamente:
– E o funeral? – eu tinha de saber a sequência.
Ana levantou o rosto. Parecia um pouco perdida. Depois fixou os olhos nos meus e
continuou:
– Aconteceu... acompanhei-a sempre... chorei muito na despedida... Ela ia fazer-me
falta...
Novamente suspirou e ficou à espera que eu dissesse algo.
– Como aceitou essa morte?
Fiquei um pouco preocupada por ter avançado talvez demasiado, mas ela reagiu
bem:
– Naquelas primeiras noites eu acordava de noite com a sensação de que ela estava
à porta do meu quarto, como se fosse entrar... Depois, nas semanas seguintes,
revoltei-me um pouco com a partida da minha mãe porque éramos, finalmente,
felizes... A partida dela andava a ser adiada todos os anos, todos os dias... mas tenho
comigo... sempre... no coração... aquela felicidade...
Depois de um longo silêncio, Ana parecia mais recuperada. Acrescentou:
– Usei luto, apetecia-me usar o preto por ela, pela minha mãe, aquela nova mãe que
se tinha revelado tão meiga, tão querida... Após cinquenta e dois anos... cada uma
tinha descoberto a outra...
Passou a mão pela saia. Parecia estar a recordar o luto que usara e continuou:
– Alguns meses depois... já consegui sorrir, recordar a minha mãe com muita
ternura...
– Sabe se esteve deprimida?

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– Ah, sim, bastante! Andei triste, mesmo triste! Tive muita pena que ela se fosse,
quando nos estávamos a dar tão bem! Foi uma grande perda!
Esboçou um sorriso leve ao acrescentar:
– Mas, enfim, é a vida... A minha mãe era muito doente... estava para morrer desde
que nasci… era a sensação que eu tinha... toda a gente falava nisso... Teve vários
AVC, foi operada, esteve às portas da morte algumas vezes... mas, na última fase da
sua vida, nos tais seis anos, andava muito bem cuidada... Dentista, consultas médicas,
exames, tudo direitinho... Eu e ela éramos extremamente cuidadosas com o seu estado
de saúde...
Passou a mão pelo cabelo e distendeu os ombros.
– Tinha de ser, sabe? Vamos todos... não fica cá ninguém para semente, não é?
Registei que Ana tinha estado normalmente deprimida, sem complicações
significativas.
Era, na verdade, uma situação excepcional aquela relação de Ana com a mãe,
depois da morte do pai.
Perguntei:
– A que atribui a mudança radical na maneira de ser e de estar da sua mãe?
– Olhe, Dr.ª, sinceramente não sei... Talvez porque ela vivia aperreada e não era ela
própria enquanto o meu pai foi vivo... Talvez porque ela fez um balanço de toda a
nossa existência... Talvez porque analisou as relações dentro da nossa família...
Talvez porque através da televisão, dos jornais, das outras pessoas ela sentiu que a
sociedade tinha mudado... Talvez ela nunca tivesse aprendido a ser de outra
maneira...
Parou, pensativa. Estalou os dedos e afirmou:
– Sim, é isso! É isso! Ela não sabia ser de outra maneira!
– Porque acha que é assim?
– É claro como água!
Sentou-se mais direita e os olhos brilharam.
– Um dia, quando andávamos a passear em Sintra, o ambiente proporcionou-se a
confidências, porque nessa época nós contávamos, uma à outra, algumas coisas mais
íntimas de cada uma... Falámos da minha infância... dos hábitos lá de casa... como
reagíamos uns com os outros... o que, no fundo, sentíamos... Tivemos a coragem de
falar a verdade! Nunca tínhamos falado… abertamente… a verdade das nossas
vidas...
Parou por instantes, abanando a cabeça como quem não acredita no que tinha
acontecido. Encarou-me de frente e acrescentou:
– Quer saber o que a minha mãe me disse?
– Claro... O que foi?
– Pediu-me desculpa... pediu desculpa pela maneira como nunca tinha conseguido
demonstrar os seus sentimentos por mim, a sua filha... e depois acrescentou que
nunca tinha aprendido a ser de outra maneira... que ela tinha sido educada com
rigidez e frieza, em ambiente fechado... Todas as poucas pessoas com quem ela tinha

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convivido, desde a infância, se comportavam de uma maneira seca, desprendida,
distante, exigente nas normas de boa educação... Não sabiam rir, não sabiam contar
histórias... não sabiam gozar a vida... só sabiam trabalhar...
Calou-se novamente.
– Ó Dr.ª... eu… realmente… faz-me bem falar consigo... Aqui no consultório sou
capaz de pensar de uma forma mais profunda... sou mais crítica e objectiva sobre
todas as coisas que me aconteceram... e acho impressionante as descobertas que eu
tenho feito sobre a minha vida! Coisas que nunca me tinham ocorrido!
– Agora está a lembrar-se de quê?
– Olhe, por exemplo: a minha família nem o prazer da mesa tinha! As mulheres
cozinhavam por cozinhar, parecia que o faziam só para alimentar os membros da
família... parecia que as refeições eram unicamente uma necessidade de
sobrevivência, uma necessidade absolutamente desligada do convívio, do prazer dos
bons sabores, do paladar... É incrível! Eu nunca tinha reparado nisto!
Ana estava satisfeita. Tanta coisa para poder emendar para melhor,
conscientemente.
Pensei que se tinha desviado do assunto do luto, mas falar em toda a vivência da
família também era importante para revermos a situação actual.
– E... a sua mãe falou-lhe nisso?
– Exactamente! Conversámos as duas sobre as nossas vidas e foi nessa altura que
eu percebi a razão pela qual eu tinha sido criada com tanta frieza e educada com tanto
distanciamento... Devido a esse tratamento que recebi... sempre pensei que ninguém
me amava! Sempre pensei que nunca... ninguém... sentira amor por mim... nunca,
ninguém, dava pela minha presença... nunca, ninguém, sentiria a minha falta...
Ana baixou a cabeça e as lágrimas desceram mansamente pelo rosto.
Deixei passar um minuto para ela elaborar ideias e concluir o pensamento. Depois
perguntei-lhe:
– Nesse dia percebeu melhor as razões da sua mãe?
– Percebi que a minha mãe também tinha sofrido muito toda a sua vida... Teve
precisamente o mesmo problema que eu... e pelos vistos parece que foi um problema
que se prolongou por várias gerações... Esta conversa com a minha mãe foi bem
clara...
– E depois?
– Foi o princípio do nosso entendimento... Eu decidi que faria tudo para lhe
amenizar a vida... porque... enfim... eu teria também de fazer um esforço... Não estava
habituada... em cinquenta e dois anos nunca tinha dirigido uma palavra doce à minha
mãe...
Resolvi desviar um pouco o cerne do assunto para que ela entendesse como as
vivências estão ligadas em causa-efeito:
– E o facto de a Ana não estar habituada a manifestar palavras doces teve influência
na sua vida privada?... Com o seu marido?... Com os seus filhos?
Ela olhou para mim, estupefacta.

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– Muito! Eu ficava amuada, calada, achava que os outros deviam adivinhar o que
eu estava a sentir... Não conseguia comunicar… Não conseguia ser meiga... Ou seja,
eu não sabia ser meiga... Como é que podia? Nunca aprendera! Nunca tinha visto isso
em casa dos meus pais… Olhe, aprendi alguma coisita depois dos cinquenta…
– Essa incapacidade de mostrar emoções positivas prejudicou a sua vida afectiva...
– Quem me dera ter outra vida para viver... Conseguir ser como eu gostaria de ser...
e assim poder viver uma vida mais rica em afectividade e em relacionamentos mais
bem conseguidos...
– Então acha que fez bem em ter compreendido os problemas da sua mãe... Porque,
afinal, o mesmo se passou consigo, não é?
– Entendi perfeitamente... Percebi tudo... e o facto de ela ter decidido e ter
conseguido pedir-me desculpa fez-me derreter o coração... e desfez aquela muralha
de gelo que ela era... Uma barreira que se manteve cinquenta e dois anos entre nós as
duas... e que me isolava a mim... e criava dificuldades entre cada uma de nós e até
com o mundo que nos rodeava...
– Foi notável o esforço da sua mãe! Não deve ter sido nada fácil para ela...
– Conseguimos verbalizar as duas o que iríamos conversar dali em diante…
Ana rematou com uma pequena gargalhada.
– Durante os últimos seis anos que vivemos em total entendimento falámos mais do
que durante os cinquenta e dois anteriores!!!
– Foram anos de bom relacionamento, esses últimos...
Ana espetou o dedo na testa a recordar e animou-se:
– Outra coisa ainda! A minha mãe fez-me uma “declaração de amor”!
– Ai, é? Então como foi?
Ana irradiava felicidade, quando explicou:
– Ela disse: “Filha... estes têm sido os anos mais felizes de toda a minha vida... e a
ti o devo...” – Ana colocou a mão no peito – Acredita?
Eu acreditava.
Ana concluiu, feliz, no fim dessa consulta:
– Só agora sei como amava a minha mãe...
O relacionamento harmonioso entre as pessoas proporciona verdadeira felicidade...
O processo do luto desta senhora estava bem resolvido, com aceitação, integração e
saudade. Extremamente bem resolvido.

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O REI, AS DUAS FILHAS E O FILHO
Há vários séculos, para lá das montanhas e dos mares do Oriente, existia um reino
onde só havia pobreza e
ignorância.
Infeliz com esta situação o rei foi à igreja, ajoelhou-se humildemente aos pés de
Deus e pediu:
– Senhor, o meu reino é tão pobre e ignorante que nós temos necessidade de
melhorar esta situação… Meu Deus, peço-Vos que brindeis a minha esposa, a
rainha, com duas crianças que nos tragam riqueza e inteligência.
Deus ouviu o pedido do rei e passados nove meses nasceram duas gémeas muito
lindas a quem o rei pôs os nomes de princesa Riqueza e princesa Inteligência.
Como o reino era o reflexo de tudo o que se passava no palácio real, enquanto as
princesas cresciam o povo enriqueceu e ficou mais inteligente. O rei tinha chamado
professores e toda a gente aprendia bem as ciências do mundo.
No entanto, as coisas passaram a correr mal no reino, quando as princesas
começaram a andar e aprenderam a falar. Em conflito constante, cada uma delas
gritava:
– Eu sou a mais rica... sou a princesa mais importante! – berrava a princesa
Riqueza.
A princesa Inteligência gritava:
– Tu és rica, mas és estúpida! Eu sou inteligente e a mais importante!
O rei não sabia o que havia de fazer. Pediu conselho a um velho sábio:
– O que hei-de fazer para resolver esta hostilidade entre a Riqueza e a Inteligência
e acabar com o caos que se está a gerar no reino?
– Meu rei, mandai construir um templo…
Confiando neste bom conselho, o rei mandou construir um templo.
Contudo, se as fundações e toda a estrutura para a maior catedral do reino
corriam bem, o acabamento do templo nunca mais terminava, porque não se
conseguia construir o vértice da abóbada. Esboroava-se quando os construtores se
aproximavam do topo. A construção da catedral era a imagem fiel do que se passava
no palácio e no reino.
Mais uma vez o rei resolveu ir rezar à velha capela. Ajoelhou-se, humilde perante
Deus e pediu:
– Meu Deus, estamos ricos, sabemos todas as ciências do mundo, mas não nos
entendemos… Não sei o que nos falta, Senhor… Confio em vós, meu Deus, e cheio de
fé coloco aos Vossos pés o destino do meu reino…
Passados nove meses nasceu no palácio um menino para grande felicidade da
rainha que lhe pôs o nome de príncipe Amor.
As duas irmãs ficaram embevecidas a olhar para o Amor, no berço, muito

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tranquilo.
Cheias de curiosidade e com muita vontade de o tocarem, a princesa Inteligência e
a princesa Riqueza agarraram as pequenas mãos do irmãozinho.
Quando estavam os três de mãos dadas e muito ligados, o príncipe Amor acordou,
sorriu para as suas duas irmãs e pleno de sentimentos bons, deu sabedoria ao
coração da princesa Inteligência e deu paz ao coração da princesa Riqueza.
Nesse mesmo dia, os construtores da catedral conseguiram finalmente construir o
vértice da abóbada, símbolo daquele reino que, finalmente, estava salvo.
Quando as suas duas filhas e o seu filho ficaram adultos, o Rei deu-lhes o poder de
governarem em triunvirato.
Foi assim que o príncipe Amor com a princesa Inteligência cheia de sabedoria e
com a princesa Riqueza repleta de paz levaram aquele reino a alcançar a plenitude.

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– Teve uma boa vivência com a sua mãe?
– Teve oportunidade de dizer à sua mãe quanto a amava?
– Educou os seus filhos comunicando o seu amor?
– Consegue exprimir os seus afectos positivos às pessoas com quem convive?

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Vemos como este caso evoluiu no melhor sentido.
Ana passou pela negação, pela revolta e pela depressão, acabando por integrar e chegar à saudade sem
sofrimento.
Vale a pena analisar como e porquê.
Trata-se de uma filha e de uma mãe que, durante décadas não tiveram um bom relacionamento. Em parte pelo
autoritarismo e deficiência de comunicação da afectividade da mãe que envenenara o clima emocional à sua
volta, tornando-o tóxico.
Esta mãe não sabia criar na filha motivação e nestas condições não poderia gerir um compromisso familiar de
coesão.
É elucidativo o facto de Ana ter dito que a mãe nunca se ria, pois o sorriso é a distância mais curta entre a
afectividade das pessoas.
Atendendo a que numa família, local privilegiado da aprendizagem, tal como na vida social exterior, as
emoções são efémeras, para se criar e manter uma interacção positiva é necessária a repetição de situações em
que se gere o optimismo, a empatia, o ânimo, a motivação, o empenho, numa acção inspirada e inspiradora.
Se, pelo contrário, há percepção de hostilidade, antagonismo, emoções tóxicas, frieza e até inveja, as relações
ficam prejudicadas.
Como os estados de espírito tendem a perpetuar-se, uma mãe deverá poder transmitir aos seus filhos, desde
pequenos, amor, segurança e clareza nas situações de incerteza e de ameaça.
Neste caso, do lado da filha foi-se desenvolvendo uma revolta, uma sensação de abandono e também um
deficiente poder de comunicação e consequente distanciamento.
Não comunicavam emoções entre si. Existia entre as duas aquela “muralha de gelo” de que Ana falava.
Os estudos neurocirúrgicos comportamentais de António Damásio e as investigações psicológicas e sociais de
Daniel Goleman trouxeram, ao conhecimento da comunidade científica mundial e também junto do grande
público, os resultados dos seus trabalhos.
Actualmente, além do QI que é, como se sabe, o Quociente de Inteligência, já consideramos a alta importância
do QE, o Quociente Emocional. Esta entidade psicológica é especialmente tomada em consideração nos
Recursos de Meios Humanos do mundo do trabalho, pois já se avalia o indivíduo nas suas competências totais
produtivas.
O QE é o conjunto de aptidões e capacidades, estados de espírito e atitudes que uma pessoa possui para poder
integrar e reagir face ao leque imenso de acontecimentos sociais na sua vida. Diz respeito à forma positiva,
criativa e produtiva como pode interagir face às acções e reacções comportamentais dos seus pares.
Os relacionamentos entre as pessoas influenciam fortemente o meio em que se inserem, pelo que um líder
(como o é um pai e uma mãe) com um bom quociente de inteligência emocional cria à sua volta uma
ressonância positiva que é vital para o bom funcionamento e felicidade do grupo.
É o que se passa nas relações entre o pai, a mãe e os filhos; as crianças vão nascendo e aprendendo a viver
naquele meio familiar, cada um nos respectivos papéis de autoridade e de obediência. A família é a “escola de
afectos” por excelência e as emoções podem e devem ser transmitidas empaticamente e trabalhadas, com vista
a um bom quociente de inteligência emocional.
Actualmente, chamamos “sistema límbico” ao conjunto dos centros cerebrais ligados às emoções, tais como o
hipotálamo, o hipocampo, alguns núcleos do tálamo e lóbulos do cerebelo.
O sistema límbico é configurado de modo a funcionar em “sistema aberto”. O sistema circulatório, por
exemplo, funciona em “sistema fechado”, ou seja, o que está a acontecer no sistema circulatório de uma
pessoa A não afecta o sistema circulatório da pessoa B.
Considera-se que o sistema límbico evidencia características superiores porque se pode abrir aos outros,
funcionando “em aberto”, pois A influencia B e B pode influenciar A, para que as pessoas se possam inter-
relacionar.

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Sabe-se das estatísticas que uma pessoa isolada que não receba ajuda sofre o triplo de probabilidades de morte
quando é submetida a forte pressão nervosa num mesmo ano, como por exemplo, problemas financeiros
graves, separações de família, perda de emprego, porque está desacompanhada, sem apoio humano.
A esta necessária interacção entre os indivíduos chama-se “regulação límbica interpessoal”, pois transmite-se
por sinais, influenciando os níveis hormonais, a função cardiovascular, o ritmo do sono, o sistema imunitário e
até a aparição de borbulhas, como num efeito de espelho.
Actualmente, considera-se que um bom quociente de inteligência emocional pressupõe as seguintes
capacidades psicológicas, a saber:

AUTOCONSCIÊNCIA:
Esta competência implica o conhecimento das próprias emoções (saber ler e reconhecer os efeitos das suas
emoções), da própria força e dos limites, bem como do seu valor e capacidades;
AUTOGESTÃO:
Esta competência inclui o domínio emocional (mantendo os impulsos e as emoções destrutivas em contida
quantidade e qualidade), ter capacidade de adaptação e de realização e possuir, sempre, o necessário
optimismo;
CONSCIÊNCIA SOCIAL:
Competência de empatia (poder apreender as emoções dos outros, compreender o ponto de vista deles e
mostrar interesse pelas suas preocupações);
GESTÃO DAS RELAÇÕES:
Competência para motivar as pessoas, cultivar e manter redes de relações.
Face a estas competências da inteligência emocional, podemos perceber como a reviravolta na vida da mãe de
Ana lhe trouxe a enorme capacidade, em idade avançada, de ganhar sabedoria e competências essenciais
adormecidas.
A iniciativa de “quebrar o gelo” partiu da mãe de Ana que conseguiu finalmente interagir com ela de forma
altamente harmónica, demonstrando níveis elevados de autodomínio, autoconsciência e compreensão. Esta
atitude produziu, em efeito dominó, empáticas emoções de respeito, tolerância, responsabilidade pessoal e
preocupação na filha.
Na descoberta uma da outra, surgiram sentimentos nunca antes demonstrados e que para sempre valorizaram
um relacionamento maravilhoso que elas temiam jamais poder acontecer.
Sossegue o leitor se pensa que terá de possuir todas estas capacidades para um alto quociente de inteligência
emocional. Nem todas estas capacidades serão necessárias em grau superior para se possuir um QE brilhante.
Outra boa notícia é que as capacidades para uma notável inteligência emocional não são inatas, mas sim
adquiridas. Portanto, não desista.
Queremos encerrar este livro com uma recomendação:
Um sorriso
liga automaticamente dois sistemas límbicos.
Transmite confiança e bem-estar mútuo.

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Índice
Prefácio 5
Capitulo I 8
A PRINCESA NEYDE 15
Capitulo II 20
A ÁRVORE E A PLANTA 26
Capitulo III 39
O PAI E O FILHO 44
Capitulo IV 50
O REI, AS DUAS FILHAS E O FILHO 59

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