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UMA HISTORIA DE AMOR Haveria alguém que os admirasse, os olhasse a sério, sem um sorriso, os invejasse? Alguém que desse tudo para ser como eles? Qual! As pessoas riam-se quando os viam, isso sim. Eu, por exemplo, Bem sei que era novita ¢ nessas jidades trogamos de tudo, até das coisas mais sérias, mais dignas de respeito. Bem sei. Eles também, isso é a pura verdade—e digo-o em desabono de ambos—nio tinham nenhuma nogio do ridfeulo. Mas entio, ne- nhuma, Andavam pela rua de mio dada, riso- nhos e aos segredinhos como dois, namorados em tarde de domingo, e depois, vestiam-se de uma maneira... Ela principalmente. Ainda me lembro de um vestido preto de tricot, que usava, com acessérios escarlates—tinha a preocupa- edo dos acessrios. Era, como direi? infernal, embora no chegasse, longe disso, a ser diabé- ico. Imaginem uma mulher sobre 0 forte, de amplo peito maternal, j& no muito nova, com chapéu, sapatos, Iuvas e mala cor de sangue vivo... Costumava também reunir duas cores: que ninguém se lembraria de colocar lado a lado, como por exemplo o laranja e 0 Toxo, 0 109 MARIA JUDITE DE CARVALHO amarelo-canirio e o amul-pavio, Depois, no se pintavay #6 uma leve camada de pé de arroz ‘pranco, e usava meias grossas, de fio de escé- cia, quase castanhas. E tudo aquilo, as cores gritantes, o peito alto, de rola, as meias grossas © 0 po de arroz, era estranhamente desconexo. Nao pegava. Quanto a ele, dava menos nas vistas em- bora néio fosse um individuo vulgar. Era baixo e magrinho. fraca figura como se costuma, dizer, com um grande nariz arrebitado, de nari- nas redondas, éculos de lentes grossas e laco. Os lagos eram a sua grande coquetterie, E em- bora se tornasse notado por usar de Verdo e de Inverno uns fatos alvadios de casacos dema- siado compridos e calgas largas, em boca de sino, eram os lagos que o personalizavam. Tinha-os de todas as cores e de todos os teci- dos, que iam da 1a a0 tafeté, mas todos eram as pintinhas. Mordvamos no mesmo prédio, eles no ter~ eeiro andar e eu no segundo. Lembro-me de ‘a minha mae entrar um dia em casa um pouco afogueada e dizer: «, Falou-me de mim m1 MARIA JUDITE DE CARVALHO em crianga e de um vestido de renda, lindo, que eu tivera, Quando me encontrava na eseada fazia-tfle gempre uma festa na cabea, mas eu fugia, era tio arisca! © Silva—era 0 marido —também me achava muita gracga. As vezes dizia: «Se nos viesse uma menina assim...» Mas paciéneia, Deus nfo tinha querido. ‘Tinham uma sala incrivel, cheia de estatue- tas, bonecas j tracadas a que o tempo roubara a cor, vasos de flores, pouffe maxroquinos, almofadas bordadas a missanga, napperons, e, nas paredes forradas de papel ramalhudo, retra- tos de familia com dedicatérias no canto infe- rior direito. Hsta era a irma — nao a via passar as vezes? —, aquela a cunhada, o outro o primo Rui, que era da marinha mereante ¢ thes trou- xera aquela garrafa com o navio dentro. Por- que também havia na sala uma garrafa com © navio dentro. Mas referia-se a essas pessoas pela rama, sem grande entusiasmo. Simples explicagdes dadas por um guarda de museu. So se entusiasmava quando falava do marido. . Disse-lhe que sim, que podia, mas néo era verdiade. Se ela fosse nova ou bonita, de acordo. ‘Mas tal como era e depois com aqueles vesti- dos... Perguntou-me entdo, desculpasse a curio- sidade, quem era o rapaz que acabava de me telefonar. Gostaria mesmo de mim? Ei eu dele? que isso era tio importante tio possivel ‘as pessoas enganarem-se... Se as duas se enga- navam, muito bem, mas quando era sé uma delas... «As pessoas nascem com asas e de repente cortam-lhas. Ficam como as galinhas, que tristeza. Restos de asas que ndo servem para voar. Eu, se mas cortassem, talvez fizesse qualquer coisa absolutamente louca... Sim, ereio que a faria>. Ficou um instante pensativa e eu aproveitei aquela aberta para me despedir. Dai em diante passimos a trocar algumas palavras sempre que nos encontrévamos na escada. Mas eu fiquei convencida de que ela nao regulava muito bem. ‘Nao, ninguém os invejava, ninguém daria tudo para ser como eles. E no entanto eram talvez — nessa altura —as criaturas mais inve- javeis da rua. Tanto que até se afeicoavam as pessoas que nfo conheciam, de quem no pre- cisavam. A mim, por exemplo. Mas eu tinha dezassete anos e tudo o que 113 MARIA JUDITE DE CARVALHO trouxe dessa visita foi a ideia perturbadora de que ela tinha asas, Hla com asas, ‘Depois 0 meu pai morreu, mudimos de casa e de vida, e 0 mundo deu muitas voltas. ‘Numa delas, dessas voltas, encontrei-me a dar ligdes num colégio que ficava na Estrela. Descia do eléctrico e tinha de fazer um pedaco de caminho a pé. Encurtava-o passando pela minha antiga rua. Divertia-me, mas a maior parte das vezes perturbava-me ver & mesma porta, & mesma janela ou a sair da mesma loja as pessoas que hi dez anos eu ali havia dei- xado. Dir-se-ia que s6 eu tinha corrido dentro do tempo, e que ele era para outras pessoas uma entidade estética. Um dia entrei por sim- ples curiosidade, a fim de me cocumentar, na tabacaria da esquina e vi que 0 dono da loja conversava com o mesmo homem de um dia qualquer dos meus verdes anos, sobre um desa- fio de futebol que talvez ndo fosse o mesmo da outra vez, mas que no era com certeza muito diferente, Tira como se as pessoas nfo tivessem crescido ou como se 0 tempo se tivesse esque- cido delas. E entretanto eu vivera, se vivera! Dera flores e o vento levara-me as folhas secas. Mas a Primavera voltava sempre. AtS quando? Pre- ne AS PALAVRAS POUPADAS feria nao fazer a mim propria tal pergunta. Ta-me deixando correr. ‘Um magote de gente & porta da minha antiga casa. Parei e perguntei o que era.

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