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ISSN: 1413-389X
comissaoeditorial@sbponline.org.br
Sociedade Brasileira de Psicologia
Brasil
Ristum, Marilena
A violência doméstica contra crianças e as implicações da escola
Temas em Psicologia, vol. 18, núm. 1, junio, 2010, pp. 231-242
Sociedade Brasileira de Psicologia
Ribeirão Preto, Brasil
Resumo
Este artigo faz uma incursão pelas principais questões conceituais referentes à violência
doméstica contra a criança, mostrando que, embora haja certa concordância em termos dos
rótulos que especificam as diferentes modalidades dessa violência, as ações sob os rótulos dão
margem a diferentes interpretações. São abordados os danos da violência doméstica relatados na
literatura e que se constituem em importantes indícios que permitiriam, aos profissionais da
escola, identificar as violências de que seus alunos são vítimas no âmbito doméstico. Os direitos
da criança são colocados em evidência, ressaltando a distância entre os preceitos do ECA
(Estatuto da Criança e do Adolescente) e a atuação da escola. Finaliza-se defendendo a
necessidade de que a escola assuma um papel mais efetivo na defesa dos direitos da criança,
construindo estratégias eficazes de enfrentamento da violência doméstica.
Palavras-chave: Violência Doméstica Contra Crianças, Sinais/Indícios de Violência, Papel
da Escola.
Abstract
This paper does an incursion into the main conceptual questions referring to the topic of
violence against children, showing that, although there is some agreement about labels that
specify different types of this type of violence, these labels give margin to different
interpretations. The paper focuses on the violence hindrances reported by the literature,
encompassing important signs which could allow school professionals to identify the violence
involving students in their homes. The rights of the child are evidenced, emphasizing
inconsistencies between ECA´s regulations (Brazilian Child & Adolescent Act), and the
school’s performance. Finally, this paper sustains that the school needs to assume a more
effective role in defending child and adolescent’s rights, building efficient strategies to curb
violence child maltreatment.
Keywords: Violence Against Children, Signs of Violence, School Role.
(Ristum & Moura, 2006; Ristum & a escola é parte do problema e também é
Vasconcelos, 2007), os resultados indicam parte da solução, descreve um
que os profissionais da escola (diretores,
círculo vicioso perverso: a violência
coordenadores, professores e funcionários)
doméstica e do meio-ambiente
relatam efeitos da violência doméstica sobre
aumentam a probabilidade de fracasso
comportamentos disciplinares e acadêmicos
escolar e de delinqüência – a
dos alunos. Quanto ao aspecto disciplinar,
delinqüência aumenta a violência na
apontam comportamentos agressivos ou
escola e as chances de fracasso
violentos, desobediência, dificuldade de
escolar e ambas reduzem o vínculo
relacionamento, tendência a se isolar ou a
entre os jovens e a escola (Cardia,
ser muito agitado. Quanto ao aspecto
1997, p. 51).
acadêmico, relatam que a maioria possui
baixo rendimento, dificuldade de É interessante observar que a violência
aprendizagem, são desinteressados e passa por um processo acelerado de
dispersos e/ou desatentos. banalização. A constância com que ocorrem
Em um trabalho com escolares, Assis as violências, amplamente divulgadas pela
(1991) relata que os pais que brigavam e se mídia, acaba por torná-las integradas ao
agrediam apresentavam uma maior cotidiano, anulando a característica
probabilidade de agredir os filhos. Os filhos episódica desses acontecimentos. Assim, os
que mais apanhavam dos pais eram os que limites entre o que é ou não violência
mais batiam nos irmãos, parecendo ser, a tornam-se tênues, com a tendência a
violência física, nessas famílias, utilizada restringir cada vez mais o conceito,
como instrumento de poder e dominação. excluindo formas de violência consideradas
Decorre daí também uma normalização da aceitáveis no contexto atual, especialmente
violência, tanto pelos pais quanto pelos quando contrastadas com formas físicas
filhos, que não consideram apanhar dos pais mais danosas. A fala de uma professora de
escola pública deixou clara sua relutância
uma forma de violência; a violência acaba
em classificar, sob o rótulo de violência, as
por integrar a linguagem cotidiana dessas
desavenças que ocorrem entre os alunos. A
famílias. A fala de uma professora
esse respeito, expressou-se da seguinte
exemplifica, de forma contundente, a
forma:
aceitação da violência paterna pelos filhos:
Eu acho essa palavra violência tão
(...) comentam muito, e os meninos forte pra gente relatar um episódio de
protegem os pais. Outro dia, um aluno um menino no recreio, um tapa, uma
me disse que tinha apanhado com um palavra mais agressiva; eu acho que
facão e eu perguntei se ele achava violência é assim muito forte pra...
certo. Ele disse que sim, porque só porque eu acho assim, violência é
assim ele deixou de ir para a rua assim quando tem sangue, tiro, faca.
(Ristum, 2001, p. 64). Então eu acho que é assim mais
desentendimento, eu colocaria assim
Nessa mesma direção apontam os (Ristum, 2001, p. 63).
resultados do trabalho de Cardia (1997),
mostrando que a violência doméstica e a Nesse mesmo trabalho, a observação
violência no bairro contribuem para a em uma sala de aula de segunda série de
normalização da agressão física na escola, escola pública registrou uma conversa entre
tornando alunos e professores menos dois alunos, a respeito de castigos dados
sensíveis a ela. Nas entrevistas, os pela professora, a propósito de uma
professores relataram simples indisciplina cometida por um terceiro aluno.
demonstrações de agressividade e agitação, Um dizia que a professora deveria puxar as
enquanto o relato dos alunos se referia a não duas orelhas, ao que o outro contestou
saber brincar e discutir. Entretanto, vistas dizendo que ela deveria dar “bolos”1 na mão
sob o prisma dos pesquisadores, as mesmas do aluno. Esse diálogo mostra uma total
entrevistas revelaram vários tipos de
violência, nos níveis estrutural e das relações 1
Dar “bolos” na mão é o mesmo que dar tapas
interpessoais (Cardia, 1997). Afirmando que na mão.
236 Ristum, M.
aceitação, por parte desses alunos, da Beland (1996) nos remetem a estudos sobre
legitimidade do castigo físico praticado por resiliência que apontam, entre outros, o
professores em sala de aula. No caso dessas vínculo da criança com a escola como um
crianças, com idade em torno de nove anos, importante fator protetivo e de superação
a escola parece ser vista como extensão do das adversidades (Sapienza & Pedromônico,
ambiente doméstico, no qual se considera 2005; Pesce, Assis, Santos & Oliveira, 2004;
natural a prática de bater para educar. Gil & Diniz, 2006).
Assim, na escola, a professora assumiria
autoridade e poder semelhantes aos
exercidos pelos pais, respaldando o uso das O papel da escola
mesmas práticas disciplinares por eles No Brasil, o Estado mostra-se incapaz
empregada no âmbito doméstico. de controlar a violência, tanto no seu
É, também, comum observar enfrentamento direto, como de forma
professores assumindo a aceitação do uso de indireta, pela promoção de um crescimento
agressão física como prática educativa econômico com uma melhor distribuição de
adotada pelos pais em relação a seus filhos, renda, pela adoção de uma política de
como se evidencia no comentário de uma geração de emprego, pela garantia do acesso
professora participante da pesquisa de a serviços públicos de qualidade,
Almeida, Santos e Rossi (2006, p. 281) ressaltando-se, aí, saúde e educação, enfim,
"bater faz parte (sem agressão)". Em uma desenvolvendo uma política de melhoria na
escola particular, observou-se um episódio qualidade de vida da população, com uma
ocorrido no pátio da escola, no horário do base menos assistencialista e mais voltada à
recreio, em que uma professora, diante de promoção do protagonismo cidadão.
uma briga em que os alunos se agrediam Nessas condições, a desigualdade
fisicamente, disse: "Vocês estão vendo social, bastante marcante na sociedade
algum pai por aqui, para um estar batendo brasileira, é mantida, enquanto a
no outro?" (Ristum, 2001, p. 107). Essa possibilidade de mobilidade social é
frase contém uma clara mensagem da grandemente reduzida. A escola, antes
professora para seus alunos, no sentido de depositária da esperança de escalada social,
que, se um deles fosse pai do outro, teria o cede cada vez mais espaço para formas
direito de bater. Episódios desse tipo acabam destrutivas de ascensão; o crime, diz
por constituir uma contribuição da escola, Pinheiro (1996), é um meio para a
por meio da explicitação conceitual impressa mobilidade social em uma sociedade
na prática cotidiana de seus professores, para desigual. Trata-se de uma sociedade na qual
a legitimação e banalização da violência o sucesso econômico, excessivamente
familiar. No entanto, parece difícil, para os exaltado, é a única trilha que conduz aos
professores, se dar conta do papel que direitos do cidadão (Minayo & Souza, 1999;
desempenham nesse processo. Cardia, 1997). Nesse sentido, a negligência
Também parece difícil que os do Estado para com as nossas escolas
professores se conscientizem de quão públicas denota o descaso para com a
importante pode ser o seu papel no sentido população que a frequenta, constituindo-se,
de prover condições de superação dos danos assim, em mais um indicativo da exclusão
da violência familiar. Vários estudos têm social a que está submetida essa importante
mostrado, conforme relatou Beland (1996), parcela da população.
que as crianças de alto risco que conseguem Segundo Cardia (1997), a literatura,
sobreviver e prosperar nas condições tanto nacional quanto internacional sobre
familiares adversas têm ligações com pelo violência, tem afirmado a impossibilidade de
menos um adulto significativo não se entender a violência isolada do tripé
pertencente a suas famílias. Com frequência, comunidade, família e escola. Crianças e
esses adultos são professores que, provendo adolescentes que vivem em locais em que a
uma base de amor e aceitação, podem ajudar violência é acentuada e o risco é constante
as crianças a desenvolver e utilizar estão sujeitas a um stress, cujos reflexos no
habilidades que constroem sua competência rendimento escolar são evidentes.
social, resultando em um aumento indireto Garbarino, Dubrow, Kostelny e Pardo
de sua autoestima. Essas considerações de (1992) referem-se a esse stress crônico
Violência doméstica contra crianças 237
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