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Movimento estudantil brasileiro em tempos de ditadura: Um contexto

latino-americano

Adriano dos Santos Moraes*

Resumo

O presente trabalho tem como objetivo analisar o movimento estudantil brasileiro


tendo como principal foco sua participação política durante os primeiros anos da
ditadura, e relacionando o mesmo com o contexto político na América Latina,
principalmente enquanto alvo da política externa dos Estados Unidos, durante os
tempos da chamada Guerra-Fria. São analisadas conceituações teóricas de movimento
social, e suas aplicações no que tange o movimento estudantil, buscando apresentar
também um pouco da participação política do jovem, suas agitações e manifestações no
panorama mundial. É feita uma retrospectiva visando configurar a política nacional
brasileira na década de 60, principalmente no que antecede o golpe militar, até o início
da década de 70, e a participação estudantil no período, desde o início do regime de
ditadura militar até o silenciamento do movimento, destacando também acontecimentos
importantes de âmbito nacional com a participação estudantil.

Palavras chave: Movimento estudantil, Ditadura brasileira, América Latina.

*
É aluno do 6º período de graduação da UFRRJ/IM (Instituto Multidisciplinar –
Campus Nova Iguaçu). Está inserido no grupo de pesquisa do projeto “Memórias da
Baixada Fluminense: vida, trabalho e desenvolvimento urbano em testemunhos de
anciãos 1950-2000.”, Coordenador Professor Doutor Álvaro P. Nascimento. É bolsista
CNPQ/FCRB, inserido no projeto “Memória e cidadania: guia de fontes da história de
Mesquita”, coordenado pela Doutora Ana Maria Pessoa dos Santos.

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Introdução

A participação dos jovens na política, principalmente universitários, sempre se deu


de forma inflamada. Mudanças no pensamento conservador, reformas na educação,
enfrentamento contra o Estado. No Brasil, o movimento estudantil, organizado desde o
início do século XX, busca maior participação dentro do ambiente estudantil. Porém
tem seu ápice enquanto movimento social durante os tempos de ditadura militar.
Conflitos internos, embates externos, a sociedade em geral sofreu durante o período de
autoritarismo, e a força estudantil se uniu a setores da sociedade para enfrentar esse
período.

Revolução cultural: A mudança na estrutura familiar e os jovens.

Para tratarmos do movimento estudantil e dos jovens em si, se faz necessária a


abordagem de um fenômeno ocorrido a partir da segunda metade do século XX: A
revolução cultural. Como aponta o historiador Eric Hobsbawm, tal acontecimento altera
a relações entre os sexos e a estrutura familiar. Segundo o autor:
“A crise da família estava relacionada com mudanças bastante dramáticas
nos padrões públicos que governam a conduta sexual, a parceira e a
procriação. Eram tanto oficiais quanto não oficiais, e a grande mudança em
ambas está datada, coincidindo com as décadas de 1960 e 1970.
Oficialmente, essa foi uma era de extraordinária liberalização tanto para os
heterossexuais (...) quanto para os homossexuais, além de outras formas de
dissidência cultural-sexual” (HOBSBAWM, 1995, p. 316).
Com essa transformação, que para o autor se dá de maneira mais impressionante na
cultura, ocorre um aumento nas taxas de divórcio, nascimento ilegítimo e famílias de
pai ou mãe solteira. Os filhos dessas relações começam a ter um paradigma de família
diferente do clássico. O jovem começa a tomar uma consciência própria de grupo e “(...)
se tornava um agente social independente.” (HOBSBAWM, 1995, p. 317). Os
acontecimentos políticos dessa época, principalmente entre 1970 e 1980, tinham como
principais agentes mobilizadores jovens, muito influenciados pela cultura rock, entre 14
e 25 anos.
O jovem era agora visto como independente. Sua referência familiar era, em muitos
casos, diferente do antigo padrão clássico. Seu ingresso para a vida universitária
também era um marco, pois com isso sua identificação seria completa com o grupo em

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que convivia. Além disso, aqui ele adquiria uma essência política maior: “O pessoal é
político”. O slogan serviu de base para que todos pudessem se engajar politicamente
naquilo que lhe fosse desejado. Como afirma Hobsbawm:
“Significava mais que simplesmente o fato de o compromisso político ter
motivação e satisfações pessoais, e que o critério do êxito político era o
quanto ele afetava as pessoas. Em algumas bocas, significava simplesmente
‘Chamarei de política qualquer coisa que me preocupe’.”
(HOBSBAWM, 1995, p. 326).
Sexo, drogas, rock e política. O universo da juventude estudantil agora almejava a
liberação pessoal e social. Os jovens iam contra os chamados velhos costumes, e ainda
desafiavam o Estado. Sua força enquanto grupo não poderia mais ser negligenciada.

As ditaduras militares latino-americanas e a política externa dos EUA.

Após o fim da Segunda Guerra Mundial o mundo ficou profundamente marcado


pela bipolaridade política que se sustentou até o fim do ano de 1989. De um lado a
URSS e o bloco socialista com o modelo econômico inspirado em Karl Marx, ainda
contando com a participação de Cuba, após a Revolução Cubana de 1959. De outro os
Estados Unidos da América com sua potência e política econômica liberal e seu poderio
militar, após o triunfo da Segunda Guerra Mundial. A ameaça comunista, na visão dos
norte-americanos, era um inimigo a ser combatido, mas não com armas e sim com a
influência político-econômica que possuía no mundo todo.
Ambas as potências disputavam influência nos territórios mundiais, sem de fato
entrar em conflito militar direto, apesar de apoiarem em diversos momentos os conflitos
em outros países. A chamada Crise dos Mísseis em Cuba, ocorrida em 1962, foi o
momento mais próximo de conflito que se chegou. Segundo Cristina Pecequilo:
“Em 1962, a Crise dos Mísseis em Cuba quase levou ao enfrentamento
direto entre as superpotências sinalizando o risco da destruição mútua.
Deflagrada pela intenção da União Soviética de instalar uma base de
mísseis defensivos em Cuba, invadindo uma esfera tradicional do interesse
norte-americano, a crise levou a uma escalada de tensões entre Estados
Unidos e União Soviética até antes nunca vista, cujas conseqüências
poderiam ter sido piores.” (PECEQUILO, 2005, p. 182).
Aqui ocorre uma transição na política externa norte-americana. Os EUA abandonam
a política de confrontação e passam a adotar uma postura de coexistência. A partir deste

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momento a disputa se dará somente no campo das “conquistas” de novos territórios, e é
aqui que a América Latina se torna cada vez mais atrativa.
Com a presença de um país dominado pela ideologia socialista na América Latina,
os EUA começam a tentar impedir o avanço do pensamento em seu território vizinho.
Ao mesmo tempo em que se estabelecia uma política de coexistência com a União
Soviética, a potência capitalista influenciaria cada vez mais na política latino-americana.
Tendências socialistas como eram vistas, por exemplo, no governo de João Goulart no
Brasil, começavam a ser desestimuladas. Lembrando que o Brasil, assim como outros
países da América Latina, se caracterizava como atores fora do eixo Leste/Oeste.
Adotaria para si a alcunha de “Terceiro Mundo”, pois
“(...) se encontravam à margem da disputa bipolar e que não tinha como
sua prioridade de atuação internacional acompanhar tal disputa
(procuravam uma ‘terceira via’). Nesse momento, a principal preocupação
era o desenvolvimento econômico e como lidar com questões relativas ao
crescimento populacional e à sua modernização política e social.”
(PECEQUILO, 2005, p. 179).
A América Latina agora seria alvo da política de “Novas
Fronteiras” do presidente norte-americano Kennedy. Essa política
“(...) abria inúmeras novas frentes de intervenção para a política externa no
Terceiro Mundo, também funcionando como um escape de recursos. A idéia
de que no combate ao comunismo tudo e todos importam, implicava uma
ausência de seletividade na política externa, causando a superextensão dos
compromissos norte-americanos (...).” (PECEQUILO, 2005, p. 181-182).
Aqui começa a figurar, de forma mais incisiva na política externa norte-americana, o
fator intervenção. A política dúbia dos EUA (fomentar democracia e barrar influências
da URSS e Cuba) cai por terra com intervenções militares a outros países e propagandas
anti-Cuba. Dois casos que se podem destacar a respeito das intervenções são Chile e
Brasil. Ambos os países recebem orientação do governo norte-americano a respeito de
procedimentos a serem tomados com relação à luta contra o comunismo. No Chile
temos o governo popular de Allende, implantando políticas nacionalistas de
socialização da economia, desagradava à classe média chilena e aos democrata-cristãos
direitistas e o risco de um novo governo socialista agora preocupava os Estados Unidos.
No caso brasileiro pode-se observar, no governo de João Goulart entre 1961-64,
uma abertura do diálogo com a China, país comunista aliado ao regime socialista da
URSS, e com a própria União Soviética. João Goulart se mostrava contra diversas

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medidas do governo dos EUA, como as sanções impostas a Cuba e a proposta de
invasão apresentada pelo presidente Kennedy, ao mesmo tempo em que criticava o
regime político cubano e a instalação de mísseis soviéticos na ilha. O presidente
brasileiro demonstrava assim o papel de um país do chamado Terceiro Mundo, não se
envolvendo diretamente na disputa bipolar mundial ao não escolher um lado. Ao mesmo
tempo em que se ausentava de escolha na política externa e sofria pressões, gerava
conflitos internamente. Suas reformas e medidas que, segundo alguns segmentos
sociais, levariam à implantação do comunismo no Brasil. Em meio a esses
acontecimentos, estudantes organizados realizavam protestos e atividades culturais. O
Centro Popular de Cultura da UNE (União Nacional dos Estudantes, fundada em 1937)
produzia filmes, peças, livros, músicas, dentre outras manifestações culturais que não
excluíam um posicionamento político. Nessa época já era conhecida a influência das
idéias socialistas e marxistas no movimento estudantil. Segundo SANTANA (2007), os
estudantes em sua maioria estavam alinhados com partidos políticos, todos de ideologia
socialista ou comunista. Eram disputados como força de mobilização e manifestação.
Porém, mesmo com as disputas, “(...) o movimento estudantil não teve sua atuação
inviabilizada, nem mesmo deixou de realizar manifestações expressivas nos anos que
precederam o golpe de 64.” (SANTANA, 2007, p. 26). Os estudantes já realizavam
manifestações e se engajavam na política em âmbito nacional antes do golpe militar de
1964. Após ele esses eventos só iriam se tornar mais constantes.

Conceituação: Estudantes enquanto movimento social organizado.

No que se trata da definição de movimento social, diversos autores buscam em seus


trabalhos conceituar exatamente quais elementos configuram um movimento social. A
tentativa de encontrar traços comuns em cada grupo reivindicatório organizado traz uma
dificuldade para a análise de que cada grupo nasce a partir das peculiaridades existentes
em seu meio social.
A partir da década de 70, uma nova perspectiva para se estudar os movimentos
sociais surge. Segundo a antropóloga Ruth Cardoso:
“A desilusão com os esquemas globalizantes passou a alimentar a busca de
explicações qualitativas para os novos problemas que se colocavam e que
diziam respeito ao sistema de dominação e seu modo de operar. A

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progressiva rigidez da teoria marxista, tal como vinha sendo usada, abriu
caminho para novas formas de investigação.” (CARDOSO, 1987, p.1)
Ou seja, a nova perspectiva trazia a necessidade de estudos de caso da participação
popular na vida política. A partir disso, inúmeros trabalhos irão interpretar os
movimentos sociais a partir de diálogos com as idéias clássicas e novas perspectivas
teóricas.
A antropóloga Ruth Cardoso conceitua os movimentos sociais enquanto novos
atores políticos. Como já vimos anteriormente, os estudantes se tornam mais politizados
com o tempo e passam a ser vistos como força para manifestações. Suas ações passam
cada vez mais a serem percebidas por forças opostas aos governos e pelos governantes
em si. Ao analisar movimentos urbanos, a autora irá problematizá-los enquanto sua
participação na sociedade. Os movimentos
“(...) são apresentados como fontes de transformações da sociedade e de
mudanças profundas na estrutura de dominação vigente. Organizados a
partir de novas identidades sociais, ultrapassam o quadro institucional
vigente, exigindo o reconhecimento de categorias excluídas do jogo político
e são, portanto, instrumentos de modificação deste jogo.” (CARDOSO,
1987, p. 5)
A autora termina sua abordagem afirmando que “analisar os estudos sobre
movimentos sociais de modo global (...) é tarefa difícil e o resultado é sempre
esquemático e um pouco impreciso.” (CARDOSO, 1987, p.11). Com isso podemos
observar que tentar conceituar precisamente o movimento estudantil enquanto
movimento social seria uma análise um tanto quanto imprecisa. Porém podemos
identificar com base em outros autores algumas características comuns a movimentos e
analisar detidamente o movimento estudantil brasileiro e sua atuação política.
Para o sociólogo Axel Honneth estudar os movimentos sociais perpassa pela
compreensão da linguagem por eles utilizada. Um vocabulário e, acima de tudo, a
gramática moral. A moralidade serve de motivação para grupos reivindicarem direitos
pessoais e sociais e/ou melhoras em suas vidas. Para ele, existe uma ligação direta entre
desrespeito moral e luta social. Ainda segundo o autor:
“uma luta só pode ser caracterizada de ‘social’ na medida em que seus
objetivos se deixam generalizar para além do horizonte das intenções
individuais, chegando a um ponto em que eles podem se tornar a base de um
movimento coletivo.” (HONNETH, 2003, p. 256)

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Ao tratar da luta social, o autor esclarece um ponto interessante sobre a motivação
do social. O desejo individual deve ceder lugar às aspirações coletivas. A principal
característica de um grupo social seria a transformação do individual pro coletivo. E é a
partir disso que o sociólogo irá conceituar um aspecto fundamental para entendermos os
movimentos sociais: a luta social. Para ele:
“trata-se de um processo prático no qual experiências individuais de
desrespeito são interpretadas como experiências cruciais típicas de um
grupo inteiro, de forma que elas podem influir, como motivos diretores da
ação, na exigência coletiva por relações ampliadas de reconhecimento.”
(HONNETH, 2003, p. 256)
Duas coisas devem ser destacadas. O sentimento de desrespeito e lesão seria aqui o
motivador comum a um grupo inteiro. Mesmo que não sofram do mesmo mal, pessoas
compadecem do mal do próximo, se tornando simpatizantes a movimentos. Outra coisa
é que a análise do autor está baseada na luta pelo reconhecimento. No caso do
movimento estudantil, que se tem como movimento organizado pelo menos desde 1937
(criação da UNE), principalmente durante o tempo que se pretende analisar (1964-1985)
o reconhecimento não é o principal objetivo, mas sim melhores políticas educacionais e
resistência ao autoritarismo militar.
Com o sentimento de lesão pode-se estabelecer uma identidade de grupo partindo
dessa experiência. E o que se torna mais valioso para entendermos o que, para o autor,
constitui a base para reconhecermos um grupo organizado enquanto movimento social.
As resistências e manifestações ocorrem, portanto, seguidas de um dolo moral. Esse
dolo, articulado de forma a se tornar uma ofensa coletiva, uma experiência moral de
grupo, possibilitaria a semântica coletiva. Esta, segundo Honneth, seria a capacidade de
um grupo em tornar uma experiência individual em coletiva. O grupo adquire a
semântica coletiva fundada no sentimento de lesão e pode agir com coesão.
Aplicando essas idéias ao movimento estudantil, vemos que este, enquanto
movimento social agiria pautado no sentimento coletivo de dolo no ambiente em
comum dos estudantes: a instituição de ensino. A busca por participação política dentro
da universidade ocorre, no território da América Latina, desde o fim do século XIX.
Segundo aponta o cientista social José Rubens Lima Jardilino a região é palco de
um crescimento da movimentação de jovens estudantes a se tornarem indivíduos ativos
no processo social. O mesmo diz:

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“Esse protagonismo juvenil universitário se acelera e se materializa em
contestação aos modelos de ensino, ao currículo e a própria política
universitária, inspirados pelas novas correntes de pensamento do início do
século XX e herdeiros de uma classe média em ascensão.” (LIMA
JARDILINO, 2008, p. 101)
A estrutura da sociedade dos países da América Latina possuía diversas
semelhanças, principalmente no que diz respeito às estratégias de dominação e o mesmo
se repete na estratificação social. A participação política e social então seria um
processo análogo na região e também influenciado por fatores externos, como observa
Lima Jardilino, ao afirmar que:
“As mesmas estruturas dominantes se expressam tanto no cone sul como na
Meso-América, portanto é natural que haja semelhanças nos ideais em
conquistar maior participação social e política nesse movimento latino-
americano de renovação das estruturas, uma vez que os vastos setores
sociais estavam sob o mesmo signo de mudanças no início do século, uns
mais a frente, outros com maiores dificuldades.” (LIMA JARDILINO,
2008, 104)
Os movimentos estudantis analisados pelo autor da região de Córdoba, Peru e Cuba
são movimentos sociais engajados tanto em sua reivindicação interna quanto em
revoluções sociais ocorridas (o caso mais nítido seria o de Cuba e a revolução de 59).
Segundo o autor conclui:
“Naturalmente, se pode pensar nos movimentos de estudantes da primeira
metade do século XX como o embrião de uma mudança de mentalidade
político e social do continente latino-americano. Eles não podem ser
considerados apenas como esforços estreitamente ligados a questões do
métier da Universidade, mas é para além das reformas educacionais que
suas lutas promoveram, refletiam as demandas de seu tempo, o surgimento
de uma classe média que tinha como pressuposto básico a construção
política e a Reforma do Estado. As Reformas das instituições do Estado,
entre elas a Universidade de certa maneira adaptaram a sociedade latino-
americana para as exigências do novo século.” (LIMA JARDILINO,
2008, p. 108)
Estudantes em movimentos sociais, reivindicando reformas no Estado. Este é o
espelho do movimento estudantil brasileiro durante os tempos de ditadura militar.

Movimento Estudantil Brasileiro e a Ditadura.

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O regime de ditadura militar se iniciou no Brasil em abril de 1964 e se estendeu até
o ano de 1985. Durante esses 21 anos os governantes, para reprimir quaisquer tipos de
resistência ao que eles chamavam de ameaça à democracia, utilizaram de serviços de
inteligência e informação, perseguições, ameaças, tortura, prisão, censura, suspensão de
direitos políticos, dentre outras medidas que foram tomando forma ao longo do tempo,
principalmente com a criação dos chamados Atos Institucionais. Com esses os militares
estabeleciam poderes extra-constitucionais para garantir legitimidade à sua política
repressora. O governo militar instaurou um total de dezessete Atos Institucionais, tendo
estes mudado a legislação a favor do regime. O primeiro deles, outorgado em nove de
abril de 1964, além de tecer diversos elogios ao que chamava de “Revolução” (o golpe),
tinha como principais medidas direcionar novos poderes ao presidente e suspender, no
interesse da paz e honra nacional, o direito político de qualquer cidadão. Além disso,
eram abertos inquéritos para investigar, tanto individual quanto coletivamente,
responsáveis por crimes contra o Estado e ordem social e política. O nome do presidente
deposto encabeçava a lista anexada ao Ato, e a partir daquele momento os listados
perderiam seus direitos políticos.
Após o golpe, os estudantes se configuram, para o regime, como uma das maiores
forças de mobilização popular, com isso ganhando uma atenção especial do governo
militar como força opositora à chamada “retomada da democracia”. Já se poderia
imaginar como seria a relação entre o governo ditatorial e o movimento estudantil. A
UNE entrava para a lista de atividades clandestinas e teve seu prédio invadido, saqueado
e incendiado. Os estudantes sofreriam repressões devido ao seu posicionamento
políticos (e em alguns casos, partidário). A autora Flávia Santana explica:
“Como o movimento estudantil já havia assumido um posicionamento
político contrário àqueles que tomaram o poder, passaram a sofrer muitos
ataques após o golpe, configurando um período de relações conflituosas
entre estudantes e governo. Até as verbas oficiais, aprovadas pela Câmara
dos Deputados, que as entidades estudantis recebiam antes do golpe, foram
cortadas” (SANTANA, 2007, p. 48)
A mesma ainda exemplifica como mais um episódio dessa disputa de forças uma
invasão à UnB (Universidade de Brasília) ainda nos primeiros dias de regime militar. O
mesmo iria ocorrer mais tarde e resultaria na perseguição a lideres estudantis da
universidade.

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Um dos fatores que vai atingir diretamente aos estudantes será a chamada Lei
Suplicy de Lacerda, criada em novembro de 1964. Com ela as instâncias de
representação estudantil ficam submetidas ao Ministério da Educação. Além disso, torna
as maiores instituições estudantis (UNE E UEEs) ilegais, o que força as mesmas a
atuarem na clandestinidade. As novas associações estudantis eram proibidas de se
engajar em atividades políticas. Porém o que o regime conseguiu com essa lei foi uma
incitação à mobilização do movimento estudantil, efeito oposto ao desejado. Os
estudantes aqui se manifestavam principalmente contra as mudanças na vida
universitária. Thomas Skidmore afirma que:
“Os estudantes mais ativistas recusaram-se a ser intimidados durante os
anos de 1965 e 1966. Em muitos campi eles sabotaram as eleições
compulsórias para os diretórios das instituições governamentais de ensino e
organizaram protestos contra expurgos de professores na Universidade de
Brasília, contra a repressão a reuniões da UNE posta fora da lei e contra a
proposta do governo de pagamento do ensino nas universidades federais.”
(SKIDMORE, 1988, p. 152)
Deve-se destacar aqui que os estudantes se organizam em torno de um dolo comum:
as medidas de reformas universitárias. Aqueles que eram engajados politicamente, até
partidários, se juntam com aqueles que não se manifestavam antes, mas que com as
novas medidas se sentem prejudicados e passam a fazer parte da semântica coletiva
apontada por Honneth.
Medidas autoritárias, incluindo a extensão do governo de Castelo Branco, foram
tomadas e a chamada Doutrina de Segurança Nacional se iniciava. Com ela diversos
militantes, partidários e até militares favoráveis ao governo de João Goulart ou às idéias
contrárias ao regime militar foram investigados, perseguidos, presos e torturados.
Com o passar do tempo, novos Atos Institucionais foram elaborados, alguns até se
colocando contra políticos e instituições, como a Igreja Católica, que apoiaram os
militares durante o golpe. Alguns políticos se juntam para se opor ao regime, dentre eles
Carlos Lacerda, que tiveram grande participação direta no golpe. Assim era criada a
Frente Ampla. Esta atraia militares insatisfeitos, partidários, sindicalistas e estudantes,
ao se mostrar uma força política contra os abusos do regime. Porém, em cinco de abril
de 1968, o presidente Costa e Silva
“baixou um decreto proibindo as atividades políticas da Frente Ampla, sob
o pretexto desta estar estimulando a agitação estudantil. Além disso, a
imprensa foi impedida de publicar qualquer declaração referente à

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organização ou a qualquer um dos seus membros. Embora tenha
enquadrado a Frente Ampla, as manifestações dos estudantes e
trabalhadores continuavam pelo país, desafiando o governo.”
(SANTANTA, 2007, p. 60)
Em 1968 a economia e a política brasileira agora caminhariam de acordo com os
preceitos norte-americanos. Porém desagradava cada vez mais a civis brasileiros.
Trabalhadores eram demitidos, devido às novas medidas econômicas e aqueles com
posicionamento político contrário ao do governo, ou seja, com tendências comunistas
ou socialistas, eram perseguidos e presos. Durante esses eventos cresce o número de
manifestações de trabalhadores e estudantes.
Entre 1964 e 1968 a UNE, criminalizada pelo regime, ainda se comportava enquanto
entidade máxima de representação dos estudantes. Exemplo disso é o fato de ainda
ocorrerem eleições disputadas em congressos para a presidência da entidade, como
demonstra a historiadora Angélica Muller ao analisar o Congresso de Ibiúna, ocorrido
em 1968. Através dos anos o movimento estudantil se configura enquanto movimento
organizado em prol tanto da defesa do modelo de universidade pública federal e
representatividade estudantil nela, quanto contra o regime opressor militar que assolava
o país desde 1964.
Vários eventos ocorrem durante essa parte de estabelecimento do regime militar,
porém o ano de 1968 se torna um elemento chave, tanto em caráter internacional como
nacional. Em nível internacional temos o que se pode considerar um dos maiores
eventos de mobilização da juventude no mundo: o maio de 68 na França. A revolução
cultural já apontada anteriormente influenciava o pensamento jovem do mundo todo, e
este pensamento teve grande valor na juventude estudantil. Em dois de maio de 1968
estudantes franceses da Universidade de Nanterre protestaram contra a divisão dos
dormitórios por gênero. Esse simples motivo, na realidade, demonstrava todo o
pensamento conservador que estava sendo combatido na época, e culminava na
principal bandeira dos jovens manifestantes franceses: a liberação sexual. De um
simples movimento reivindicatório de um grupo de estudantes, outros manifestantes
passaram a unir suas bandeiras no episódio que ficou conhecido mundialmente.
Partidários e estudantes politizados protestavam contra problemas sociais vividos na
França, exigiam a renúncia do presidente francês Charles de Gaulle. Ainda no mesmo
mês outros protestos aconteceram com a participação estudantil, como trabalhadores
exigindo melhores condições de trabalho.

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Apesar de todos os acontecimentos, Lima Jardilino defende que os acontecimentos
de maio de 68 na França são reivindicação contra o conservadorismo, uma revolução
cultural. Não haveria protestos por reformas estatais, e sim pelo pensamento da
sociedade. Porém temos estudantes se manifestando ao redor de um sentimento de lesão
vivido dentro do ambiente universitário, que demonstra o caráter conservador da
sociedade em que estão inseridas. O protesto na realidade parte do micro ambiente da
universidade e é externado para toda a sociedade francesa. A proposta de reforma não é
abandonada, só recebe apoio de outros segmentos. Portanto pode-se considerar o evento
como um movimento social estudantil. O acontecimento francês toma proporções
mundiais e irá influenciar o pensamento dos estudantes de todo o mundo. Lima
Jardilino, analisando o contexto latino-americano, chama de “frutos de maio o
movimento de 68 oriundos daqueles movimentos que no início do século tiveram como
pauta de suas lutas as reformas na sociedade latino-americana.” (LIMA JARDILINO,
2008, p. 100). O ano de 1968 também se torna um marco nacional. Para Flávia Santana:
“Apesar do aumento da repressão, o ano de 1968 é considerado o marco
mundial da atuação dos estudantes, porque o movimento estudantil
continuava crescendo em resposta não só à violência do regime para com a
juventude mas também em virtude da política educacional adotada pelos
militares e da subordinação às diretrizes norte-americanas.”
(SANTANA, 2007, p.87)
A dominação norte-americana influenciava a política dos países latino-americanos e
assim das universidades.
Em março de 1968 ocorre um marco na história do movimento estudantil nacional.
Durante uma repressão policial a uma manifestação contra a qualidade do ensino e da
refeição de um determinado restaurante universitário, no Rio de Janeiro, o estudante
Edson Luís de Lima Souto foi morto a tiros pelos policiais. A reação dos estudantes foi
imediata, com manifestações em todo o território brasileiro. Nessas manifestações
pessoas solidárias a causa estudantil e, principalmente, opostas ao regime, se fazem
presente para apoiar os protestos. O corpo do estudante foi levado para a Assembléia
Legislativa, que foi ocupada por estudantes e simpatizantes, que impediram a remoção
do corpo para autópsia. A mesma foi realizada na própria Assembléia. No dia seguinte
mais de cinqüenta mil pessoas marcham nas ruas para o enterro do estudante,
configurando o que até hoje se tem como um dos maiores atos públicos durante a
ditadura militar. A partir desse evento ocorre

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“(..) a mudança de opção do movimento estudantil, que adotou a tática de
enfrentamento, do combate com as forças de repressão. E nesse contexto de
responder à violência com violência, os estudantes se deparam com a ação
repressiva do regime nas manifestações que se sucederam.”
(SANTANA, 2007, p. 89)
Ainda nesse ano pode-se observar essa mudança no posicionamento do regime
contra os estudantes. O XXX Congresso da UNE, realizado em outubro de 68 na
cidade de Ibiúna, é um dos exemplos. Organizado sem qualquer estrutura física, mas
com um grande esquema de segurança para que pudesse acontecer, como aponta
Angélica Muller, o Congresso se torna um fracasso quando, na manhã do dia doze de
outubro, a polícia chega ao local e efetua a prisão de quase mil estudantes. Sua
realização se dava em um período conturbado da UNE, pois havia uma disputa interna
pela presidência da entidade e, com isso, pela reformulação da plataforma de ação.
Segundo Muller:
“Depois do Congresso de Ibiúna, o ano de 1968 fecha com um grande ato,
com o Ato Institucional nº 5 abrindo explicitamente uma nova conjuntura,
que já estava em curso desde o golpe em 1964. Estavam derrotadas as
possibilidades de lutas de massa. O ME e os movimentos de esquerda caem
na clandestinidade total (...)” (MULLER, 2009, p. 76)
A autora ainda aponta que as diferenças políticas do movimento estudantil podem
ter contribuído para o fortalecimento da política de linha-dura, adotada a partir do AI nº
5. Essa política de linha-dura converge com a posição norte-americana de interferência
militar nos países que apresentavam a chamada ameaça comunista.
Violência contra violência, o movimento estudantil passa para segundo plano para
que as manifestações sociais se tornem movimentos de guerrilha. Alguns líderes do
movimento estudantil acabam aderindo a tal movimento. Para Paula Caldeira, ao
analisar o movimento estudantil do Rio de Janeiro, “O enfrentamento com as numerosas
e aparelhadas forças de repressão, em poucos anos, levou à incontáveis mortes,
desaparecimentos, prisões e exílios” (CALDEIRA, 2008, p. 42).
Após o decreto do AI-5 o movimento estudantil entra em contenção. Com a forte
repressão do regime, resultando em perseguições, prisões e mortes, muitos estudantes
preferiram não militar em oposição ao regime. Os que se manifestaram ou migraram
para movimentos de guerrilha, conforme apontado, ou acabaram desaparecidos e/ou
mortos. Segundo Flávia Santana, “A UNE ainda procurou resistir, de forma
absolutamente precária, a mais dois anos na clandestinidade.” (SANTANA, 2007, p.

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135), porém os riscos eram altos demais, e obrigavam aos estudantes a viverem na
clandestinidade para escapar das repressões. Com isso ocorre na realidade uma
desmobilização. Para Paula Caldeira “Os jovens só retomariam as ações públicas do
movimento estudantil no início de 1977, (...), assinalando o começo da reorganização
dos centros acadêmicos e do processo de retomada da UNE, em 1979.” (CALDEIRA,
2008, p. 42).

Conclusão:

A atuação do movimento estudantil não é um fato isolado de uma sociedade, nem


mesmo de um contexto internacional. Com isso, mesmo um movimento organizado de
estudantes, reivindicando políticas para seu ambiente estudantil, pode se manifestar para
a sociedade como um todo, principalmente em caso de excessos do Estado. O
movimento estudantil enquanto movimento social se encaixa na conceituação, mesmo
que preliminar, do sociólogo Axel Honneth.
Os estudantes organizados se mobilizam em prol de um objetivo mesmo antes de
terem a consciência de um movimento social. E mudanças sociais ocorrem com
freqüência no território latino-americano desde o início do século. Comum observar que
estes estudantes se encontram envolvidos nos processos.
Pode-se observar também que a política dos países da América Latina, durante a
segunda metade do século XX, se torna palco das intervenções dos Estados Unidos e
sua política externa em combate ao comunismo.
Todo o processo de manifestação social não se caracteriza isoladamente.
Principalmente se há uma consciência de grupo ou de movimento envolvida. Existe
sempre um contexto histórico, formado a partir de ideais internos e externos ao
movimento.

Bibliografia:

CALDEIRA, Paula. Juventude e participação política: trajetórias de


participação de jovens no movimento estudantil e em partidos no Rio de Janeiro.

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