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Introdução ao Direito – 1.

ª Frequência

Introdução
O Direito serve de fundamento e critério para os nossos comportamentos,
uma vez que regula a sociedade ao determinar o que é lícito ou ilícito e quais os
comportamentos válidos ou inválidos. Deste modo, o Direito é um “dever ser”.

Quid jus e quid juris


Como juristas, podemos interpelar diretamente o Direito:

Quid juris: trata-se de um problema de Direito, sendo que o jurista procura


a resposta ou solução do Direito para um determinado problema juridicamente
relevante. Assim, o Direito é visto como pressuposto e numa “perspetiva
investigante”, não sendo interrogado.

Quid jus: trata-se de um problema do Direito, sendo que o jurista dirige


uma questão ao próprio Direito. Assim, há uma preocupação reflexiva,
procurando-se averiguar qual o sentido do Direito no contexto contemporâneo,
nas suas condições, funções e fundamento material.

Hoje em dia, muitos juristas recusam uma abordagem que distinga os


problemas de direito e os do direito, admitindo que só os primeiros importam. No
entanto, as circunstâncias em que vivemos cada vez mais exigem uma
interpenetração das questões a que o quid juris e do quid jus respondem.
Para além disso, o jurista deve procurar compreender a especificidade do
Direito e dos seus problemas sem esquecer as questões éticas que ajudam a
determinar o “dever ser”, já que o entendimento das situações jurídicas concretas
só é completo quando o jurista compreende o sentido das exigências particulares
do direito. Assim, o pensamento jurídico é prático-normativo e axiológico.

Perspetivas do Direito
Há várias respostas possíveis para o quid jus, dependendo da perspetiva a
partir da qual o problema é abordado.
Numa perspetiva epistemológica1, procura-se apenas descrever os quadros
e conceitos do Direito, o que resulta numa análise redutora.
Numa perspetiva sociológica, o direito é observado e analisado do ponto
de vista social.
Numa perspetiva filosófica, há uma mera reflexão metanormativa, sem
atender ao contexto histórico-concreto do Direito.

1
Epistemologia trata dos problemas filosóficos relacionados com o conhecimento científico.

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Já os juristas procuram responder ao quid jus partindo de uma perspetiva
interna, i.e., de comprometimento com o Direito enquanto dimensão prática de
resolução de controvérsias juridicamente relevantes, orientada por uma intenção
normativa.
Esta perspetiva interna orientada pela intenção normativa enfrenta um
problema-desafio no nosso contexto prático-cultural, já que os juristas se
procuram afastar do que foi o discurso jurídico do século XIX. Ao mesmo tempo,
existe o problema-desafio de procurar esta perspetiva interna no contexto
contemporâneo em que se verifica uma multiplicação de perspetivas de
compreensão do Direito, assim como a valorização de diferentes “códigos”
linguísticos que distinguem os diferentes grupos (advogados, juízes,…). Para
além disso, há ainda o problema do “sentido civilizacional” do Direito, i.e., o de
saber se este está comprometido com uma civilização, por exemplo a greco-
romana ou a europeia.

Capítulo I – O sentido geral do “projeto humano” do direito


A controvérsia como problema prático mergulhado no mundo
Uma vez que os indivíduos são mediadores da fruição do mundo dos que o
rodeiam, é necessária a definição das responsabilidades, direitos e deveres de
cada um, tarefa levada a cabo pelo direito. Assim, há determinados
acontecimentos da vida que têm relevância jurídica – as controvérsias
juridicamente relevantes. Para que uma controvérsia seja juridicamente
relevantes, é necessário que inclua os seguintes elementos:

 Ser uma situação histórico-concreta partilhada: a controvérsia


envolve dois ou mais sujeitos que partilham a mesma situação histórica e
concreta (o mesmo contexto).
 Estar incluída num contexto-ordem: os sujeitos invocarem o mesmo
conjunto de fundamentos e critérios estabilizados num mesmo sistema
(por exemplo, a mesma norma legal). Por exemplo, um arrendatário
solicita ao senhorio obras que considera indispensáveis para preservar o
estabelecido no contrato, mas o senhorio não concorda → ambos invocam
o direito do arrendamento da ordem jurídica portuguesa.
 Os sujeitos surgirem na sua autonomia-diferença: assumirem
posições distintas acerca da situação histórico-concreta partilhada no
mesmo horizonte de fundamentos e critérios.
 Haver uma exigência do “tratamento” desta diferença: a
controvérsia tem de ser “tratada” institucionalmente através da
intervenção de um terceiro imparcial (i.e. que não é parte na controvérsia),

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o julgador (juiz), que dá a conhecer os direitos e deveres correspondentes
a cada uma das partes tendo em conta o contexto-ordem que foi invocado,
o que nos liberta de um decisionismo arbitrário. O “tratamento” ou
solução da controvérsia procura compensar os danos provocados à(s)
parte(s).

Deste modo, a controvérsia juridicamente relevante pressupõe um litígio2


e não um diferendo, já que as situações das partes têm de ser comparáveis, o que
só é possível se todas invocarem padrões comuns.

Uma tectónica determinada por três grandes linhas estruturais


A ordem jurídica não é uniforme, compreendendo três linhas estruturais:

 1.ª linha - Ordo partium ad partes (relações das partes com as


partes)
Surgiu no contexto da autonomização do direito na prática com a civitas
romana e compreende o direito privado, i.e., as controvérsias juridicamente
relevantes estabelecidas entre indivíduos que surgem com a veste de sujeitos
privados, ou seja, sujeitos particulares despidos de qualquer poder soberano que
lhes dê supremacia sobre os restantes3. Estes sujeitos privados relacionam-se ao
abrigo da sua autonomia (voluntariamente) para criar um equilíbrio paritário.
Para tal, trocam prestações que se equivalem, estabelecendo uma relação de
igualdade no sentido de parificação.
A área dogmática que regula esta linha é o Direito Privado, que inclui o
Direito geral/comum e, dentro dele, o direito civil (D. das obrigações, D. das
coisas, D. da família e D. das sucessões) e o direito comercial ou do trabalho
(D.P. Especial). Os valores associados a esta linha da ordem jurídica são a
liberdade e a igualdade, manifestando-se nela intenções às justiças comutativa e
corretiva:
 Justiça de troca/comutativa: as partes acordam
voluntariamente uma troca, verificando-se um equilíbrio paritário.
Por exemplo, A e B estabelecem um negócio jurídico bilateral
(contrato privado).

 Justiça corretiva: tem a pretensão de repor o equilíbrio


paritário que foi perturbado, tornando o lesado indemne (ideia de
“voltar ao passado” de Aristóteles).

2
Segundo o filosofo francês Lyotard, num litígio as partes invocam padrões comuns, enquanto num
diferendo invocam padrões comportamentais muito diferentes (por exemplo, culturas muito distintas).
3 Um dos sujeitos pode ser um ente público, mas surgirá fora do exercício de funções soberanas.

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 2.ª linha - Ordo partium ad totum (relações das partes com o todo)
Surgiu com o Estado demo-liberal (século XIX – estabelecia apenas
fronteiras à atuação dos cidadãos, garantindo a compossibilidade dos arbítrios).
Os indivíduos surgem na veste de socii, i.e., membros da sociedade tomada no
seu todo, pelo que podem ser responsabilizados por ela caso interfiram na
garantia e preservação de determinados bens jurídicos (valores comunitariamente
relevantes, protegidos pelo direito penal), por exemplo a honra. Deste modo,
nesta linha a sociedade surge como ente público e os indivíduos surgem na forma
das suas “máscaras” de sujeito comunitário. A relação de um indivíduo com a
comunidade pode ocorrer entre o cidadão e a sociedade organizada em Estado
(neste caso, a sociedade politicamente organizada tem o dever de proporcionar
determinados direitos aos cidadãos – DC), ou entre o cidadãos e um órgão da
administração pública.
Área dogmática: Direito Constitucional, Direito Penal, Direito Fiscal e
Direito Militar. A esta linha estão associadas a liberdade e a responsabilidade
social, manifestando-se intenções às justiças geral e protetiva:
 Justiça geral: o que em nome de todos podemos exigir a cada
um (proteção de bens jurídicos) e o que cada um pode exigir
ao todo (D.C.).
 Justiça protetiva: o Direito institucionaliza formalmente,
limitando e controlando o poder estadual (ius imperii), de
modo a proteger os cidadãos. Por exemplo, ninguém pode
ser punido jurídico-criminalmente se no ato do crime todos
os seus pressupostos não estiverem previstos numa lei na
altura do ato, i.e., não há crime sem uma lei anterior a ele.

Assim, há uma conexão entre as justiças geral e protetiva.

Nota: A comunidade consiste num conjunto de elementos que partilham valores


e a sociedade trata-se de uma criação moderna em que os indivíduos surgem
como cidadãos.

 3.ª linha - Ordo totius ad partes (relações do todo com as partes)


Surgiu no pós Segunda Guerra Mundial, com o aparecimento do Estado
Social/Estado-Providência (século XX - houve uma expansão-generalização dos
benefícios, já que o Estado passou a intervir no círculo social, prestando bens e
serviços aos cidadãos através de estratégias por ele assumidas). Nesta linha, a
sociedade politicamente organizada em Estados faz atuar um programa
estratégico, visando o benefício da sociedade em geral. Assim, esta linha da

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ordem jurídica compreende relações do cidadão com a sociedade organizada em
Estados ou entre os seus órgãos.
A área dogmática corresponde aos diferentes ramos do Direito Público,
como o D. Fiscal, o D. Constitucional, o D. Administrativo, o D. de Previdência
Social, o D. Público da Economia ou o D. do Ambiente. Os valores associados
são a liberdade e a solidariedade, defendendo-se dois tipos de justiça:
 Justiça distributiva: parte da recolha de meios por parte do
Estado, que os redistribui de modo a corrigir problemas e
diminuir desigualdades.
 Justiça corretiva: nesta linha, a justiça corretiva surge para
corrigir os desequilíbrios criados entre gerações ao nível da
proteção ambiental.
Nas 1.ª e 2.ª linhas, as relações jurídicas são
estáticas, uma vez que há um equilíbrio entre as esferas
2.ª - Linha 3.ª - Linha dos direitos e dos deveres – estes são correlativos uns
ascendente descendente
dos outros. Já na 3.ª linha, as relações são dinâmicas, já
que o Estado se dirige aos socii para impor um programa
1.ª - Linha de base final, sendo que estes podem ser afetados positiva,
negativa ou neutralmente.

Nota: Quando o Estado exige aos cidadãos o pagamento de impostos trata-se da


2.ª linha da ordem jurídica. Se o Estado utilizar os impostos para diminuir as
desigualdades económicas, i.e., desenvolver um programa final, trata-se da 3.ª.

Excurso: o contraponto direito público/direito privado e os critérios tradicionais


de distinção
O Direito Público inclui o D. Constitucional, o D. administrativo, o D.
Penal, o D. Fiscal, o D. Processual, o D. Internacional Público, entre outros. Este
institucionaliza:
 A organização e atividade do Estado e de outros entes públicos
menores, como autarquias;
 As relações entre os entes públicos no exercício dos poderes que
lhes competem;
 As relações entre particulares e entes públicos enquanto revestidos
de poder da autoridade (publica potestas).

Já o Direito Privado inclui o Direito geral/comum - Direito Civil (das


obrigações, das coisas/direitos reais, da família e das sucessões), o Direito
Privado Especial (D. Comercial ou do Trabalho) e o Direito Internacional
Privado. Este institucionaliza:

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 As relações entre particulares;
 As relações entre particulares e entes públicos que não surjam
revestidos do publica potestas.
Uma tradução funcional: a função primária ou prescritiva
A função primária do Direito surge como princípio de ação, já que
disponibiliza modelos de comportamento (de “dever ser”) e regras de conduta,
distinguindo o válido do inválido, o lícito do ilícito, o justo do injusto. Assim,
nesta função, o Direito surge como critério de ação, mas também de juízo, de
modo a resolver as controvérsias jurídicas. Ao mesmo tempo, através de um
critério de sanção, o Direito estabelece consequências para as relações sociais
que disciplina.
Mas há outras dimensões da prática que estabelecem modelos de
comportamento, como a moral, a ética, ou até as relações de amizade e de amor.
Assim, há várias notas distintivas do Direito relativamente às restantes dimensões
da prática:

 Intersubjetividade/bilateralidade atributiva:
As relações jurídicas pressupõem sempre uma teia de direitos e deveres,
que são correlatos uns dos outros. Assim, no Direito estabelecem-se sempre
relações bilaterais, sendo que a um direito corresponde sempre um dever; já a
moral pauta pela unilateralidade, já que a um dever moral não corresponde um
direito. Segundo Castanheira Neves, “o princípio da moral está nos deveres” e “o
princípio do Direito está simultaneamente nos direitos e nos deveres”.
Deste modo, segundo Kant, a moralidade garante a liberdade interna (uma
ação é moralmente livre se o sujeito agir por puro dever, ou seja, se,
internamente, considerar que deve cumprir esse dever) e o Direito garante a
liberdade externa (internamente, o sujeito não tem de aderir ao dever, mas deve
cumpri-lo externamente).

 Exigibilidade e executabilidade:
Uma vez que as relações jurídicas são bilaterais, o sujeito que tem o
direito pode exigir o seu cumprimento e o sujeito que não cumpre o dever pode
ver os seus bens/o seu património serem executados. Deste modo, a moral
determina que se faça, mas cabe ao sujeito decidir fazer ou não; já o Direito
ordena e, simultaneamente, confere a outrem o poder de exigir que determinado
ato se cumpra. Trata-se, segundo Miguel Reale, do Direito subjetivo, que
corresponde à faculdade de exigir uma ação de outro sujeito.

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 Comparabilidade e tercialidade:
Nas relações ética e moralmente relevantes, os seres humanos são
infungíveis. No entanto, o Direito não é compatível com essa singularidade, pelo
que, através da mediação do mundo e da relativização das relações, os sujeitos se
tornam fungíveis e, portanto, comparáveis. Assim, os sujeitos surgem nas
relações jurídicas com “máscaras” de direitos e deveres, pelo que da
bilateralidade atributiva resulta que as relações jurídicas são sempre
comparáveis.
É esta comparabilidade das partes de uma controvérsia jurídica que a torna
solucionável, já que permite que um terceiro imparcial e que não é parte na
controvérsia compare os sujeitos de acordo com o sistema jurídico – trata-se da
ideia de tercialidade (tertium comparationis). A tercialidade pode também
corresponder ao conjunto de critérios e fundamentos (contexto-ordem) à luz dos
quais é solucionada a controvérsia.
Por tudo isto, o Direito tem de se tornar efetivo na prática, i.e., ser
princípio-ação, mas também critério de sanção.

 Sancionabilidade/problema da sanção:
Juridicamente, a palavra “sanção” utiliza-se no sentido etimológico do
termo: tornar autêntico ou efetivo. Assim, o Direito torna-se efetivo na prática
através da sanção, que pode ser positiva (quando promete um bem – função
promocional do Direito) ou negativa (quando ameaça um mal – função repressiva
do Direito).
As sanções positivas potenciam a intersubjetividade social, podendo
traduzir-se, por exemplo, em benefícios fiscais, ou na atribuição de um direito, o
que mostra que o Direito pode criar novas realidades.
As sanções negativas constituem restrições e proibições que acrescentam
uma negatividade real à própria negatividade do ilícito.

Excurso I: a estrutura lógica da norma


As normas (no sentido rigoroso e estrito) têm uma estrutura lógica de um
programa hipotético-condicional:

Se… Então…

Hipótese/previsão Estatuição/injunção

Antecipação de uma situação ou Resposta do Direito ao problema


de um problema que podem – consequência jurídica
ocorrer na realidade.

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Nas normas, a dimensão sancionatória encontra-se na estatuição.

O problema da coacção
As sanções negativas podem ser coativas, mas também podem ser não
coativas. Para além disso as sanções positivas também não são coativas. Assim, a
coação é apenas um dos meios-instrumentos que o Direito utiliza para se tornar
efetivo, um “recurso de última raça”, não podendo ser utilizada como nota
distintiva para o caracterizar.
Se a coação distinguisse o Direito, não estaríamos em condições de
afirmar que um Estado totalitário não é um Estado de Direito. Deste modo, o que
caracteriza o Direito é a sancionabilidade e não a coercitividade (coação efetiva)
ou a coercibilidade (coação virtual ou possível).
Surge, assim, o problema das relações direito/poder, sendo que, segundo
Bronze, um poder e tanto mais eficaz quanto menos usar a coação e mais recorrer
a adequada argumentação.

Excurso II: alguns tipos de sanções


 Sentido das sanções reconstitutivas e compensatórias:

Reconstituição in natura/em espécie: não recorre a um


bem novo relativamente ao danificado, tratando-se de
Reconstitutivas uma reparação.
Execução específica: traduz-se no cumprimento de
O sujeito tem de se uma prestação que a norma violada impõe.
tornar indemne
Sanções Negativas (“regresso ao Indemnizações específicas: reposição da situação
passado”) inicial com um bem que, não sendo o que foi
danificado, permite desempenhar a mesma função.

Estabelecem uma situação que, embora diferente, é


Compensatórias valorativamente equivalente à situação que existia
ou ressarcitórias antes da violação da norma jurídica. (por exemplo, uma
indemnização monetária).
As sanções reconstitutivas e compensatórias são exigências da justiça
corretiva.

 Modalidades/sanções de ineficácia: o ato jurídico não produz


efeitos práticos ou os efeitos são diferentes daquilo que ocorreria em condições
normais.

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Inexistência o ato não produz quaisquer efeitos, como se não tivesse
jurídica sido celebrado.
Modalidades
Nulidade/nulidade absoluta (ato nulo): a violação ofende
de ineficácia
um interesse público, pelo que o ato não produz efeitos.
*o ato existe, *Invalidade jurídica Anulabilidade/nulidade relativa (ato anulável): a violação
mas não produz ofende interesses particulares, sendo suscetível de ser
efeitos porque sanada com o decurso do tempo.
sofre de um
vício de forma. Ineficácia em o ato existe, não havendo problemas de validade, mas não
produz parte ou todos os seus efeitos porque viola a lei ou é
sentido estrito
submetido a certas circunstâncias.

 Penas e medidas de segurança (sanções punitivas – aplicam um mal


ao infrator como castigo de uma violação de uma norma jurídica).
Só podem sofrer penas os sujeitos que tenham culpa, i.e., sobre os quais
seja possível formular um juízo de censura ético-jurídico. Para os sujeitos
inimputáveis (sem culpa), como menores ou indivíduos com anomalias psíquicas,
a sanção traduz-se em medidas de segurança, por exemplo o internamento.

 Sanções preventivas
Pretendem evitar que o dano se concretize ou minimizar as consequências
do dano já causado, por exemplo, através de uma providência cautelar.

 A especificidade do ónus
O ónus jurídico é um encargo (e não um dever jurídico). O seu
cumprimento é voluntário, mas se o sujeito não o cumprir advêm consequências
negativas para a sua esfera jurídica. Assim, trata-se da necessidade de um sujeito
adotar um determinado comportamento para obter certas vantagens ou evitar
desvantagens. Por exemplo, o sujeito tem o ónus de contestar em tribunal (não
tem o dever de contestar, mas, se não o fizer, os factos invocados na ação
inicialmente imposta serão dados como provados).

Uma tradução funcional: a função secundária ou organizatória


Trata-se de uma função do Direito que não se dirige diretamente ao nosso
comportamento, mas que tem como papel criar condições institucionais para que
a função primária seja possível, i.e., para que o Direito seja princípio-ação e para
que a ordem jurídica seja organizada e coerente. Assim, trata-se de uma
autoorganização e autodescrição do Direito. Para tal, as regras secundárias
tornam a procura da unidade menos complexa, através da resolução de problemas

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resultantes de antinomias e concorrências entre normas jurídicas, entre princípios
jurídicos e entre normas e princípios.
Alguns desses problemas são:

 A concorrência sincrónica de critérios primários


Ocorre quando existem dois critérios primários sobre a mesma matéria e
vigentes simultaneamente, mas antónimos, confrontando-se as soluções
consagradas por esses critérios. Assim, o julgador terá de optar por um dos
critérios ou procurar conciliá-los. Quando a concorrência é irreconciliável há um
problema de antinomia. Há alguns critérios secundários que se preocupam em
solucionar este problema:
 Lex superior derogat legi inferiori (a lei superior derroga a
lei inferior): este critério é utilizado quando estão em causa normas legais
situadas em patamares hierarquicamente diferentes. Por exemplo, de
acordo com a hierarquia político-constitucional, quando há concorrência
entre uma norma constitucional e uma lei emitida pelo governo prevalece
a norma constitucional.
 Lex specialis derogat legi generali (a lei especial derroga a
lei geral): trata-se do critério da especialidade, sendo que a lei geral é a lei
que estabelece condições que, na sua especialidade, se distinguem das
condições previstas pela lei geral.

Ainda assim, muitos destes problemas de convergência-conflito só


podem ser tratados consoante o caso jurídico concreto, sendo que, por vezes, são
necessárias regras ou esquemas de juízo, i.e., regras secundárias que auxiliam o
julgador na interpretação e utilização dos critérios jurídicos.

 A concorrência no espaço
Ocorre quando se regista a plurilocalização das partes da controvérsia
jurídica, sendo necessária a conexão de diversas ordens jurídicas nacionais. Os
critérios secundários que auxiliam na resolução deste problema são as normas do
Direito Internacional Privado.

 A convergência-concorrência diacrónica dos critérios


Ocorre quando se regista uma controvérsia jurídica e, posteriormente, a
norma legal que a soluciona sofre alterações, surgindo o problema da aplicação
das leis no tempo, i.e., o julgador tem de decidir se trata a controvérsia através da
norma inicial ou da que resultou das alterações. Este problema pode criar
situações de desigualdade. Algumas regras secundárias que procuram resolver
este problema são os artigos 12.º e 13.º do C.C..

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O momento do desenvolvimento constitutivo
As ordens jurídicas não são estáticas, estão sempre em mutação/evolução
de acordo com a dinâmica histórica – trata-se do momento do desenvolvimento
constitutivo, que dá origem à exigência de respostas que não estão pré-
determinadas. Assim, é necessário regular essa transformação, existindo, para tal,
as regras de transformação (“rules of change”), i.e., regras secundárias
associadas a este momento:

 Problema das fontes do Direito – Como é que o Direito se constitui


e manifesta na nossa ordem jurídica?
As regras secundárias relativas a este problema correspondem aos art os
1.ª a 4.ª do C.C..

 Normas legais que enfrentam o problema do começo e da cessação


da vigência das leis

 Vacatio legis: período de tempo que decorre entre os momentos da


publicação e da entrada em vigor da norma legal (art.º 5.º, n.º2 do C.C.).

 Caducidade: pode resultar de uma cláusula da própria lei que determina


que esta só se manterá em vigor até determinada data ou enquanto de mantiverem
certas condições. Pode também resultar do desaparecimento dos pressupostos da
aplicação das leis. Nestes casos, diz-se que a lei caducou ou cessou a sua
vigência por caducidade.

 Revogação: Quando a vigência de uma lei não é temporária, é necessário


um ato exterior a ela para que a vigência cesse – trata-se de um ato de revogação,
no qual se manifesta uma nova vontade do legislador, contrária à anterior (art. 7.º
do C.C.).

 Revogação expressa ou tácita: na revogação expressa há uma nova


lei, a lei revogatória, que declara que revoga a lei anterior; a revogação
tácita resulta da incompatibilidade entre as normas da nova lei e as da lei
anterior, sendo que a nova lei tem valor hierárquico igual ou superior à
anterior.

 Revogação global ou específica: a global revoga totalmente um


ramo do Direito; a específica revoga um diploma ou artigos específicos do
mesmo.

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 Revogação total ou parcial: na total, todas as disposições da lei são
revogadas (ab-rogação); na parcial só algumas disposições da lei anterior
são revogadas pela nova lei (derrogação).

Nota: a caducidade das leis ocorre por características intrínsecas a elas e a


revogação ocorre através de atos exteriores a elas.

O problema das normas caducas e obsoletas


Tratam-se de normas apenas formalmente vigentes, uma vez que estão
em vigor mas efetivamente perderam a sua vigência.

O momento da realização orgânica


Momento em que critérios secundários criam formalmente órgãos,
atribuindo-lhes poderes e competências e hierarquizando as suas relações. Assim,
trata-se do momento em que o Direito organiza o poder político, conferindo-lhe
legitimidade e, simultaneamente, limitando-o.
Ex: Parte III da CRP – “Organização do poder político”.

O momento da determinação-realização procedimental


Corresponde à institucionalização do processo desde a imposição de uma
ação em tribunal até se chegar à audiência final e à sentença, i.e., à criação de
regras de processo, que correspondem ao Direito adjetivo ou processual e que
definem o modus operandi do juiz ao longo da tomada de decisão jurídica.
Assim, o Direito substantivo, que regula as relações jurídicas através de
critérios primários, precisa do Direito adjetivo/processual, que regula a realização
procedimental através de critérios secundários.
Ainda assim, nem todas as regras secundárias são regras de procedimento.
Algumas são regras de juízo ou de julgamento, i.e., regras que orientam o juiz na
interpretação e utilização das normas jurídicas (do Direito substantivo vigente)
para que este possa solucionar as controvérsias juridicamente relevantes.

Excurso: Hart e Teubner e as regras secundárias


Segundo Hart, as regras secundárias podem ter os seguintes planos
analíticos:

 Regras de reconhecimento (rules of recognition): regras que, não


tendo de ser escritas, combatem a incerteza que pode resultar da convocação de
critérios primários. Assim, identificam os critérios de comportamento que devem
ser reconhecidos como jurídicos e, portanto, dotados de autoridade-potestas; e

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hierarquizam e unificam esses critérios. Deste modo, as regras de
reconhecimento introduzem a ideia de sistema jurídico.

 Regras de mudança-transformação (rules of change): regras que


conferem poderes a um indivíduo ou a um conjunto de indivíduos para introduzir
novas regras primárias e eliminar as antigas, definindo também como o devem
fazer. É à luz destas regras que podemos compreender as ideias de ato legislativo,
de revogação e do exercício da autonomia privada (por exemplo, através de um
contrato privado). Deste modo, estas regras permitem que a ordem jurídica não
seja estática, coincidindo, muitas vezes, com o momento do desenvolvimento
constitutivo.

 Regras de decisão-julgamento (rules of adjudication): regras que


institucionalizam a possibilidade de julgar, i.e., de responder autoritariamente ao
problema de saber se uma regra primária foi violada ou não, dando poder a certos
indivíduos para o fazer e determinando o processo a seguir. Assim, se estas
regras não existissem, a ordem jurídica seria ineficaz. Para além disso, estas
abrem portas para inúmeros conceitos, como o de juiz, tribunal, sentença…

Deste modo, para Hart as regras secundárias têm várias vantagens sociais:
certeza e confiabilidade (regras de reconhecimento); flexibilidade na capacidade
de mudança (regras de mudança-transformação); e eficácia (regras de decisão-
julgamento).
Já para Teubner, as regras secundárias permitem passar de um direito
socialmente difuso para um direito parcialmente autónomo, i.e., distinguir o
sistema jurídico das restantes relações entre indivíduos.

Dificuldades e perguntas
Após o estudo das funções primária e secundária do Direito, surge a
seguinte questão:
 Porque é que a analítica até agora ensaiada se mostra insuficiente,
nos planos objetivo e normativo, se quisermos compreender o projeto-
procura que prático-culturalmente distingue o Direito?

Ou seja, será indispensável ver no Direito um determinado sentido que


não o da institucionalização de uma ordem social, o que fará dele inconfundível
com outros direitos? Trata-se, então, de saber se, como afirma Hart, para
identificar uma ordem de Direito, basta encontrar uma ordem social com regras
primárias e secundárias institucionalizadas, capaz de satisfazer exigências de
certeza, flexibilidade e eficácia.

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Se tal for verdade, teremos, por exemplo, de afirmar que as inúmeras
ordens que dão origem ao “pluralismo” e a uma “face oculta” da normatividade
socialmente vigente são ordens jurídicas. Por exemplo, as ordens da máfia e do
gang, a ordem de um Estado totalitário como o Estado nazi, a ordem de
organizações terroristas…. Do mesmo modo, teríamos de afirmar que outras
ordens normativas que concorrem com a ordem jurídica estadual são de Direito,
como as práticas normativas das favelas ou as práticas consuetudinárias das
pequenas comunidades.
Todas elas se tratam de ordens ditas eficazes, com normas primárias e
secundárias, mas não podemos afirmar que se tratam de verdadeiras ordens de
Direito, pois faltam-lhes alguns dos elementos constitutivos da mesma.

Assim, o Direito pauta por uma insuficiência objetiva, faltando um critério


de demarcação que o distinga das restantes ordens sociais. Castanheira Neves
propõe que esse critério seja o da estadualidade, i.e., propõe que seja considerada
ordem jurídica aquela que o Estado reconhecer como tal. No entanto, esta
resposta parece desadequada, uma vez que a sociedade politicamente organizada
em Estado é uma realidade do contexto moderno, sendo que o Direito é muito
mais antigo. Para além disso, nem todo o Direito é estadual, i.e., há ramos do
Direito que não são tutelados ou reconhecidos pelo Estado, como o Direito
Consuetudinário ou o Direito Eclesiástico. Acresce que, ao defendermos o
critério da estadualidade, estaríamos condenados a reconhecer no Estado
totalitário um Estado de Direito. Deste modo, o critério da estadualidade não é
suficiente para distinguir a ordem jurídica, sendo o Estado de Direto um Estado
regulado e legitimado, mas também limitado pela ordem jurídica.
Para além disso, reconhece-se ao Direito uma insuficiência normativa que
reduza a ordem jurídica aos traços identificadores de uma ordem objectivada. Se
não reconhecesse-mos esta insuficiência estaríamos condenados a considerar que
toda a ordem estruturalmente ordenada é de Direito, mesmo que fosse ética e
axiologicamente insustentável. Assim, esta insuficiência normativa leva-nos à
recusa da solução de um pluralismo acrítico.
Uma vez que o Direito tem um caráter prático-cultural, só cumpre a sua
função de regular as relações sociais se os seus critérios estiverem associados a
intenções e sentidos que garantam a dimensão prático-comunitária que sustenta a
sua vigência. Isto porque o Direito só é eficaz se a sua vigência invocar uma
validade comunitária. Por exemplo, um Estado que negue os Direitos do Homem
a certos grupos de indivíduos não é um verdadeiro Estado de Direito, uma vez
que as suas leis carecem de validade (os indivíduos não lhes devem obediência).
Acresce que a ordem jurídica está continuamente em evolução, em
consequência da constante prática-procura de criar e recriar sentidos

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 14 de 15


comunitários, consubstanciada num processo de demarcação humano/inumano e
na pressuposição de experimentação de uma validade. Esta preocupação surgiu,
desde logo, na civitas romana, onde surgiu o primeiro “humanismo” conhecido,
que faz parte da nossa herança civilizacional e que é correlato da resposta a
controvérsias jurídicas, já que a ação dos jurisconsultos é, desde a civitas romana,
sustentada por uma legitimidade prático-cultural e não pela mobilização de
efetivo poder. Assim, o Direito cumpre a dinâmica histórica, estando associado
ao passado, mas também ao futuro através da projeção de possíveis situações
(sem, no entanto, pôr em causa a possibilidade de reconhecermos a continuidade
do projeto). São a criação de sentidos comunitários e a intenção à validade que
permitem a fungibilidade dos sujeitos no Direito, i.e., a comparação dos sujeitos,
mobilizando-se o mesmo conjunto de critérios e fundamentos.
Concluindo, a instituição de uma ordem jurídica implica uma intenção à
validade que a justifique. Assim, o Direito não se trata apenas de um instrumento
de institucionalização das relações sociais, tendo uma dimensão axiológico-
normativa, i.e., as normas jurídicas surgem associadas a um compromisso com
certas intenções axiológicas que permitem a sua validade.

Margarida Santos FDUC – Doutor Aroso Linhares Página 15 de 15


Introdução ao Direito I – 2.ª Frequência

O Grande Arco Pré-Moderno


O Direito consubstancia-se na prática-procura de um homo-humanus, i.e.,
de uma certa humanidade, pelo que a compreensão da ordem jurídica e do
Direito pressupõe o conhecimento do passado e da evolução dos paradigmas.
O arco pré-moderno refere-se ao período que antecede os séculos XV e
XVI, compreendendo, então, os ciclos greco-romano e medieval. O homem-
sujeito pré-moderno encontrava-se inserido numa comunidade de valores
(communitas), que eram imutáveis, a-históricos e indisponíveis, i.e., não eram
criações do homem-sujeito, mas apenas lhe eram dados. Assim, o homo
institutionalis inseria-se numa ordem já institucionalizada, sendo os valores
entes, já que se tratavam realidades já existentes num plano transcendente.

A Pólis Grega
O Direito autonomizou-se na pólis grega enquanto sentido e especulação
filosófica, iniciando-se aí uma discussão acerca da ideia de justiça enquanto
harmonia do cosmos que se manteve ao longo do projeto do Direito até hoje,
surgindo o Direito natural partindo do holismo1 metafísico-ético-político grego.
Uma vez que os valores provinham do Direito natural, tratavam-se de
pressupostos, seres definitivos, perfeitos e indisponíveis. Deste modo, o homem
era como um zoon politikon (“animal político”) que participava numa
comunidade indisponível.

A Civitas Romana
Foi na civitas romana que o Direito se autonomizou enquanto dimensão da
prática, já que os romanos tomaram consciência da exigência de respostas
específicas para problemas concretos. Deste modo, tornou-se relevante o papel
da iurisprudentia, sendo que os jurisconsultos consideravam que, sustentados
pela auctoritas e pela articulação de virtudes morais e intelectuais, não
constituíam o Direito, que se encontrava na natureza das coisas, mas apenas o
revelavam, descobrindo a ordem materialmente pressuposta na experiência
ontológica de cada caso, sendo que o pensamento jurídico se centrava na
comparação de casos análogos. Assim, a resposta do Direito às controvérsias
jurídicas respeitava as exigências de sentido presentes na ordem natural (Direito
natural), que eram indisponíveis.

1
Segundo o holismo, as propriedades de um sistema não podem ser apenas explicadas pela soma dos seus
componentes.

Margarida Santos IAD I – Doutor Aroso Linhares Página 1 de 28


A Respublica Christiana Medieval
Na Época Medieval, mantiveram-se a ideias de uma ordem transcendente
que justifica a conduta do homem, assim como do Direito enquanto dimensão da
prática de controvérsias juridicamente relevantes, no entanto, alterou-se a
fundamentação dessa ordem, que deixou de ser cosmológica (uma ordem do Ser),
para passar a ser fruto da vontade e da razão divinas. Deste modo, a
iurisprudentia passou a consubstanciar-se na hermenêutica dos textos de
autoridade, como o Corpus Iuris Civilis e o Corpus Iuris Canocini, aos quais se
recorria, assim, para a resolução dos casos práticos. Destarte, a Scientia Juris
identificava-se com a interpretatio, orientada pelo método escolástico. O
pensamento escolástico partia de uma dialética problemática: criava-se um
problema e previam-se hipóteses de resposta ao mesmo com base em textos a
favor e contra de modo a chegar-se a uma conclusão. Destacaram-se a Escola dos
Glosadores, que introduziu o pensamento hermenêutico filológico-gramatical, e a
Escola dos Comentadores, que introduziu um pensamento mais construtivista e
dialético.
Ainda assim, estes textos eram vistos como manifestações dos valores da
filosofia prática medieval, resultantes da ordem transcendente supra mencionada.

Deste modo, o Direito natural conjugou, ao longo do grande arco pré-


moderno, a intenção filosófica, que compreendia o Direito de modo absoluto,
através da explicitação dos seus fundamentos ontológicos; e a intenção prática ou
normativa tinha o seu fundamento na intenção filosófica, mas originava, devido a
essa fundamentação, uma normatividade válida por si mesma, que regulava e era
critério de validade da ordem em que se inseria. Assim, no Direito, o nomos da
prática era previamente definido pela filosofia através de uma fundamentação
teorética, atingida através do conhecimento do ser ou de uma certa “natureza”.
Concluindo, para o jusnaturalismo pré-moderno, o Direito natural era absoluto,
cabendo ao Direito positivo, fundamentado por este outro e inserido num
contexto histórico-social e político, apenas uma função de variável determinação
e concretização.
Na época pré-moderna, o Direito e o pensamento jurídico identificavam-
se, adquirindo, graças à atividade jurisprudencial, uma dimensão material e
manifestando-se à medida que se solucionavam as controvérsias, ou seja, o
direito era um conjunto de práticas.

Margarida Santos IAD I – Doutor Aroso Linhares Página 2 de 28


Fatores do Pensamento Moderno-Iluminista Determinantes Para o Legalismo e o
Normativismo Positivistas
Fator antropológico
Os progressos científicos e a exaltação da liberdade enquanto meio do
exercício das vontades levaram ao surgimento uma nova conceção do homem-
sujeito, sendo que o homo institutionalis deu lugar ao homo-individualis, que se
colocou no centro de tudo e passou a compreender a prática e a aceder aos
valores através da sua razão. Assim, passou-se de um plano de transcendência
para um plano em que todas as dimensões da prática estavam na imanência do
homem. Tal levaria depois à passagem da communitas, ordem de valores
imutáveis, universais e indisponíveis, logo transcendentes ao homem, para a
societas, um artefacto construído prático-culturalmente pelo homem pela qual ele
é responsável, tratando-se, por isso, de uma realidade disponível.
Antes desta construção, o homem encontrava-se desvinculado e é descrito
tendo em conta o seu estado-natureza. Não se trata de uma reconstrução
histórica, mas de uma ficção construtiva que permite identificar as características
do homo institutionalis e, deste modo, perceber a criação da sociedade. O homem
do estado-natureza compreendia as dimensões dos interesses, da liberdade-
voluntas e da razão-ratio, sendo que cada uma delas desempenhava um papel
distinto.
 Dimensão dos interesses: o homem tinha interesses emancipados,
i.e., necessidades subjetivas, que levaram à criação da societas através da
concertação das vontades. Segundo numerosos autores, a passagem do estado-
natureza para a sociedade politicamente organizada em Estado só foi possível
através de um pacto ou contrato social que criou vínculos entre os sujeitos,
conjugando as suas vontades livres num plano de igualdade. No estado-natureza,
existia um pacto homolgador, i.e., meramente interpretador de algo que já existia,
passando depois a existir um pacto constitutivo, ou seja, do qual resultou uma
nova realidade, a societas. Introduziu-se, então, uma forte dinâmica de
transformação, já que, quando não se encontra contente com a sociedade em que
se insere, o homem-sujeito pode transformá-la. Deste modo, as necessidades
subjetivas são um núcleo de construção e de reinvenção da societas.
Hobbes2, que viveu numa época muito conturbada de Inglaterra, tinha uma
visão pessimista do Homem, considerando que este é egoísta e tem o direito
subjetivo de “todos sobre todos” (ius omnium in omnia), de modo a apropriar-se
de tudo o que satisfaça as suas necessidades, criando-se, assim, uma “guerra de
todos contra todos”, já que, sendo os recursos escassos, os outros constituíam um
obstáculo ou um meio para a satisfação das necessidades do homem-sujeito.
Assim, seria necessário que os sujeitos abdicassem da sua liberdade originária, de

2
Ver páginas 6 e 7.

Margarida Santos IAD I – Doutor Aroso Linhares Página 3 de 28


modo a criarem a sociedade politicamente organizada em Estado, o Estado
Leviathan, no qual as tendências naturais de egoísmo não pusessem em causa a
ordem e a segurança. A ideia de Hobbes prosseguiu depois com o utilitarismo de
Bentham e o funcionalismo pragmático.
A escassez dos recursos, que não permitia a satisfação de todas as
necessidades existentes, levou ainda a uma alteração do sistema económico.

 Dimensão da liberdade-voluntas: surge associada à liberdade que,


no contexto pré-moderno, estava relacionada com o culto dos valores
comunitários, passando, na realidade moderna, a estar associada ao exercício da
vontade sem constrangimentos ou limites.

 Dimensão da razão-ratio: trata-se de uma razão axiomático-


dedutiva, inerente ao homem-sujeito e sustenta pela sua autonomia.

A Autonomia da Voluntas e da Ratio


Segundo numerosos autores, é a partir da concertação da vontade e da
razão que o homem constrói vínculos, sendo elas os fundamentos últimos das
suas ações. Deste modo, o Homem da liberdade é o Homem da razão, o que,
mais tarde, se veio a traduzir numa visão individualista dos problemas e das
relações sociais e políticas, sendo que a liberdade moderno-iluminista se
expressava político-socialmente através do individualismo.

Fator Religioso - A Secularização e o Secularismo


No estado-natureza, considerava-se que os valores tinham origem divina,
o que se refletia no Direito. Ora, a partir da época moderno-iluminista, ocorreu a
secularização, i.e., o homem-sujeito passou a ver-se como responsável direto
pelo que ocorresse no mundo e, portanto, pela construção da societas, o que,
ainda assim, não tornou necessária exclusão da dimensão religiosa. Deste modo,
segundo Hugo Grócio, a razão humana passou a ser autónoma, podendo a
validade do Direito impor-se autonomamente relativamente à teologia e à
antropologia.

A Emancipação dos Interesses e do Sistema Económico e a Condição Social em


Que Esta se Traduz
Associada à afirmação dos interesses individuais está a autonomização do
sistema económico. Durante o grande arco pré-moderno, os problemas
económicos não mereciam um tratamento específico, pensando-se na afetação de
recursos como algo proveniente do lar (é por isso que o termo “economia”
provém de oikos, que significa “lar”). Só na modernidade surgiu, então, a

Margarida Santos IAD I – Doutor Aroso Linhares Página 4 de 28


economia como ciência autónoma, nascendo o capitalismo e emancipando-se o
discurso económico instrumental-estratégico numa lógica de eficiência.
Assim, o Homem, agora homo aeconomicus, passou a agir de acordo com
referentes económicos e não apenas guiando-se por referentes como o “bem” e o
“mal”.

Uma Nova Conceção da Razão


No contexto moderno-iluminista, surgiu uma nova conceção da razão que
acompanhou o desenvolvimento da ciência. Esta racionalidade espelhava a
valorização da autonomia do Homem, considerando-se que todas as coisas e
acontecimentos podiam ser explicados objetivamente através da análise das leis
naturais, reconstruindo-se racionalmente os factos empíricos e reconhecendo-se-
lhes uma ordem de causalidade. Surgiu, assim, uma razão com uma identidade
teorético-epistémica. Assim, a razão da época moderno-iluminista resultava de
pressuposições axiomáticas; de uma construção hipotético-explicativa, i.e., da
indução através de factos empíricos; ou de raciocínios lógico-dedutivos.
Estas novas conceções de ciência e de razão conduziram, então, ao
declínio da racionalidade prático-prudencial e, portanto, de domínios como a
retórica ou a dialética. Tal teve repercussões no Direito, passando o Direito
natural a ser pensado tendo em conta a razão humana, i.e., o jusnaturalismo deu
lugar ao jusracionalismo.

O jusracionalismo
O direito natural moderno converteu-se num jusracionalismo, que
começou nos finais do século XVI e inícios do séxulo XVII e foi até ao século
XIX. Este contrapunha o direito ideal enquanto sistema normativo-crítico ao
direito real ou histórico-social e político, o direito positivo. Assim, passou-se de
um sistema jurídico que compreendia vários níveis de normatividade, a natural
(fundamentante) e a positiva (concretizadora), para dois sistemas distintos
constitutivamente.
Os sistemas jurídicos passaram, então, a ser racionalmente construídos,
considerando-se que existia uma relação entre todos os direitos e deveres,
podendo, através de uma cadeia ininterrupta de raciocínios, deduzir-se uns dos
outros. Tal levou a uma conceção normativista do Direito3, pelo que a
codificação assumiu grande relevância no contexto moderno-iluminista,
procurando-se ainda um poder político que realizasse o jusracionalismo.
Castanheira Neves afirma que o jusracionalismo não se tratava de
verdadeiro Direito, já que, para o ser, não basta a essência racional e a

3
Ver página 7.

Margarida Santos IAD I – Doutor Aroso Linhares Página 5 de 28


intencionalidade normativa, mas é também necessária a dimensão prática, i.e.,
que o Direito seja histórico-socialmente vinculante.
Uma Classificação Possível
Surgem várias classificações possíveis do jusracionalismo:
 O jusracionalismo existencial ou empírico de Hobbes4: segundo
Hobbes, no estado-natureza, existem leis naturais e o direito de todos sobre todas
as coisas, estabelecendo-se desde logo que os pactos são para serem mantidos
(regra pacta sunt servanda). A “guerra de todos contra todos” só poderia superar-
se através da criação do Estado Leviathan. Acresce que Hobbes considerava que
a lei tem um sentido pragmático-instrumental ou até mesmo estratégico.

 O jusracionalismo comum: baseava-se no raciocínio apriorístico e


estava de acordo com as exigências políticas e jurídicas do contexto moderno-
iluminista. Este incluiu dois ciclos:

 Ciclo do direito racionalmente natural, segundo o qual existe


o direito natural, criado pela razão, e o direito positivo ou voluntário, criado pela
vontade humana. O segundo deve submeter-se às exigências de conteúdo do
primeiro, já que este, sendo intrinsecamente racional, é indisponível. Este ciclo
foi defendido por Grócio, Pufendorf, Thomasius e Wolf.

 Ciclo do direito racional ou do direito formalmente racional


que deu origem a uma nova conceção da lei que se impôs no positivismo do
século XIX. Neste ciclo, o Direito racional passou a ser exclusivamente formal,
i.e., com exigências meramente formais, que visam que as leis sejam universais,
ou seja, que enquadrem formalmente todos os indivíduos. Este ciclo foi teorizado
por Rousseau, que defendia leis gerais e abstratas (“atos de todo o povo para todo
o povo”), e por Kant, que acrescentou a estas características a formalidade em
sentido estrito.

O ponto de partida: a “natureza do homem”


Compreendendo-a do ponto de vista ético-empírico, é possível encontrar
na «natureza do homem», i.e., no indivíduo desvinculado anterior à sua
convivência social e política, um axioma, ou seja, uma característica decisiva que
o identifica e que, por isso, é inalterável. Numerosos autores procuraram
descrever o estado-natureza com base nesse axioma.
 Grócio: defendeu um modelo antropológico positivo, construindo-
se a societas através de um contrato que permitiria ultrapassar as fragilidades do
homo individualis.

4
Ver páginas 3 e 7.

Margarida Santos IAD I – Doutor Aroso Linhares Página 6 de 28


 Hobbes5: alegava que “o homem é o lobo do próprio homem”, i.e.,
é o maior inimigo de si próprio devido ao seu egoísmo, defendendo um Estado
totalitário.
 Locke: no seu modelo antropológico, o homem era naturalmente
social e tinha direitos naturais e indisponíveis, p.e. a igualdade, pelo que, na
passagem para a societas, esses direitos subjetivos teriam de estar
institucionalizados.
 Pufendorf: segundo ele, o homem no estado-natureza era débil,
vulnerável e desamparado, no entanto possuía já a faculdade da sociabilidade.
 Thomasius: para ele, o axioma da natureza humana é a apetência de
felicidade.
 Rousseau: o homem no estado-natureza era um “bom selvagem”,
sendo bondoso ainda que associal.
 Kant: ao contrário dos restantes, recusa qualquer caracterização
empírica do homem, negando uma antropologia fenoménica 6. Assim, propõe que
o estado-natureza é um estado de “liberdade externa desprovida de leis” e é
provisório, sendo a passagem do mesmo para a societas um dever ético, o que
mostra o racionalismo do pensamento kantiano. Afirma ainda que no estado-
natureza existiam já relações de direito privado que, ainda assim, só se
converteriam plenamente em juridicidade com a união da vontade de todos
através de um pacto social, que permitiria passar para o estado jurídico. Este
dever de sair do estado-natureza é, então, o dever de entrar num estado jurídico,
de modo a criar-se o direito público (conjunto de leis universalmente
promulgadas) para que o homem se sinta seguro contra a violência.

A Conceção Normativista
Na época moderno-iluminista, surgiu uma conceção normativista do
Direito7, i.e., este passou a ser compreendido como um sistema autónomo de
normas cujo conteúdo era racionalmente determinado em abstrato e só depois
aplicado na prática. Assim, o Direito existia nas normas, independentemente da
sua realização concreta. Assim, o Direito tem de ser positivo, através da
legislação sistemática nos códigos.
Os códigos jusracionalistas não se limitaram a especificar, ordenar,
melhorar ou reformar o direito já vigente, mas constituíram um direito novo que
determinou a «planificação global da sociedade». Destacam-se o Código
Prussiano e o Código civil Austríaco no despotismo iluminado, assim como os
códigos napoleónicos pós-revolucionários.

5
Ver páginas 3 e 6.
6
Fenomenologia é o estudo da essência dos fenómenos.
7
Ver página 5.

Margarida Santos IAD I – Doutor Aroso Linhares Página 7 de 28


A subjetividade auto-constituinte da modernidade a assumir o problema
teleológico-político da invenção da societas
Na modernidade, muitos autores teorizaram a criação de uma societas
partindo de um pacto ou contrato social do qual todos faziam parte. Esta ideia de
pacto não surgiu apenas na modernidade, no entanto, até aí, tratou-se sempre de
um pacto homolgador de uma relação previamente existente, como ocorreu, p.e.,
com a Magna Carta. Neste caso, trata-se de um pacto constitutivo de uma nova
realidade, a societas.
Ora, sendo a liberdade-voluntas uma dimensão originária do homem, teria
de convertida, com a criação dessa sociedade, em direitos que se diziam
“naturais” para que fossem indisponíveis ao poder político.
Deste modo, o contrato social assentava num acordo racional de vontades,
garantindo a liberdade e igualdade dos contraentes e criando um novo poder
legitimado por essa liberdade, de modo a gerir os interesses e resolver o
problema da convivência social. Ainda assim, Hobbes discordou dos restantes
pensadores, defendendo que esse problema só poderia ser resolvido se, através
desse pacto social, o homem abdicasse da sua liberdade originária, instituindo-se
um Estado totalitário, o Estado Leviathan.
Para que o Estado pudesse institucionalizar a sociedade, sucederam-se
dois pactos: a associação foi constituída pelo pactum unionis (pacto de união) e
pactum subjectionis (pacto de submissão) constituiu o Estado. Mais uma vez,
Hobbes é a exceção relativamente aos restantes autores, dissolvendo o primeiro
pacto no segundo, através do qual a sociedade abandona os seus direitos naturais
a favor do soberano. Este status civilis social, político ou jurídico surge como
adventício8.
Este novo poder que se instituiria seria, numa primeira fase, associada ao
direito racionalmente natural e a Thomasius e Wolf, o poder do despotismo
esclarecido. Posteriormente, especialmente devido aos contributos de Locke e de
Rousseau, seria o poder do Estado demo-liberal (Estado que conjugava as
ideologias democrática e liberal), o que exigiria uma rutura revolucionária, já que
se trata de romper com as ordens anteriormente pressupostas, de modo a
satisfazer os interesses e objetivos do homem moderno.

Como é Que o Homem Foi Conduzido a Uma Nova Conceção do Direito e da


Lei?
Para Rousseau, o homem no estado-natureza é intrinsecamente bom
embora associal, mas, com o surgimento da propriedade privada, é corrompido.
Assim, o grande desafio para o Homem sair do estado-natureza é encontrar uma
forma de associação que proteja os associados e os seus bens de qualquer

8
Adventício: que vem depois, que não é natural.

Margarida Santos IAD I – Doutor Aroso Linhares Página 8 de 28


prepotência ou exercício de força e, simultaneamente, assegure que todos
permaneçam tão livres e iguais como eram antes.
Ora, tal consegue-se através do Direito que, nesta altura, se identificava
plenamente com a lei que, para permitir que o cada um se mantenha tão livre
como era antes, tinha de obedecer a determinadas regras. Surgiu, então, uma
nova conceção de lei como expressão de um poder legislativo, já que este,
enquanto representante da vontade geral infra referida, era o único que a podia
criar. As leis eram, então, estritamente racionais, já que:
 Assimilavam a estrutura racional de uma norma, i.e., tinham a
estrutura de um programa hipotético-condicional, sendo que na sua
hipótese/previsão a lei previa em abstrato um tipo de problema ou situação e na
estatuição ou injunção determinava a consequência desse problema. Assim,
garantia-se a igualdade, já que os casos semelhantes mereciam um tratamento
igual.
 Tinham características que permitiam a sua universalidade racional:
 Generalidade, já que as leis eram “atos de todo o povo para (e
sobre) todo o povo” (Rousseau), passando o Homem a estar vinculado apenas a
critérios jurídicos gerais, sendo que os criadores das leis são também seus
destinatários. Tal garante a liberdade e a igualdade no plano dos sujeitos.
Anteriormente, havia uma pluralidade de ordens normativas de acordo com a
diferenciação social, pelo que não se verificava a igualdade.

 Abstração, uma vez que, como foi supra referido, as normas


tratavam matéria comum, prevendo tipos de casos (ou seja, não identificando
casos concretos), para que estes fossem tratados lógico-dedutivamente.

 Formalidade em sentido estrito: característica acrescentada às


restantes por Kant, que defendia que a lei geral e abstrata devia limitar-se a
enquadrar a ação dos sujeitos, sem intervir no plano dos fins, ou seja, o Direito
devia ser formal, estabelecendo as condições da liberdade externa. Ora, só há
liberdade externa quando é possível a compossibilidade dos arbítrios dos sujeitos.
Deste modo, uma das versões do imperativo categórico de Kant é a de que
devemos agir de tal modo que o exercício do nosso arbítrio seja compatível com
o exercício do arbítrio dos outros. Concluindo, o Direito deve abster-se de
intervir no conteúdo ou matéria das relações entre os arbítrios, intervindo apenas
na forma dessas relações de modo a garantir a liberdade externa.

Segundo Rousseau, só esta universalidade racional permite que o Direito-


lei seja reflexo da vontade geral. A vontade individual exerce-se em concreto, é

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empírica e é determinada pelos interesses privados de cada sujeito. Ora, a soma
das vontades individuais resulta na vontade de todos, uma agregação que se
mantém contingente. Deste modo, é necessária a racionalização da vontade de
todos para que se obtenha a vontade geral, posteriormente expressa nas leis.
Assim, a lei era considerada como a mais sublime das instituições, apenas
criada pelo poder legislativo, e o Direito-lei passou a estar associado apenas a
características formais, sendo que, para estarmos perante uma lei no seu sentido
jurídico temos, segundo Rousseau e Kant, de estar perante uma prescrição geral,
abstrata, formal em sentido estrito e com a estrutura de um programa hipotético-
condicional. Acresce que a racionalidade do Direito-lei resulta ainda da
imanência do sistema de normas, que se organiza de modo horizontal e não
através de uma estrutura hierarquizante.
Rousseau e Kant viveram durante o Antigo Regime, pelo que os seus
pensamentos só foram possíveis na realidade com a Revolução Francesa e a
criação do Estado demo-liberal. Ainda assim, apesar do êxito histórico imediato
das suas ideias, estas acabaram por ser empobrecidas pelo liberalismo,
especialmente o personalismo ético kantiano através de um Reino dos fins, de
acordo com o qual devemos agir de tal modo que usemos a humanidade como
um fim e nunca apenas como um meio.

Condições Epistemológicas Decisivas Para a Consumação do Positivismo


Jurídico do Século XIX
No fim da época moderno-iluminista, começaram a surgir determinadas
condições epistemológicas decisivas para a consumação do positivismo jurídico
do século XIX.

A Escola Histórica
Primeiramente, surgiu a Escola Histórica do Direito, na qual se destacou
Savigny. Esta surgiu de modo a combater o positivismo exegético que defendia o
legalismo e, portanto, a codificação, mas acabou por propiciar a emergência do
positivismo jurídico.
Inicialmente, a EH defendia que o Direito não resultava da racionalização
da vontade geral, mas sim da manifestação do “espírito do povo” ao longo dos
tempos, que o legislador deveria interpretar. Ora, sendo a história cultural
diferente de povo para povo, o Direito não poderia resultar meramente da
racionalidade universal. Assim, Savigny defendia que o Direito resultava da
conjugação do elemento político, que vincula o Direito aos costumes de cada
comunidade-povo, com o elemento técnico, segundo o qual o Direito vai
evoluindo através do exercício da “ciência do Direito”.

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No entanto, tal significava que o Direito era um objeto de conhecimento
pré-suposto da História de cada povo, ou seja, já pré-feito, sendo que o jurista
apenas o apreendia através da racionalidade. Deste modo, a EH degenerou no
conceitualismo sistemático, passando a entender o Direito como uma realidade
objetiva que a história oferecia através da conversão de dados históricos
presentes nos textos (essencialmente de DR) num sistema de instituições
jurídicas racionalmente pensadas, abstraindo-se da contingência histórica e do
elemento teleológico9.
Concluindo, a EH acabou por desrespeitar o seu programa, preferindo o a-
histórico ao histórico e degenerando a ideia de sistema com uma dinâmica
evolutiva e um compromisso prático em algo puramente conceitual e abstrato e,
por isso, racional.

O Cientismo Positivista
O cientismo reduz qualquer validade cultural ao esquema das disciplinas
empírico-analíticas, considerando que a ciência é o domínio da experiência de
um objeto. Assim, considerava-se que a única objetividade é a das ciências
empíricas, ou seja, a objetividade teorética. Ora, o Direito foi influenciado por
esta valorização da ciência, tornando-se num objeto do pensamento jurídico.
Assim, passou a considerar-se que o Direito era criado pelo poder legislativo e ao
pensamento jurídico cabia apenas conhecê-lo, de modo a auxiliar o juiz na
interpretação e aplicação das leis. Surgiu, então, um dualismo metodológico,
distinguindo-se a técnica (interpretação e aplicação da lei) da teoria da ciência do
direito, o que levou à afirmação tanto da intenção prática do Direito como da
intenção teorética do discurso decisório.
Deste modo, o cientismo positivista acabou por hipertrofiar os discursos e
os tipos de racionalidade (pressuposição axiomática, método indutivo e
raciocínios lógico-dedutivos).

O Positivismo Legalista Reconhecido nas Suas Coordenadas Caracterizadoras


No século XIX, o positivismo normativista-legalista emergiu enquanto
paradigma, que só começaria a ser paulatinamente ultrapassado no início do
século XX. Este rompeu com a ideia de que o Direito radica numa filosofia
prática e reduz a juridicidade à legalidade. Este paradigma caracteriza-se pelas
coordenadas político-constitucional, estritamente jurídica, axiológico-jurídica,
funcional e epistemológico-metodológica.

9
Teleologia: estudo dos fins.

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Coordenada Político-Constitucional
Esta coordenada relaciona-se com a criação do Estado demo-liberal, que
se afirmou como Estado de Direito de legalidade formal. Este era um Estado de
representação parlamentar, sendo que o parlamento representava os cidadãos,
participantes da vontade geral e que se afirmavam simultaneamente como
soberanos e súbditos. Acresce que a criação do Direito era atribuída apenas ao
poder legislativo, supremo e soberano. Ao Estado demo-liberal estão associadas
as exigências de sentido dos princípios da divisão-separação dos poderes, da
legalidade e da independência do poder judicial.

 Princípio da divisão-separação dos poderes: inicialmente, este


princípio foi autonomizado num sentido programaticamente negativo, i.e.,
estritamente político, visão atribuída a Montesquieu e parcialmente a Locke,
inspirados pela experiência de Inglaterra, onde a democracia surgiu
paulatinamente, sem roturas ou planificações. Considerava-se que se os poderes
estivessem concentrados numa única pessoa não haveria liberdade política,
correndo-se o risco do seu exercício de modo totalizante, pelo que os poderes
deveriam estar repartidos. Assim, o poder devia ser moderado através de um
controlo recíproco entre os 3 poderes – trata-se do sistema de “pesos e contra-
pesos” ou “cheks and balances”. Para tal, o poder legislativo devia estar dividido
em duas câmaras, uma com os representantes do povo (Câmara dos Comuns) e
outra com os representantes da nobreza (Câmara dos Lordes), o que mostra que,
para Montesquieu, o nascimento pode interferir na divisão de poderes. O poder
executivo cabia ao monarca e o poder judicial devia ser neutro, não interferindo
no sistema de “cheks and balaces”. Os juízes podiam ser recrutados do próprio
povo, já que eram apenas a “boca que pronuncia as palavras da lei”, aplicando-a
nos casos concretos como seres inanimados.
Mais tarde, com Rousseau e Kant, este princípio passou a ser um corolário
institucional da conceção moderno-iluminista de lei, perdendo o seu sentido
pragmático e negativo. Segundo os dois autores, o poder legislativo deve ser a
expressão da vontade geral, tornando-se o supreme power o “poder principal”,
pelo que o poder executivo passou a atuar dentro dos limites impostos pelo poder
legislativo. Já o poder judicial trazia a voz da vontade geral para o concreto
através da mobilização normas gerais e abstratas para construir silogismos
subsuntivos, pelo que o juiz só devia obediência a estas normas e não a
comandos individualizados.
Deste modo, a organização do poder assemelhava-se a um silogismo
subsuntivo: o poder legislativo, que criava a lei, era a premissa maior; o poder
executivo, que aplicava a lei, era a premissa menor (subsunção à lei); e o poder
judicial, que decidia o que é de Direito em cada caso, era a conclusão.

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Concluindo, passou-se do normativismo moderno-iluminista, no qual a lei
apenas enquadrava as ações; para o positivismo legalista, no qual a lei, criada
pelo poder legislativo, era critério imediato da ação concreta.

 Princípio da legalidade: a ele está associada a exigência da


supremacia ou prevalência da lei, segundo a qual a lei fundamenta os restantes
poderes, que devem agir de acordo com o que esta prescreve: o poder judicial é a
pronúncia das palavras da lei e o poder executivo atua dentro dos limites por ela
impostos. Assim, a legalidade e a juridicidade (entre lei e Direito) identificam-se,
sendo que o Direito é referente para a construção do Estado – um Estado por ele
regulado e legitimado. A este princípio está também associada a exigência de
reserva da lei, de acordo com a qual a lei é um imperativo-norma que constitui a
juridicidade, i.e., à lei, cuja criação é reservada ao poder legislativo, estão
confiadas todas as matérias relevantes do ponto de vista jurídico.
Este princípio confere legitimidade à atuação dos diferentes poderes,
sendo que o poder legislativo é legítimo porque é exercido pelos representantes
da vontade geral através de critérios gerais e abstratos. Os restantes são legítimos
porque a sua atuação está submetida à lei. Para além disso, o princípio da
legalidade traduz o duplo postulado do legalismo, considerando-se que a lei e o
Direito se identificavam plenamente, ou seja, que não havia Direito fora da lei.
Destarte, este princípio concilia o normativismo e o legalismo, que não
são necessariamente coincidentes. O normativismo traduz-se numa conceção do
Direito enquanto sistema de normas racionalmente auto-subsistentes, i.e., o
Direito é pré-determinado em enunciados com a estrutura de um programa
hipotético-condicional, gerais e abstratos (universalidade racional). Já o
legalismo assume que o único modo (ou pelo menos o modo dominante) possível
e válido de constituição e manifestação do Direito é através da lei. Assim, o
positivismo jurídico do século XIX pressupõe um legalismo necessariamente
normativista e, do mesmo modo, um normativismo apenas alimentado pelo
legalismo.

 Princípio da independência do poder judicial: segundo o qual o juiz


deve ser apenas a boca que pronuncia as palavras da lei, que são a expressão da
vontade geral, pelo que este só à lei deve obediência (e não a comandos
individualizados). Cada caso concreto deve ser resolvido tendo em conta apenas
os factos empíricos desarticulados, i.e., os factos discretos, e não contingências
específicas, de modo a garantir a universalidade racional. Ora, como o Direito
existe nas normas e estas são gerais e abstratas, a lei tem de ser interpretada antes
de ser aplicada aos casos concretos. Deste modo, o Direito é projetado no plano

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concreto através da lógica formal, pelo que cada caso é resolvido através de um
silogismo subsuntivo:

Premissa maior: norma legal com a estrutura de um programa hipotético-


condicional, geral e abstrata já interpretada – é daí que parte o juiz.
Premissa menor: para a obter, o juiz averigua se os factos da controvérsia
estão presentes nas características da situação que a hipótese da norma prevê em
abstrato. Se a resposta for negativa, terá de procurar outra norma que constitua a
premissa maior; se a resposta for positiva, pode subsumir os factos na hipótese da
norma.
Conclusão: estatuição da norma, que traduz a resposta em abstrato do
Direito para aquele caso tipificado.

Este modus operandi dos juízes trata-se do paradigma da aplicação, que


garante que qualquer juiz chegaria à mesma conclusão, já que é apenas a voz que
pronuncia as palavras da lei.
Ainda assim, este modus operandi foi bastante criticado, acabando mais
tarde por se revelar um fracasso, já que, a ideia inicial de Estado de Direito
consubstanciada na separação dos poderes e da aplicação dos “puros princípios
do Direito” acabou por se converter na ideia de “direito do Estado”, esvaziando-
se materialmente o jurídico e impondo-se um legalismo passivo e formalístico.

Coordenada Estritamente Jurídica


Esta coordenada prevê duas dimensões imprescindíveis da lei:
 A lei enquanto imperativo ou formale legis, i.e., enquanto
comando, prescrição ou estatuição normativa, resultante da vontade geral
representada pelo poder legislativo. Assim, impõe-se e vincula os atos de todos
os cidadãos, ou seja, cada norma vincula todos os casos em que estão presentes
as características previstas em abstrato na hipótese da norma.
 A lei enquanto norma racionalmente universal, ou seja, com as
características da generalidade, abstração e formalidade, às quais acrescia, agora,
a permanência ou estabilidade (se não mesmo imutabilidade). Esta estabilidade
significava que a lei não tinha em conta a contingência e mutabilidade do
histórico-concreto e acabou por garantir a segurança dos sujeitos que atuavam na
economia de mercado. Para garantir esta permanência, a lei devia estar
organizada sub specie codicis, i.e., em códigos de modo a atingir-se a unidade e
completude.

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Coordenada axiológico-jurídica
Esta coordenada faz corresponder determinados valores ou exigências de
sentido às características supra referidas da lei.
 Generalidade: tem fundamento na liberdade, sendo que as normas
são expressão da vontade geral, e garante a igualdade no plano dos sujeitos, já
que a lei é igual para todos (“atos de todo o povo para todo o povo” – Rousseau).
Deste modo, a liberdade e a igualdade mantêm-se na passagem do estado-
natureza para a societas.
 Abstração: garante a igualdade no plano dos problemas no sentido
de parificação, já que, ao criar tipos de problemas, a lei assegura que situações
semelhantes têm um tratamento igual. Se assim não fosse, as normas esgotar-se-
iam na resposta a um caso concreto. Esta igualdade visa atingir o futuro de modo
a garantir a estabilidade.
 Formalidade em sentido estrito: o Direito não interfere ou impõe
fins aos destinatários das normas, ou seja, não está relacionado com o conteúdo
das relações entre os arbítrios. Assim, apenas delimita o quadro normativo de
possibilidades de atuação e auto-determinação dos sujeitos, para que, dentro
desses limites, os sujeitos possam determinar as suas escolhas. Deste modo, esta
característica permite que a lei proteja os direitos de cada um de modo a garanti-
los.
 Estabilidade/permanência: foi uma característica da lei
acrescentada no século XIX no contexto da emergência dos novos sistemas
económico e jurídico. Assim, garante a segurança, que pode ter dois sentidos.
Pode tratar-se de uma segurança através do Direito, que privilegia o
liberalismo individualista, uma vez que permite que os sujeitos saibam quais as
consequências dos seus atos já que o Direito está objectivado na lei através de
normas que prevêem determinadas situações e se dirigem ao futuro.
E pode também tratar-se da segurança do próprio Direito, que resulta do
rigor na formulação dos critérios jurídicos, sendo que os códigos são fator desta
segurança e estabilidade.

Todos estes valores têm um caráter meramente formal, independente do


conteúdo das leis. Assim, o positivismo não deixou de ser um pensamento formal
no plano das exigências de sentido que defendeu.

Coordenada Funcional
Até ao século XVIII o Direito e o pensamento jurídico identificavam-se,
entendendo-se que um jurista a fazer doutrina estava a refletir acerca do Direito,
pelo que a sua atividade tinha as mesmas funções intenções prático-normativas
que o próprio Direito.

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Ora, no século XVIII, houve uma separação entre o que é o Direito,
constituído pelo poder legislativo, e o que é o pensamento jurídico, sendo que o
segundo passou a ter uma intenção cognitiva e teorética, i.e., de puro
conhecimento do primeiro, e não uma intenção normativa. Assim, a criação do
Direito passou a estar relacionada com a contingência prático-material e político-
ideológica e o pensamento jurídico com a pureza formal.
Antes desta rotura, impulsionada pelo objetivismo historicista, todos os
degraus do pensamento jurídico eram orientados por intenções prático-
normativas num projeto-procura do Direito. A partir da mesma, passou-se a
considerar que o pensamento jurídico devia ser a ciência do Direito, analisando,
estudando, descrevendo e sistematizando conceitualmente as normas, que eram o
seu objeto. Deste modo, pretendia-se dominar teoreticamente a prática através da
neutralidade da ciência jurídica.

Coordenada Epistemológico-Metodológica
De acordo com o positivismo legalista, a ciência do Direito tinha como
objetivo uma construção meramente conceitual resultante de elementos do
sistema jurídico – trata-se da sua coordenada epistemológica. No entanto, acresce
que esta coordenada era também metodológica, uma vez que o Direito era
aplicado formalmente através do raciocínio lógico-dedutivo, estando as leis
construídas previamente em abstrato.
Assim, para o positivismo legalista apenas importava ter um
conhecimento exegético da lei, através da mobilização de regras da hermenêutica
filológica tradicional, de modo a conceitualizar o conteúdo histórico-
concretamente contingente das normas.

O Processo de Superação do Positivismo Legalista


A partir das últimas três décadas do século XIX, começou a anunciar-se a
crise do positivismo legalista, situação visível através de alguns sintomas (seis)
que se foram registando.

A Crítica Metodológica
Com a autonomização progressiva de uma interpretação normativo-
teleológica10, alguns juristas começaram a chamara a atenção para o fosso entre o
que era a aplicação do Direito através do silogismo subsuntivo e, portanto, do
método lógico-dedutivo, e a sua verdadeira aplicação na prática. Para solucionar
uma controvérsia não bastam as regras lógico-formais, porque o difícil é a
obtenção das premissas e não a sua articulação. Para além disso, não faz sentido

10
Teleologia: estudo dos fins.

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interpretar as normas abstraindo os casos concretos. Não se trata de um método
suficiente e adequado, já que o juiz não é um técnico de subsunções.
Surgiu ainda o problema de saber como é que o juiz chegou à norma em
causa, já que este só pode chegar a ela a partir do caso concreto, mas havia a
ideia de que esta devia ser uma tarefa independente do mesmo.
Estas críticas ao paradigma da aplicação deram origem ao surgimento de
novas Escolas proponentes de alternativas que não se baseassem na interpretação
abstrata e a posterior aplicação em concreto. A juridicidade deixaria, então, de se
identificar com a legalidade, já que se reconheceu a importância da decisão e da
sua componente relativa à vontade, mas também das ponderações práticas, dos
juízos de valor e das considerações teleológicas que condicionam e,
simultaneamente, fazem parte dessa decisão.

! A Exigência de Superar o Normativismo Como Um Pensamento Jurídico


Formalista e de Abris as Portas a Um Discurso Finalista (Teleológico)
A partir do final do século XIX, começou a superar-se o pensamento
jurídico formalista para um finalismo, revalorizando-se a proposta do
normativismo iluminista que o positivismo legalista do século XIX recusou.
Esta superação ocorreu tanto no plano do Direito, que passou a atender
também ao conteúdo das relações entre os arbítrios e não apenas à sua forma,
como no plano do pensamento jurídico, que deixou de ser uma mera ciência que
se ocupa dos significantes e significados das normas.
Segundo Kantorowicz, o formalismo parte de uma norma jurídica,
geralmente um texto legislativo, que interpreta de modo a, através de
procedimentos aparentemente lógicos, criar um sistema de conceitos e de
princípios gerais que estabelecem as decisões para as controvérsias jurídicas.
Assim, para o pensamento formalista, os fins são escolhas ou necessidades
subjetivas que não dizem respeito ao Direito.
Já o finalismo parte, segundo o mesmo autor, do conteúdo dos fins, das
exigências e dos compromissos práticos, que podem ser valores comunitários, de
modo a encontrar uma solução, permitindo a conexão entre o direito e a realidade
social. Desta forma, o finalismo preenche as lacunas do Direito formal.
Ora, se o Direito é também uma dimensão da realidade social, estando ao
serviço dos interesses, expectativas e fins manifestados nessa realidade, não pode
ser pensado em abstrato. Destarte, surgiu a ideia de que o Direito tinha um
núcleo de identidade teleológico, já que, para interpretarmos a norma, temos de
saber qual a sua finalidade e não apenas quais as suas características formais.
O teleologismo pode ser compreendido de dois modos distintos,
correspondendo a dois caminhos que se abriram na superação do positivismo:

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 Teleotecnologismo: devemos atender exclusivamente aos fins,
vistos como necessidades subjetivas, i.e., interesses que se satisfazem
mobilizando recursos escassos, de cada indivíduo ou grupo de indivíduos. Uma
vez que os recursos são escassos, há que determinar os fins-objetivos, i.e.,
programar uma ordem de preferências. A equivalência dos fins determina a
exigência de decisões racionais que os hierarquizem, conseguidas através da
legislação. Assim, este modo de compreensão do teleologismo exige novos
palcos para a institucionalização da societas.
A consideração exclusiva dos fins leva a uma conceção do Direito
enquanto mera prática-instrumento ao serviço de finalidades transjurídicas, p.e.
políticas, económicas ou éticas.

 Teleonomologismo: Devemos considerar não só fins, mas também


os valores (associados aos princípios jurídicos), dois planos que devem dialogar
entre si. O plano dos puros fins distingue-se do plano dos valores porque no
primeiro temos apenas em conta os interesses, sendo que, dada a escassez de
recursos, os restantes indivíduos constituem instrumentos ou obstáculos para a
satisfação das nossas necessidades; já no segundo, há convicções-projetos
partilhadas pelos membros de uma comunidade, não se tratando, portanto, de um
plano individual, sendo que os restantes indivíduos são interlocutores dialogantes
num mundo de comunicação. Deste modo, há determinados valores associados a
tarefas e responsabilidades, constituindo, por isso, vínculos integrantes. Assim,
hierarquizam-se os fins através de uma racionalidade prática, tendo em conta
que, por vezes, estes devem ser sacrificados em nome desses valores. Assim, esta
compreensão do teleonomologismo regressa à communitas (embora não
exatamente igual à que foi consagrada no arco pré-moderno), voltando a falar-se
em validade comunitária.

Exigência de Superar o Legalismo


O trajeto do jusracionalismo iluminista levou a uma identificação entre o
Direito e a lei. Ora, a partir do final do século XIX, muitos autores começaram a
alertar para a exigência de recuperar esta distinção.
Nesta altura, proclamaram-se universalmente, através da Declaração
Universal dos Direitos do Homem e de outras declarações e convenções
semelhantes, os direitos fundamentais, dos quais todos são titulares. Estes,
estando acima e sendo independentes da lei, constituem um limite para a mesma,
condicionando a sua validade jurídica, já que, num Estado de Direito, estes
direitos, liberdades e garantias jamais devem ser violados.

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Para além disso, reconheceram-se princípios normativos que
fundamentam a juridicidade e que transcendem à lei, pelo que esta tem de os
cumprir.
Deste modo, o sistema jurídico deixou de ser unidimensional, ou seja, de
ter apenas normas legais, sendo que a lei deixou de ser apenas formal para se
passar a ter em conta o seu conteúdo. Apesar e a ideia de “direito natural”
enquanto fundamento absoluto da normatividade jurídica já estar, nesta altura,
culturalmente superada, estes direitos fundamentais e princípios normativos são
análogos ao mesmo.
Assim, procurou-se resolver o “problema das lacunas”, i.e., dos limites
objetivos da lei, já que havia muitos casos, designados casos omissos, para os
quais não havia uma norma legal que desse resposta. Este problema foi muito
criticado por numerosos autores como Kantorowicz, que se destacou no
“Movimento do Direito Livre”, afirmando que o sistema legal positivista tinha
“tantas lacunas como palavras”.

As Novas Exigências do Princípio da Igualdade


Começou a considerar-se que o Direito não devia ser indiferente a outras
dimensões da igualdade para além da igualdade dos cidadãos perante a lei
resultante da racionalidade e auto-inteligibilidade (conferida pela racionalidade)
das normas. Para além disso, criticou-se o facto de se considerar esta igualdade
perante a lei abstraindo o conteúdo contingente da solução por ela consagrada.
Deste modo, introduziu-se a ideia de igualdade perante o Direito através
da distinção entre o plano político-ideológico, no qual a igualdade é um
compromisso do Estado social, e o plano axiológico-jurídico, no qual a própria
lei tem como tarefa fazer cumprir a igualdade. Assim, no seu conteúdo, a lei
passou a poder introduzir diferenças entre os sujeitos, visando um tratamento
desigual para o que é desigual, atingindo-se, destarte, a igualdade material.

As Transformações Político-Institucionais – A Reinvenção do Princípio da


Separação dos Poderes e o Ciclo do Estado Providência (Welfare State)
A Reinvenção do Princípio da Separação dos Poderes
Depois das Grandes Guerras, registaram-se transformações político-
institucionais relevantes, sendo uma delas a reinvenção do princípio da separação
dos poderes. Durante o positivismo, esta separação era estritamente orgânica,
cabendo ao poder legislativo, enquanto representante da vontade geral, a criação
das leis; o poder executivo devia conduzir o sistema político e o poder judicial
era apenas a “voz que pronunciava as palavras da lei”. Ora, no período pós-
positivista, as leis deixaram de ser apenas formais e passaram a poder ser fruto de
opções político-ideológicas, pelo que a sua criação deixou de ser uma tarefa da

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exclusiva competência do poder legislativo, para passar a caber também ao poder
executivo, i.e., ao Governo e à Administração Pública. Já o juiz deixou de ter
como única tarefa a pronúncia das palavras da lei de modo a solucionar as
controvérsias jurídicas através de silogismos, para ser o terceiro imparcial que
resolve as controvérsias jurídicas com base no Direito, garantindo a autonomia
do mesmo e funcionando como contra-pólo relativamente ao poder legislativo.
Deste modo, a separação dos poderes passou a tratar-se apenas de uma
“compartimentação de funções”, visando a organização dos poderes e decisões
funcionalmente eficazes e materialmente justas, adquirindo um sentido positivo
(e não negativo, como Montesquieu lhe havia conferido). Ainda assim, não
deixou de se distinguir a função legislativa, comprometida com a política, da
função jurisdicional, que é autonomamente jurídica, controla a
constitucionalidade das leis e as reconstitui de acordo com a ratio legis e a ratio
juris, i.e., tendo em conta a estratégia político-programática da lei e as
controvérsias jurídicas concretas. Estas duas funções, embora não sejam
contrárias, já que uma não nega a autonomia e validade da outra, também não são
complementares como eram no sistema moderno-iluminista.

O Ciclo do Estado Providência (Welfare State)


Após a Segunda Guerra Mundial, surgiram novas conceções do Homem,
agora homo socialis, assim como do Direito e da lei, que acompanharam a
evolução do conceito de Estado. Deste modo, a lei passou a estar associada a
novas exigências e preocupações programáticas, tornando-se também num
instrumento de governação, i.e., num imperativo não só jurídico, mas também
político-ideológico. Isto porque o Estado demo-liberal, que apenas garantia a
compossibilidade dos arbítrios, foi substituído pelo Estado social ou providência,
um Estado material e intervencionista que instituía de programas de intervenção
através de políticas públicas, visando transformar a realidade da sociedade tendo
em conta as suas necessidades e corrigir as desigualdades através da
institucionalização de uma justiça distributiva. Isto porque se considerava que a
felicidade se media através da maximização dos benefícios e da redução dos
custos, que propiciavam o aumento da qualidade de vida.
Deste modo, as leis deixaram de ser apenas programas hipotético-
condicionais, podendo ser programas finais, nos quais selecionam e planificava,
os fins a atingir e mobilizam os recursos considerados adequados e eficientes
para tal.
Surgiram também as leis-plano, que, com uma intenção transformadora,
definem um programa final a longo prazo, estruturando ou condicionando os
comportamentos dos seus destinatários. Podem haver várias normas inseridas no
mesmo plano.

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Para além disso, admitiram-se ainda as leis-medida ou leis-providência,
que visam responder a um problema ou a uma situação concreta, real e
contingente, pelo são imputadas a um certo contexto de oportunidade estratégico-
social. Assim, são justificadas por uma rationis necessitatis, tendo um enunciado
particular na titularidade e na determinação dos destinatários e esgotando-se
naquela situação específica. Deste modo, tratam-se de critérios jurídicos que não
são gerais e abstratos e permanentes, superando-se o pressuposto de que a
juridicidade está na universalidade racional. Não obstante, é ainda visível a
característica da generalidade, considerando-se a generalidade da situação
concreta, já que as leis-medida se dirigem a todos os indivíduos que se
encontram numa mesma situação.
As leis-plano e as leis-medida surgiram, então, ao lado das normas com
uma estrutura hipotético-condicional, tendo nos princípios da separação dos
poderes e da igualdade limites vinculantes.
Concluindo, o Estado providência permitiu uma recompreensão da
legalidade, no entanto, acabou por entrar em crise, já que a sua eficácia se
revelou apenas ideológica, não se materializando.

As Transformações Culturais
Surgiu uma nova visão da ciência que abriu portas a novas racionalidades,
pondo-se em causa a ideia de que todos os domínios da prática são explicados
pela razão lógico-dedutiva.
Assim, surgiu também uma nova conceção do homem, em quatro planos
distintos:
 Homo socialis da racionalidade estratégica, que a crise do Estado
Providência transformou em homo economicus;
 Homo ludens das guerras e jogos de linguagens, fragmentado em
diferenças e diferendos:
 Homo humanus da compaixão, responsabilidade e hospitalidade.
 Sujeito prático-hermenêutico que dá conta da sua finitude e se
compromete com a transfinitude dos valores comunitários.

Os Processos de Superação do Homo Juridicus e do Formalismo Ateleológico


Concentrados no Exemplo do Direito Privado
O Princípio da Autonomia da Vontade
Uma das áreas dogmáticas na qual mais se fez sentir a superação do
formalismo ateleológico foi o Direito Privado, especialmente o ramo do Direito
Civil.
Um dos princípios transpositivos do Direito Privado, i.e., uma das suas
condições normativas de possibilidade, é o princípio da autonomia privada ou da

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autonomia da vontade. Este princípio traduz a exigência da garantia da
autodeterminação dos sujeitos privados, assim como da sua auto-
responsabilização. Assim, o sujeito jurídico constitui e especifica as relações
jurídicas em que participa, vinculando-se aos deveres que advêm desse negócio
jurídico.
No contexto do positivismo, este princípio era compreendido através de
uma visão individualista, já que se considerava que os sujeitos eram diretamente
responsáveis pelas relações jurídicas nas quais participavam, sendo
compreendidos como categorias universais, independentemente das
determinações que o diferenciam, dos seus fins e dos efeitos sociais
desencadeados pelas suas ações.
Assim, o positivismo incluía, paradoxalmente, uma visão individualista de
um sujeito que determina e se responsabiliza pelas suas relações jurídicas e,
simultaneamente, é submetido à máscara do indivíduo-cidadão participante da
vontade geral.
Para além disso, durante o positivismo, o sujeito também se caracterizava
pela sua autonomia-liberdade, subalternizando-se a responsabilidade associada à
sua participação na comunidade. Assim, cumpria-se um equilíbrio
suum/commune, hipertrofiando-se o pólo do suum.
Com a superação do positivismo, superou-se também este individualismo
em diversas frentes, umas em tensão com as outras:
 Por um lado, esta superação foi determinada pelas exigências
específicas resultantes da institucionalização do Estado providência e dos seus
programas finais e estratégicos convergentes para o interesse comum.
 Por outro lado, o individualismo foi superado devido à
fragmentação fáctica da sociedade em diferentes grupos profissionais,
partidários, de interesses, entre outros, que têm expectativas e objetivos
conflituantes. Assim, têm interpretações distintas do interesse comum ou são
dominados pelos interesses do seu grupo. Deste modo, surgiu um novo
individualismo: não o individualismo positivista associado à universalidade
racional, mas o do homem dos interesses que, por vezes, se torna egoísta.
 Acresce que esta superação também ocorreu devido ao
comprometimento com o regresso da communitas e, portanto, da partilha de
exigências de sentido, e do horizonte de validade por ela exigido.

O Exemplo dos Contratos


A realização de negócios jurídicos é o domínio privilegiado de
experimentação do princípio da autonomia privada.
Um negócio jurídico privado é um ato de vontade juridicamente relevante
cujos efeitos jurídicos são desencadeados pelas próprias declarações de vontade.,

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podendo ser unilateral ou bilateral. Os negócios jurídicos unilaterais são
constituídos por uma declaração de vontade ou várias rigorosamente paralelas
entre si, i.e., com a mesma orientação. Os negócios jurídicos bilaterais ou
contratos são constituídos por duas ou mais declarações de vontade com sentidos
opostos mas convergentes, que tendem à produção de um resultado jurídico
comum ainda que com um significado distinto para cada uma das partes. Acresce
que os contratos podem ser unilaterais, gerando obrigações principalmente para
uma das partes; ou bilaterais/sinalagmáticos, gerando obrigações para ambas as
partes.
No que diz respeito aos contratos, o princípio da autonomia da vontade
especificou-se normativamente num outro, o princípio da liberdade contratual,
consagrado no art. 405.º do C.C.. Este princípio compreende duas dimensões: a
da liberdade de contratar e a da liberdade de modelação do conteúdo do contrato.
A liberdade contratual corresponde à liberdade de contratar, sendo que a
ninguém pode ser imposto um fim contratual e ninguém pode ser impedido de
contratar. Para a liberdade de modelar o conteúdo do contrato, é relevante a
distinção entre:
 Contratos típicos/nominados, cujas características estão previstas e
reguladas na lei, bastando indicar o seu nomen juris para a produção dos
respetivos efeitos;
 Contratos atípicos/inominados, que não estão expressamente
disciplinados, pelo que resultam de criações das partes;
 Contratos mistos, que constituem contratos típicos aos quais se
acrescentam novas cláusulas, podendo conjugar-se dois contratos diferentes.

A conceção positivista compreendia a liberdade contratual partindo, uma


vez mais, de uma visão individualista, pelo que se defendia esta liberdade sem
qualquer restrição, considerando-se que, deste modo, os contratos eram o produto
mais genuíno da vontade humana. Assim, a escolha de contratar ou não e a
definição das cláusulas eram da responsabilidade dos sujeitos.
Ora, com a superação do positivismo legalismo, passaram a manifestar-se
numerosas restrições aos princípios da liberdade de contratar e da liberdade de
modelar o conteúdo do contrato, de modo a controlar institucionalmente as
condições reais do acordo. Assim, considera-se que o núcleo das liberdades não
deve ser frustrado, mas pensam-se essas liberdades com mais limites já que o
Direito passou a poder intervir nos fins. Deste modo, a superação do
individualismo formalista conduziu à alteração de numerosas soluções no âmbito
dos contratos, com a intenção de realizar uma juridicidade social e
comunitariamente fundada.

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Fases Negociatória e Decisória – Princípio da Boa Fé
Na fase pré-contratual, as partes que, posteriormente, celebrarão o
contrato, negoceiam os seus efeitos, condições, entre outros (fase Negociatória).
Segue-se a fase decisória, que inclui a proposta e a aceitação. Ora, na visão do
século XIX, o Direito não deveria interferir nesta etapa, já que, não existindo
ainda um vínculo formal, qualquer ato nesta fase praticado não seria
juridicamente considerável. No entanto, no contexto atual, há determinados
comportamentos desta fase que têm consequências jurídicas.
Assim, passou a submeter-se a formação e execução do contrato ao
princípio da boa-fé, que se traduz nas exigências de o sujeito contraente agir de
modo honesto, diligente e leal, fornecendo todas as informações necessárias e
atendendo às circunstâncias, de modo a corresponder às expectativas de
confiança nele depositadas pelos restantes contraentes. Assim, este princípio
levou a uma recompreensão da relação obrigacional, atendendo-se não só aos
deveres de prestação (exigências formais), mas também aos deveres de conduta
(circunstâncias reais do contrato). Simultaneamente, a exigência de boa-fé revela
a progressiva prioridade metódica que se passou a dar ao caso concreto com a
superação do positivismo.
Deste modo, se quem negoceia não proceder, nos preliminares e na
formação do contrato, segundo as regras da boa-fé, terá de responder pelos danos
que causar – trata-se da culpa in contrahendo, prevista no art. 227.º do C.C. A
exigência de proceder de acordo com este princípio é ainda referida nos arts.
239.º e 262.º/2 do C.C..

Fase da Celebração do Contrato


Nesta fase, as partes manifestam a sua vontade através de declarações,
criando-se o vínculo jurídico. É nesta fase que surge o problema da liberdade
contratual, já que as liberdades de contratar e de modelar têm de ser ambas
preservadas. Como já foi supra referido, ao longo do tempo, têm vindo a ser
introduzidas algumas limitações restritivas destas liberdades.

 Restrições à liberdade de contratar:


 Atualmente, há, por vezes, a obrigação de contratar. Tal ocorre,
p.e., com alguns seguros de celebração obrigatória, através dos quais os sujeitos,
à custa de uma remuneração, transferem o risco de um acontecimento futuro para
a seguradora, substituindo a responsabilidade pela reparação.
 Outras vezes há a proibição de contratar, como ocorre no exemplo
do art. 877.º do C.C., segundo o qual “pais e avós não podem vender a filhos ou
netos, se os outros filhos ou netos não consentirem na venda”.

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 Restrições à liberdade de modelar o conteúdo do contrato:
 Como já foi supra referido, a celebração do contrato deve cumprir
os requisitos de boa-fé (art. 282.º do C.C.).
 Do mesmo modo, segundo o art. 280.º do C.C., esta não deve
frustrar os bons costumes.
 Contratos normativos: constroem em termos gerais e abstratos uma
disciplina imperativa comum à qual se submetem todas as futuras relações
contratuais desse âmbito. P.e., são contratos normativos as convenções coletivas
de trabalho, que vinculam todos os trabalhadores que nelas se enquadrem. Por
vezes, surge o problema da concorrência entre as normas legais de direito do
trabalho, cláusulas das convenções coletivas e cláusulas dos contratos individuais
de trabalho, pelo, de modo a corrigir assimetrias nas relações laborais, que se
estabeleceu o princípio do tratamento mais favorável do trabalhador. Ainda
assim, posteriormente, as intenções deste princípio foram parcialmente frustradas
por um art. Do novo Código do Trabalho.
 Contratos de adesão/por adesão, nos quais uma das partes formula
previamente as cláusulas negociais, que não são suscetíveis de ser modificadas,
pelo que a outra parte apenas tem a liberdade de aderir ou não. Muitas vezes, os
seguros (supra referidos) impõem-se como contratos de adesão.
 Cláusulas contratuais ou condições negociais gerais, que pré-
determinando normativamente, em geral e em abstrato, conteúdos contratuais,
uniformizam relações contratuais que se venham a desenvolver.

Cumprimento do Contrato
O individualismo formalista do contexto positivista e a compreensão de
que o domínio dos negócios jurídicos é de autodeterminação das vontades, mas
também de auto-responsabilização, levava a que houvesse uma exigência do
rigoroso cumprimento dos contratos, consubstanciada na fórmula pacta sunt
servanda, consagrada no art. 406.º/1 do C.C., que tinha como consequências a
pontualidade, a irrevogabilidade dos vínculos e a intangibilidade do conteúdo dos
contratos. Assim, só era possível a transformação ou extinção do contrato por
mútuo acordo das partes.
No entanto, esta visão pode levar a situações ruinosas causadas por
situações imprevisíveis. P.e., A realiza um contrato de promessa de compra e
venda de modo a adquirir um prédio para demolir, no entanto, entre este e o
contrato definitivo, surge uma lei que decreta que, por se tratar de um património
com elevado valor histórico, o prédio não pode ser demolido. À luz do
pensamento positivista, tal acontecimento não teria relevância par ao direito, não
sendo possível a desvinculação ou alteração do contrato.

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Por esta razão, com a superação do positivismo, surgiu o princípio da
imprevisão, reconhecido na cláusula rebus sic stantibus e assimilado pelas
doutrinas da pressuposição e da base negocial, sendo que esta última passou a ter
em conta o princípio da boa-fé. Deste modo, procurou-se uma concordância
prática entre as exigências do princípio pacta sunt servanda e as exigências do
princípio da imprevisão.
Assim, passou a atender-se às circunstâncias, possibilitando-se a alteração
ou extinção do contrato por vontade de apenas um dos contraentes. Para tal, há
que fazer a distinção entre uma alteração anormal e uma alteração previsível.
Para além disso, é preciso mostrar que, após a alteração anormal, manter o
conteúdo do contrato afeta gravemente o princípio de boa-fé, pondo-se em causa
a própria relação contratual (art. 437.º do C.C.).
Ainda assim, existem cláusulas de hardship que, por estarem incluídas em
contratos internacionais ou de elevado valor, não são suscetíveis de serem
alteradas.

A superação do individualismo formalista é ainda visível pela crescente


relevância jurídica atribuída às auto-vinculações sem uma prévia declaração de
vontade expressa ou tácita. Para além disso, com a superação do positivismo,
ocorreu também a superação objectivista do dogma da vontade, centrado na
vontade real do declarante, especialmente devido ao critério dogmático da
impressão do destinatário, consagrado no art. 236.º do C.C., segundo o qual a
declaração de vontade deve valer com o sentido que lhe seria atribuído por um
destinatário razoável que estivesse na posição concreta do real declaratário.
Assim, privilegiam-se as exigências da confiança recíproca e da participação
positivamente autónoma.

O Problema do Abuso do Direito


O Direito objetivo é uma ordem social, uma dimensão da prática que
compreende um sistema de fundamentos e critérios. Assim, é um domínio
prático-cultural, podendo ser estudado ou reconstituído. Já o Direito subjetivo
corresponde aos poderes ou faculdades exercidos pelos sujeitos jurídicos. Ora, o
problema do abuso do Direito refere-se a um exercício do Direito subjetivo que,
dentro dos limites formais, ultrapassa determinados limites, levando a que o
sujeito em causa se coloque numa situação abusiva.
Até à primeira metade do século XIX, não tinha sentido falar em tal
problema, já que o Direito se limitava a intervir na forma das relações. Assim, o
sujeito podia utilizar todas as possibilidades que o Direito lhe oferecia para o fim
que entendesse, desde que não ultrapassasse os limites formais, desde logo
estabelecidos aquando da constituição daquele poder ou faculdade. Assim, os

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sujeitos não eram responsabilizados pelos danos que, eventualmente, pudessem
causar.
Ora, com a superação do individualismo formalista, a experiência
microscópica dos problemas levou a uma alteração desta compreensão. O mais
célebre destes problemas ocorreu na segunda metade do século XIX em França,
onde um proprietário rural teve um desentendimento com o proprietário vizinho
e, para se vingar, construiu um muro com a aparência de uma chaminé de modo
a, deliberadamente, impedir o acesso do vizinho a um vale com grande beleza
paisagística. Este proprietário estava a exercer o seu direito de propriedade
dentro dos limites formais, pelo que, embora a sua ação fosse censurável moral e
eticamente, não teria, à luz do positivismo, relevância para o direito. Ainda
assim, o vizinho não deixou de propor uma ação em tribunal, que decretou uma
decisão inovadora, considerando que o exercício de um direito subjetivo que
respeite os limites formais mas seja juridicamente abusivo deve ser sancionado,
sendo que o ato nesses termos praticado deve ser inválido ou o sujeito que o
praticou deve indemnizar o sujeito lesado pelos danos abusivamente causados.
Deste modo, uma vez que tinha atuado de “má paixão”, exigiu-se que o
proprietário que construiu o muro o demolisse indemnizasse o vizinho.
Foi desta forma que a jurisprudência judicial francesa denunciou o
problema do abuso do Direito. Esta decisão veio a influenciar outros tribunais em
casos semelhantes, pelo que a doutrina acabou por teorizar este problema, sendo
que o Direito passou a poder interferir nos arbítrios, devendo o uso abusivo das
faculdades concedidas aos sujeitos jurídicos ser sancionado mesmo não havendo
uma intenção deliberada de provocar danos.
Assim, autonomizou-se um critério dogmático que assimilou a
especificidade deste problema e tornou explícita a normatividade das soluções
supra referidas. Tal permitiu superar a antinomia entre direito subjetivo e o seu
exercício abusivo, considerando-se que as faculdades atribuídas aos sujeitos
jurídicos não deixavam de ser absolutas, mas, uma vez que são exercidas no seio
de uma comunidade, deveriam ter como finalidade um interesse legítimo, não
excedendo os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes. Isto porque
seria intolerável se os meios, mesmo que irrepreensíveis, pudessem justificar
qualquer fim.
Esta reinvenção da conceção dos direitos subjetivos levou também à
reinvenção do princípio da autonomia privada, agora comprometida com normas
teleológico-materialmente fundadas e com a ponderação do juiz tendo em conta o
caso concreto.
Só mais tarde algumas legislações objetivaram legalmente o critério
dogmático do abuso do Direito, nomeadamente o C.C. português de 1966, no
qual esta objetivação está presente no art. 334.º.

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O Recurso a Conceitos Indeterminados e a Cláusulas Gerais
No positivismo legalista, as normas legais eram formuladas com uma
rigorosa precisão, de modo a garantir a segurança através do Direito e a permitir
que estas fossem utilizadas como premissas de um silogismo subsuntivo para a
resolução de controvérsias jurídicas. No entanto, a distância entre a norma
abstrata e a perspetiva do caso concreto levava a indeterminações. Ora,
atualmente, há uma tendência para o legislador recorrer, deliberadamente, a
indeterminações na linguagem que conduzem a fórmulas abertas, para que o juiz
as possa “preencher” de acordo com o caso concreto.
Estas indeterminações na linguagem podem ser:
 Ambiguidades, que afetam o conteúdo intencional das expressões;
 Vaguidades, que levam a dúvidas quanto à extensão de
determinadas expressões;
 Porosidades provocadas pelo surgimento de novos problemas e pela
constante mutação dos contextos práticos.

Estas fórmulas abertas podem ser:


 Cláusulas gerais, remetem para fundamentos normativos de
apreciação, i.e., referem-se a certos padrões valorativos, permitindo designar
como positivas ou negativas certas condutas. P.e., quando as normas legais se
referem a comportamentos de acordo com a boa-fé e os bons costumes11.
 Conceitos indeterminados, são, como o nome indica, mais
indeterminados que as cláusulas gerais, sendo o seu conteúdo e extensão incertos
em larga medida. P.e., quando as normas legais se referem às circunstâncias do
caso concreto.

Assim, como foi supra referido, estes recursos de formulação


correspondem às exigências de materialização do discurso jurídico e da
atribuição de relevância ao caso concreto. Ainda assim, estas exigências não
foram assumidas partindo de uma única perspetiva, mas sim invocando um
paradigma pragmático-funcionalista de decisão (finalista) e, por outro lado, um
paradigma jurisprudencialista de juízo (que atendia aos fins e aos valores).

11
Art. 487.º/2 do C.C..

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