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PORTUGUÊS 12.

o ANO

TEORIA

FERNANDO PESSOA – POESIA DOS HETERÓNIMOS


A QUESTÃO DA HETERONÍMIA

• Pessoa tem consciência de que, dentro de si, existem outros «eus» que sentem e pensam de maneira dife-
rente. Mas não só sentem e pensam como também escrevem de maneira diferente da do ortónimo. Para
explicar tudo isto, Fernando Pessoa decide escrever uma carta a um seu amigo, Adolfo Casais Monteiro
(janeiro de 1935), na qual descreve a origem, o aspeto físico, a personalidade e a maneira de escrever de
cada um dos seus três heterónimos (poetas): Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
• Eles são fruto da imaginação de Pessoa; no entanto, por serem tão diferentes, em termos literários, o poeta
optou por «imaginá-los» como se fossem reais, daí que tenham «existências» específicas e individuais.

TÓPICOS DE ANÁLISE EM FERNANDO PESSOA – POESIA DOS HETERÓNIMOS

Alberto Caeiro, • Aprecia a solitude e o silêncio dos ambientes rurais. Exemplo:


o poeta • Aprecia a Natureza e a profissão diretamente «O guardador
«bucólico» ligada a ela – pastor / guardador de rebanhos. de rebanhos»
O fingimento artístico

• Apóstrofe a uma amada, Lídia (como os autores Exemplos:


Ricardo Reis, clássicos: Petrarca e Camões). «Segue o teu destino»,
o poeta • Referências a entidades da mitologia greco-latina «Ponho na altiva
«clássico» (Adónis, Minos, Átropos, «barqueiro sombrio»). mente o fixo esforço»
• Arte poética clássica.
• Futurismo (louvor dos resultados do progresso Exemplos:
Álvaro de Campos, científico e tecnológico – as máquinas, os automó- «Ode triunfal»,
o poeta veis, entre outros). «Ode marítima»,
da modernidade «Passagem das horas»

• Deambulação pela Natureza: sente apenas o que Exemplos:


Alberto Caeiro: lhe é dado por meio dos cinco sentidos, nada mais. «O guardador de
o primado das • Ausência total de pensamentos. rebanhos» e «Poemas –
sensações • Ausência de filosofia. Inconjuntos – 18»
• Sensações vividas como se fossem as primeiras.
Reflexão existencial

• Epicurismo / carpe diem. Exemplos:


Ricardo Reis: • Estoicismo. «Vem sentar-te comigo,
a consciência Lídia», «Não tenhas
e a encenação nada nas mãos»,
da mortalidade «Nada fica de nada»,
«Mestre, são plácidas»
• Sujeito entediado com a vida. Exemplos:
Álvaro de Campos: «Passagem das horas»,
• Sofrimento pela consciência do que o rodeia,
sujeito, consciência «Aniversário», «Trapo»
sobretudo tratando-se de pessoas.
e tempo; nostalgia
da infância • Saudades da infância, que surge distante, por-
tanto inalcançáveis e distantes as boas memórias.
• Louvor aos progressos da ciência, como funda- Exemplos:
O imaginário épico

Álvaro de Campos: mentais na mudança do passado para o futuro. «Ode triunfal»,


• a exaltação do • Escrita desenfreada e permeada de exageros «Ode marítima»
Moderno motivados pelas sensações novas e vibrantes
• o arrebatamento de um mundo novo, com novas máquinas, navios,
do canto automóveis, engrenagens.

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CONCEITOS IMPORTANTES DA FILOSOFIA DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA


(é na poesia de Ricardo Reis que estes conceitos ganham vida
modelando genericamente a sua escrita)

Epicurismo
• Filosofia ensinada pelo ateniense Epicuro de Samos, no século IV a.C., e continuada pelos seus discípulos,
designados epicuristas; estes são os princípios fundamentais:
– para alcançar a felicidade plena e absoluta, é necessário vencer os nossos medos e desejos intensos de
maneira a conseguir estabilidade e equilíbrio interiores;
– tudo aquilo que a vida nos oferecer como prazer deve ser observado com cautela, para que daí não adve-
nham sofrimentos e perturbação do corpo, do espírito, da alma;
– o essencial é manter um corpo saudável e livre das contingências dos desejos, num espírito esclarecido,
tranquilo e sereno;
– em conclusão, Epicuro procurava conseguir, na prática da vida de cada ser humano, a felicidade plena por
meio do controlo dos exageros corporais e espirituais, dos medos relativamente ao destino e aos deuses,
e por meio do alcance diário da serenidade.

Carpe diem
• Expressão oriunda do latim, que, à letra, significa «Aproveita o momento», «Goza o dia»; esta expressão é
extensível ao conselho de aproveitar e degustar totalmente o tempo presente, correspondendo a um apelo
à vivência plena do agora, do imediato, pois ninguém sabe o que acontecerá num momento seguinte, num
futuro próximo ou distante.

Estoicismo
• Filosofia ensinada pelo ateniense Zenão de Cítio, no século III a.C.; estes são os princípios fundamentais:
– é necessário desenvolver no ser humano uma lógica e uma racionalidade tais que o impeçam de sucumbir
a sentimentos destrutivos, negando-os e vencendo-os;
– só uma pessoa pensadora e esclarecida consegue perceber a lógica e as regras do mundo para as cumprir
e assegurar a ética e o bem-estar pessoal e interpessoal;
– relações humanas: evitar sentimentos de raiva, inveja, vingança, ciúme e exploração ou escravização do
outro, mesmo que para isso tenha de sofrer humilhações e rebaixamentos;
– o prazer e a satisfação de desejos físicos são inimigos do homem sábio, por isso devem ser combatidos;
– a virtude e o bem são os únicos caminhos que levam o ser humano à felicidade plena.

LINGUAGEM, ESTILO E ESTRUTURA

Alberto Caeiro
• Formas poéticas (estrofe, verso, rima)
– «Não me importo com as rimas. Raras vezes / Há árvores iguais, uma ao lado da outra.»
• Primado das sensações
– «Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la / E comer um fruto é saber-lhe o sentido.»;
– «Eu não tenho filosofia, tenho sentidos».
• Seleção de vocábulos ao serviço do bucolismo
– «rebanhos», «pastor», «vento», «sol», «Natureza», «pôr do sol», «planície», «borboletas», «flores», «cor-
deirinho», «nuvem», «erva», «atalhos», «girassol», «estrada», «chuva», «árvore», «mãos», «pés», «nariz»,
«boca», «olhar»…;
– formas verbais no pretérito imperfeito do indicativo ou no gerúndio, as quais contribuem para o reforço
da ideia de movimentação pelo campo.
• Enumeração, gradação, polissíndeto, personificação, metáfora
– «Sou um guardador de rebanhos. / O rebanho é os meus pensamentos / E os meus pensamentos são
todos sensações.»;
– «Penso com os olhos e com os ouvidos / E com as mãos e os pés / E com o nariz e a boca.»

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TEORIA

LINGUAGEM, ESTILO E ESTRUTURA

Ricardo Reis
• Seleção de vocábulos eruditos associados à Antiguidade Clássica
– «óbolo», «Átropos», «perene», «Fado», «grégio».
• Anástrofe, apóstrofe, gradação
– «Qualquer pequena cousa de onde pode / Brotar uma ordem nova em minha vida, / Lídia, me aterra.»;
– «Neera, passeemos juntos […] / Lembremo-nos, Neera»;
– «trocar beijos, abraços e carícias».
• Epicurismo
– «Amemo-nos tranquilamente […] mais vale estarmos sentados ao pé um do outro»;
– «Abdica / E sê rei de ti próprio».
• Estoicismo
– «Cada um cumpre o destino que lhe cumpre […] / O Fado nos dispõe, e ali ficamos.»;
– «E deseja o destino que deseja».
• Carpe diem
– «Colhe / o dia, porque és ele.»;
– «A vida / passa e não fica, nada deixa e nunca regressa» (consciência e encenação da mortalidade).

Álvaro de Campos
• Seleção de vocábulos ao serviço do arrebatamento do canto
– «Forte espasmo», «maquinismos em fúria», «grandes ruídos modernos», «Ó minhas contemporâneas»
• Apóstrofes, onomatopeias, gradação, anáfora
– «Mas, oh! minha Ode Triunfal,»;
– «Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá! / Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!»;
– «Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia»;
– «Caiu pelas escadas / Caiu das mãos / Caiu».
• Irregularidade estrófica, métrica e rimática – ao serviço do arrebatamento do canto e da exaltação do
Moderno.

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Alberto Caeiro – O poeta «bucólico»
FICHA 68 • O fingimento artístico
• Reflexão existencial: o primado das sensações

Leia atentamente o seguinte poema e responda às questões de forma estruturada.


O Guardador de Rebanhos
I
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
5 E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr do sol
10 Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Camille Pissarro, Pastor debaixo de Aguaceiro, 1889
[…]
Pensar incomoda como andar à chuva
15 Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos.


Ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho.
[…]
IX
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
5 E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma f lor é vê-la e cheirá-la


E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

10 Por isso quando num dia de calor


Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
Alberto Caeiro, Poesia (ed. Fernando Cabral Martins & Richard Zenith),
Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, pp. 21-22 e 42

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PRÁTICA

1. Considere a parte I.
1.1 Esclareça a identificação de Caeiro como poeta «bucólico», transcrevendo elemen-
tos textuais que o comprovem.

1.2 Comprove o primado das sensações:


a) retirando da primeira estrofe as referências aos cinco sentidos.

b) esclarecendo a dicotomia sensação / pensamento.

1.3 Selecione três exemplos de comparação e explique o seu valor.

1.4 Caracterize psicologicamente este heterónimo, justificando a sua resposta.

1.5 Transcreva um exemplo de personificação, explicando o seu valor.

2. Considere a parte IX.


2.1 Explique a gradação presente nos versos 1 a 3.

2.2 Identifique o recurso presente nos versos 4 a 6 e explique a sua importância.

2.3 Retire do texto uma sequência ao serviço da confirmação da primazia da sensação


relativamente ao pensamento.

2.4 Esclareça o conceito de «verdade», justificando a sua resposta.

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PORTUGUÊS 12.o ANO

TEORIA

FERNANDO PESSOA, MENSAGEM


ESTRUTURA VALORES SIMBÓLICOS

PRIMEIRA PARTE: Brasão • Brasão: simboliza o passado que não se


(diz respeito ao passado medieval português, ou à sua herál- pode mudar e que deu a Portugal qualida-
dica – história da sua nobreza e coroa) des guerreiras, políticas e morais;
• Campo: simboliza a vida terrena, na qual
I. Os Campos
há espaço para a criação humana;
Primeiro – O dos Castelos
Segundo – O das Quinas • Castelo: símbolo de proteção e segurança;

II. Os Castelos • Quinas: símbolo da espiritualidade dos


portugueses;
Primeiro – Ulisses
Segundo – Viriato • Coroa: remete para o poder do herói;
Terceiro – O Conde D. Henrique • Timbre: significa eleição ou escolha de
Quarto – D. Tareja um povo, neste caso, o português;
Quinto – D. Afonso Henriques
• Grifo: simboliza a conjugação de dois
Sexto – D. Dinis espaços: a terra e o céu, ou seja, o ser
Sétimo (I) – D. João, o Primeiro humano cria e tem também uma missão
Sétimo (II) – D. Filipa de Lencastre sobrenatural para além da vida terrena.
III. As Quinas
Primeira – D. Duarte, Rei de Portugal
Segunda – D. Fernando, Infante de Portugal
Terceira – D. Pedro, Regente de Portugal
Quarta – D. João, Infante de Portugal
Quinta – D. Sebastião, Rei de Portugal
IV. A Coroa
Nun’Álvares Pereira
V. O Timbre
A Cabeça do Grifo – O Infante D. Henrique
Uma Asa do Grifo – D. João, o Segundo
A Outra Asa do Grifo – Afonso de Albuquerque

SEGUNDA PARTE: Mar Português • Padrão: é a marca da evangelização, sinal


(diz respeito ao período dos Descobrimentos e tem relação de que as terras descobertas pelos por-
com o presente de Pessoa, pois ele deseja que o agora de tugueses eram por eles tornadas tam-
Portugal seja como o seu passado) bém cristãs;
• Mostrengo: simboliza todos os perigos,
I. O Infante
medos, angústias e sofrimentos dos por-
II. Horizonte tugueses no mar;
III. Padrão
• Nau: símbolo de aventura por mar e do
IV. O Mostrengo pioneirismo português (o facto de os
V. Epitáfio de Bartolomeu Dias portugueses terem sido os primeiros a
VI. Os Colombos tentar descobrir novos mundos, não por
terra, mas por mar);
VII. Ocidente
VIII. Fernão de Magalhães • Ilha: é o lugar de recompensa, onde tudo é
perfeito e espiritual.
IX. Ascensão de Vasco da Gama
X. Mar Português
XI. A Última Nau
XII. Prece

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EXAME PORTUGUÊS 12

ESTRUTURA VALORES SIMBÓLICOS

TERCEIRA PARTE: O Encoberto • Noite: simboliza tudo o que é desconhe-


(diz respeito ao futuro de Portugal, sendo que nesta parte cido, tudo o que é apático (está parado,
se referem profecias sobre a nossa pátria) imóvel) ou ainda tudo aquilo que está em
germinação (ou seja, a preparar-se para
I. Os Símbolos florescer / crescer quando o dia chegar);
Primeiro – D. Sebastião • Manhã: simboliza o início de uma nova
vida, bem como a glória, a luz e a própria
Segundo – O Quinto Império
vida;
Terceiro – O Desejado
• Nevoeiro: é sempre fonte de ambiguidade,
Quarto – As Ilhas Afortunadas pois é símbolo da incerteza e da tristeza,
e no entanto significa ainda esperança no
Quinto – O Encoberto
futuro / no regresso de D. Sebastião.
II. Os Avisos
Primeiro – O Bandarra
Segundo – António Vieira
Terceiro – «Screvo meu livro à beira-mágoa»

III. Os Tempos
Primeiro – Noite
Segundo – Tormenta
Terceiro – Calma
Quarto – Antemanhã
Quinto – Nevoeiro

Frontispício de Mensagem,
de Fernando Pessoa, 1934

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TEORIA

TÓPICOS DE ANÁLISE EM MENSAGEM

• Crença no regresso de el-rei D. Sebastião, desaparecido na batalha de Alcácer


Quibir em 1578. À sua morte seguiu-se a perda da independência para os Caste-
lhanos (Filipes), só retomada em 1640 (60 anos depois). O seu regresso aconte-
ceria numa manhã de nevoeiro, de onde surgiria el-rei, já vitorioso, no seu cavalo
O Sebastianismo branco.
• Este mito revela poder, ânimo e esperança de que os portugueses dos séculos
seguintes pudessem imitar a valentia, a luta e o patriotismo do rei jovem, fazendo
de Portugal uma nação novamente grandiosa.

• Natureza épico-lírica da obra: Mensagem exalta Portugal conquistador, desco-


bridor e lutador, qualidades que o levaram a feitos gloriosos à escala universal,
designadamente nas Descobertas, motivo de epopeia camoniana (Os Lusíadas).
O lirismo acompanha estes feitos porque Pessoa os comenta, verbalizando ideias
e sentimentos críticos: os portugueses podem continuar a ser grandes obreiros
de glória, não já de descoberta geográfica, mas de «descobertas» intelectuais,
científicas e espirituais, formando um novo império, «O Quinto Império».
• Estrutura – obra dividida em três partes:

O imaginário épico – primeira: os primórdios da nação, desde a Antiguidade até ao final da Idade Média;
– segunda: o tempo magnífico dos Descobrimentos;
– terceira: o presente (contemporâneo de Fernando Pessoa) e o futuro de um
Portugal envolto em inércia, marasmo, apatia e indiferença.
• O herói coletivo de Mensagem é, simbolicamente, Portugal, o povo português,
que, movido pelo sebastianismo, pode ser novamente grandioso e superior. Este
heroísmo está espelhado em figuras históricas, que Pessoa refere e caracteriza,
lembra e exalta, para despertar o português do século XX dessa dormência, sono-
lência e apatia.

• A exaltação patriótica de Mensagem surge, antes de mais, pela recuperação que


Pessoa faz de toda a História de Portugal, desde os mitos iniciais, que envolvem
Luso e Ulisses, passando pela Idade Média (formação e consolidação do reino
lusitano), pelo período histórico e seus correspondentes heróis – Os Descobri-
mentos –, glória universal que exalta Portugal, chegando ao Portugal do século XX,
a quem Pessoa tenta reavivar e estimular.
• Por outro lado, e num nível de interpretação
simbólica da Pátria, Fernando Pessoa dedica-
-se, em Mensagem, a dar uma visão esotérica,
misteriosa e oculta dos factos e das persona-
gens, oferecendo aos seus contemporâneos
Exaltação exemplos que os motivem a atingir um novo
patriótica «império», o «Quinto Império», não geográ-
fico, mas de inteligência posta ao serviço
do avanço da humanidade, desta feita com o
cunho português. Trata-se de uma espécie de
novos reis «D. Sebastião» e «descobridores»
simbólicos e atuantes ao nível do intelectual
e espiritual. Estes dois níveis são, por si mes-
mos, exaltadores da Pátria Portuguesa.

João Cutileiro, D. Sebastião, Lagos, 1973

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Mensagem, Fernando Pessoa
FICHA 74 • Segunda Parte: «Mar Português»
PRÁTICA

Leia atentamente o seguinte poema e responda às questões de forma estruturada.

O Infante
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

5 E a orla branca foi de ilha em continente,


Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português. José Malhoa, O Sonho do Infante


10 (pormenor), 1905
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!

Fernando Pessoa, op. cit., p. 49

1. Esclareça o valor da gradação no primeiro verso e mostre como ele resume toda a glória
passada dos Descobrimentos.

2. Identifique o referente a quem se dirige a forma verbal «Sagrou-te» (verso 4) e explique


o uso de vocábulo bíblico.

3. Tendo em conta a conjunção coordenativa copulativa «E», explique o sentido de toda a


segunda estrofe.

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4. Indique a quem se refere Pessoa em «Quem» (verso 9) e esclareça o motivo por que o faz.

5. Explicite o valor dos dois últimos versos, justificando a sua resposta.

6. Identifique o recurso presente em «e foste desvendando a espuma» (verso 4), explicando


o seu valor.

7. Identifique o recurso presente em «Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez» (verso 11),


explicando o seu valor.

8. Esclareça o valor da apóstrofe presente no último verso do poema.

9. Demonstre que este poema está ao serviço da dimensão simbólica do herói, assim como
da natureza épico-lírica da obra.

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FICHA 68 (p. 186)


1.1 Trata-se do poeta «bucólico» porque procura ambientes
campestres, onde a Natureza impera e não há outros seres
humanos, como se pode ler em «Toda a paz da Natureza sem
gente / Vem sentar-se a meu lado» (versos 7-8) e «Ser poeta
não é uma ambição minha / É a minha maneira de estar
sozinho.» (versos 17-18).
1.2 a) «Conhece o vento e o sol» (visão), «a olhar» (visão), «quan-
do esfria no fundo da planície» (tato), «como andar à chuva»
(tato), «paz da Natureza sem gente» (audição). b) O primado
das sensações prende-se com a captação do real apenas atra-
vés daquilo que o sujeito poético sente, sem a influência do
pensamento, como os versos «Minha alma é como um pastor, /
Conhece o vento e o sol / [...] Pensar incomoda como andar à
chuva [...]» comprovam.
1.3 Por exemplo: «Eu nunca guardei rebanhos, / Mas é como se
os guardasse» (versos 1-2), que instaura, desde o início, o seu
bucolismo; «Minha alma é como um pastor» (verso 3), que vem
confirmar os versos imediatamente anteriores; «Pensar in-
comoda como andar à chuva» (verso 14), a qual remete para o
incómodo, o desconforto do pensamento que o leva a recusá-lo.
1.4 Alberto Caeiro é um homem pacífico, calmo, apreciador da
Natureza, sensível e nada ambicioso, como se verifica pela se-
leção de vocábulos tais como «paz», «Natureza», «vento», «pôr
do sol», e pela afirmação «Não tenho ambições nem desejos».
1.5 A personificação presente em «Toda a paz da Natureza sem
gente / Vem sentar-se a meu lado» (versos 7-8), dá vida huma-
na e vontade ao conceito de «paz», que naturalmente envolve
o eu lírico.
2.1 Esta gradação, assente em metáforas, ganha vida pela passa-
gem de conceito para conceito até uma espécie de conclusão.
Assim, primeiramente, o eu lírico introduz a noção de «guar-
dador de rebanhos» / pastor, depois avança para a explicação
de «rebanhos» como «pensamentos» e, finalmente, conclui
que esses «pensamentos» «são todos sensações». A partir
deste recurso expressivo, Caeiro consegue resumir toda a sua
poesia e arte poética.
2.2 Esta enumeração ganha forma pela sucessão de partes do
corpo pelas quais o poeta sente / pensa: «olhos», «ouvidos»,
«mãos», «pés», «nariz», «boca». Desta maneira, dá continui-
dade às explicações dos versos imediatamente precedentes,
não deixando margem para dúvida sobre o primado das sensa-
ções sobre o pensamento.
2.3 «Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la / E comer um fruto é
saber-lhe o sentido.» (versos 7-8).
2.4 O conceito de «verdade» entende-se como a vivência da Na-
tureza simplesmente através do que as sensações trazem ao
sujeito poético, o que o leva à felicidade plena.
EXAME PORTUGUÊS 12

FICHA 74 (p. 199)


1. Existe gradação na medida em que há uma sequência que vai
de um objetivo até à sua concretização. Assim: «Deus quer»
remete para uma intenção divina de pôr talentos portugueses
em prática; «o homem sonha» leva-nos a pensar nos desco-
bridores que o Infante D. Henrique escolheu e organizou para
a empresa de descobrir um percurso até à Índia por mar; «a
obra nasce» é o culminar dessa gradação, pois, de facto, os
portugueses conseguiram descobrir caminhos marítimos para
Oriente e depois para Ocidente. Eis a glória do passado.
2. «Sagrou-te» inclui um pronome que presentifica o próprio
Infante D. Henrique. A utilização de um verbo de natureza bí-
blica (a sagração / bênção) vai ao encontro não só da fé por-
tuguesa expandida pelo ultramar, mas também da exaltação
dos feitos portugueses como sagrados, diríamos até divinos
ou sobrenaturais.
3. A conjunção coordenativa «E» prepara o leitor para um acrés-
cimo de informação. A «obra» está feita: caminhos, lugares e
povos descobertos, conquistados e evangelizados. Então, na
segunda estrofe, informa-se especificamente como tudo acon-
teceu. Os descobridores foram «de ilha em continente», «até
ao fim do mundo», «E viu-se a terra inteira, de repente, / Surgir,
redonda, do azul profundo.». Conseguimos visualizar tudo isto,
pois, sendo a terra redonda, foi-se revelando aos portugueses
graças ao seu esforço de concretizar esse sonho, e revela-se,
pouco a pouco, de verso em verso, também ao leitor.
4. O sujeito poético está a referir-se a «Deus», à Divina Provi-
dência, ao Criador, e fá-lo por testemunho da fé, que é indisso-
ciável dos Descobrimentos portugueses e, portanto, do próprio
Infante, ele mesmo divinal.
5. Concluem o conteúdo do poema e chamam à atenção para o
futuro. Por outras palavras, acabada a empresa de descobrir
e evangelizar o mundo, criou-se um «Império», que foi desa-
parecendo paulatinamente. Ao afirmar que «falta cumprir-se
Portugal», Pessoa aponta já para um futuro igualmente glorio-
so, não só física e geograficamente, mas de uma outra forma,
porventura espiritual, intelectual, científica. Através do verbo
«faltar», consegue-se ainda consubstanciar uma espécie de
apelo aos seus contemporâneos para que tornem Portugal
sublime outra vez.
6. Metáfora, que torna mais visual o caminho gradual pelo mar
fora, como se o Infante, ele mesmo, fosse avançando por cima
da espuma das ondas até ao Infinito.
7. Enumeração (com dois elementos), mas também como uma
metáfora, pois «cumprir» aponta para uma regra, uma lei, uma
missão, e não, literalmente, para «Mar» ou «Portugal». Por
meio de uma interpretação metafórica, facilmente chegamos
à ideia de que a missão descobridora e evangelizadora chegou
ao seu termo com o final das Descobertas.
8. A apóstrofe em «Senhor» confirma a presença do divino cristão
no poema, pois com ele se começou («Deus quer»). Portanto,
se tudo começou com a vontade de Deus, ele é chamado tam-
bém no final do poema, a quem o sujeito lírico faz uma espécie
de queixa e apelo para que «Deus» volte a querer.
9. Neste poema, a figura tomada simbolicamente como herói é o
Infante D. Henrique, resultante da conquista da independên-
cia, da glória ultramarina. Exaltando-se o Infante, exalta-se o
herói coletivo – Portugal – e a própria Pátria. A partir deste
ponto, é evidente o assunto épico (Descobertas à escala mun-
dial, encetadas pelos Portugueses), aliado a um lirismo como
verbalização de sentimentos do poeta, ele mesmo contador da
História, mas orante a Deus para que o Futuro seja igualmente
imperial e grande.

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