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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS

A imaginação que transborda1

Jônia Rodrigues de Lima

A imaginação se refere, de maneira bem vaga, fora da filosofia e da


psicologia, como a experiência de constituir alguma coisa nova, situações fictícias e
também de se colocar no lugar do outro. Em termos gerais a imaginação é a faculdade
de formar imagens que reproduzem o que foi percebido, mas também a faculdade de
combinar imagens provenientes da experiência em algo inovador. A capacidade de
imaginação é subjacente a capacidade de conhecimento e considerada ilimitada. A
imaginação é tão ampla que muitas vezes pode-se chegar a absurdos. No entanto, é
notável que ao que se refere ao sublime a imaginação não dá conta de ascender.

Sublime é o que traz a sensação de que é possível transcender o humano, é


um esforço contra o superficial, é os excessos, o desmedido, o que rompe a
possibilidade da imaginação chegar a uma totalidade, é além da perfeição, é o terror
capaz de provocar complacência, é “oxímoro” (WEISKEL, 1994), é o transbordar da
imaginação.

Na longa tradição das investigações sobre a imaginação remetem-na à um


ato ou fenômeno psíquico determinado, à uma "faculdade" intermediária entre a
percepção sensível do individual concreto e a abstração das ideias universais. Platão2
tem a concepção da imaginação relacionada a sua teoria do conhecimento onde é
conceituada como a mais baixa das faculdades e a compara a obra de um pintor no
espírito do homem, que faz retrato ou imagens de coisas3. Aristóteles4, discípulo de

1
Texto apresentado na Disciplina Seminário de Análise e Produção de Textos em Arte ao Prof. Dr.
Eduardo Veras no mestrado em Artes Visuais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
2
Atenas 428/427 a.C – Atenas 348/347 a.C.
3
PLATÃO. Filebo. Versão eletrônica do diálogo platônico “Filebo” Tradução: Carlos Alberto Nunes
Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia), P. 28. Homepage do
grupo: http://br.egroups.com/group/acropolis/ Acessado em 28/05/2018.
4
Estagira 384 a.C – Atenas 322 a.C.
Platão, se interessou mais pela imaginação definindo-a como a faculdade intermediária
entre a percepção e o pensamento e empregou à imaginação a palavra fantasia. Para
Aristóteles sem a percepção não há imaginação e sem imaginação não há pensamento.
As imagens que se originam nas sensações têm vida própria e podem combinar-se,
associar-se entre elas, reaparecendo à superfície da consciência, ou seja, a imaginação,
ou fantasia como menciona, está estreitamente unida à memória. A memória tem como
base a imaginação, pois a memória não acontece sem as imagens da imaginação5.

A ideia aristotélica da imaginação como atividade mental entre a percepção


e o pensamento foi predominante até Kant. O entendimento neste longo período é da
imaginação como poder de visualização de coisas ausentes como se estivem presentes.
Longino, que escreveu o Tratado sobre o sublime e exerceu grande influência no século
XVIII, considerava que as imagens da imaginação são elementos da sublimidade:

XV.1 Para produzir a majestade, a grandeza de expressão e a


veemência, meu jovem amigo, é preciso acrescentar também as aparições,
como o mais própria a fazer. Nesse sentindo, pelo menos, é que alguns
chamam “fabricantes de imagens”. Pois se o nome aparição é comumente
atribuído a toda espécie de pensamento que se apresenta, engendrando a
palavra, agora o sentido que prevalece é esse: quando o que tu dizes sob
efeito do entusiasmo e da paixão, tu crês vê-lo e tu o colocas sob os olhos do
auditório. (LONGINO, 1996, p. 67).

Segundo Harold Osborne (1993), fundador da Sociedade Britânica de


Estética, toda a discussão acerca da imagem na antiguidade remetia a Retórica de
Aristóteles, cheia de metáforas, onde diz que uma boa metáfora ou comparação é a que
coloca a coisa “diante dos olhos”, o que é feito pelas expressões que “significam
realidades”. Os retóricos romanos também adotaram ponto de vista semelhante,
conforme exemplifica Osborne: Cícero6 via na imaginação um poder de visualização
por meio do qual o poeta ou orador era capaz de pintar vigorosamente uma cena e fazer
os ouvintes vê-la com o mesmo vigor com os olhos da mente. Também “Quintiliano7
ensinava que esse poder de visualização precisa ser cultivado pelo bom orador”
(OSBORNE, 1993, p. 196). O que se imita é necessário que se mostre, que se apresente
de forma vívida, sendo que para tal o artista necessita pintá-lo para si mesmo para que o
público possa visualizá-lo por si. É a faculdade da imaginação ou da fantasia que tornou
estas ideias possíveis. O Britânico confere a Plotino8 a maior proximidade da

5
A imaginação aristotélica está teorizada nas Obras De Anina (Sobre a alma) e em De Somniis (Sobre o
Sonho).
6
Marco Túlio Cícero (106–43 a.C). foi um dos maiores oradores e escritores em prosa da Roma Antiga.
7
Marco Fábio Quintiliano, (35-96 dC.) foi, junto com Séneca (04- 65 dC), um dos mais respeitados
retóricos romanos.
8
Plotino viveu entre os anos 205 e 270 d.C. É considerado por muitos filósofos o pai do neoplatonismo.
concepção moderna da “imaginação criadora”. Contudo, Plotino ainda não atribuía este
poder de apreender um ideal ao poder visualizador da imaginação, mas à compreensão
intelectual, ou razão. Durante a Idade Média e na Renascença a ideia referida à
imaginação, além da concepção de Aristóteles que determina a imaginação como
atividade mental entre a percepção e entendimento, foi a concebida por Platão que se
tornou ainda mais forte com a reafirmação a partir das frases bíblicas sobre a “vã
imaginação” e pela autoridade de Santo Agostinho9, como conta Osborne (1993, p.
198). No período escolástico é explícita a influência aristotélica na concepção da
imaginação, pois os escolásticos entendem a imaginação como a faculdade que opera
entre a sensação e o entendimento que devia reproduzir a partir dos dados fornecidos
pela experiência dos sentidos as imagens dos objetos colocando-as a disposição da
memória.

Addison10, poeta e ensaísta inglês, na obra "The Pleasures of the


Imagination" en The Spectator, publicada em três volumes em de 1712, influenciou
fortemente o pensamento do século XVIII nas discussões que envolvem reflexão sobre
o cultivo do gosto, seja no que diz respeito à análise do prazer estético, especialmente
do sublime, e da produção artística. Nos Prazeres da Imaginação (Pleasures of
Imagination – Spectator. N° 411)11 Addison investiga as afecções da mente pelos
objetos que lhe dão prazer ou desprazer estético, buscando descobrir os elementos que
produzem esses sentimentos no espectador ou no leitor, logicamente dentro dos limites
estabelecidos por sua matriz empírica. Desta forma, Addison começa a examinar a
imaginação ou fantasia a partir do sentido que lhe fornece suas ideias: a visão, único
sentido capaz de perceber as cores e com capacidade mais ampla de perceber objetos.
Ou seja, mantêm a tradição escolástica da ideia de que a imaginação acontece pelos
sentidos. É por intermédio da visão, segundo Addison, que a imaginação é suprida com
suas ideias que, por prazeres da imaginação ou da fantasia, se originam dos objetos
visuais. A imaginação é ativa e, assim como em Longino, tem a capacidade de fazer
visíveis objetos em ideias e possui os poderes de reter, compor e alterar tais imagens
conforme lhe for agradável sendo possível criar coisas mais estranhas ou mais belas do
que aquelas vistas.

9
Agostinho de Hipona ou Santo Agostinho ( 354 – 430)
10
Joseph Addison (1672-1719).
11
As referências da Obra de Addison utilizadas nesta pesquisa são: Addison, Joseph (2004), The
Spectator, Vol. I, II y III, E-Book #12030, Project Gutenberg [www.gutenberg.net].
A imaginação foi destaque nos pensamento de David Hume. O filósofo
trabalha a imaginação principalmente no Tratado sobre a Natureza Humana (1739-
1740), na Investigação acerca do Entendimento Humano (1748) e na Investigação
sobre os Princípios Morais (1751). Hume distingue memória e imaginação e ambas
dependem das ideias (que, em Hume como em outros filósofos, parece ser termo
sinônimo ou substituto de imagem) geradas através de nossa experiência sensível. A
memória se restringe a reproduzir as sequências e combinações de ideias tais quais as
recebemos, a imaginação pode reorganizar e transformá-las. Assim, Hume defende que
as ideias são objetos das impressões e um fator necessário para produção dos princípios
‘força e vivacidade’ e distingue “ideias de imaginação” livre das impressões passadas e
“ideias de memória” que seguem processos de cronologia e fatos em nossa mente.
Portanto as ideias de memória são mais vivazes que as ideias da imaginação, pois esta,
ao contrário, pode ocorrer sem passar pela experiência, pode ser fantasiosa. Osborne
(1993, p. 205) entende que a filosofia de Hume “pouco contribuiu para a doutrina
estética”, no entanto sua compreensão de que a imaginação “possibilita a harmoniosa
compreensão entre os homens e a partilha afinada da experiência foi uma declaração
importante, precursora das suposições implícitas nas teorias românticas da arte”
(OSBORNE, 1993, p. 205).

Muitos teóricos do século XVIII compreendem que imaginar é mais do que


uma faculdade mental destinada a receber, reviver e manipular imagens. Mas o
entendimento exato sobre o que é não é claro ou único. Burke pensou um pouco sobre a
imaginação no texto Appeal from the New to the Old Whigs. Para Burke “Há uma
fronteira para as paixões dos homens quando eles agem a partir do sentimento; mas
nenhuma há, quando eles estão sob a influência da imaginação.”12(BURKE, 1971, p.
123).

A “Imaginação, uma função cega, embora indispensável da alma” (KANT,


1980, p. 72 § 10) é tema também da seção 49 da Crítica da Faculdade do Juízo de 1790
de Kant. A imaginação pode afirmar a universalidade subjetiva sem ser obrigada a
proceder segundo a ordem do conhecimento do objeto, sem submeter-se à jurisdição do
entendimento devido a concordância subjetiva entre a imaginação e o entendimento.
Para Kant a imaginação é a estreita relação entre entendimento e sensibilidade. A
faculdade da imaginação é criadora e põe em movimento a razão. A imaginação

12
Burke na Investigação não trabalhou sobre a imaginação, mas na obra publica em agosto de 1971
Appeal from the New to the Old Whigs in Consequence of Some Late Discussions in Parliament, Relative
to the Reflections on the French Revolution citou a imaginação com ilimitada.
kantiana é um poderoso material para criar uma segunda natureza com o material que
lhe é fornecido pela natureza real. As representações apresentadas pela imaginação
podem ser chamadas de Ideias porque almejam alcançar algo que se encontra fora do
mundo da experiência e, assim, procuram se aproximar de apresentação de conceitos
racionais, dando a estes conceitos o aspecto de uma realidade objetiva. Kant coloca a
imaginação como “criadora e põe em movimento a faculdade das ideias intelectuais (a
razão), ou seja, põe a pensar, por ocasião de uma representação (o que na verdade
pertence ao conceito do objeto), mais do que nela pode ser apreendido e distinguido”
(KANT, 2005, p. 160). Ou seja, já não tem mais a ideia aristotélica apenas de atividade
entre percepção e pensamentos, ganha status objetivo e de ilimitado. A imaginação não
está restrita a existência das coisas e ao que o olho vê, mas também podem criar coisas.

A ideia de que a imaginação pode criar mostra movimento. A imaginação


coloca imagens em movimento, coloca imagens em ação, e carrega a característica de
ilimitada. A concepção da imaginação não ter limites é predominante no século XVIII e
ainda aceita na atualidade. É também através da imaginação que o ser humano vive
planejando novas possibilidades de vida e mundo, transcendendo cada estado dado,
criando novas possibilidade de existências sociais, culturais e políticas. A imaginação
pode tudo reter, criar, produzir e reproduzir imagens, ideias, concepções, visões de um
indivíduo ou de um grupo para expressar sua relação de alteridade com o mundo, no
entanto, a imaginação não dá conta de ascender até o sublime, pois o “sublime é
violento à faculdade da imaginação”. O sublime é a incapacidade da imaginação de
imaginar o que a ultrapassa em força e grandeza provocando uma falha de todos os
sentidos. Os sentidos sentem mas há desarmonia entre a faculdade da imaginação e da
razão. Sublime é o que transborda a imaginação.

Referências bibliográficas

ADDISON, Joseph (2004), The Spectator, Vol. I, II y III, E-Book #12030, Project Gutenberg
[www.gutenberg.net] N° 409, 410, 411 e 412.
BURKE, Edmund. Appeal from the New to the Old Whigs in Consequence of Some Late Discussions in
Parliament, Relative to the Reflections on the French Revolution. Terceira Edição. Londres: Impresso por
J. DODSLEY, PALL-MALL. M.DCC.XCI. Disponível em:
https://archive.org/details/appealfromnewtoo00burkiala
KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Trad. Valério Rohden e Antônio Marques. 2. ed. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
LONGINO. Do Sublime. Tradução Filomena Hitrata. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
OSBORNE. Harold. Estética e teoria da arte. São Paulo: Editora Cultrix, 1993.
WEISKEL, Thomas. O sublime romântico: estudos sobre a estrutura e psicologia da transcendência.
Prefácio de Harold Bloon; tradução de Patrícia Flores da Cunha. Rio de Janeiro: Imago Ed.,1994.

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