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História, Verdade e Função Social do Historiador

Isabel Schapuis Wendling1

Em um momento histórico muito conturbado, nós historiadores nos vemos


muitas vezes colocados contra parede ao nos depararmos com relatos ditos que vão de
contra aos fatos históricos já pesquisados e confirmados pela ciência histórica várias
vezes.
Quando um jovem Youtuber2 decide que deve entrevistar seu pai sobre sua vida
no período da ditadura militar (1964-1985) para mostrar ao seu público como na
verdade todas as pesquisas históricas e livros didáticos foram manipulados por uma
esquerda brasileira, ele entrega ao público alvo um relato que se apresenta como mais
verdadeiro do que toda a verdade científica, não por ser necessariamente verdadeiro
factual, mas por ser um relato que apresenta “sinceridade” do entrevistado. Contudo, tal
vídeo possui cortes e edições visíveis, o entrevistador interrompe e por vezes realiza
guia a resposta do entrevistado, evitando falas que entreguem informações que
contradigam o relato ou que contradigam a posição do entrevistador sobre o momento
histórico.
Um historiador que pesquisa a ditadura militar e que recebe como fonte histórica
um vídeo com o relato tal como o citado acima, pode se encontrar num dilema ético um
tanto complexo. Pois apesar de evidentemente o vídeo poder ser desqualificado como
fonte por conter edições e interferência do entrevistador, ainda se trata de um relato dito
sincero que aborda uma determinada vivência histórica. Como poderia proceder ao
historiador nesse caso?
Primeiramente podemos realizar uma breve reflexão sobre as noções de verdade.
Especialmente nesse caso, por se tratar de um relato que possui sinceridade, muitos
acreditam veementemente que a fala do senhor entrevistado seja “A” verdadeira história
sobre a ditadura militar no Brasil. Mas a verdade pode ser relativa e nesse caso por não
ser factual, pode ir de encontro com verdade histórica.
Tendo em mete os dois conceitos de verdade propostos por T. Todorov. “Devem
distinguir-se pelo menos dois sentidos da palavra: “a verdade-adequação e a verdade-
desvendamento, dos quais o primeiro apenas admite como medida tudo e o nada, e a
segunda o mais e o menos.” (TODOROV, 1995 ,p.128) Em que a primeira refere-se a

1
Mestranda no curso de história na UNIOESTE.
2
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Jvd97mCn-n0. O vídeo foi publicado em 24 de
junho de 2018.
verdade factual, ou é ou não é. Já a segunda refere-se aquilo que é incerto, mas que se
aproxima ou utiliza-se da verdade factual para convencer. A segunda é a verdade do
romancista, mas não que a primeira seja a verdade do historiador. Segundo Todorov, o
historiador se utiliza das duas verdades para que seja legitimado e acreditado: a
verdade-adequação, ao utilizar dos fatos, e a verdade-desvendamento que busca na
narrativa acertar e tornar mais real e verissímil possível com os acontecimentos do
passado. Todorov propõem esses dois conceitos de verdade, que podem ou não se
relacionar, ao perceber no romance uma verdade que parece maior que a verdade da
historia, isso por se usar melhor do real para com a mentira.
Considerando que o vídeo publicado trata de um relato aparentemente
verdadeiro, nos cabe entender que tipo de verdade ele se encaixa. Primeiro devemos
perceber que a entrevista é o tempo todo interrompida pelo entrevistador com
comentários e posições políticas sobre determinados acontecimentos, além de conter
cortes e edições graves no decorrer do vídeo. Mesmo que o relato do entrevistado seja
real, ele utiliza de determinada narrativa que se posiciona e evita concordar, por
exemplo, com a existência da polícia truculenta no período. Outro fato a se perceber no
vídeo é a falta de consciência de lugar de fala, o entrevistado esquece-se de colocar que
ele fala da posição de um homem, branco, classe média- alta, dados importantes para
perceber o que vivenciou esse individuo durante a ditadura civil-militar. Sempre se
posicionando contra os “comunistas” durante o vídeo, o pai do eGuinorante deixa claro
que na sua memória, somente sofria com a polícia os comunistas “baderneiros” que iam
contra o governo de forma violenta. Além do entrevistado não apresentar as
informações necessárias sobre si, seu relato apresenta informações que não se tratam de
uma vivência própria, muitas informações que apresenta são relatos sobre outros. Ou
seja, ou o autor fez uma pesquisa e, utilizando de uma posição de relator a utiliza como
uma vivência própria, ou o mesmo mentiu.
Tendo em vista esses dados, como historiadora buscando dar uma possibilidade
de analise a essa entrevista, podemos encaixar o relato como uma verdade-
desvendamento, a qual o entrevistado pode utilizar da verossimilhança para contar algo
que não pode ser dado como real. Contudo fica a pergunta, por que não podemos
considerar esse relato puramente como verdade-adequação, ou como fato? E como
utilizar de um relato que contradiz a verdade histórica ou fatual?
Podemos então refletir sobre a função social do historiador, que diferente da
função social da história, é se aproximar da verdade para produzir ciência histórica.
Logo o que importa é como fazemos o uso do passado, a forma que o interpretamos. A
busca por uma história objetiva nos entrega relatos por vezes como esse e, mesmo que
irreal, surge espontaneamente por conta do presente, o relato pode ser de um falsário,
mas o mesmo olhou para o passado e se utilizou dele. No caso desse relato podemos
utilizar como forma de perceber quais as narrativas e estratégias utilizadas pela
população da direita do Brasil sobre a ditadura civil-militar de 1964. É necessário então
perceber qual o uso ou as formas que esse indivíduo percebe o passado, pois querendo
ou não ele viveu e fez história, logo o historiador deve “[...] apenas ressaltar os usos que
fizeram da história e em que conjuntura essas memórias vieram à tona.” (BAUER,
NICOLAZZI, 2016, p. 831).
Fica evidente que a história atualmente passa por um problema gravíssimo, na
qual relatos que utilizam da verossimilhança e com uma pitada de subjetividade e
criatividade, buscam corroborar com criações e mentiras sobre o passado. Tais relatos e
“desinformação” que mantém grande audiência e participação da sociedade são tomados
como mais reais do que a ciência histórica. A ciência que vem perdendo sua força por
conta do distanciamento e dificuldade em se aproximar da população leiga, que não lê
artigos científicos por conta da linguagem distante a comum e por ser pouco divulgada.
Dessa forma, informações fáceis de linguagem acessível como vídeos no youtube
acabam sendo muito difundidos e assistidos pela população que acredita que por conta
da sinceridade do autor o que é dito ali é a “mais pura verdade”.
Talvez seja a “mais pura verdade” uma verdade que necessita ser lapidada,
interpretada, analisada por meios científicos que expliquem, contextualizem o relato,
tornando mais verdadeiro e histórico. Um relato como o feito pelo pai do eGuinorante é
verdadeiro para ele, mas contradiz a verdade histórica, logo, é irreal. Para ser
considerada história deve passar pelo processo de análise de um historiador. “A tarefa
da interpretação é então concebida justamente como a desconstrução dessas pretensões,
o ato de evidenciar as incoerências.” (TODOROV, 1995 , p. 167) Pois é na
interpretação objetiva do historiador, por meio de metodologia histórica que é possível
perceber o não verdadeiro no relato, nessa memória, e por meio dessa análise tornar o
relato história.
Contudo para que essa analise seja não somente válida, há a necessidade dela ser
conhecida pela sociedade e compreendida. Atualmente a função social do historiador
deve ser além do uso adequado, interpretativo e crítico sobre o passado, mas também ser
capaz de tornar compreensível e acessível a sociedade, pois é a sociedade que irá ser
utilizar da história. A história deve ser conhecida, não somente para entreter o
historiador, mas para informar, para compreendermos o passado, para que possamos
entender como chegamos no formato social presente. Dessa forma, como poderia a
história desempenhar seu papel social se nós historiadores não a tornamos acessível e
compreensível?
Por meio dessa breve reflexão é possível entender que mesmo que por meio de
posição política contrária a nossa, o historiador busca certa objetividade deve interpretar
e analisar as fontes que a ele são disponibilizadas. Contudo, fontes de integridade baixa
por conta de alterações ou mesmo de falsa verdade merecem uma atenção significativa,
pois podem levar o historiador a certos erros analíticos. Falsários na história existem e
eles permitem que enxerguemos a verdade em nós.

REFERÊNCIAS:
BAUER, Caroline S.; NICOLAZZI, Fernando F. O historiador e o falsário. Usos
públicos do passado e alguns marcos da cultura histórica contemporânea. Varia
História, Belo Horizonte, v. 32, n. 60, 807-835, set/dez 2016.

TODOROV, Tzvetan. Ficções e verdades; Pós-escrito: a verdade das interpretações. In:


Idem. As morais da história. Lisboa: Ed. Europa-América, 1995, p. 125-161; 162-169.

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