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colecção periódicos locais / mensais

número 70
maio 2021

AND R É R U I VO
número 70 maio 2021
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T R A B A L H O

"TE C E D E I R A - [ D É C. 4 0 / 5 0 ] - CO N CE L H O DA F I GUE I R A DA FOZ."

FICHA TÉCNICA
Periódicos Mensais Locais nº 70
Maio de 2021
DIRECTÓRIO COLECTIVO José de Matos-Cruz |
Joaquim Jordão | António Viana | Álvaro Biscaia
MORADA Rua da República, 114 1º sala 5 3080-036
Figueira da Foz
EDIÇÃO FLAGRANTETITULO - Associação Cultural
(flagrantetitulo@gmail.com)
COLABORAÇÕES V. Claro | Susana Matos | Rosa
Azevedo | Ricardo Lima | Pedro Simões | Paula B. |
Maria Oliveira | José de Matos-Cruz | Joaquim Jordão
| João Pedro Mésseder | Joana Silva | João Carola |
Henrique Manuel Bento Fialho | Guida Casella | Fátima
Quinteiro | Bruno Fontes | Augusto Baptista | Augusto
Alberto Pinto Rodrigues | AFMFF | António Viana |
António Pedro Pita | António Augusto Menano | André
Ruivo | Ana Biscaia | Amadeu Baptista
IMPRESSÃO FIG
GUIDA CASEL LA

DEPÓSITO LEGAL 458649/19

João de Azevedo sempre presente.


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T R A B A L H O
Havia quem dissesse e avisasse: não deixes entrar o que escreverão, no que queremos nós escrever. Que
Maio. Costume antigo este encontrado em diversas coincidências caberão dentro das suas páginas?
regiões do país.
Era preciso enfeitar a porta da casa com flores silves- Na Figueira da Foz, cidade berço deste periódico,
tres e espigas de trigo. E acordar cedo. Sinal de tino existe uma casa que faz este ano 50 anos de existência.
e de bonança, mas também sinal de bom ano, fértil e Abram-se as páginas centrais e descubra-se a mulher
cheio de esperança. responsável por este feito. É obra! Uma mulher que
Quem quiser adivinhar porque começa assim este jor- trabalha desde criança e que nos fala sobretudo da
nal, atente na palavra em itálico, mesmo ali em cima. forma como a vida deve ser vivida. (Assim, piamente,
Há quem não perceba o trabalho que dá fazer com acreditamos).
que uma cenoura nasça, dizia um Homem. Atente-se
também na palavra Homem. Fico-me com esta pujante alegria, escrevia João de
O tal que trabalha, que tele-trabalha e que, de repente, Azevedo, numa mensagem de arrojo. Esta semana es-
(quase) desaparece. Há um Homem que o desenha. treia nos cinemas um filme onde o João permanece.
O desenho é um trabalho que dá trabalho. Sorte a nossa, seus amigos, o de o podermos ouvir de
dentro da tela, como se fosse magia. O João, diz, tem
Descemos a avenida nas comemorações do dia inter- 26 anos.
nacional do trabalhador. Primeiro de Maio: oito horas
de trabalho, oito horas de lazer, oito horas de descan- O jornal é de papel. Alguém o imprimirá. Olhos di-
so. Ali os trabalhadores não eram invisíveis, eram de versos, humanos, serão responsáveis, por ele, pela sua
carne e osso. chegada. Todo um puzzle, leitor, onde a palavra tra-
balho se pode ler em letras garrafais.
Fazer um jornal tem implicações de vária ordem. Uma Posto isto, está explicado onde queremos chegar.
delas é esta: a certeza de que será lido. Desejamos-lhe uma óptima leitura.
Esta certeza permite-nos pensar no seu desenho, na VIVA A VIDA BEM VIVIDA!
sua construção. Nas pessoas que dele farão parte. No
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Um significativo
acontecimento cultural
No passado dia 22 ocorreu, no jardim interior da Biblioteca
um acontecimento cultural de grande significado: foi apre-
sentado ao público o livro de poemas “De Poucas Palavras”
de Abel N.
Reúne poesia, alguma com mais de sessenta anos, de alguém
que “Escreveu sempre aqui e ali. Não tanto como devia”,
como se pode ler na badana da obra.
Os trabalhos foram guardados por mim, seu colega e amigo,
que, há dezenas de anos “prometeu” a si próprio que a poesia
daquele ”FILHO” da Figueira, para onde veio viver ainda
criança - depois de nascer em 1938 em Leiria. Na Figueira
fez a instrução primária, e frequentou o Liceu Municipal
(que ensinava até ao fim do 1ºciclo, e teve por professor
Ilídio Sardoeira). Seguiu-se a Academia Figueirense, colégio
onde mestres como Rafael Sampaio, Aires Biscaia e Marcos
Viana semearam nos alunos o gosto pela poesia, pelo teatro
e pela liberdade.
Há pessoas que vivem de memórias, de contar histórias. Os jovens criaram numa casa de quintal de Fernando
E depois há outras pessoas, semelhantes, que revivem Pessoa, na rua Direita do Monte, uma biblioteca particular,
toda a vida, passo a passo, os tempos que viveram tra- para a qual levaram livros. Aqui ficam alguns dos nomes do
zendo a quem os ouve a sensação de ainda lá estarem. membros dos “Cavaleiros do Graal”, que chegaram a fazer
Assim foi o meu tio João. João de Azevedo, um homem um jornal interno, escrito por eles: Abel Carlos Rocha Ne-
aventureiro, sempre, reinventando as suas aventuras, ves, autor do livro agora apresentado; Carlos Alberto Men-
adaptando-as aos tempos que vivia, aos filhos que nas- des Saboga, actualmente residente em Paris, autor de dois
ciam, às terras por onde passava. Mas sempre um ho- filmes, A Uma Hora Incerta - presente na Bienal de Viena
mem da liberdade, do livre arbítrio, cuidador carinhoso
em 2015 - e Photo - exibido no Festival de Roma de 2012
e sofrido dos que amava de perto e dos que, ao longe, so-
friam a falta de liberdade e a injustiça social e económica.
- e dos textos das novelas televisivas As Linhas de Torres e os
Chega agora aos cinemas o PRAZER, CAMARADAS, de Mistérios de Lisboa; Fernando Pessoa, residente actualmente
José Filipe Costa, um filme que regressa a 1976 com al- em Faro; José Eduardo Nunes da Silva, Mário Moniz San-
guns protagonistas reais desse tempo, onde a liberda- tos, Carlos António Andrade Cação, Fausto Viana, já faleci-
de começava a chegar, devagar, ao interior de um país dos, Carlos A.H.Ramos, Mano, Palaio, António Simões.
ainda estagnado e de portas fechadas ao que vinha de O início da “associação” foi em nove de Maio de 1954.
fora. O meu tio estava lá, tinha 26 anos, estava de re- Acabou anos depois, com a dispersão, por motivos escolares,
gresso ao país de onde tinha fugido uns anos antes. Nes- profissionais e políticos, dos seus membros.
te filme regressa a esses locais, com alguns dos seus Pois foi este recordar, esta passadeira/ jardim ondulante do
companheiros, num filme que é memória e documento. tempo, viva, amada, de que se falou no passado dia 22 de
Nem todos tiveram a sorte de conhecer o meu tio, com
Maio, no jardim interior da Biblioteca. Usaram de palavra
este filme podem ver uma janela luminosa do que ele
representou. Ele já não está connosco mas ainda assis-
o vereador da cultura, com uma intervenção informada e
tiu a este filme. Estava orgulhoso, divertido, parecia objectiva, Abel Carlos e António Augusto Menano. De
feito à sua medida, tinha as suas histórias, os seus ami- salientar os momentos em que foram recordados, os teatros
gos, o legado daqueles miúdos que vieram para Portu- da Academia Figueirense, João César Monteiro, António
gal para anunciar a liberdade a quem ainda não tinha Gedeão (Rómulo de Carvalho), José Régio, Vasco da Graça
ouvido falar dela. E tem humor, e optimismo, algo de Moura, Alexandre O´Neill, aqueles em que Carlos Cachu-
que estamos a precisar. É um filme sobre o passado, vi- lo Costa recitou poesia, que dita por um coronel soube a
rado para o potencial do futuro. E era essa a medida do modernidade e frescura, as intervenções poéticas do autor
meu tio e daqueles miúdos que se fizeram à estrada, na- de De Poucas Palavras.
quela altura, na ressaca da liberdade, na histeria das Assistiram algumas dezenas de pessoas, com intervenções ,
imensas possibilidades que, de repente, lhes pertenciam.
ao lançamento.

ROSA AZEVE D O AN T Ó N I O AU GUST O M ENA NO


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Um arco:
1975-2021
Os homens e as mulheres de além Tejo,
“pilares de sangue e suor que atravessaram
séculos de paisagens golpeadas” –
assim os descrevi há meia vida.

Esses homens e mulheres que a História levantou,


do ingrato chão erguidos, mais altos que o seu tempo
fazendo da terra infértil de poucos
a terra fecunda de muitos – eram anos de Abril longo.

Vi-os sim, claramente vistos,


nos campos caminhando, nas estradas em reboques de tractores,
suas rubras vontades desfraldadas
como se fossem O Quaarto Estado de Pelizza da Volpedo
ou acabassem de sair do Novecento de Bertolucci.

Vi-os sim reinventando o pão e o vinho, fazendo os frutos vir,


criando os animais, desnudando sobreiros,
e compartindo como se
um nervo de honradez vertebrasse o país possível.

E lembro que por isso e por serem verticais e juntos


a essa gente a esperança lhe ceifaram
espoliando-a do que seu pudera ser
porque era afinal de todos.

Olho-te agora, planície deprimida,


ardente e gelada e ainda rubra
e descubro outra vez os teus velhos fabricos.
Pois em lugar te converteram
de intensiva (in)cultura e pobreza e solidão.

E em ti fabricam hoje mais escravos,


com novas servidões chegadas de Oriente,
como ontem de África vieram,
pelos negreiros de agora transportadas.

Porto – Odemira e volta, 15-5-2021

J OÃO PE D R O M É S S E DE R

SUSA NA M AT OS
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O
Cancro
do Povo
A N D R É R UI VO

E
ste texto poderia falar do tempo que faz, do facto
de estarmos em finais de Maio e de a chuva tei-
mar em impedir-nos de desfrutar das esplanadas
finalmente abertas (sim, está a chover enquanto
Sonhava escrever com a leveza do voo de um pássaro, assinar ofícios escrevo estas palavras), mas vou antes escrever sobre outro
com o fulgor de uma estrela cadente: luz apenas. dos maiores quebra-gelos conversacionais da nossa gloriosa
nação: o futebol. Esclareça-se desde já que se trata de um
Naquela tarde, gozo de menino a rabiscar paredes, resolveu adestrar a assunto pelo qual alimento um sentimento pouco acima do
mão. Ritmos poéticos, a Parker corria leve no papel. Autónoma, precisa. da indiferença, e, consequentemente, sobre o qual os meus
conhecimentos são bastante superficiais, razões por que
Refulgências de ouro por baixo de “O Administrador Geral”. Ele absorto, peço desde já desculpa se o mesmo não for abordado com
perdido, cabeça longe. a profundidade que seria de esperar. Confesso ter um clube
de eleição, que caso o leitor esteja muito curioso é o Benfica,
Fez trezentas assinaturas assim. Trezentos ensaios perfeitos. Trezen- e embora raramente veja um jogo do início ao fim (ou se-
tos despedimentos de sonho. quer um resumo) tive ocasião de ver ontem o referido clube
a deixar escapar mais um campeonato este ano, a Taça de
Portugal. Não estou nem fiquei mais triste do que já esta-
A U G U ST O BAPT ISTA va, porque há muito que o futebol deixou de mexer comigo
in “Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias” dessa forma (se é que alguma vez o fez). Já me cansam, e
creio que a toda a gente, aqueles programas de “debate” que
se disseminaram pelos vários canais de televisão e nos quais

empreendedorismo
se reúnem “representantes” de cada um dos “grandes clu-
bes” para emular um ambiente de tasca e falar sobre (quase)
tudo, menos sobre desporto. Encaremos o óbvio: o campeo-
A matutar no tempo, infindo tic-tac, tic-tac, tic-tac, o senhor Proença
nato português de futebol é de uma pobreza confrangedora,
teve uma ideia, rapidamente experimentada. Começou por eliminar, na e basta ver um jogo entre duas equipas do meio da tabela
da liga espanhola para perceber o que digo, por via de uma
composição dual, o subtempo tac, assumindo a plenitude tic. Os resulta-
inevitável comparação. Claro que há bons jogadores no país,
dos confirmaram as melhores expectativas. mas é muito difícil retê-los num campeonato onde infeliz-
mente não há nem equipas boas nem boas equipas. Talvez
Sem demora, introduziu na sua empresa o modelo de poupança tac, con-
o cenário fosse um pouco melhor se, como me diziam há
sagrando o tempo tic. Desta feita, o trabalho antes concretizado pela uns dias, os jogos fossem transmitidos em sinal aberto e se
as pessoas mantivessem o hábito de ir ao estádio, mas não
mão-de-obra num monótono e oneroso tic-tac, tic-tac, tic-tac, passou ao sei se isso iria ajudar assim tanto a tornar as equipas me-
ritmo vivo tic, tic, tic, tic. tic, tic, com resultados tac, tac, tac, tac, tac, lhores. Veja-se o caso da polémica que envolve actualmente
o jogador Shoya Nakajima, de quem agora se suspeita que
tac. terá viajado em Janeiro para o Dubai com testes à Covid-19
forjados por um laboratório que parece estar sob o controlo
de algumas equipas de futebol. A confirmar-se a suspeita,
A U G U ST O BAPT ISTA e perante o panorama pandémico que nos afecta a todos,
in “Lacrima” tratar-se-á de (mais) uma gravíssima machadada na con-
fiança que as associações de futebol nos merecem, por ser
uma gigantesca demonstração de falta de ética, civismo e sa-
ber-estar em sociedade. E note-se que aqui não está impli-
cada qualquer razão clubística (se se tratasse de um jogador
do Benfica eu estaria a escrever exactamente o mesmo), e
dizer-se que se trata cada vez mais de um mundo onde o vil
metal fala sempre mais alto também não explica nem esgota
o assunto. Porque a própria existência da suspeita, só por si,
transporta o futebol de ópio do povo para cancro do povo. E
LARGO DO CARVÃO, N.º 5
a metáfora clínica é deliberada, claro.
3080-070 FIGUEIRA DA FOZ
+351 233 097 374
CATAVENTOS.FF@GMAIL.COM
BRUNO FONT ES
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Exploração e tortura
Era dez a doze horas dadas à mina. Oito horas eram passadas
de picareta em punho, as restantes contavam-se na descida da
superfície ao fundo e vice-versa e pelas enormes viagens pelos
túneis de centenas de metros até se atingir o local exacto onde se
iria manifestar a simbiose homem/carvão.
Logo pela manhã, 6, 6,30 horas, os mineiros depois do café com
migas de broa ou da cachaça, matabicho, na tasca, lá iam pés
descalços direitos à boca da mina, no Verão ou no Inverno ven-
toso do Norte ou do vento do mar que arrastava consigo horas
intermináveis de chuva copiosa e fria e que os molhava até aos
ossos. Formavam bicha esperando o seu tempo de descida. As
vagonas que carreavam 4 a 5 homens, cada uma, numa veloci-
dade lenta, aos sobressaltos, saltando por vezes dos carris entul-
hados com o carvão, embatendo nas escoras laterais e centrais,
deixando os homens num sobressalto, lá iam poço abaixo.
O corredor era estreito e baixo: tinha a largura de duas vagonas
que viajavam em sentidos opostos e os homens tinham de viajar
agachados evitando o toque no tecto.
Os poços desciam em plano inclinado, rasgando as entranhas da
terra, oceano dentro. Os tectos escorados com tábuas e barrotes
eram o chão do mar. Lá por cima andava o mar, revoltado ou
brando, também ganha-pão duro para outros. E nos poços, de
quando em vez, caíam grossas nuvens de água que molhavam
os homens que na barriga da terra também buscavam o pão.
O chão dos túneis enormes, repletos de lascas de carvão e carre-
gados de humidade, eram o tapete em que o mineiro se movia.
Os pés descalços ou protegidos por uns frágeis socos de madeira,
iam chapinhando a água. A carne dos pés rasgava-se no con-
tacto com as lascas de pedra negra, a água de um negro bar-
rento recebia o sangue e aparecia mesclada, tal como paleta com
somatório de tons.
Corte em cima de corte, ferida em cima de ferida, não hav-
ia paragens. O sangue diluía-se na água, os pés atolavam-se,
muitas das vezes o homem nem dava por mais uma ferida. Os
pés grossos, gretados e deformados, eram um completo analgésico
à dor.
E o sangue escorria e nem sulfamidas, mercúrio, um simples
penso, para curar a carne rompida.
O dia seguinte era a repetição do dia anterior.
Só passados anos e anos, com a chegada de um novo engenheiro
à companhia, o mineiro passou a usar umas botas grossas, feitas
de pneu. A “companhia” confeccionava-as e o mineiro, mensal-
mente, amortizava-as.
Ficaram os pés mais protegidos mas as marcas dos cortes, as
deformações, lá estão. São como recordações vivas de um pas-
sado bárbaro. E o mineiro para que aquela vida fosse melhor
entendida e a título de prova real, tirou o chinelo de enfiar e
mostrou-me o corte no pé e o dedo deformado.
Não o fez por orgulho, mas por denúncia.

AUGUST O A L B E R TO PI NTO R O D R I GUE S


Jornal Barca Nova, n.º 123, 1980 PE DR O S I M Õ E S
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CONVERSA COM
ISABEL GIRÃO

Maio,
que dizer...
M
aio sempre (?) classe dos tipógrafos que sempre das amêndoas, as castanhas pi- contos (dois mil escudos) solici-
foi um mês fez do 1º de Maio o seu dia feria- ladas e muita festança.Tudo em tados ao banco para financiamen-
muito chega- do acima de qualquer outro. "Nem louvor da queima do "traste". Ele, to da obra foram-lhe recusados.
do à memória a ditadura os conseguia impedir o "Picha", pescador no rio e na Mas, com ajuda de um lojista (Zé
do figueirense de comemorar este dia", afirma o boca da barra, na descarga da sa- Santos) da Praça Velha, e a dispo-
adepto da festa e das tradições. A Jorge, sempre atento à jogada...E fra das traineiras, ali na Praia da nibilidade da firma de construção
presença do sinal interrogativo le- hoje, como é? Alguém que nos in- Sardinha, ali defronte ao jardim Guilherme Gonçalves Correia, as
va-nos a duvidar que nem sempre forme, por favor...estamos curio- municipal, e também nas idas à obras realizaram-se e eis a Isabel
isso terá acontecido. Como, por sos por saber. E, para rejuvenescer Terra Nova, onde a pesca do ba- à frente de uma loja que haveria
exemplo, agora. Porquê? Talvez o ambiente logo a Isabel cantaro- calhau lhe proporcionava o neces- de se transformar num dos poucos
falando com alguém, conhecedor lou "Vivó Maio, vivó Maio / Vivó sário para recuperar do "prego" o estabelecimentos do seu ramo ca-
e intérprete das coisas boas (e Maio, esteira no chão / Vivam os que fora preciso para suportar as paz de conquistar público de fora
más...) da vida, mas sempre dis- quatro rapazes / nas noites de S. despesas do ano. A Isabel recorda da Figueira da Foz. "Eu cheguei a
ponível para acrescentar algo de João (?)." Tudo é possível quando tudo isto, num fundo sépia, a ima- ter no Casino da Figueira , naque-
positivo, desafiante, irónico, em a criatividade se exprime. gem de seus pais. A voz embarga- le corredor em volta dos Salões de
suma viva e directa, tal como tem E como foi aquele primeiro de -se, a lágrima brilha na face, mas Festas, duas montras da Beljor,
sido na sua vida profissional e de Maio de 1974? "Que a lembrança logo se refaz no olhar brilhante, bem concebidas, e que ajudaram
cidadania. perdure...", responde. quando se recorda da sua infân- ao seu reconhecimento e divulga-
Estamos, pois, a falar com Isa- Hoje, a coisa está com mau as- cia, nove anos de idade, já a traba- ção". E, já que estamos a falarmos
bel Girão, a "Isabel da Beljor", pecto, seja pelo Covid 19, se pelo lhar, durante o verão, na Sapataria de montras, eis um exemplo do
sobre este Maio ainda de traba- azar dos diabos, o certo é que Elegante, bem colada ao Parque- que foi possível fazer-se na Beljor.
lho, sem festa e desilusão qb...Na grassa a ideia que nada será como -Cine, no acesso ao Bairro Novo. A Isabel conta-nos como foi...
presença do Jorge, seu marido, por dantes, etc e tal. O 1º de Maio lá Depois, fez-se o regresso à baixa As montras foram concebidas
aqui se falou do 1.º de Maio, sem- resiste, nem que seja no calendá- da cidade, onde durante dois anos para mostrar o que vendemos, o
pre celebrado antes e depois de rio e na lembrança de muitos, mas trabalhou no "Serafim dos Reis", que temos, e o que sugerimos. Os
Abril... damos conta (???) que uma nova uma bela chapelaria situada na manequins são imprescindíveis,
"Era ver os ranchos das Flo- ordem se impõe contrariando os Praça Nova (8 de Maio), onde mas há que saber "vesti-los", dar-
res, das Rosas, das Carvoeiras, do hábitos adquiridos. É a querida hoje está um restaurante recente, -lhes "charme", movimento, luz e
Vapor, das Cantarinhas, das re- sustentabilidade a esfrangalhar- à entrada da pequena ladeira para poesia (palavras de uma vitrinista,
dondezas (Lares, Lavos, Maiorca, -se...querem ver!?..."De resto... o Monte. nossa conhecida), mas para a qual
entre outros), correndo a cidade, que se passa por aqui? NADA!", Da Praça Nova à Praça Velha nunca teria imaginado o que du-
transmitindo música e colorido regista a Isabel, de porta aberta, é um saltinho, e nesta praça, mais rante alguns tempos se passou na
à peregrina ideia de não deixar um hábito que mantém, porque propriamente no largo Luís de Beljor. De facto, a Isabel reparou,
entrar o Maio", lembra a Isabel, sim. Mas, logo lembra a "Queima Camões, foi empregada durante em tempos idos, na presença diá-
que acrescenta "constituir uma do Judas", que seu pai, o "Picha", 18 anos na Retrozaria Rascão. ria de militares estacionados nos
tentativa de entrar o mês antes do organizava anualmente na rua Novembro de 1971. É a grande dois quartéis existentes na cidade
dia nascer..." a que o Jorge refere da Restauração, rua 31 de Julho, viragem na vida da Isabel e,claro, (CICA e Artilharia Pesada3) que,
ainda a ida de muita gente à fonte mais tarde transferida para a zona do inseparável Jorge Girão. Surge após as seis da tarde, estacavam
de Tavarede, logo pela madruga- do Vale, onde apanhar o bacalhau a BELJOR. O Jorge trabalhava em frente da montra da Beljor,
da talvez para debelar o efeito da por quem melhor subisse o pau no BNU (Banco Nacional Ultra- olhando a oferta exposta. Pensa-
noite anterior, ou para purificar o ensebado, enquanto os rebuçados marino), mas disso a Isabel não riam fosse o que fosse, mas tal não
espírito. Isto para não esquecer a voavam para a criançada, a par tirou vantagem alguma. Os dois passou despercebido à nossa ami-
9

assistência, cumprindo as regras


da época, sentavam-se as jovens
figueirenses aspirantes a uma so-
licitação cavalheiresca do homem
semi-curvado sob o desejo con-
fessado "a menina dá-me a honra
de a convidar a dançar este pas-
so-doble?". Assim, ou parecido,
entr egas
terá dito Alves Barbosa, dirigin-
do-se à nossa conterrânea Isabel,
ao
moradora bem perto de nós...Ao
convite feito, a aceitação foi clara,
domí ci li o
meio embevecida, dando o braço à
mão estendida do campeão de ci-
clismo. Festa ao rubro. Tubo bem,
como agora se diz...Mas os tem-
pos eram outros, bem diferentes.
No dia seguinte, à hora do costu-
me, o Jorge Girão, seu namorado
já nessa altura (caramba, sempre
foram onze os anos de namoro),
no seu trajecto para a escola da
noite, passou pela Isabel, pendu-
rada à janela, e lhe disse, sem de-
moras, olhando para o lado, mas
com voz bem dirigida "Com que
então Alves Barbosa!?..." A coi-
sa soara mal, e deu origem a uns
tantos meses sem trocas de olhar,
sussurros desaparecidos, palavras
e frases nem vê-las. E, para o Jor-
ge, mais solto pelas ruas da cida- RUA DA REPÚBLICA, 116-118
de, a coisa agrava-se, quando se FIGUEIRA DA FOZ
cruzava com a figura "tenebrosa" 233 402 470
do "Chanoca", negro do carvão
no local onde trabalhava, de idas e
vindas à Olinda Barbosa (depois
A Gaivota, mais tarde Terra e
Mar e hoje Cozinha da Belinha")
e outra tascas da então baixa fi-
gueirense, que o levavam a entoar,
a cada meia dúzia de passadas, de
forma exaltada, a figura do ciclis-
ta, com um "Alves Barbosa" de
ga Isabel. E se pensou em algo de- Lisboa, decidida em conhecer um som estrondoso, mas do pouco
pressa o colocou em prática com casal luso-britânico prestigiado agrado do Jorge. Ao fim e ao cabo,
a criação do chamado manequim no mundo da moda. Sózinha, ba- como nos filmes de cowboys, ou
"vivo". Assim, pelas 18 horas, a teu-lhes à porta, dizendo ao que de capa e espada, a menina e o
Isabel passou a assumir a persona- ia quando a empregada lhe per- artista lá se voltaram a reunir, em
gem do manequim tipo "mimo" guntou "Quem devo anunciar?", estreita combinação de valores e
(hoje assim conhecidos). Imó- "Olhe, sou a Isabel...da Figueira!". ,confessem, numa paixão resis-
vel, em pose por vezes cansativa, Momentos não demorados e esta- tente e uma forte dose de família,
a Isabel lá os ia fascinando, até va traçada uma amizade de longa não esquecendo como é preciosa a
que repentinamente o encanto se data entre a Isabel e os seus novos figura da Rosa Barbosa (a Bá para PRAÇA
quebrava com o salto, o esgar, ou parceiros no mundo da moda... todos os familiares), colaboradora
o olhar atrevido da Isabel... Re- 1958 - Alves Barbosa, ciclista há 48 anos, com lugar garantido GENERAL
presentar foi aliás mais um moti- de renome, tinha vencido nesse na foto de família. Isabel, uma FREIRE
vo para refinar a sua participação ano a Volta a Portugal. O Spor- vida cheia numa cidade...
no teatro da vida, no cinema, no ting Figueirense, com sede na E, já que estamos aqui, na Bel- DE
desfile artístico, na festa popular,
no concurso do vestido de chita,
Rua dos Combatentes da Grande
Guerra, organizara um baile de
jor, reparem na construção do
nome desta marca. Sufixo e Prefi-
ANDRADE
ou no mero banho santo, fosse no pompa e circunstância a fim de xo nominais sobre cada um deles 18
Carnaval, no São João, ou no Fim receberem o consagrado ciclista, (IsaBEL e JORge). Haja criativi-
d'Ano. Desembaraço, simplicida- natural da Fontela, Vila Verde. dade. SAÚDE!!!
de, nunca renegando as origens, A sala estava à pinha, sem dis- FIGUEIRA
alegria de viver, foram predicados
que lhe deram sempre o braço, tal
tância de confinamento, a orques-
tra deambulava entre o bolero e DA FOZ
como se apresentou um dia, em o mambo, enquanto na 2ª fila da CB
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número 70 maio 2021

A N A BI SCA I A
A
nsiedade e insónia, maleitas cias não exigem receita detalhada, mas há por lá um rapaz, que
antigas que a idade e o ar aparecia a comentar bola e agora aparece a comentar tudo, que é
dos tempos têm ajudado tiro e queda. Mal o escuto, ferro-me a dormir.
a mitigar. Com a idade, a Entre ancestrais e anciãos, os do “Eixo do Mal” poupam-me
gente aprende a relativizar a gravidade milhares em benzodiazepinas. Aurélio, Oliveira, Marques
dos problemas. Com o ar dos tempos, Lopes, Luís Pedro Nunes e Clara Ferreira Alves? Benza-os
cravejado de problemas, a gente vê-se Deus e todos os santinhos. Não os escuto há 10 minutos, já
na obrigação de ficar selectivos e criteri- a mulher fecha a porta da sala para não me ouvir roncar. Em
osos, usando de esperteza para encontrar bom rigor, acordo assim que os ditos se calam, as vozes dos
remédio onde outros vislumbram aflição e motivo para angústia. tudólogos devem produzir um feitiço qualquer, são um podero-
Por via de confinamentos, emergências e calamidades, so soporífero pelo qual devemos sentir-nos agradecidos. Não
recolhido no lar, dei comigo a navegar num mar de especialistas sei se curam covid-19, embora tudo saibam acerca do tema, mas
que sobre tudo peroram e sobre nada calam. Um que apareça insónias curam. Sou a prova factual disso mesmo. A família não
a concluir “não sei”, e a gente alça as orelhas como canídeo me deixa mentir. Se me queixo de sono, noites mal dormidas,
expectante. Não sabe? Como é possível? Hoje toda a gente sabe buscam na box um desses programas e abandonam-me na sala,
tudo. Que raio, alguém assumir um pouco que seja de ignorân- deitado na sofá, como a um viciado numa casa de ópio.
cia onde a genialidade, ao contrário do bom senso, parece ser a Num destes fóruns, na SIC Radical, é suposto expurgar-
coisa mais bem distribuída do mundo. em-se irritações semanais. Aquilo é de uma eficácia inacreditáv-
Portanto, em terra de génios quem ignora é rei. A ignorância el. Anda por lá uma Carla Hilário Quevedo que é música “new
ressuma excepcionalidade. Apercebi-me disto, pela primeira vez, age” aos meus ouvidos, ouvi-la é como se alguém soprasse ao
quando era livreiro, tantos os pais e as mães e os tios e as tias ouvido, muito baixinho e serenamente, delicadamente, descansa
que me pediam sugestões para os seus meninos. Questionados filho, descansa, vem aí soninho bom e descansadinho, tranquilo.
sobre a idade dos petizes, lá vinha o “mas” sublinhando espan- Ela abre a boca, eu fecho os olhos. O nome do meio até lhe fica
tosas qualidades: 5 anos, mas muito desenvolvido para a idade; mal.
8 anos, mas já parece que tem 15; 15 anos, mas de uma matu- Devo pois um sincero reconhecimento a toda essa malta do
ridade inaudita. Como podia eu saber, ou sequer imaginar, ser comentário universalista, os tudólogos, sábios imprescindíveis
este um país de gente sobredotada? A gente olha à volta e a um sono relaxado. Melatonina? “Eixo do Mal”, “Governo
«Quantos deve haver no mundo que fogem de outros Sombra”, “Irritações”, “O Último Apaga a Luz” (nome mais
porque não se vêem a si mesmos!», exclamava o bom Lazarin- pertinente para um programa congénere não há)... Meus queri-
ho de Tormes. E com razão. Quase 500 anos passados sobre as dos e impagáveis tudólogos, envio-vos daqui um abraço sincero
desventuras desse maltrapilho, eis-nos chegados ao Portugal de profunda gratidão. O sono que me causam é proporcional à
dos tudólogos. São uma bênção, um conforto para a alma dos simpatia que vos tenho. Muita.
néscios e um consolo para o espírito dos estúpidos. Inda há
dias, contava a um bom amigo, cozinheiro de profissão, dos Caldas da Rainha, 05/Maio/2021
efeitos benditos que fui descortinar na melhor das tisanas, a
programação de tudologia disseminada por 500 canais televi-
sivos ao dispor de precatados cidadãos. Até o Porto Canal tem
os seus. Não lhes fixei o nome, que para tais fármacos as farmá-
11

N
a exposição realizada por António Viana, na Fi- palavra há séculos: é aquele que pratica uma arte mecânica, ma-
gueira, em 2008, apresentavam-se dois “objetos”: nual, muito próxima do artesanato com que a pintura em dado
um “Mecanismo para Construir Ideias” (1994) momento quis romper e é aquele que é “mental”, “moderno” no
e uma “Máquina para fabricar sexos” (1998). A sentido em que faz aparecer na tela um mundo, o seu mundo, o
materialidade desses “objetos” conjugava-se bem mundo que ganhou forma pela mediação da sua própria elabo-
com o sentido geral da exposição, que tinha, como título, uma ração pictórica.
expressão adequada: “I’ll prove I can make you a new man”. Conviria, aliás, não estabelecer uma demarcação muito rígi-
O esclarecimento deste título era, no entanto, demasiado da entre o trabalho do pintor e o trabalho do museógrafo. Em
discreto para que dele pudessem retirar-se todos os elementos duas temporalidades diferentes, mesmo porventura irredutíveis,
úteis para a compreensão dos sentidos (nas várias acepções da trata-se de dar a ver, criar condições para que uma determinada
palavra) do trabalho plástico de António Viana. visibilidade ocorra: seja a visibilidade de formas já existentes
Charles Atlas foi um culturista americano nascido na Sicília seja a visibilidade de formas que por sua vez dão visibilidade ao
que transformou um trabalho pessoal de modelação do corpo que ainda a não tinha.
em autêntico culto que divulgou em revistas populares de banda É esta imensa, pormenorizada, subtil atenção às formas que
desenhada. coloco na zona mais elementar, subterrânea, do imaginário de
Já não será propriamente desse culto mas da adequação António Viana. Daí irrompem: ora na força poderosa dos seus
mítico-poética do rasto desse culto ao ambiente artístico dos volumes simples ora na combinação em formas mais complexas,
anos sessenta e setenta que António Viana extrai os elementos máquinas ou mecanismos, bi ou tridimensionais, lançados à
constituintes do seu itinerário artístico. nossa atenção, sob títulos engenhosamente enganadores (“Sem
Na singularidade desse itinerário – entenda-se por singu- título”) ou esplendorosos disfarces de uma aventura a que vou
laridade: a relativa indiferença perante correntes estruturadas, chamar íntima (na exposição de 2008, refiro, por exemplo, as
como se a afirmação de um imaginário próprio e respetivas séries “Fortaleza na Linha da Frente”, “Dos Descobrimentos
soluções plásticas fosse mais forte – cruzam-se, pelo menos, Portugueses” ou “Férias de Verão”). E é também a essa atenção
uma visível recepção da cultura pop, uma elaboração da estética às formas que devemos vincular o trabalho do museógrafo.
da banda desenhada, um aceno discreto ao que permaneça vivo O que permite contextualizar melhor a fórmula certeira de
na tradição surrealista e a consciência de que as artes plásticas Fernando Azevedo, no já longínquo 1998: “Fica-lhes, a essas
estão a sair do espaço do quadro e a tornar-se instalação ou per- formas, o possível grito – mordazmente dado –, a eterna procu-
formance. ra da liberdade de existir. A utopia, enfim”.
Estes aspetos, combinados em proporções diferentes, são
unificados por António Viana numa valorização pessoal da AN T Ó N I O PE DR O PI TA
serialidade, que se aproxima direta ou indiretamente de uma
modalidade de narrativa.
A propósito da exposição intitulada «Proximidades», Cris-
tina Azevedo Tavares sublinhou “a forma de desenvolvimento
do trabalho artístico” de António Viana, em que um projeto ou
processo está sempre em continuidade ou simultaneidade com
outro. É essa retomada serial de formas, imaginários, inscrições
textuais, citações de dispositivos próprios de outras expressivi-
dades (como já referi, no caso da banda desenhada) que subjaz
ao fantasma narrativo em que se organizam a continuidade ou
simultaneidade dos seus processos.
Deste ponto de vista, a obra plástica de António Viana é um
concentrado pessoal de grandes tendências que, desde a segun-
da metade do século vinte, percorreram a cena artística. Pessoal,
sublinho: capta-se nesse itinerário plástico uma gravidade (no
sentido clássico de “gravitas”), uma seriedade que se oculta ou
quer transfigurar em ironia ou humor, como os dois objetos
inicialmente referidos exemplificam.
Essa gravitas, transfigurada em humor ou ironia, confere
ainda maior densidade à relação do manual e do mental, nesse
itinerário também visível.
António Viana é “pintor” no duplo sentido que marca a
12
número 70 maio 2021

1. Uma Linguagem
de Guerra
Dentro do grande dicionári
o progressista
têm vindo a agigantar-se, co
m autoridade,
as ideias de autonomia e de
colaboração, 3. Apontar para ci
conceções mitológicas já tão ma
frequentes Direcionar a sede de revolt
quanto o senhor mérito e a a para cima
propriedade. era algo particularmente rev
olucionário
quando a puberdade destr
uía os encantos
Num tempo em que nada
significa nada da vida banal, e os substitu
e tudo corresponde apenas ía por borbulhas
a um atalho, no rosto imberbe do guerr
eiro temerário.
a linguagem perde força, a
ação alimento.
Vemo-nos assim reduzidos
a ouro cunhado, A hierarquia familiar estava
privados dos trabalhadores na aurora
e do trabalho. dos prélios mais incessantes
e sangrentos.
E posteriormente, quando
a ingenuidade
Recuperemos esses termos
dogmáticos parecia já ter abandonado
o nosso colo,
que tanto assustam e que tud
o afrontam. Deus e Estado ficaram na
mira dos sargentos.
As restantes páginas que no
s fazem vomitar
são vendas estratégicas que
tolhem a marcha, Parecia quase um ato instin
armas voltadas para os alvos tivo e ordinário,
que as apontam! sem qualquer repercussão no
s nossos dias.
E aí descobrimos o poder
de matar o próximo:
2. Formação do ex
ército o ego incha e faz-nos esque
Estimados heróis da conte cer a impotência
mporaneidade, de um só escravo que nunc
a conheceu o Messias.
saibam que as capas ficam
dependuradas
nos pináculos dos grande ed
ifícios seculares, Foi tudo tão pouco, tão int
enso e tão estúpido.
e que apenas estão autoriza
dos a esvoaçar Apontemos para cima, solda
entre as criaturinhas mais dos, mas bem!
desamparadas. A providência que se abste
nha e se afaste,
o Estado baleado que cure
todas as feridas.
Punamos a demonização do
s companheiros, Agora é para acertar nos do
as medalhas de atletas de alt nos de ninguém.
a exploração!
JOANA SILVA Saibamos ser o que somos
e queremos ser. 4. Disparar.
Uma cela com uma janelinh
a para o mar
continua a ser indiscutivelme
nte uma prisão.

Percamos o amor a esses son


hos possíveis,
porque meia dúzia de troco
s não é capital.
Sejamos um exército com
lutas impossíveis.
Apontar para a frente não
pode ser opção,
é necessário desafiar uma ord
em natural.

J OÃO CA ROLA
13

O poeta acredita no exercício dos milagres,

embora saiba que não andará o coxo

e não verá o cego se não houver perseverança.

Por ele, será esse o milagre,

com a intenção divina colocada

num agudo alto de contradições

A N A B I SCA I A
onde tudo é palavra, música, matemática,

olaria, caça, metalurgia, arquitectura,

para além do lavrado rebordo da viagem

que circum-navega o coração

Junho de 1918 e dá a volta ao mundo. É,

E
o poeta acredita e não estranha
ra uma vez... um careca de se tirar o chapéu. Aliás, duas vezes, para limpar o
suor que lhe escorria pela nuca! A feira naquele dia estava uma desgraça, e o lume branco que por dentro o queima,
ele sentia a falta dum rolo de notas a colar-se no bolso das calças. Com tanta
humidade, até talvez o enchumaço lhe salientasse a virilidade... com a branda sageza da estranheza.
Se achou graça à sua própria malandrice, o que lhe veio aos lábios como sorriso
faria gelar o burguês mais afoito. in Atlas das Circunstâncias, 2012
Tinha uns olhos que pareciam covas profundas, hipnóticas. O tempo curvara-o
como um símio, porém continuava impaciente e impressionante.
Quem pelos modos não ligava a nada disso, era o campónio que se aproximou. AM A D EU BA PT I STA
De andar firme, mas meio a hesitar, nem punha a vista toda sobre a pileca que Paco
Zamora, com a mão esquerda, segurava por uma corda, logo dissimulando a vergasta
na outra.
Tosco embora, tentou uns arremedos de sedução:
− O compadre já mirou bem esta maravilha?
− Mirar, mirei. Não sei, é se vale tanta espantação...
Sentindo o negócio andar para trás, Zamora − o famigerado Canhoto − fez os pos-
síveis para calcular o verdadeiro interesse do sujeito. E avançou, com mais insinuações
de manha e picardia:
− Olhe que este safado é uma fera. Vire-se bem para ele... Tem tudo o que precisa, é
uma autêntica peça de museu!
− Que é antigo, vê-se... Só me faltava, agora, era senti-lo a escoicear! Deixá-lo... Vou
mas é dar, antes, uma volta...
Exasperado, Zamora virou-se para aquele céu − de onde se precipitava só uma luz a
FÁTI M A QUIN TE IRO

jorros e a torreira do sol, tornando ainda mais inclemente o inferno que eram todos os
seus dias. A vacilar, sempre agitado, deu porém ares de conciliação:
− Espere aí, homem. Garanto-lhe que não encontra nada a tanto seu contento... E
nem sequer falámos de dinheiro. Vossemecê faz o preço, que o jumento acompanha-o
com todo o desempenho... Isto é um animal de estimação. Não uma besta de carga!
Então, fitando enfim de frente o bicho suplicante − pois Alfazema condoera-o lá de
longe, tão lastimoso era o seu zurrar − o aldeão determinou ao desprezível Zamora:
− Não te faças de mula... Esta nota, e é tudo. Depois, cada um de nós segue o seu
caminho, e aí o burro fica em liberdade...
Firme, para tornar a transacção irrecusável, João Salvador exibia um troço de papel
com letras, meio encardido e desbotado, como se fosse uma autêntica preciosidade.
Paco Zamora nem sabia o que fazer. Desconfiado com tanta coisa estranha, zarolho
mas ganancioso, ele só não queria que o tomassem por parvo. Mas, também, custava-
-lhe mostrar que até analfabeto era. Respondeu, pois, pelo seu instinto, ameaçador:
− Seu pedaço de asno! Vem para aqui esgazeado...
Mas o simplório enganava. Era de rija cepa e já lhe tinha trocado as voltas, cortan-
do − zombeteiro − quaisquer veleidades:
− Deixa a guerra em paz, palerma... Aproveita. Não percas a tua última oportunida-
de!
Pronto, o Zamora não se fez mais rogado. E, embora Canhoto, largou a chibata de
rompante, arrebatando a suposta fortuna com a manápula direita.
Saíram-lhe, mesmo, tais palavras: Têm asas como os pássaros, os anjos da nos-
− Bom, não faz mal. Quem compra, manda! E que cada um de nós cumpra o seu sa infância, mas asas tem o homem que pen-
destino. Como se costuma dizer, albarda-se o burro à vontade do dono... sa no próximo e respeita (avalia) a sua dor.

Os EntreTantos
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número 70 maio 2021

R I CA R D O L I M A

Porto Comercial da Figueira da Foz. O barco estava para zarpar. Um homem desenvencilha a rede que permite subir e descer para o barco em segurança.

Uma menina diz: eu só tenho dez anos. Soldados israelitas avariados: seres
Metade do ecrã mostra como é a morte. com forma de humano, mas sendo
Seres humanos chorando outros, verdadeiramente vermes.
enterrando outros, salvando outros. Perseguindo, matando, prendendo,
Corpos transportados mortos envoltos ocupando, ocupando, ocupando.
em bandeiras de um país. Metade do ecrã mostra uma jornalista
Palestina. que pretende deixar claro: não existe no
Bombas. mundo nenhum sítio como Gaza.
Tiros.
AN A B I SCA I A
15

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número 70 maio 2021
16

Maria Oliveira recebeu uma


bolsa de criação (no âmbito do
Projecto sustentar da ci.Clo -
Bienal de Fotografia do Por-
to, que conta com o apoio da
CMFF) e esteve, cerca de um
mês, nas salinas da cidade a tra-
balhar. O nosso jornal deu conta
deste facto e fez de imediato um
pedido à artista, que, solícita,
acedeu ceder-nos uma das suas
imagens, imagem que se faz con-
tra-capa, deste número dedicado
ao trabalho. É o retrato de uma
marnoto que trabalha na cidade.
Braço levantado, pele coberta de
lama e de sal.
É uma trabalhadora do nosso
tempo.
De carne e osso. Sempre.

M A RI A OLI VEI RA
da série
de vagar o mar
2020

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