Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
TIROLE
PRÉMIO NOBEL DA
ECONOMIA
ECONOMIA
DO BEM
COMUM
tradução
Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
ECONOMIA E SOCIEDADE
CAPÍTULO 1
Gosta de economia? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
I. O que impede a nossa compreensão da economia . . . . . 29
II. O mercado e os outros modos de gestão da escassez . . . 36
III. Partilhar melhor a economia . . . . . . . . . . . . . 40
CAPÍTULO 2
Os limites morais do mercado . . . . . . . . . . . . . . . 46
I. Limites morais do mercado ou falha do mercado? . . . . 49
II. O não-mercado e o sagrado . . . . . . . . . . . . . . 52
III. O mercado, ameaça para as relações sociais? . . . . . . 59
IV. As desigualdades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62
CAPÍTULO 3
O economista na cidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
I. O economista, intelectual público . . . . . . . . . . . . 76
II. Os perigos do envolvimento na cidade . . . . . . . . . 79
III. Uma interacção necessária e algumas salvaguardas . . . 85
IV. Da teoria à política económica . . . . . . . . . . . . 88
índice 7
CAPÍTULO 4
A investigação no dia-a-dia . . . . . . . . . . . . . . . . 90
I. O ir e vir entre teoria e as provas empíricas . . . . . . . . 90
II. O microcosmo da economia universitária . . . . . . . . 101
III. Os economistas: raposas ou ouriços? . . . . . . . . . . 109
IV. O papel da matemática . . . . . . . . . . . . . . . . 113
V. A teoria dos jogos e a teoria da informação . . . . . . . 116
VI. Os contributos metodológicos . . . . . . . . . . . . 123
CAPÍTULO 5
A economia em movimento . . . . . . . . . . . . . . . . 127
I. Um actor nem sempre racional: homo psychologicus . . . . 128
II. Homo socialis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140
III. Homo incitatus: os efeitos contraproducentes
das recompensas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144
IV. Homo juridicus: direito e normas sociais . . . . . . . . . 150
V. Homo darwinus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153
CAPÍTULO 6
Para um Estado moderno . . . . . . . . . . . . . . . . . 159
I. O mercado tem inúmeras falhas,
que devem ser corrigidas . . . . . . . . . . . . . . . . 160
II. A complementaridade entre mercado e Estado,
e os fundamentos do liberalismo . . . . . . . . . . . . . 165
III. Primazia do político ou das autoridades independentes? . 167
IV. Reformar o Estado . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173
CAPÍTULO 7
A empresa, a sua gestão e a sua responsabilidade social . . . . 181
I. Numerosas organizações possíveis… e poucas escolhidas . 182
II. E a responsabilidade social da empresa em tudo isto? . . . 191
CAPÍTULO 8
O desafio climático . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201
I. A questão climática . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201
II. As razões da estagnação . . . . . . . . . . . . . . . . 204
III. Negociações que não se encontram à altura dos desafios . 212
IV. Responsabilizar os actores face ao aquecimento global . . 217
V. As desigualdades e a fixação de preço do carbono . . . . . 226
VI. Credibilidade de um acordo internacional . . . . . . . 231
VII. Conclusão: repor as negociações no bom caminho . . . 233
CAPÍTULO 9
Vencer o desemprego . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235
I. A constatação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 236
II. Uma análise económica do contrato de trabalho . . . . . 244
III. A incoerência das nossas instituições . . . . . . . . . . 247
IV. O que pode trazer uma reforma e como consegui-la? . . . 254
V. Os outros grandes debates relativos ao emprego . . . . . 258
VI. A urgência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 263
CAPÍTULO 10
A Europa numa encruzilhada . . . . . . . . . . . . . . . 265
I. A construção europeia: da esperança à dúvida . . . . . . 265
II. As origens da crise do euro . . . . . . . . . . . . . . 267
III. O caso da Grécia: muito rancor de um lado e do outro… 280
IV. Agora, quais as opções da Europa? . . . . . . . . . . . 286
CAPÍTULO 11
Para que serve a finança? . . . . . . . . . . . . . . . . . 292
I. Para que serve a finança? . . . . . . . . . . . . . . . . 292
II. Como transformar produtos úteis em produtos tóxicos? . 294
III. Serão os mercados eficientes? . . . . . . . . . . . . . 302
IV. Mas, na verdade, porque regulamos? . . . . . . . . . . 316
índice 9
CAPÍTULO 12
A crise financeira de 2008 . . . . . . . . . . . . . . . . . 321
I. A crise financeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 322
Uma liquidez pletórica e uma bolha imobiliária . . . . . . 323
II. O novo ambiente pós-crise . . . . . . . . . . . . . . 330
III. De quem é a culpa? Os economistas e a
prevenção das crises . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 344
O DESAFIO INDUSTRIAL
CAPÍTULO 13
Política da concorrência e política industrial . . . . . . . . 349
I. Para que serve a concorrência? . . . . . . . . . . . . . 351
II. E a política industrial nisso tudo? . . . . . . . . . . . 359
CAPÍTULO 14
Quando o digital altera a cadeia de valor . . . . . . . . . . 371
I. As plataformas, guardiãs da economia digital . . . . . . . 372
II. Os mercados bilaterais . . . . . . . . . . . . . . . . 376
III. Um modelo económico diferente:
quando as plataformas regulam . . . . . . . . . . . . . 382
IV. Os desafios dos mercados bilaterais
para o direito da concorrência . . . . . . . . . . . . . . 385
CAPÍTULO 15
Economia digital: os desafios sociais . . . . . . . . . . . . 393
I. A confiança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 394
II. A propriedade dos dados . . . . . . . . . . . . . . . 397
III. A saúde e a solidariedade . . . . . . . . . . . . . . . 400
IV. As novas formas de emprego no século xxi . . . . . . . 405
V. Economia digital e emprego . . . . . . . . . . . . . . 413
VI. A fiscalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 416
CAPÍTULO 16
A inovação e a propriedade intelectual . . . . . . . . . . . 420
I. O imperativo da inovação . . . . . . . . . . . . . . . 420
II. A propriedade intelectual . . . . . . . . . . . . . . . 421
CAPÍTULO 17
A regulação sectorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 444
I. Uma reforma quádrupla e a sua racionalidade . . . . . . 445
II. A regulação incentivadora . . . . . . . . . . . . . . . 449
III. Os preços das empresas reguladas . . . . . . . . . . . 454
IV. A regulação do acesso à rede . . . . . . . . . . . . . 459
V. Concorrência e serviço público . . . . . . . . . . . . . 464
índice 11
AGRADECIMENTOS
agradecimentos 13
PREFÁCIO
O que aconteceu ao bem comum?
prefácio 15
Já para não falar de outras dimensões, como sejam os valores morais, a religião
ou a espiritualidade, sobre as quais os pontos de vista podem divergir profun-
damente.
É, no entanto, possível eliminar uma parte da arbitrariedade inerente ao
exercício da definição de bem comum. A experiência de pensamento que se
segue oferece uma boa introdução ao tema. Imagine que ainda não nasceu e
que não conhece o lugar que lhe será reservado na sociedade: nem os seus genes,
nem o seu enquadramento familiar, social, ético, religioso, nacional… E per-
gunte-se: «Em que sociedade preferiria eu viver, sabendo que tanto poderei ser
homem como mulher, ser dotado de boa ou má saúde, nascer numa família
rica ou pobre, instruída ou pouco culta, ateia ou crente, crescer no centro de
Paris ou em Lozère, querer sentir-me realizado no trabalho ou adoptar um outro
estilo de vida, etc.?» Este modo de se interrogar, de se abstrair da sua posição na
sociedade e dos seus atributos, de se colocar «por trás do véu da ignorância»,
advém de uma longa tradição intelectual, inaugurada em Inglaterra no
século xvii por Thomas Hobbes e John Locke, prosseguido na Europa conti-
nental no século xviii por Emmanuel Kant e Jean-Jacques Rousseau (e o seu
contrato social), e, mais recentemente, renovada nos Estados Unidos pela teo-
ria da justiça do filósofo John Rawls (1971) e a comparação interpessoal do bem-
-estar do economista John Harsanyi (1955).
Para restringir as escolhas e impedir que o viés de uma resposta quimérica
atire a questão para o canto, reformularei a pergunta de modo mais simples:
«Em que tipo de organização da sociedade gostaria de viver?» A questão perti-
nente não é, de facto, saber em que sociedade ideal gostaríamos de viver, por
exemplo, numa sociedade na qual os cidadãos, os trabalhadores, os dirigentes
da esfera económica, os responsáveis políticos, os países privilegiassem espon-
taneamente o interesse geral em detrimento do seu próprio interesse pessoal.
Pois, como veremos neste livro, ainda que o ser humano não esteja constante-
mente em busca do seu interesse material, ignorar incentivos e comportamen-
tos não obstante bem previsíveis, como encontramos, por exemplo, no mito do
homem novo, conduziu, no passado, a formas de organização da sociedade tota-
litárias e depauperantes.
Este livro parte, como tal, do princípio que se segue: quer sejamos políti-
cos, directores de empresas, assalariados, desempregados, trabalhadores inde-
pendentes, altos quadros, agricultores, investigadores, qualquer que seja o nosso
lugar na sociedade, reagimos sempre aos incentivos com os quais somos con-
frontados. A combinação destes incentivos – materiais ou sociais – e das nos-
sas preferências define o comportamento que adoptamos, um comportamento
que pode ir ao encontro do nosso interesse colectivo. É por isso que a procura
do bem comum passa, em grande parte, pela construção de instituições que
visem reconciliar, na medida do possível, o interesse individual e o interesse
geral. Nesta perspectiva, a economia de mercado não é, em nada, uma finali-
1 Para nos limitarmos ao exemplo francês, seria necessário incarnar-nos em cada um dos nossos
cidadãos com uma probabilidade de um sobre 66 milhões… A crítica que nos dirigem as outras
pessoas, que têm determinações diferentes, pode ajudar-nos a melhor nos colocarmos do outro
lado do véu da ignorância. E, idealmente, não deveremos partir do princípio de seremos franceses,
mais do que cidadãos de qualquer outro país. O exercício torna-se ainda mais complexo quando
incluímos gerações diferentes, algo, no entanto, indispensável à reflexão acerca de questões práticas
como a da dívida pública ou as nossas políticas contra as alterações climáticas.
2 O que remete para a crítica dirigida por Aristóteles à noção de bem comum desenvolvida por
Platão. Aristóteles sublinha que a comunhão de bens na sociedade ideal imaginada por Platão
pode colocar tantos problemas quantos os que resolve.
prefácio 17
mos o exemplo dos bens comuns, esses bens que, por trás do véu da ignorância,
devem por questões de equidade pertencer à comunidade: o planeta, a água,
o ar, a biodiversidade, o património, a beleza da paisagem… A sua pertença à
comunidade não impede que, in fine, esses bens sejam consumidos pelos indi-
víduos. Por todos, na condição de que o meu consumo não impeça o vosso (é
o caso do conhecimento, da iluminação da via pública, da defesa nacional ou
do ar1). Por outro lado, se o bem estiver disponível em quantidade limitada ou
se a colectividade pretender restringir a sua utilização (como é o caso das emis-
sões de dióxido de carbono), o uso é necessariamente privatizado, de uma
maneira ou de outra. De tal modo que a aplicação de uma tarifa sobre a água,
o dióxido de carbono ou o espectro hertziano privatiza o seu consumo, outor-
gando aos agentes económicos um acesso privativo desde que paguem à comu-
nidade o preço acordado. No entanto, é precisamente a procura do bem comum
que motiva esse uso privado: o poder público pretende evitar que a água seja
desperdiçada, pretende responsabilizar os agentes económicos pela gravidade
das suas emissões, e opta por alocar um recurso raro – o espectro hertziano –
aos operadores que dele farão um bom uso.
Estas observações antecipam, em grande parte, a resposta à segunda per-
gunta, o contributo da economia à procura do bem comum. A economia, como
as outras ciências humanas e sociais, não tem por objecto substituir-se à socie-
dade na definição do bem comum. Mas pode dar o seu contributo de duas
maneiras. Por um lado, pode orientar o debate no sentido dos objectivos incar-
nados na noção do bem comum, distinguindo-os dos instrumentos que podem
contribuir para a sua realização. Pois, muitas vezes, como veremos, estes instru-
mentos, quer se trate de uma instituição (o mercado, por exemplo), de um
«direito a» ou de uma política económica, adquirem vida própria e acabam por
perder de vista a sua finalidade, sendo contrários ao bem comum que, em pri-
meiro lugar, os justificava. Por outro lado, e acima de tudo, a economia, tomando
o bem comum como um dado adquirido, desenvolve ferramentas que para ele
contribuem.
A economia não está nem ao serviço da propriedade privada e dos inte-
resses individuais, nem ao serviço dos que pretendem utilizar o Estado para
impor os seus valores ou fazer prevalecer os seus interesses. Ela recusa que tudo
seja mercado, como recusa que tudo seja Estado. A economia está ao serviço do
bem comum; tem por objectivo tornar o mundo um lugar melhor. Nesse sen-
tido, tem como tarefa identificar as instituições e as políticas que promoverão
o interesse geral. Na sua procura do bem-estar da comunidade, engloba as
1 Desde que não polua esse ar, claro está. Estes bens, em relação aos quais a minha utilização não
é rival da vossa, chamam-se, em economia, «bens públicos» (na definição de «bem público»,
acrescentamos, por vezes, a impossibilidade de excluir certos utilizadores: um evento desportivo
na televisão, um espaço comunitário, um curso online ou uma invenção patenteada são bens não
rivais, mas – ao contrário do ar – o seu acesso poderá ser restringido).
economia e sociedade 29
reforcem as nossas crenças e, assim, insistimos nessas crenças, certas ou erradas.
Ao confrontar alguns indivíduos com provas científicas do factor antrópico (ou
seja, ligado à influência do Homem) no aquecimento global, Dan Kahan, pro-
fessor de direito da Universidade de Yale, afirmou que os americanos que votam
no partido democrata ficam ainda mais convencidos da necessidade de agir
contra o aquecimento global enquanto, confrontados com os mesmos dados,
vários republicanos viam fortalecida a sua postura céptica em relação às altera-
ções climáticas1. Ainda mais espantoso é o facto de não se tratar de uma ques-
tão de instrução ou inteligência: estatisticamente, a recusa em aceitar as
evidências encontra-se, pelo menos, tão enraizada nos republicanos que dis-
põem de uma formação académica superior como nos republicanos menos ins-
truídos! Ninguém está a salvo deste fenómeno.
A vontade de se tranquilizar quanto ao futuro também desempenha um
papel importante na compreensão dos fenómenos económicos (e, em termos
mais gerais, dos fenómenos científicos). Não queremos ouvir que a luta contra
o aquecimento global será dispendiosa. Donde a popularidade, no discurso
político, da noção de crescimento verde, que sugere, através da sua denomina-
ção, que uma política ambiental seria «benéfica a todos os níveis». Mas se é
assim tão pouco dispendiosa, porque não foi já posta em prática?
Tal como queremos acreditar que os acidentes e as doenças só acontecem
aos outros, e não a nós nem aos que nos são próximos (algo que pode induzir
comportamentos nefastos – uma redução do cuidado ao volante ou da preven-
ção médica –, ainda que nem tudo sejam inconvenientes, pois a despreocupa-
ção neste domínio também confere benefícios em termos de qualidade de vida),
não queremos pensar na possibilidade de a exposição da dívida pública ou do
nosso sistema de segurança social poder pôr em causa a perenidade do nosso
sistema social, ou então procuramos acreditar que será «outro qualquer» a pagar.
Sonhamos todos com um outro mundo, no qual os actores não precisa-
riam do incentivo da lei para se comportarem virtuosamente, não poluiriam
ou pagariam os seus impostos e conduziriam prudentemente, mesmo na ausên-
cia de agentes da autoridade. É por isso que os realizadores (e não apenas os
cineastas de Hollywood) concebem finais condizentes com as nossas expecta-
tivas; esses happy end confortam-nos na ideia de que vivemos num mundo justo,
em que a virtude vence o vício (algo que o sociólogo Melvin Lerner classificou
como «acreditar num mundo justo» – «belief in a just world»2).
1 No seu artigo «Ideology, Motivated Reasoning, and Cognitive Reflection», Judgment and Decision Making,
2013, n.º 8, pp. 407-424. Mais precisamente, Kahan mostra que as capacidades de cálculo e de análise reflexiva
não aumentam a qualidade da revisão das crenças sobre o factor antrópico. Recorde-se que, em 2010, apenas
38 por cento dos republicanos aceitavam a ideia de um aquecimento global que tivera o seu início na era
pré-industrial, e apenas 18 por cento via aí um factor antrópico (ou seja, uma causa humana).
2 No seu livro Belief in a Just World. A Fundamental Delusion, Nova Iorque, Plenum Press, 1982.
1 Daniel Kahneman, Système 1/Système 2. Les deux vitesses de la pensée, Paris, Flammarion, «Essais»,
2012. Ver também os seus trabalhos com Amos Tversky, em particular a sua obra com Paul Slovic,
Judgment Under Uncertainty. Heuristics and Biases, Nova Iorque, Cambridge University Press, 1982.
Consultar ainda, para um ponto de vista diferente acerca da heurística, Gerd Gigenrenzer, Simple
Heuristics That Make Us Smart, Oxford, Oxford University Press, 1999.
economia e sociedade 31
actividade foi interrompida, algo que permanece gravado na nossa memória,
do que dos casos em que as chamadas telefónicas não provocaram qualquer
incómodo. Do mesmo modo, todos receamos os acidentes de aviação e os aten-
tados, pois têm, frequentemente, uma abundante cobertura mediática e esque-
cemo-nos de que os acidentes de viação e os homicídios «vulgares» matam
infinitamente mais do que essas circunstâncias felizmente raras. Por exemplo,
desde o 11 de Setembro de 2001, ocorreram nos Estados Unidos 200 000 homi-
cídios, dos quais apenas 50 foram cometidos por terroristas islâmicos america-
nos1; tal não impede que os actos terroristas fiquem gravados nas nossas mentes.
A principal conclusão dos trabalhos de Kahneman e de Tversky é a de que
estas heurísticas nos induzem, frequentemente, em erro. Os dois psicólogos ofe-
recem vários exemplos deste fenómeno, mas um deles é particularmente escla-
recedor: os alunos de Medicina da Universidade de Harvard cometem erros
consideráveis2 quando se trata de calcular as probabilidades de desenvolver um
cancro à luz de determinados sintomas. No entanto, estamos perante os melho-
res alunos americanos. Uma vez mais, voltamos a encontrar um exemplo de dis-
torção de crenças que não é corrigido por um intelecto muito brilhante ou um
nível de instrução elevado3.
Do mesmo modo em economia, as primeiras impressões, a atenção con-
centrada no que parece ser mais evidente, também nos prega partidas. Obser-
vamos o efeito directo de uma política económica, facilmente compreensível,
mas deixamo-nos ficar por aí. A maioria das vezes, não temos consciência dos
fenómenos de estímulo, de substituição ou de relação intrínseca no funciona-
mento dos mercados; não vislumbramos os problemas na sua globalidade.
Porém, as políticas têm efeitos secundários que podem facilmente transformar
em nociva uma política bem-intencionada.
Encontraremos inúmeros exemplos deste fenómeno ao longo da obra,
mas vejamos desde já um exemplo4 intencionalmente provocador. Se escolho
este exemplo é porque ele permite perceber, de imediato, qual o preconceito
cognitivo que pode levar a uma má compreensão do efeito das decisões de polí-
citados por Simon Kuper no Financial Times de 21 de Novembro de 2015. Obviamente, este valor
exclui as vítimas dos atentados de 11 de Setembro, mas dá uma ideia do problema da percepção.
Kurzman também viria a declarar ao Huffington Post, em 17 de Dezembro de 2015: «Este ano,
um americano muçulmano por cada milhão foi morto por outros americanos devido ao ódio pela
sua fé, ao passo que, assassinados por militantes muçulmanos, o número é de um por cada
17 milhões.»
2 Neste exemplo, metade dos alunos atribuiu a probabilidade de 95 por cento ao desenvolvimento
de uma doença, quando a probabilidade real não superava os 2 por cento. Ver o capítulo 5 para
uma descrição desta experiência.
3 Nos Estados Unidos, não se entra numa Faculdade de Medicina directamente após a escola
1 O que conta para o raciocínio é saber se a acção de venda vai no sentido certo, independentemente
economia e sociedade 33
Do mesmo modo, se a Europa impuser às empresas de um sector exposto
à concorrência internacional a factura pelas suas emissões de gases com efeito
de estufa, as produções emissoras de gases com efeito de estufa neste sector ten-
derão a ser deslocalizadas para países pouco preocupados com as suas emissões,
o que compensará, em parte ou na totalidade, a diminuição das emissões de
gases com efeito de estufa na Europa, gerando um efeito ecológico muito fraco.
Em matéria económica, o inferno está cheio de boas intenções. Qualquer
solução séria para o problema do aquecimento global não poderá ser senão
mundial.
do Mali pode gerar uma onda de generosidade muito superior à suscitada pelas estatísticas da fome,
nomeadamente os milhões de crianças que sofrem de subnutrição. Esta diferença de reacção não
faz, evidentemente, sentido, mas mostra bem como as nossas percepções e emoções afectam os
nossos comportamentos.
economia e sociedade 35