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CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/MAIO – JUNHO DE 2008

SOUSA, Diogo Tourino de. Uma imaginação em compasso com o moderno: linhagens do
pensamento político brasileiro. Boletim CEDES [online], Rio de Janeiro, maio e junho de 2008, pp.
31-39. Acessado em: (...) Disponível em: http://www.cedes.iuperj.br. ISSN: 1982-1522.

UMA IMAGINAÇÃO EM COMPASSO COM O MODERNO:


LINHAGENS DO PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO

BRANDÃO, Gildo Marçal. (2007), Linhagens do pensamento político brasileiro.


São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores.

Diogo Tourino de Sousa1

A recente atenção voltada para o estudo do pensamento social brasileiro, por


um grupo notadamente heterogêneo de pesquisadores nas ciências sociais, tem
procurado mapear a existência de famílias intelectuais ou seqüências que
estruturam histórica e analiticamente o pensamento político no país, identificando
continuidades e descontinuidades possíveis, exercício capaz de incorporar de
maneira igualmente esclarecedora a produção intelectual anterior à própria
institucionalização acadêmica da disciplina, seja ela ensaísta ou mesmo literária
(Botelho, 2007; Brandão, 2007; Weffort, 2006). Curioso notarmos como as ciências
sociais se consolidaram de maneira relativamente autônoma no Brasil apenas na
segunda metade do século XX, em evidente hipoteca a um trajeto de “disputas”
desenhado pelos “clássicos” da disciplina – uma linhagem que se prolonga pelo
menos até o século XIX –, precisamente o que não impede que os estudos sobre
sua constituição e desenvolvimento identifiquem estruturas intelectuais e categorias
teóricas – com base nas quais a realidade é percebida –, cristalizadas ao longo da
nossa formação, recurso fecundo no próprio exame do conteúdo substantivo de
suas formulações e na defesa de modelos normativos para a “correção” presente da
democracia brasileira e suas correlatas instituições.
Certamente a capacidade de produção da “boa teoria” pela ciência política no
país vem, cada vez mais, sendo questionada por sua crescente capitulação diante
do objeto de pesquisa, o que impede a construção de explicações que dêem conta
da totalidade do fenômeno político, suas relações sociais e recortes históricos
1
Mestre e doutorando em ciência política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
e pesquisador do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES/IUPERJ). (dsousa@iuperj.br)
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possíveis, com evidentes aportes normativos: a negação da validade interpretativa


do ensaio, o “culto” ao método, o avanço dos estudos institucionais descolados da
dimensão sócio-histórica, o abandono da atividade negadora e imaginativa própria
do pensamento filosófico, todos esses fatores prejudiciais à possibilidade de
encontrarmos respostas para os “novos” e “velhos” problemas da sociedade
brasileira, aprisionando o pensamento em barreiras disciplinares que obscurecem o
movimento da sociedade no seu conjunto, tornando infecunda a atividade de
reflexão teórica nacional (Brandão, 2007; Lessa, 2003).
Todavia, o esclarecimento das nossas lutas do passado por meio de um
inventário do debate intelectual durante o Império, inaugurado inequivocamente pela
Assembléia Constituinte de 1823 e sua discussão sobre as “modernas” instituições
política a serem implantadas no país, até a primeira metade do século XX, embate
protagonizado muitas vezes por atores políticos que eram, ao mesmo tempo,
autores da política, expõe mais o confronto entre visões de mundo radicalmente
antagônicas do que meramente a adoção de estratégias distintas ante os problemas
enfrentados nos contextos específicos – seguramente ponto não pacífico nas
interpretações em curso (Ferreira, 1999; Santos, 1978) –, o que nos permite
enxergar o trajeto próprio que forma e conforma de maneira inventiva a reflexão
nacional como possível instrumento na reconstrução dessa astúcia teórica perdida.
Fato é que a imaginação aqui em movimento se propunha algo além da
simples constatação da “falta”, buscando, efetivamente, atingir uma imagem forjada
de “boa sociedade” ao inventar o país por meio de referenciais teóricos apropriados
para a interpelação do existente, como percebermos na conhecida descrição de
Euclides da Cunha sobre a singularidade de um mundo que encontrou na teoria
política o lugar da sua nacionalidade, sendo empurrado em ritmo acelerado para a
“civilização” por meio da ação incisiva de sua intelectualidade criadora e por um
Estado confessadamente demiurgo: não éramos inautênticos, mas sim singulares, e
dessa conclusão derivariam nossas instituições políticas (Cunha, 1909).
Resta apenas percebemos como os problemas apontados nesse processo
continuaram auxiliando a compreensão subseqüente, servindo inclusive de fonte
para as ciências sociais institucionalizadas, o que conferiu um importante papel para
os seus “clássicos” enquanto pressupostos necessários para a formulação de
estratégias de intervenção presente, sem deslegitimar o percurso único pelo qual a
imaginação nacional passou em prol de modelos “arbitrariamente” reproduzidos,

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polêmica ilustrada no debate entre Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos no início


da década de 1960. Precisamente aqui se inscreve a exemplaridade de Linhagens
do Pensamento Político Brasileiro, recente trabalho de Gildo Marçal Brandão (2007),
momento inescapável à qualquer aproximação justa do pensamento político que
aqui se deu.
Isso porque, a reflexão sobre a permanência de determinados “dissensos” –
colocados e recolocados na agenda pública em diferentes contextos da história do
país –, e suas visões de mundo correspondentes manifestas na prática de atores
políticos efetivos, ao mesmo tempo em que expostas por autores criativos – ambos,
quando não em simbiose, empenhados na “solução” dos problemas e concretização
de um projeto particular de Brasil –, nos mostra, sobretudo, como o imaginário
nacional incorporou ao seu arsenal interpretativo o que havia de mais aprimorado no
pensamento político ocidental, interpelando a realidade imediata a partir de
experiências refletidas e manipuladas dentro de uma tradição intelectual mais vasta,
momento em que ensinamentos extraídos da literatura estrangeira estariam a
serviço da justificação de afirmações sobre nossa (má)formação e correlata
necessidade de (novos)arranjos institucionais adaptados ao “descompasso”
brasileiro, índice da maturidade da reflexão nacional (Werneck Vianna, 2004).
Trata-se, dentro da proposta desenvolvida em Linhagens, de percebermos no
olhar retrospectivo sobre a “teoria social” produzida no Brasil, e ao mesmo tempo
produtora de “um” Brasil, nos dois últimos séculos como, inequivocamente, o
pensamento nacional foi capaz de incorporar elementos “sofisticados” da tradição
teórica ocidental, comprando o debate acerca da democracia liberal e seus reflexos
institucionais para realidade do país, como no exemplo da disputa entre
centralização e descentralização da organização política e administrativa, “dissenso”
que ocupou o centro da agenda pública durante os principais momentos de
formulação e reformulação das instituições no Império – a Assembléia Constituinte
de 1823, a elaboração do Código de Processo e do Ato Adicional de 1834, no
imediato Regresso Conservador –, assim como na construção da República em
1889 e sua primeira Constituição de 1891, sempre tentativas “revolucionárias” de
acertar nosso passo com o moderno (Carvalho, 1999).
Com efeito, a distinção entre cidadãos ativos e passivos, presente na
Constituição Francesa de 1791, e seus desdobramentos normativos diante das
possibilidades e cobranças colocadas pelo movimento revolucionário francês para o

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mundo moderno – a imposição de novos imperativos morais, liberdade, igualdade e


fraternidade, compondo o passaporte inescapável para a “civilização” –, reverberou
com vigor no pensamento da elite política nacional – sem dúvida um segmento
pouco representativo na sociedade brasileira como um todo2 –, ainda que sua
efetivação esbarrasse em obstáculos outros àqueles existentes no mundo europeu.
Nesse sentido, Brandão nos mostra, por meio da incorporação dos “tipos” idealista
orgânico e idealista constitucional, como tais idéias decantaram em prismas muito
desiguais, cobrando adaptações por vezes inventivas que teriam, em anos recentes,
se perdido na ciência política brasileira (Brandão, 2007).
A assimilação, ainda que instrumental, de momentos significativos do
pensamento político ocidental perpassou a tensão entre correntes opostas sobre a
relação entre federalismo e centralização, liberdade e despotismo, “civilização” e
“barbárie”, ocasionando um rico, e talvez inconcluso, debate em solo nacional sobre
o sentido e a direção da institucionalidade democrática. Polêmica essa que envolveu
uma discussão sobre a estrutura do Estado e sua influência na sociedade, fazendo
com que o imaginário nacional repensasse o andamento “moderno” do país, suas
particularidades e as vicissitudes dos modelos políticos importados em função,
sobretudo, da precedência da Sociologia sobre a Política, ou vice e versa, para o
nosso encaixe nesse campo semântico específico (Werneck Vianna, 2004).
Dessa forma, o ferramental analítico desenvolvido pela pesquisa “genética”
acerca do pensamento social e político brasileiro apresentado por Brandão em
Linhagens nos permite a elaboração de algumas hipóteses de investigação capazes
de jogar luz na relação entre a “constelação de idéias” que povoou o imaginário
nacional passado, que ainda habita os exercícios interpretativos do presente, e seus
problemas históricos específicos, seguramente evitando o erro de reduzir
completamente as idéias ao seu contexto. Esse esclarecimento produz linhas de
interpretação determinadas, a saber, a existência de aproximações e
distanciamentos entre argumentos polares sobre o papel do Estado no

2
O importante papel da elite política imperial na construção do Brasil independente, bem como a
relação entre o êxito da revolução burguesa e a representatividade dessa elite, constitui um dos
alicerces do argumento sobre a presença de um padrão de continuidade nos temas que habitaram
reflexão política nacional. A descrição da composição social e econômica dessa elite e de suas
transformações ao longo do Império demonstra, sem dúvida, particularidades que não podem ser
ignoradas, principalmente com relação ao progressivo declínio de sua homogeneidade ideológica e
de treinamento, fator central na sustentação do sistema político brasileiro no século XIX (Carvalho,
2006). Todavia, o elemento “esotérico” dessa intelectualidade, ponto de contestações sobre seu real
alcance, pode ser diluído na aberta importância que suas formulações tiveram na construção do
Estado nacional e subseqüente imaginação da nação.

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funcionamento da democracia, e na própria feição da democracia a ser aqui


sustentada – uma discordância recorrente em relação aos pressupostos
individualistas que acompanhavam a democracia liberal –, argumentos tributários de
momentos mais amplos da teoria política no Ocidente3.
Por um lado, podemos identificar no liberalismo atual uma continuidade entre
autores – como Tavares Bastos, Raymundo Faoro e Simon Schwartzman4 –, que
mesmo guardadas as suas especificidades teóricas e contextuais, coincidem no
diagnóstico comum sobre os problemas do país e sua solução possível, compondo
um programa de pesquisa amplamente conhecido na defesa da democracia liberal e
adoção de práticas próximas ao liberalismo econômico na consolidação do seu
“projeto”: a “proposta de (des)construção de um Estado que rompa com sua tradição
‘ibérica’ e imponha o predomínio do mercado, ou da sociedade civil, e dos
mecanismos de representação sobre os de cooptação, populismo e ‘delegação’”
(Brandão, 2007, p. 33-34).
Por outro lado, encontramos argumentos contrários ao programa liberal acima
mencionado, também inseridos numa corrente de idéias de longa duração na
história brasileira, defendidos por autores dispersos em nossa formação e com graus
significativos de influência sobre a dimensão estatal – como Visconde do Uruguai,
Alberto Torres, Oliveira Vianna e Francisco Campos –, que compactuam de um
programa de pesquisa comumente denominado conservador, franco em atribuir um
papel distinto ao Estado no desenvolvimento da política brasileira, conferindo
predominância à autoridade sobre a liberdade: a partir da imagem de um Brasil
fragmentado, povoado por indivíduos atomizados, amorfo e inorgânico, o diagnóstico
encontra uma sociedade desprovida de solidariedade que depende do Estado para
manter-se unida. Nesse contexto, a liberdade não sobreviveria sem um Estado forte
e tecnicamente qualificado, soberano ao localismo das “facções”, capaz de
subordinar o interesse privado ao nacional, controlando os efeitos perniciosos do

3
A metodologia utilizada para o mapeamento de “linhagens” no pensamento político brasileiro, aqui
apenas indicada, é, seguramente, influenciada por trabalhos viscerais ao campo de estudo da história
das idéias, representado por autores como Quentin Skinner, presentes no referencial ora adotado
(Brandão, 2007). Segundo a investigação, podemos encontrar autores importantes para o
pensamento social que não podem ser incluídos em uma “família intelectual” específica sem
lançarmos mão de equiparações arbitrárias e indesejáveis. Contudo, é possível identificarmos linhas
de continuidade e descontinuidade entre argumentos polares, mesmo que não totalizantes, relativos
ao papel do Estado no funcionamento da democracia.
4
Conforme Brandão são significativos os trabalhos de Carvalho (1999), Mercadante (1972), Santos
(1978) e Werneck Vianna (2004), para mencionar apenas alguns exemplos, no sentido de reconhecer
a existência de tais linhagens intelectuais associadas a um programa liberal ou conservador de
pesquisa.

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individualismo possessivo, próprios do funcionamento do mercado, ao adaptar a


democracia ao contexto local (Brandão, 2007).
Fato é que transcorridos quase duzentos anos da “solução da
independência”, ponto de partida para o debate em questão ao colocar a realidade
do país e suas instituições imaginadas “fora do lugar” (Schwarz, 1977), podemos
identificar aqui, sem dúvida um dos êxitos de Linhagens do Pensamento Político
Brasileiro, o uso de uma terminologia comum a uma tradição teórica mais vasta,
incorporada de maneira não ortodoxa pela elite política nacional na descrição da
formação “particular” do povo brasileiro e na proposição de modelos normativos
“adequados” ao contexto local. Através deles, a questão de ser a democracia liberal
e seus mecanismos um artefato “exótico”, ou o caminho mais próximo para a
instauração do modelo de sociabilidade anglo-saxônico tão admirado pelos
intérpretes liberais5 salta aos nossos olhos como o epicentro da polêmica que
ocupou a intelectualidade nacional, particular por sua constante vocação pública,
tanto no trato como na escolha dos temas.
Tal particularidade sobressai no exame dos temas que ocuparam a
inteligência nacional, conformada segundo a íntima proximidade estabelecida com o
público e as discussões acerca do interesse comum. Mesmo tendo que se adaptar a
diferentes soluções institucionais ao longo da trajetória de modernização do país –
como as Academias e as Universidades –, a organização da atividade intelectual no
Brasil demonstrou um interessante padrão de continuidade6: ao passo em que a
monarquia brasileira a adotou como parte constitutiva do seu poder, conferindo-lhe

5
A adesão de um determinado conjunto de autores, freqüentemente agrupados sob o rótulo de
liberais, ao modelo anglo-saxônico de sociabilidade pode, com efeito, esconder nuances na sua
classificação ao longo do período histórico trabalhado, sem dúvida objeto de polêmica entre alguns
intérpretes. Trata-se da possibilidade de matizarmos a dicotomia liberais/conservadores por meio de
rótulos como conservadores liberais, liberais moderados ou ortodoxos, ou ainda autoritários
instrumentais, encontrada em importantes estudos sobre o pensamento social e político no país
(Carvalho, 2006; Santos, 1978; Werneck Vianna, 2004). Tal menção se justifica pela suposição nada
pacífica de que liberais e conservadores discordariam apenas em relação aos meios com vistas à
implantação do modelo anglo-saxão entre nós, finalidade essa que seria amplamente aceita por
ambos, restando apenas a controvérsia sobre atingirmos a matriz por ela própria ou pela via
autoritária. Contudo, a existência de visões de mundo inconciliáveis, contrapondo autores como
Tavares Bastos e Oliveira Vianna, por exemplo, pode, segundo Brandão, ser tomada como ponto de
partida para identificarmos a não aceitação geral da individualidade espontânea associada ao
mercado (Brandão, 2007).
6
Maria Alice Rezende de Carvalho trata dos temas sobre a organização dos intelectuais no Brasil
identificando três eras organizacionais distintas: além das Academias e Universidades, a autora inclui
as Organizações não-governamentais como mostra da tentativa contemporânea da inteligência
nacional de se adaptar às exigências da nova ordem globalizada. Com isso, a autora defende a tese
da permanência da vocação pública na atividade intelectual no país até os anos recentes, manifesta
nas mutações organizacionais apontadas (Carvalho, 2007).

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uma evidente dimensão pública e destaque para os “temas da política, da


institucionalização dos mecanismos de poder e de ordenação do mundo público”, a
república voltou-se “para a sociedade, para as relações mediadas pelo mercado e
para os padrões de diferenciação social que operam na estrutura da ordem
moderna”, sem, no entanto, extrair “a experiência dos publicistas, (...) cuja
autonomia derivava de sua peculiar inscrição social, como membros de uma elite
sem amarras no mundo mercantil (...) portadores de uma representação do país
fortemente encapsulada por categorias e esquemas mentais do período anterior”
(Carvalho, 2007, p. 20-21).
A permanência dessa vocação, apontada na organização da inteligência
brasileira, nos ajuda a compreender igualmente o papel desempenhado pela
atividade intelectual nas importantes transformações ocorridas no país: ao abrigar o
discurso dos publicistas a organização republicana abriu a possibilidade para que o
projeto de 1891 fosse compreendido a partir da perda da “grande obra do Estado
centralizador” – como na mencionada formulação de Oliveira Vianna sobre os
idealistas constitucionais (1920), recuperada por Brandão –, gerando uma crescente
hostilidade dos intelectuais em relação aos direitos individuais e promovendo, por
fim, a defesa de um Estado intervencionista que se consolidaria em 1930 – ou
efetivamente apenas em 1937, segundo a interpretação associadas à modernização
conservadora (Werneck Vianna, 2004) –, subordinando os interesses individuais a
uma “razão nacional”, o que nos permite dizer que “o Estado Novo recuperou a
política imperial de fazer da cultura um assunto de interesse público e (...) conferiu a
[sociologia] papel destacado na construção de consenso em torno dos objetivos da
modernização” (Carvalho, 2007, p. 25).
As muitas marcações observadas na história do país sugerem, com efeito, a
possibilidade de compreendermos nossa formação a partir do embate entre projetos
políticos antagônicos, classificados em Linhagens como “famílias” liberais ou
conservadoras a partir da discussão sobre os modos particulares de consolidação
da América entre nós, tendo a institucionalidade democrática e os padrões de
sociabilidade anglo-saxônicos como pontos de disputa. Seguramente, aqui se fez
algo além da simples constatação da “falta”, mostrando uma inteligência capaz de
articular com ardil conceitos e experiências de acordo com necessidades singulares,
projeto exemplar de uma intelectualidade que nunca se eximiu do debate público e

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que obteve, com graus variados de sucesso, influência nas transformações


observadas no cenário político brasileiro (Brandão, 2007).
Contudo, aquilo que ficou conhecido como via americana, em oposição a uma
suposta tradição ibérica – salvo reconhecidas nuances interpretativas –, de
implantação do liberalismo entre nós foi incapaz, ponto fraco de suas formulações,
de tocar no efetivo enigma da situação social do Brasil: o problema da terra e a
existência de um vasto domínio marcado por laços de dependência pessoal,
contexto em que a inescapável condição da cidadania civil para a consolidação da
democracia – passando inclusive pela universalização do sufrágio e autonomização
dos interesses – seria inatingível (Werneck Vianna, 2004). De liberais conservadores
a autoritários instrumentais, os modelos políticos que se sucederam não se
propuseram a alterar essa condição fundamental para que a o liberalismo entre nós
fosse além do “idealismo utópico” descrito por Oliveira Vianna no início do século XX
em aberta insatisfação com a primeira constituição republicana (Brandão, 2007).
Ainda assim, mostrar, por meio do mapeamento de linhagens no pensamento
político nacional como se estruturou uma “crítica” a democracia liberal no imaginário
do país nos dois últimos séculos – especialmente dura no seio do pensamento
conservador, mas não circunscrita exclusivamente a ele – a partir da descrição da
singularidade do caso brasileiro, marcado por uma sociabilidade distante do
individualismo anglo-saxônico e não afeita aos valores de mercado, carente ainda de
intervenções políticas hábeis em conciliar ideais modernos ao contexto local,
classificado amiúde e de maneira equivocada como o atraso, sugere como podemos
recuperar na ciência política o exercício de produção da “boa teoria” talvez perdido
em tempos recentes (Brandão, 2007). A construção de Oliveira Vianna na tentativa
de reconciliar o Brasil real com o Brasil legal pode ser tomada como um paradigma
desse movimento esquecido na reflexão nacional, o que manifesta a intenção
modernizadora de nossa investida intelectual (Werneck Vianna, 2004).
O trabalho de Gildo Marçal Brandão vem, sem dúvida, cumprir a tarefa
exemplar de reconstruir heuristicamente os passos do pensamento político no Brasil,
permitindo que com isso recuperemos a tradição imaginativa que aqui se
desenrolou, comprometida com o debate público e a construção da nação, evitando,
ainda, a sedução pelo processo de produção teórica arbitrariamente “importado” que
negligencia as particularidades do nosso mundo, em seus aspectos positivos e, por
que não, negativos, capitulando em tempos recentes diante da “ilusão” do método.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BOTELHO, André. (2007), “Seqüências de uma sociologia política brasileira”.


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